DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Manuel da Fonseca Benfeito e Arlindo José Francisco, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 28 de setembro de 2020, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., LDA., doravante designada por Requerente, pessoa coletiva número ..., com sede atual na ..., n.º..., ...–... ..., apresentou pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), em conjugação com os artigos 99.º, alínea a) e 102.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente vem deduzir pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) relativas aos períodos de janeiro, fevereiro, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro de 2013, bem como das respetivas liquidações de juros compensatórios, no valor global de € 40.852,30 (€ 34.783,59 de IVA e € 6.068,71 de juros), e da autoliquidação de IVA em excesso [não corrigida por aquelas liquidações], na importância de € 21.781,51, referente aos períodos de tributação de novembro e dezembro de 2013.
O pedido arbitral é apresentado na sequência do indeferimento expresso da Reclamação Graciosa apresentada contra os mencionados atos de liquidação.
A Requerente peticiona a anulação das liquidações, a revogação da decisão de indeferimento da Reclamação e, bem assim, a restituição do valor de € 21.781,51 acrescido de juros indemnizatórios, nos termos previstos no artigo 43.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
Como fundamento das pretensões deduzidas a Requerente invoca, em síntese:
a) A inexistência de duplicação da dedução de IVA no valor de € 5.313,00, por tal duplicação se verificar apenas no lançamento contabilístico que efetuou e não ter sido refletida na declaração periódica do imposto;
b) Ser devida a correção do pagamento de IVA em excesso, na importância de € 21.780,51, decorrente de lapsos no registo na rubrica contabilística #2436 – IVA a pagar – nos períodos de novembro e dezembro de 2013, encontrando-se dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 98.º, n.º 2 do Código do IVA para proceder a essa correção, por não se tratar de um erro material regido pelo artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA, mas de um erro de direito;
c) Não se verificar vício de forma em relação às faturas emitidas pela B..., no valor de € 29.470,59, que discriminam o preço líquido do imposto, não sendo exigível a referência à quantidade e denominação dos bens, por se reportarem a prestações de serviços, sendo o imposto dedutível nos termos dos artigos 19.º, 20.º e 36.º do Código do IVA;
d) Mesmo a admitir-se que essas faturas [da B...] foram emitidas sem forma legal, por não conterem todos os elementos obrigatórios, ficaram demonstradas a extensão e natureza dos serviços prestados de cedência de trabalhadores e, por conseguinte, os requisitos substantivos do direito à dedução, que são suficientes para o efeito, como resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça;
e) Relativamente ao argumento da AT, constante do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, de que a cedência de pessoal sem qualquer margem de lucro nem sequer consubstanciaria uma prestação de serviços passível de IVA, mas um simples débito de despesas fora do escopo do imposto, tal circunstância, de mera refaturação de custos, não corresponde à situação em crise. Porém, mesmo que se considerasse que tinha sido indevidamente liquidado IVA, o imposto seria devido e dedutível nos termos gerais. Posição diversa consubstanciaria vício de duplicação de coleta, nos termos do artigo 205.º, n.º 1 do CPPT.
A Requerente juntou 63 documentos e não requereu prova testemunhal.
Em 10 de julho de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, com a notificação da AT em 16 de julho de 2020.
Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 28 de agosto de 2020, não manifestaram vontade de a recusar.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 28 de setembro de 2020.
Em 4 de novembro de 2020, notificada para o efeito, a Requerida juntou o processo administrativo e a sua Resposta, na qual apresentou defesa por impugnação, pugnando pela improcedência da ação e pela manutenção dos atos contestados na ordem jurídica, que, segundo entende, correspondem ao correto enquadramento jurídico-tributário das operações, conforme preconizado no Relatório de Inspeção Tributária e na decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa.
Por despacho de 10 de novembro de 2020, o Tribunal Arbitral dispensou, por desnecessária, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e concedeu às Partes a possibilidade de se pronunciarem, ao abrigo do disposto no artigo 16.º, alíneas c) e e) e no artigo 29.º, n.º 2, ambos do RJAT.
Em 23 de novembro de 2020, foi determinada a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando o Tribunal como data-limite para prolação da decisão arbitral a prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT. A Requerente foi ainda advertida em relação ao pagamento da taxa arbitral subsequente.
A Requerente produziu alegações finais em 4 de dezembro de 2020, mantendo a posição assumida no pedido arbitral.
A Requerida apresentou alegações em 18 de dezembro de 2020, nas quais reiterou os fundamentos e conclusões constantes da Resposta.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IVA e juros compensatórios impugnados, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, contado da notificação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa (alínea e)).
Importa ter em consideração que o presente processo vem na sequência da decisão de incompetência, de 22 de junho de 2020, proferida por Tribunal Arbitral Singular constituído no CAAD, no âmbito do processo n.º 365/2019-T, por não caber na alçada desse Tribunal (o valor da causa foi fixado em montante superior a duas vezes a alçada do Tribunal Central Administrativo, condição que, de acordo com o preceituado no artigo 5.º do RJAT, determina a intervenção de um Tribunal Arbitral Coletivo, composto por 3 árbitros).
A regra geral no direito português é a de, no caso de propositura da ação ou recurso junto de Tribunal incompetente, o processo ser oficiosamente remetido ao Tribunal competente, ou de ser permitido à parte (autor ou recorrente) que requeira tal remessa ao Tribunal competente. A título de exemplo, vejam-se os artigos 18.º do CPPT, 14.º e 151.º, n.º 4 do CPTA e 99.º, n.º 2 e 105.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (“CPC”).
Neste sentido, também o artigo 24.º, n.º 3 do RJAT dispõe que “quando a decisão arbitral ponha termo ao processo sem conhecer do mérito da pretensão por facto não imputável ao sujeito passivo, os prazos […] para suscitar nova pronúncia arbitral dos atos objeto da pretensão arbitral deduzida contam-se a partir da notificação da decisão arbitral.”
De referir que a matéria do valor da causa não é inequivocamente clara, quer no âmbito da jurisdição arbitral, quer, em geral, no processo jurisdicional tributário. Por outro lado, não se identifica uma atuação negligente por parte da Requerente passível de fundar o afastamento da possibilidade de (re)submissão da causa.
Deste modo, conforme refere a decisão arbitral no processo 434/2018-T, de 6 de agosto de 2019, “o conceito de «facto não imputável ao sujeito passivo» previsto no n.º 3 do artigo 24.º do RJAT deve ser entendido como (i) exigindo um nexo de causalidade adequada entre o comportamento do contribuinte e o resultado; (ii) segundo o padrão do bonus pater familiae; (ii) sendo que a desculpabilidade ou razoabilidade (em termos de um contribuinte normal ou médio) do critério adotado, mesmo que erróneo, afasta a culpa.”
No regime-regra português transparece um marcado pendor pro actione, devendo considerar-se admissível, dado o circunstancialismo descrito, a apresentação, pela Requerente, de novo pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, à face do disposto nos artigos 24.º, n.º 3 do RJAT e 18.º, n.ºs 2 e 4 do CPPT (por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT). De notar que a decisão arbitral proferida no processo n.º 365/2019-T, que julgou incompetente o Tribunal Arbitral Singular, concluiu pela aplicação do citado artigo 18.º do CPPT, com a remessa do processo para um Tribunal Coletivo, como veio a ser impulsionado pela Requerente.
À face do exposto, o pedido arbitral deve considerar-se apresentado na data da primeira petição (aquela que esteve na origem do processo arbitral n.º 365/2019-T), i.e., em 27 de maio de 2019, nos termos do artigo 18.º, n.º 4 do CPPT (aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea c) do RJAT), tendo sido observado pela Requerente o prazo de 15 dias referido no n.º 2 do citado artigo 18.º do CPPT (cuja alteração pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, é de aplicação imediata, uma vez que se trata de norma processual, atento o disposto no artigo 12.º, n.º 3 da LGT).
Este prazo [de 15 dias] inicia-se a partir da notificação da decisão arbitral, como dispõe o artigo 24.º, n.º 3 do RJAT, que regula de forma expressa a respetiva contagem, inexistindo neste ponto caso omisso que suscite a convocação do artigo 18.º, n.º 2 do CPPT (aí adota-se solução distinta, contando-se o prazo a partir do trânsito em julgado da decisão).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
A. A A..., LDA., aqui Requerente, é uma sociedade comercial de responsabilidade limitada com sede e direção efetivas em território português, onde desenvolve a atividade de comercialização de equipamentos e consumíveis farmacêuticos para a comunidade científica, complementando-a com a prestação de serviços de suporte analítico, seminários, demonstrações e assistência técnica – cf. Relatório de Inspeção Tributária, constante do PA (doravante “RIT”).
B. A Requerente é um sujeito passivo de IVA que pratica operações que conferem direito à dedução e está enquadrada, para efeitos deste imposto, no regime normal de periodicidade mensal – cf. RIT.
C. Nas declarações periódicas de imposto referentes aos períodos mensais de janeiro a dezembro de 2013, o valor de IVA pago pela Requerente totalizou € 116 926,87, nos termos do quadro seguinte – cf. documentos 15 a 38, juntos pela Requerente:
DECLARAÇÕES DE IVA
N.º ORDEM PERÍODO VALOR DO IVA (€) DOCUMENTOS
PAGO RECUPERADO
1 2013-01 9 432,89 15 e 16
2 2013-02 576,96 17 e 18
3 2013-03 8 473,27 19 e 20
4 2013-04 6 752,43 21 e 22
5 2013-05 9 484,66 23 e 24
6 2013-06 4 427,66 25 e 26
7 2013-07 18 966,30 27 e 28
8 2013-08 7 674,98 29 e 30
9 2013-09 4 477,07 31 e 32
10 2013-10 2 226,95 33 e 34
11 2013-11 5 568,00 35 e 36
12 2013-12 54 668,36 37 e 38
TOTAIS 116 926,87 15 802,66
D. Em 28 de março de 2013, C... S.A. emitiu à Requerente uma fatura relativa a “Regularização de licenças de software”, no valor de € 23.100,00, sobre a qual incidiu IVA à taxa de 23%, na importância de € 5.313,00, – cf. documento 14 junto pela Requerente.
E. Os movimentos contabilísticos da Requerente evidenciam a dedução do IVA incorrido com aquela fatura em duplicado, em dois períodos distintos. A primeira dedução contabilizada reporta-se ao mês de março de 2013 (conta #24323132316), surgindo novamente a mesma fatura registada em conta de IVA dedutível em maio de 2013 (conta #24321132311), exatamente pelo mesmo valor, de € 5.313,00 – cf. RIT.
F. Ainda no ano 2013, a sociedade B..., LDA. (adiante “B...”) emitiu 13 faturas, discriminadas no quadro abaixo, com o descritivo de “prestação de serviços de acordo com o contrato de 02.11.2013”, nas quais liquidou IVA à taxa de 23%, no valor total € 29.470,59, que foi entregue ao Estado pelo prestador B... e deduzido pela Requerente nas suas declarações periódicas dos meses respetivos – cf. documentos 42 a 54 e 63 juntos pela Requerente e RIT:
FATURAS B... DATA VALOR DO IVA (€) DOCUMENTO
46/2013 27.02.2013 1 605,40 42
76/2013 19.02.2013 1 605,40 43
111/2013 19.03.2013 1 605,40 44
165/2013 18.04.2013 1 605,40 45
196/2013 20.05.2013 1 605,40 46
230/2013 19.06.2013 1 605,40 47
273/2013 15.07.2013 3 210,80 48
304/2013 19.08.2013 1 605,40 49
341/2013 17.09.2013 2 875,00 50
409/2013 27.10.2013 2 875,00 51
472/2013 19.11.2013 2 875,00 52
489/2013 26.11.2013 3.521,99 53
556/2013 18.12.2013 2 875,00 54
TOTAL 29 470,59
G. Nas faturas emitidas pela B... encontra-se discriminado o valor tributável dos serviços prestados, o respetivo IVA, a taxa aplicável e o valor total a pagar (valor tributável adicionado do IVA) – cf. documentos 42 a 54 e 63 juntos pela Requerente.
H. Tais faturas respeitam a serviços de cedência de pessoal à Requerente, que, no final de 2012, rescindiu todos os contratos de trabalho dos colaboradores que tinha nos seus quadros. Estes colaboradores vieram a celebrar contratos de trabalho com a B... que, por seu turno, celebrou com a Requerente, em 2 de janeiro de 2013, um “Contrato de Cedência de Colaboradores”, por um período de 12 meses, renovável até ao máximo de 36 meses, pelo valor mensal de € 6.980,00, acrescido de IVA e suscetível dos ajustes acordados entre as partes. Os referidos colaboradores cedidos estão individualmente identificados – cf. documentos 55 e 56 juntos pela Requerente.
I. A Requerente foi objeto de um procedimento externo de inspeção tributária credenciado pela ordem de serviço OI2017..., referente ao ano 2013, levado a efeito pelos serviços de Inspeção Tributária – Departamento C - Divisão V – EQ2 – da Direção de Finanças de Lisboa, de âmbito parcial, IVA e IRC, visando o controlo do sujeito passivo. Os atos inspetivos iniciaram-se em 21 de agosto de 2017 e terminaram em 19 de fevereiro de 2018 – cf. RIT.
J. Na sequência deste procedimento inspetivo, a AT apurou correções ao IVA deduzido pela Requerente, considerando que esta tinha exercido indevidamente o direito à dedução, no valor de € 34.783,59, ao abrigo dos artigos 19.º, 20.º e 36.º do Código do IVA – cf. RIT.
K. A Requerente foi notificada através do ofício n.º ..., de 30 de janeiro de 2018, para exercer o direito de audição sobre o Projeto de Relatório, nos termos do artigo 60.º da LGT e do artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), faculdade que exerceu em 19 de fevereiro de 2018 – cf. RIT.
L. No direito de audição exercido em 19 de fevereiro de 2018, a Requerente opôs-se à proposta de correções dos serviços de inspeção tributária relativas ao IVA e que respeitavam: i) à dedução em duplicado do IVA constante da fatura emitida pela C... S.A., no valor de € 5.313,00; e ii) à dedução (alegadamente) indevida do IVA de € 29.470,50, mencionado em 13 faturas emitidas pela B..., por inobservância de requisitos formais. Neste âmbito, a Requerente não fez qualquer referência a IVA autoliquidado em excesso por lapsos contabilísticos cometidos e a uma pretensão da sua reversão (restituição deste imposto) – cf. cópia do direito de audição que consta do PA (PA7 e PA8).
M. Subsequentemente, foi a Requerente notificada do Relatório de Inspeção Tributária, datado de 19 de fevereiro de 2018, que concluiu o procedimento inspetivo em análise, mantendo as correções propostas no projeto que, na parte relativa ao IVA, se cifraram no mencionado valor de € 34.783,59, com despacho de concordância, de 20 de fevereiro de 2018, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, por subdelegação de competências – cf. RIT.
N. As referidas correções de IVA são fundamentadas no Relatório de Inspeção Tributária nos moldes que, na parte relevante, se transcrevem – cf. RIT:
“III.2. Em Sede de IVA
III.2.1. IVA Deduzido
III.2.1.1. Fatura nº 800000001 – Duplicação
A C... SA em 28-03-2013 emitiu a fatura nº 800000001 com o descritivo « Regularizações de Licença de software» no valor de € 23100,00 sobre o qual liquidou IVA de € 5.313,00 (taxa de 23%).
Ora o sujeito passivo deduziu o Iva suportado relativamente àquela fatura duas vezes conforme se demonstra no mapa infra (Anexo 3).
Conta Data Diário N.º Diário Descrição Débito
24323132316 – Obs–Tx. Nm.– MN-Art.21-Ded.-25% 2013-03-31 41 30.034 Ft 800000001 C... 5.313,00
24321132311 – Ex. Tx. Nm. – MN-TT/Dedutível 2013-05-31 41 50,067 Ft 800000001 C... 5.313,00
Assim procede-se à correção do Iva deduzido em duplicado no valor de € 5313,00 e contabilizado na conta 24321132311 – Ex. Tx. Nm..-MN-TT/Dedutível, nos termos do nº 1 do artº 19º do CIVA.
III.2.1.2. Artº 36º do CIVA – Dedução IVA com Documento sem forma legal
Nos termos do nº 2 do art.º 19º do Código do IVA (CIVA), só confere direito à dedução o imposto mencionado em faturas e documentos equivalentes passados em forma legal, em nome e na posse do sujeito passivo.
Determina, ainda, o nº 1 do art.º 20º que só pode deduzir-se o imposto que tenha incidido sobre bens e serviços adquiridos, importados ou utilizados pelo sujeito passivo para a realização das operações ali previstas.
A emissão de faturas ou documentos equivalentes deve obedecer, aos requisitos estabelecidos no nº 5 do art.º 36º do CIVA.
[…]
A imposição legal de aplicação detalhada dos elementos previstos no artigo 36.º do CIVA, aquando da emissão das faturas é, como tem reconhecido a jurisprudência portuguesa, não apenas um formalismo complementar, mas verdadeiramente uma forma de controlo fiscal substantiva. De facto, tal como consta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Janeiro de 2008 «é reconhecido o caráter formalista do IVA, em ordem nomeadamente, a evitar, o mais possível, a evasão fiscal, pelo que as respectivas formalidades o são ad substanciam, que não meramente ad probationem». STA de 31/1/08, in rec. nº 902/07.
Também a ficha doutrinária relativa ao processo n.º 2976, com despacho do SDG dos Impostos, em 2012-02-29, vem indicar que as faturas emitidas devem, em conformidade com o ponto 6 do art.º 226.º da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro de 2006, conter a «quantidade e natureza dos bens entregues ou a extensão dos serviços prestados», para que as mesmas se possam considerar passadas na forma legal. E, atento aquele objetivo, o legislador foi especialmente exigente – n.º 6 do dito artigo 19.º: «para efeitos do exercício do direito à dedução, consideram-se passados em forma legal as faturas ou documentos equivalentes que contenham os elementos previstos no artigo 36º…
Em suma, a lei estabelece exigências formais especiais para a emissão das faturas ou documentos equivalentes como condição para a dedução do IVA, por forma a facilitar o controlo da fiscalização e evitar a fuga à tributação. E a fatura que não respeite a forma legal é uma fatura passada em forma não legal e que, por isso, independentemente da efetiva realização da operação que titula, não confere direito à dedução do IVA nela mencionado.
Neste sentido, deve concluir-se que a não discriminação, nas faturas emitidas dos elementos previstos no n.º 5 do artº 36º do CIVA, colocam em causa eventual exercício do direito à dedução.
Após análise aos elementos incluídos nas «fatura», identificadas no quadro seguinte, verifica-se que os mesmos não estão processados de forma legal, pois deles deveria constar, obrigatoriamente, A quantidade e denominação usual dos bens transmitidos e o preço, líquido de imposto face ao estabelecido nas alíneas b) e c) do nº 5 do art.º 36º do CIVA.
Ora a inexistência de tais requisitos obrigatórios, inviabilizam a dedução do imposto mencionado nas seguintes faturas (Anexo 4), face à não descriminação das prestações de serviço, no valor de € 29.470,59.
[…]
VIII – Direito de Audição - Fundamentação
[…]
Analisada a fundamentação do direito de audição, cumpre informar que, não foram apresentados factos novos e não foi contestada a prova efetuada.
Posto isto, importa proceder à apreciação das alegações aduzidas pelo sujeito passivo mais pertinentes.
[…]
«…fatura nº 800000001 – Duplicação (pontos 9 a 15)
O exponente limitou-se a efetuar mapas com os valores declarados nas DP’s anexando listas cujo título é «explorador de vendas» bem como cópia das declarações periódicas entregues.
Como já referido no relatório o artº 44º do CIVA refere «a contabilidade deve ser organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, bem como a permitir o seu controlo, comportando todos os dados necessários ao preenchimento da declaração periódica do imposto (sublinhado nosso).
Ora, a correção foi efetuada com base na contabilidade apresentada e nela não está espelhada qualquer retificação da duplicação da fatura nº 800000001 e tanto do alegado nos pontos 11 e 14 bem como os documentos anexos ao direito de audição (listas de “explorador de vendas» bem como cópia das declarações periódicas de IVA, não comprovam factualmente a não duplicação de IVA dedutível de € 5.313,00 no período 201305, pelo que se mantém as correções propostas.
Relativamente às correções efetuadas nos termos do artº 36 do Código do IVA – Deduções do IVA sem forma legal, o sujeito passivo nos pontos 16 a 61 refere em resumo que a mera formalidade nas faturas não é impeditivo do direito à dedução, chamando à colação acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)
[…]
No caso concreto e conforme já referido, as faturas em questão referem somente:
«prestação de serviços de acordo com o contrato de 02.11.2013»
Ora nem no decorrer dos atos externos de inspeção nem no exercício do direito de audição, tal contrato foi exibido. De realçar que as duas entidades têm um sócio comum.
O sujeito passivo no exercício do direito de audição refere que os valores faturados são inerentes aos custos suportados pela B... referente aos contratos de trabalho com os colaboradores, nomeadamente o IRS, Proteção social, Acidentes de trabalho, ou seja cedência de pessoal (ponto 22).
Importa assim referir o seguinte:
Atendendo à natureza residual e, consequentemente, ampla do conceito de prestação de serviços consignado no n.º 1 do artigo 4º do Código do IVA, em princípio, as operações de cedência de pessoal qualificam-se como operações sujeitas a tributação.
Subsumem-se na norma acima citada todas as situações em que materialmente existe uma colocação de pessoal à disposição, independentemente de tais operações se qualificarem, ou não, em termos jurídicos, como sendo de cedência de pessoal e apesar de os respetivos trabalhadores manterem os seus vínculos laborais originários com as correspondentes entidades patronais.
Face à doutrina veiculada pelo Ofício-circulado n.º 32 344, de 14.10.86, «o simples débito ao Estado, a um sindicato ou outra entidade pública ou organismo sem finalidade lucrativa, da importância correspondente aos vencimentos de um funcionário por esses organismos requisitado, cujo pagamento fora antes efetuado pela empresa, deve considerar-se um simples reembolso de despesas efetuadas, não existindo a prestação de qualquer serviço nem, por conseguinte, a sujeição a IVA».
Esta doutrina administrativa, ou seja, a inexistência de prestação de serviços e, consequentemente, a não sujeição a imposto, é igualmente aplicável em todas as situações em que o montante debitado comprovadamente corresponda ao reembolso exato das despesas com ordenados ou vencimentos, quotizações para a segurança social e quaisquer outras importâncias obrigatoriamente suportadas pela empresa a que pertence o trabalhador, por força de contrato de trabalho ou previstas na legislação aplicável (v.g. prémios de seguros de vida, complementos de pensões, contribuições para fundos de pensões, etc.). Ora conforme se infere, o simples débito das despesas inerentes com o pessoal não configura uma prestação de serviços, pelo que tal IVA não seria igualmente dedutível.
A exiguidade dos elementos disponibilizados à AT, quer os constantes das faturas emitidas quer os fornecidos pelo sujeito passivo, não permitem a AT identificar o correto enquadramento em matéria de IVA, nomeadamente a sua sujeição, e a sua dedução. Assim face ao estipulado no n.º 2 do art.º 19.º do CIVA e na alínea b) do n.º 5 do art.º 36.º do CIVA, e, em virtude das faturas em causa não estarem passadas em forma legal, não se atende a pretensão do sujeito passivo, pelo que o IVA suportado não pode ser dedutível.”
O. A Requerente foi notificada das seguintes liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios decorrentes da ação inspetiva supra mencionada – cf. documentos 2 a 11 juntos pela Requerente:
PERÍODO N.º LIQUIDAÇÃO IVA IVA JUROS DATA LIMITE PAGAMENTO
2013-01 2018 ... 1 605,40 317,73 05-04-2018
2013-02 2018 ... 1 028,44 200,16 05-04-2018
2013-05 2018 ... 10 706,16 1 976,97 05-04-2018
2013-06 2018 ... 1 605,40 290,64 05-04-2018
2013-07 2018 ... 3 210,80 571,08 05-04-2018
2013-08 2018 ... 1 605,40 280,25 05-04-2018
2013-09 2018 ... 2 875,00 491,82 05-04-2018
2013-10 2018 ... 2 875,00 482,68 05-04-2018
2013-11 2018 ... 6 396,99 1 052,26 05-04-2018
2013-12 2018 ... 2 875,00 405,12 05-04-2018
TOTAIS 34 783,59 6 068,72 40.852,31
P. Em resultado do procedimento inspetivo de que foi alvo em 2017 e 2018, a Requerente constatou um lapso no registo de um crédito na rubrica contabilística #2436 – IVA a pagar - diário 63 - registo 120.064, que gerou o pagamento de IVA em excesso, na quantia de € 21.780,51, respeitante ao período de dezembro de 2013 – documentos 1 (decisão da Reclamação Graciosa) e 39 a 41 (extratos de conta e movimentos financeiros) juntos pela Requerente.
Q. O extrato das rubricas contabilísticas #2435 – apuramento do IVA, #2436 – IVA a pagar e #2437 – IVA a recuperar evidencia três valores creditados no registo 120.064 do diário 63, com data de 31 de dezembro de 2013, nos termos do quadro infra – documentos 1 (decisão da Reclamação Graciosa) e 39 a 41 (extratos de conta e movimentos financeiros) juntos pela Requerente:
Diário N.º Diário Crédito
63 120.064 € 58.401,01
63 120.064 € 54.668,36
63 120.064 € 5.568,00
Total € 118.638,27
R. Os montantes de € 54.668,36 e de € 5.568,00 correspondem a saldos efetivos no banco, para pagamento das liquidações de IVA, referentes aos períodos de 2013/11 e 2013/12, como constatado em sede de inspeção tributária, pela análise da reconciliação bancária da Requerente – documentos 1 (decisão da Reclamação Graciosa) e 39 a 41 (extratos de conta e movimentos financeiros) juntos pela Requerente.
S. Contudo, estes valores [€ 54.668,36 e de € 5.568,00] foram erradamente creditados na rubrica contabilística #2436 – IVA a pagar - diário 63 - registo 120.064, apesar de corresponderem ao pagamento das declarações periódicas de IVA relativas aos meses de novembro e dezembro de 2013. Deviam ter sido debitados ao invés de creditados, por respeitarem a saída de fundos (para pagamento das Declarações Fiscais) e não a entradas de fundos – documentos 1 (decisão da Reclamação Graciosa) e 39 a 41 (extratos de conta e movimentos financeiros) juntos pela Requerente.
T. Foi neste âmbito também indevidamente considerada a crédito a quantia de € 58.401,91, para efeitos de apuramento de IVA (rubrica contabilística #2436), que não tem correspondência com movimento em bancos ou com qualquer suporte documental – documentos 1 (decisão da Reclamação Graciosa) e 39 a 41 (extratos de conta e movimentos financeiros) juntos pela Requerente.
U. Não se conformando com os atos tributários de liquidação de IVA e de juros compensatórios, a Requerente apresentou, em 4 de abril de 2018, Reclamação Graciosa contra tais atos, no valor conjunto de € 40.852,31 e, bem assim, contra a autoliquidação de IVA em excesso na importância de € 21.780,51, por erro no apuramento do IVA, conta #2436-IVA a pagar, que, entretanto, havia identificado, tudo perfazendo o total de € 62.632,82 – cf. documento 1 junto pela Requerente.
V. A Reclamação Graciosa foi indeferida por despacho datado de 22 de fevereiro de 2019, do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa, por subdelegação de competências, notificado por via postal registada (com data de expedição de 26 de fevereiro de 2019) – cf. documento 1 junto pela Requerente.
W. Os fundamentos do indeferimento da Reclamação Graciosa são idênticos aos do RIT, a que acresce a apreciação do pedido adicional de anulação do montante de IVA pago em excesso de € 21.780,51 que a Requerente veio solicitar, pela primeira vez, em sede de Reclamação Graciosa, alegando que aquele valor foi considerado erradamente no apuramento do IVA, na conta #2436-IVA a pagar, no período de 12/2013. A respeito deste último pedido, considera a AT que se trata de um erro material, enquadrável no artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA, estando ultrapassado o prazo de dois anos aí previsto, a contar da data da declaração periódica que contém o erro, pelo que decidiu também não ser possível atender essa pretensão da Requerente – cf. documento 1 junto pela Requerente.
X. Em 27 de maio de 2019, a Requerente apresentou junto do CAAD, pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral, que deu origem ao processo n.º 365/2019-T e à constituição de Tribunal Arbitral Singular ocorrida em 8 de agosto de 2019, cujo objeto respeitava aos atos tributários sindicados nos presentes autos. Suscitada a questão prévia do valor da causa, que se fixou em € 62.632,82, o Tribunal julgou-se incompetente para conhecer da mesma, por ultrapassar a alçada prevista no artigo 5.º do RJAT e concluiu que: “Deste modo, é aplicável o artigo 18.º do CPPT e a consequência da incompetência em razão do valor da causa é a remessa do processo para um tribunal coletivo.” – cf. certidão do processo arbitral n.º 365/2019-T junta pela Requerente.
Y. Em 9 de julho de 2020, a Requerente apresentou, de novo, pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou o alegado pela Requerente nos artigos 50.º a 52.º do pedido de pronúncia arbitral, i.e., que a duplicação ocorrida no lançamento/registo contabilístico da mesma fatura n.º 800000001 (e respetivo IVA), emitida pela C... S.A., datada de 28 de março de 2013 – a primeira vez em março de 2013 e a segunda vez em maio desse ano –, não tenha resultado numa duplicação do correspondente IVA deduzido nas declarações periódicas referentes aos meses em causa.
Desde logo, afigura-se que, em princípio, e no contexto do normal funcionamento de um sistema de contabilidade organizada, como é o Sistema de Normalização Contabilística (“SNC”) e da sua interação com as declarações periódicas de imposto, os valores das operações que sejam relevadas contabilisticamente e, no caso em apreço, o registo de um determinado valor numa conta de IVA dedutível, irão ser declarados para efeitos fiscais. Deste modo, por presunção natural derivada das regras da experiência comum, infere-se que o IVA que consta das contas (contabilísticas) de imposto dedutível é, à partida, levado à declaração periódica do mês a que respeita.
Inferência que também emerge do disposto no artigo 44.º, n.º 1 do CIVA, segundo o qual a contabilidade deve possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, “comportando todos os dados necessários ao preenchimento da declaração periódica”. Em suma, o preenchimento das declarações é decorrente da informação relevada contabilisticamente, pelo que o valor inscrito nos campos de IVA dedutível da declaração periódica de um dado mês/período deve corresponder ao valor de IVA dedutível que consta da contabilidade em relação ao mês/período em causa.
A Requerente não contesta a existência de dois registos, em datas, diários e contas diferentes, que traduzem uma dupla dedução do IVA, conforme em sede de ação inspetiva se apurou e é consensual. Afirma, no entanto, que os dois registos contabilísticos só deram lugar à concretização de uma dedução de IVA na declaração periódica do mês de março. Não tendo efetivado tal dedução na declaração de IVA em relação ao segundo registo, do mês de maio.
Porém, a prova documental trazida aos autos não evidencia qualquer movimento contabilístico de regularização e a Requerente limita-se à asserção conclusiva de que é possível obter tal informação: i) do ficheiro SAF-T, que, saliente-se, não juntou aos autos, e ii) da análise da Declaração Periódica de IVA de maio, sem explicar como.
Sobre o ficheiro SAF-T, nem sequer se percebe como tal seria possível, pois o SAF-T de faturação apenas identifica as operações ativas (vendas e prestações de serviços – IVA liquidado) e não as aquisições de bens de serviços, de que provém o IVA dedutível. Quanto ao SAF-T de contabilidade (à data, em 2013, num estado de desenvolvimento muito embrionário ) não se alcança como tal seria possível sem um movimento de regularização, não tendo a Requerente sequer ensaiado proceder à sua explicitação.
Da análise da Declaração Periódica relativa a maio de 2013 e da consulta aos extratos de conta – documentos 39 a 41 juntos pela Requerente – conclui-se, em linha com a AT, que não é “possível confirmar de forma clara e inequívoca a não duplicação, no montante de 5 313,00 €, no período de 05-2013”.
Com relevo para a decisão não existem outros factos alegados que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, competindo-lhe selecionar os factos relevantes para a decisão da causa, recortados em função da sua pertinência jurídica e adequada às várias soluções plausíveis da questão de Direito, nos termos da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2 do CPPT e dos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT .
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros formou-se tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do preceituado no artigo 11.º, n.º 7 do CPPT, e a análise crítica da prova documental junta aos autos (incluindo o PA) que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.
IV. DO DIREITO
1. QUESTÕES DECIDENDAS
São essencialmente três as questões a apreciar e decidir nos presentes autos.
A primeira é de facto e respeita a saber se a Requerente, apesar de ter duplicado o registo contabilístico da fatura emitida pela C..., S.A., contabilizando o IVA dedutível em dobro, apenas deduziu uma vez o imposto incorrido, no valor de € 5.313,00.
A segunda questão prende-se com a qualificação dos lapsos cometidos pela Requerente no registo contabilístico do IVA, por forma a aferir do respetivo enquadramento na previsão do artigo 78.º, n.º 6 (erro material ou de cálculo), ou do artigo 98.º, n.º 2 (erro de direito), ambos do Código do IVA, que estatuem de prazos de caducidade distintos – de dois e quatro anos, respetivamente – para efetivar a correção dos erros identificados.
Por fim, suscita-se a apreciação do vício de forma imputado às faturas do fornecedor B... e da indedutibilidade do correspondente IVA por violação de requisitos formais ad substantiam, atento o disposto nos artigos 19.º, 20.º e 36.º, n.º 2 do Código do IVA.
2. DUPLICAÇÃO DE IVA DEDUZIDO (€ 5.313,00)
Ficou provado nos autos, no que convergiram ambas as Partes, que a Requerente duplicou o lançamento contabilístico do IVA incorrido relativamente à fatura n.º 800000001, de 28 de março de 2013, do seu prestador C..., S.A.. Foram assim realizados dois registos, em datas, diários e contas diferentes, que traduzem uma dupla dedução do IVA relativa à mesma fatura.
Como se referiu supra, a propósito da fundamentação de facto, é razoável concluir, por presunção natural derivada das regras da experiência comum, que o valor do IVA constante das contas (contabilísticas) de imposto dedutível foi realmente deduzido na(s) declaração(ões) periódica(s) do(s) mês(eses) a que respeita(m), em linha com a argumentação da Requerida.
Aliás, o artigo 44.º, n.º 1 do CIVA é cristalino ao manifestar esta correlação entre a informação que consta da contabilidade e o preenchimento das declarações periódicas do imposto, prevendo que “a contabilidade deve ser organizada de forma a possibilitar o conhecimento claro e inequívoco dos elementos necessários ao cálculo do imposto, bem como a permitir o seu controlo, comportando todos os dados necessários ao preenchimento da declaração periódica do imposto.”
Assim, parte-se do pressuposto de que o valor inscrito nos campos de IVA dedutível da declaração periódica de um dado mês/período é originado e tem a sua fonte no valor de IVA dedutível que consta da contabilidade em relação ao mês/período em causa.
Não obstante, a Requerente veio alegar que a duplicação da dedução em análise apenas se verificou no lançamento contabilístico e não teve repercussão no IVA efetivamente deduzido nas declarações periódicas do imposto, em relação às quais apenas foi considerado e deduzido uma vez no mês de março, não tendo tal voltado a suceder no mês de maio.
Só que a Requerente não logrou demonstrar o alegado, limitando-se a afirmações genéricas, sem indicar qualquer concreto movimento contabilístico de regularização ou explicitar as premissas que habilitassem a tirar a conclusão a que chega.
Atenta a presunção de veracidade de que beneficiam os apuramentos inscritos na contabilidade dos sujeitos passivos, consagrada no artigo 75.º, n.º 1 da LGT, aliada à presunção natural da correspondência entre os valores contabilizados e os reportados nas declarações periódicas, competia à Requerente o onus probandi, ou seja, a comprovação de que não ocorrera a duplicação indiciada pelos registos contabilísticos, nos termos do disposto nos artigos 74.º, n.º 1 da LGT e 342.º, n.º 1 do Código Civil. O que não fez.
À face do exposto, improcede nesta parte, a pretensão da Requerente.
3. LAPSOS NOS REGISTOS CONTABILÍSTICOS – IVA PAGO EM EXCESSO – CORREÇÃO – ARTIGO 78.º, N.º 6 VS ARTIGO 98.º, N.º 2 DO CÓDIGO DO IVA
Em 2018, na sequência do procedimento inspetivo a 2013, a Requerente apercebeu-se da ocorrência de lapsos contabilísticos que conduziram ao pagamento de imposto em excesso, no valor de € 21.780,51, na declaração periódica de IVA reportada ao período de dezembro de 2013, tendo também requerido a respetiva anulação na Reclamação Graciosa que deduziu contra os atos de liquidação adicional referentes a esse ano.
A Requerida não põe em causa a verificação dos mencionados lapsos, que constam da matéria de facto assente. Considera-os, porém, enquadráveis na hipótese do artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA e, por essa razão, a sua correção está sujeita ao prazo preclusivo de dois anos previsto nesta norma, findo o qual se extingue a possibilidade de retificar o erro e que em 2018 já tinha decorrido.
Dispõe o citado artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA que “[a] correção de erros materiais ou de cálculo no registo a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º, nas declarações mencionadas no artigo 41.º […] é facultativa quando resultar imposto a favor do sujeito passivo, mas só pode ser efetuada no prazo de dois anos, que, no caso do exercício do direito à dedução, é contado a partir do nascimento do respetivo direito nos termos do n.º 1 do artigo 22.º, sendo obrigatória quando resulte imposto a favor do Estado.”
Constata-se que a aplicação do prazo de dois anos depende da qualificação dos erros como “materiais ou de cálculo” e que, para este efeito, os mesmos podem ocorrer, quer no registo contabilístico, a que se referem os artigos 44.º a 51.º e 65.º para que remete o preceito em apreço, quer no preenchimento das declarações periódicas de IVA a que se refere o artigo 41.º do Código deste imposto.
Não subsistem dúvidas de que o erro foi cometido no registo contabilístico e reiterado no preenchimento da declaração periódica que o tem como fonte de informação reportável à AT. A questão discutida circunscreve-se à qualificação do erro e exige que se determine se, no caso concreto, estamos perante a correção de erros materiais ou de cálculo (o que corresponde à tese da Requerida), ou, diversamente, perante “erros de direito” (como sustenta a Requerente). Isto porque o erro de direito cai fora do âmbito do artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA e beneficia do prazo geral de quatro anos previsto no artigo 98.º desse compêndio, segundo o qual:
“Artigo 98.º
Revisão oficiosa e prazo do exercício do direito à dedução
1 - Quando, por motivos imputáveis aos serviços, tenha sido liquidado imposto superior ao devido, procede-se à revisão oficiosa nos termos do artigo 78.º da lei geral tributária.
2 - Sem prejuízo de disposições especiais, o direito à dedução ou ao reembolso do imposto entregue em excesso só pode ser exercido até ao decurso de quatro anos após o nascimento do direito à dedução ou pagamento em excesso do imposto, respetivamente.
3 - Não se procede à anulação de qualquer liquidação quando o seu valor seja inferior ao limite previsto no n.º 4 do artigo 94.º.”
Como salientam AFONSO ARNALDO e TIAGO DIAS, “[n]o que diz respeito ao erro material e ao erro de cálculo, cuja relevância em matéria de caducidade nos é dada pela previsão normativa do número 6 do artigo 78.º do Código do IVA, a questão da sua definição tem-se apresentado difícil e controversa .”
Para o preenchimento destes conceitos de erro material e de erro de cálculo devemos, desde logo, socorrer-nos do artigo 95.º-A do CPPT, como salientam aqueles autores e é sustentado na decisão arbitral proferida no processo 117/2013-T, de 6 de dezembro de 2013 .
Sob a epígrafe de “Procedimento de correção de erros da administração tributária” o n.º 2 deste artigo 95.º-A determina que se consideram “erros materiais ou manifestos, designadamente os que resultarem do funcionamento anómalo dos sistemas informáticos da administração tributária, bem como as situações inequívocas de erro de cálculo, de escrita, de inexatidão ou lapso.”
Acompanhando a decisão arbitral no processo 117/2013-T, “estar-se-á perante um erro material no preenchimento do montante de IVA dedutível numa declaração quando se pretendia escrever um determinado montante e, por descuido ou lapso, acabou por se escrever montante diferente ou quando o erro do preenchimento da declaração resulta de um erro anterior do mesmo tipo que exista na contabilidade […]. O erro quanto à aplicação de determinados regimes jurídicos não constitui nem erro material nem erro de cálculo, pelo que é manifesto que não pode ser-lhe aplicado o regime do referido n.º 6 do artigo 78.º do CIVA. Designadamente, o erro de cálculo do pro rata não é um erro de cálculo enquadrável nesta norma porque consubstancia um erro de direito sobre o regime jurídico aplicável e não um erro de natureza aritmética.”
Em sentido similar, assinala PATRÍCIA NOIRET CUNHA que o n.º 6 do artigo 78.º do Código do IVA “refere-se expressamente ao erro material ou de cálculo, como o erro na soma, na inscrição, na transcrição das faturas para o registo ou dos registos para as declarações, incluindo ainda a duplicação, a omissão; excluindo assim o erro de direito, resultante de uma interpretação indevida de normas” .
Atento o supra exposto, os erros devidos a descuido ou lapso, o erro na inscrição de valores nos registos contabilísticos e nas declarações periódicas, a duplicação, a omissão ou incorreções de qualquer natureza, como sejam o lançamento de um movimento a débito em vez de ser a crédito, devem ser qualificados como erros materiais que se distinguem do erro nos pressupostos de facto ou de direito que derivam de incorreta interpretação dos factos, ou de errónea aplicação do direito (por força de incorreta interpretação da lei), subjacente ao regime-regra do artigo 98.º do Código do IVA e ao prazo de caducidade de quatro anos .
Este critério é patente em diversos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo. Veja-se, a título ilustrativo, o processo n.º 01427/14, de 28 de junho de 2017, que afastou o erro na interpretação e aplicação do artigo 23.º do Código do IVA do conceito de erro material, por ser “juridicamente complexa pelo que o erro decorrente da aplicação deste regime jurídico não constitui nem erro material nem erro de cálculo”. O acórdão de 18 de maio de 2011, no processo n.º 966/10, também diz respeito a uma situação que não se subsume no disposto no artigo 78.º, n.º 6 do Código do IVA (então artigo 71.º, n.º 6) entendendo aquele Supremo Tribunal que este preceito implica, necessariamente, um erro no tipo de registo especificamente consagrado no artigo 44.º, n.ºs 3 e 4 deste diploma, que menciona, entre outros, o registo do valor do imposto liquidado e do imposto dedutível, o que não sucedia na situação aí apreciada, mas ocorre no presente caso.
Nos presentes autos, está precisamente em causa um erro no registo (em excesso) do valor do IVA liquidado pela Requerente, que gerou, no subsequente (e inerente) preenchimento da declaração periódica de dezembro de 2013, a incorreta inscrição do imposto, passível de configurar um erro material. Acresce que a Requerente, apesar de qualificar esse erro como “erro de direito”, não fornece uma explicação ou pista que nos conduza à conclusão de que o mesmo derivou de um erro nos pressupostos – na interpretação ou enquadramento normativo –, limitando-se a uma afirmação conclusiva, desprovida de qualquer suporte ou explicação.
Afigura-se, deste modo, que a situação sub iudice deve ser enquadrada na previsão do artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA, por estar associada a um lapso material no registo contabilístico do imposto liquidado, aplicando-se, em consequência, o prazo limite de dois anos para proceder à correção do mesmo.
Tendo em conta que o lapso contabilístico se verificou relativamente ao período de dezembro de 2013 e que a Requerente, mais de quatro anos volvidos, em 19 de fevereiro de 2018, em sede de direito de audição, ainda não tinha manifestado a identificação desse lapso, o que só veio a ocorrer (pela primeira vez) na Reclamação Graciosa apresentada em 4 de abril de 2018, é cristalino que o prazo de dois anos estipulado no artigo 78.º, n.º 2 do Código do IVA tinha expirado.
Aliás, mesmo que se defendesse que estaríamos perante um erro de direito e se pugnasse pela admissibilidade da correção do erro no prazo de quatro anos, esse prazo já se encontrava de igual modo transcorrido, pelo que falece razão à Requerente, não padecendo a autoliquidação impugnada do vício de violação de lei que foi por aquela suscitado.
Por fim, convém notar que a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça confirma, em nome da segurança jurídica, a compatibilidade do estabelecimento de prazos de caducidade pelos Estados-Membros para a efetivação de ajustamentos ao IVA inicialmente declarado, de onde resulta que a aplicação de um prazo de dois anos para exercer a regularização de IVA a favor do sujeito passivo, é conforme ao princípio da neutralidade fiscal e da efetividade, quando não estejamos perante situações de fraude e evasão fiscal – cf. acórdãos Ecotrade, de 8 de maio de 2008, processo C-95/07, EMS Bulgaria, de 12 de julho de 2012, processo C-284/11.
Pelos fundamentos expostos, improcede nesta parte a pretensão da Requerente e, bem assim, o pedido dependente de juros indemnizatórios que, de acordo com o preceituado no artigo 43.º da LGT, depende da entrega de prestação tributária em montante superior ao legalmente devido, circunstância que não se verificou in casu, pois a retificação do IVA entregue por lapso já não era possível pelo decurso do prazo de caducidade.
4. REQUISITOS FORMAIS – NÃO DEDUÇÃO DO IVA
A Requerida coartou o direito à dedução da Requerente em relação às faturas emitidas pelo prestador B..., cujo IVA ascendeu a € 29.470,59, por entender que as mesmas não preenchiam as condições formais de exercício desse direito, não estando emitidas em forma legal, por insuficiência do respetivo descritivo relativamente à “quantidade e denominação usual dos bens transmitidos” e ao preço, líquido de imposto, ao abrigo estabelecido nos artigos 36.º, n.º 5, alíneas b) e c) e 19.º, n.º 2, ambos do Código IVA.
Depois dos esclarecimentos prestados pela Requerente no direito de audição, tendo justificado respeitarem tais serviços à colocação de pessoal à disposição, a Requerida acrescentou, que assim sendo (embora não pudesse concluir, em virtude da não exibição do contrato e da exiguidade dos elementos facultados pela Requerente), esses serviços não deviam ter sido tributados em IVA por aplicação da “doutrina veiculada pelo Ofício-circulado n.º 32.344, de 14 de outubro de 1985” e manteve a indedutibilidade do IVA incorrido.
Resultou do adquirido processual que os serviços prestados pela B... à Requerente foram efetivamente de cedência de pessoal, com a identificação individualizada de cada um dos colaboradores cedidos, pelo que a primeira conclusão que importa reter é a de que estamos perante serviços utilizados no âmbito do normal desenvolvimento da atividade [tributável] da Requerente, encontrando-se reunidas as condições materiais do direito à dedução, previstas no artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA.
Em relação aos pressupostos formais do exercício do direito à dedução, plasmados nas normas invocadas pela Requerida, em concreto no artigo 19.º, n.º 2 conjugado com o disposto artigo 36.º, n.º 5, alíneas b) e c), ambos do Código do IVA, verifica-se que as faturas em causa segregam o preço líquido do imposto ao contrário do que é afirmado pela Requerida. Não há, neste segmento, qualquer inobservância da forma legal. Por outro lado, no tocante à não especificação da “quantidade e denominação usual dos bens transmitidos”, uma vez que estão em causa prestações de serviços, deveria ter-lhes sido feita referência e não aos bens.
Ainda que se considere que se trata de um mero lapso e, sem prejuízo de se reconhecer a efetiva insuficiência do descritivo das faturas que mencionam apenas “prestação de serviços de acordo com o contrato de 02.11.2013”, sem precisar a natureza dos serviços em causa e a sua extensão, ou seja, apesar de se constatar que as faturas apresentam deficiências formais, o direito à dedução não pode ser cerceado, demonstrada que seja, por elementos complementares tornados acessíveis pelo sujeito passivo, a efetiva realização dos serviços, a natureza e extensão dos mesmos e a sua conexão à atividade tributável da Requerente.
Assim, em linha com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, de que faz eco a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores e também arbitral, o incumprimento de algumas formalidades das faturas não torna inevitável o afastamento do direito à dedução, como consequência de uma violação do artigo 226.º, n.º 6 da Diretiva IVA.
Compulsando o paradigmático acórdão Barlis, de 15 de setembro de 2016, C-516/14, extrai-se que “a finalidade das menções que devem obrigatoriamente constar da fatura consiste em permitir às Administrações Fiscais a realização de controlos do pagamento do imposto devido e, se for caso disso, da existência do direito a dedução do IVA” e é à luz desta finalidade que importa analisar se as faturas respeitam as exigências do artigo 226.º, n.º 6, da Diretiva IVA – cf. n.ºs 26, 27 e 28. De notar que estas exigências podem ser supridas através de documentos conexos com as faturas, que a estas possam ser equiparados, nos termos do artigo 219.º da referida diretiva, na qualidade de documentos que alteram a fatura inicial e a ela façam referência específica e inequívoca (acórdão Barlis, n.º 34).
Para o Tribunal Europeu, “o princípio fundamental da neutralidade do IVA exige que a dedução deste imposto pago a montante seja concedida se os requisitos materiais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais. Por conseguinte, quando a Administração Fiscal dispõe dos dados necessários para saber que os requisitos materiais foram cumpridos, não pode impor condições suplementares ao direito do sujeito passivo de dedução do imposto que possam ter por efeito eliminar esse direito (v., neste sentido, acórdãos de 21 de outubro de 2010, Nidera Handelscompagnie, C-385/09, EU:C:2010:627, n.º 42; de 1 de março de 2012, Kopalnia Odkrywkowa Polski Trawertyn P. Granatowicz, M. Wąsiewicz, C-280/10, EU:C:2012:107, n.º 43; e de 9 de julho de 2015, Salomie e Oltean, C-183/14, EU:C:2015:454, n.ºs 58, 59 e jurisprudência aí referida).” – cf. acórdão Barlis, n.º 42.
No mesmo sentido, veja-se a síntese da posição do Tribunal de Justiça que consta da decisão do CAAD no processo n.º 96/2018-T, de 30 de outubro de 2018:
“Assim, o TJ conclui que o artigo 178.º, alínea a) da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que as autoridades tributárias nacionais possam recusar o direito à dedução do IVA pelo simples facto de o sujeito passivo possuir uma fatura que não cumpre os requisitos exigidos pelo artigo 226.º, n.º 6 desta diretiva, quando essas autoridades dispõem de todas as informações necessárias para verificar se os requisitos substantivos relativos ao exercício desse direito se encontram satisfeitos – cf. acórdão Barlis, n.º 43 e dispositivo.
Esta posição já tinha sido anteriormente sufragada nos acórdãos de 30 de setembro de 2010, Uszodaépito kft, C-392/09; de 21 de outubro de 2010, Nidera, C-385/09; de 1 de março de 2012, Kopalnia (ou Polsky Trawertyn), C-280/10; de 27 de setembro de 2012, VSTR, C-587/10; de 8 de maio de 2013, Petroma, C-271/12; de 18 de julho de 2013, Evita-K EOOD, C-78/12; de 6 de fevereiro de 2014, SC Fatorie, C-424/12 e de 11 de dezembro de 2013, Idexx Laboratories, C-590/13. Esta jurisprudência constante do TJ afirma que, sem prejuízo da importante função documental da fatura, na medida em que pode conter dados controláveis, conquanto estejam cumpridos e demonstrados os requisitos substantivos, a não observância das formalidades não pode, em princípio, levar à supressão do direito à dedução do IVA, reforçando que este “garante a neutralidade na aplicação do IVA, pelo que não poderá ser recusado somente porque os sujeitos passivos negligenciaram certos requisitos formais, quando os requisitos substantivos tenham sido cumpridos” – cf. acórdão Uszodaépito kft, n.º 38).
Na interpretação do TJ, a exigência de dispor de fatura em todos os pontos conforme com as disposições da Diretiva IVA teria uma consequência inaceitável: a de pôr em causa o direito à dedução do sujeito passivo, quando os dados podem ser validamente comprovados através de outros meios que não sejam uma fatura – cf. n.º 48 do acórdão Kopalnia.
Acresce, neste ponto, e conforme referido na decisão arbitral n.º 3/2014-T, de 6 de dezembro de 2016, convocar o acórdão de 12 de julho de 2012, EMS Bulgaria, C-284/11, “que coloca a questão dos efeitos associados ao incumprimento de formalidades no domínio sancionatório e não no plano (bem distinto) dos efeitos impeditivos ou extintivos do exercício do direito (substantivo) à dedução”.
O referido entendimento tem sido reforçado em jurisprudência posterior, designadamente no acórdão de 15 de novembro de 2017, Rochus Geissel, C-374/16, que recorda que o direito à dedução do IVA não pode, em princípio, ser limitado, e que o regime de deduções visa libertar completamente o empresário do peso do IVA devido ou pago no âmbito de todas as suas atividades económicas, pelo que a dedução do IVA pago a montante deve ser concedida se os requisitos substanciais estiverem cumpridos, mesmo que os sujeitos passivos tenham negligenciado certos requisitos formais (n.ºs 40 a 46 do acórdão Rochus Geissel).
De igual forma, o Acórdão de 15 de setembro de 2016, Senatex, C-518/14, reitera a anterior posição antiformalista e perfilha o entendimento de que, caso ocorra a retificação de faturas que contenham erros (ou omissões), a mesma produz efeitos (retroativos) à data em que as faturas foram inicialmente elaboradas – acórdão Senatex, n.ºs 35 a 43 e dispositivo.
Porém, em situações de fraude, por exemplo, quando a violação das «exigências formais tiver por efeito impedir a prova certa de que as exigências materiais foram observadas», o TJ confirma a admissibilidade, à luz do direito europeu, da recusa do direito à dedução. Neste caso, é necessário que se demonstre que o sujeito passivo «não cumpriu fraudulentamente, o que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, a maior parte das obrigações formais que lhe incumbiam para poder beneficiar deste direito.» – cf. acórdão de 28 de julho de 2016, Giuseppe Astone, C-332/15, n.º 42 e ponto 2 do dispositivo.
A doutrina nacional é parametrizada pela jurisprudência europeia. Segundo Sérgio Vasques, «[a] complexidade que reveste o regime das faturas e a margem de liberdade que ainda é deixada aos estados-membros nesta matéria têm levado à multiplicação de litígios junto do TJUE relativos aos requisitos formais para o exercício do direito à dedução do IVA. Nas suas decisões o tribunal, reiterando embora a função da fatura como suporte do direito à dedução, em correspondência com o artigo 178.º da Diretiva, tem permitido que sobre este requisito de forma prevaleça a substância das operações, sempre que isso se mostre necessário para garantir a neutralidade do IVA e não coloque risco demasiado» – cf. O Imposto sobre o Valor Acrescentado, Almedina, 2015, pp. 340-345 (excerto de p. 341).
Miguel Durham Agrellos e Paulo Pichel, também com apoio na jurisprudência comunitária, consideram que os vícios formais apenas são passíveis de impedir o direito à dedução se puserem «razoavelmente em causa a capacidade de cobrança correta do imposto e de fiscalização pelas autoridades tributárias, de tal modo que esta não está em condições de conhecer a realidade material subjacente, em face dos elementos apresentados pelo sujeito passivo» – cf. “Jurisprudência do TJUE sobre Exigências de Forma das Faturas e Direito à Dedução do IVA”, Cadernos IVA 2015, Coord. Sérgio Vasques, Almedina, 2015, pp. 191-211 (o excerto de p. 194).
No mesmo sentido Cidália Lança refere que «de acordo com a jurisprudência daquele Tribunal [TJ], o princípio da neutralidade exige que a dedução do IVA seja concedida se os requisitos substantivos tenham sido cumpridos, mesmo se os sujeitos passivos tiverem negligenciado certos requisitos formais» – cf. Anotação ao artigo 36.º do Código do IVA: Código do IVA e RITI Notas e Comentários, Coord. e Organização Clotilde Celorico Palma e António Carlos dos Santos, Almedina, 2014, p. 340.”
Na situação em escrutínio a Requerente demonstrou a materialidade das operações inseridas no desenvolvimento da sua atividade. Estas existiram efetivamente, geraram os fluxos financeiros e estão documentalmente suportadas no contrato celebrado. Por outro lado, não se suscita o risco de fraude e evasão, tendo o prestador B..., entregue o IVA liquidado ao Estado. Termos em que a solução jurídica do caso, à luz do disposto no artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA, é a da dedutibilidade do imposto.
No que se refere ao argumento de que as operações de cedência de pessoal faturadas à Requerente reúnem os pressupostos de não sujeição a IVA, explicitados pelo Ofício-circulado n.º 32.344, de 14 de outubro de 1986, por estarmos perante uma situação em que o montante debitado comprovadamente corresponde ao reembolso exato das despesas com “ordenados ou vencimentos, quotizações para a segurança social e quaisquer outras importâncias obrigatoriamente suportadas pela empresa a que pertence o trabalhador, por força de contrato de trabalho ou previstas na legislação aplicável (v.g. prémios de seguros de vida, complementos de pensões contribuições para fundos de pensões, etc.)” e, por conseguinte, não estão abrangidas pela incidência de IVA, nem podendo ser deduzido o imposto que sobre as mesmas tenha sido “indevidamente” liquidado, existem diversos obstáculos à sua validade.
Convém notar que o Ofício-circulado n.º 32.344 se restringe a determinadas entidades públicas ou a organismos sem finalidade lucrativa, tendo sido alargado o seu campo de aplicação aos demais sujeitos passivos pelo Ofício-circulado n.º 30.019, de 4 de maio de 2000.
Desde logo, a Requerida não comprovou o pressuposto (de facto) essencial do regime que invoca, que é o de que os montantes debitados correspondem ao reembolso exato dos custos de natureza salarial associados ao pessoal cedido pela B... à Requerente.
Em segundo lugar, afigura-se que a orientação deste Ofício-circulado viola o princípio da legalidade e da reserva de lei em matéria de incidência tributária, pois cria uma exclusão de tributação sem que exista norma legal que a preveja (cf. artigos 103.º, n.º 2 e 165.º, n.º 1, alínea i) da CRP)).
Ainda do ponto de vista substantivo, tal solução revela-se incompatível com o direito europeu (Diretiva IVA 2006/112/CE). Nesta matéria, o Tribunal de Justiça pronunciou-se recentemente no sentido de considerar que o artigo 2.º n.º 1 da Sexta Diretiva (entretanto substituído pelo artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e c) da Diretiva IVA, mantendo o mesmo teor) se opõe a que uma legislação nacional considere irrelevantes, para efeitos de IVA, os empréstimos ou destacamentos de pessoal, realizados exclusivamente mediante o reembolso dos custos respetivos – cf. acórdão do Tribunal de Justiça, San Domenico Vetraria, de 11 de março de 2020, processo n.º C-94/19.
Declara o Tribunal de Justiça que: “É irrelevante, para este efeito, o montante da contrapartida, designadamente o facto de ser igual, superior ou inferior aos custos que o sujeito passivo suportou no âmbito da realização da sua prestação (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de janeiro de 2005, Hotel Scandic Gåsabäck, C 412/03, EU:C:2005:47, n.o 22, e de 2 de junho de 2016, Lajvér, C 263/15, EU:C:2016:392, n.o 45 e jurisprudência referida). Com efeito, essa circunstância não é suscetível de afetar o nexo direto entre a prestação de serviços efetuada e a contrapartida recebida (Acórdão de 2 de junho de 2016, Lajvér, C 263/15, EU:C:2016:392, n.o 46 e jurisprudência referida) – ponto 29 do acórdão.
Em sentido similar, de que as operações de cedência de pessoal são prestações de serviços e como tal sujeitas a IVA, já se tinha pronunciado o Tribunal Arbitral constituído no processo n.º 142/2012-T.
Em terceiro lugar, porque o “direito circulatório” tem uma “valia jurídica interno-hierárquica”, na aceção de não ser fonte de direito para os contribuintes, que não se encontram vinculados a seguir as orientações administrativas constantes das Circulares e Ofícios-circulados, nem os Tribunais.
Como declara o acórdão n.º 583/2009, de 18 de novembro de 2009, do Tribunal Constitucional, seguido nesta matéria pelo ulterior acórdão n.º 42/2014, de 9 de janeiro de 2014, desse Tribunal:
“Esses atos, em que avultam as «circulares», emanam do poder do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.
A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º -A da lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta perspetiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa.”
De igual modo o Supremo Tribunal Administrativo, no seu acórdão de 16 de setembro de 2020, proferido no processo n.º 01988/07.6BEPRT, assinala que “[T]anto na doutrina fiscalista, como na jurisprudência, a conclusão mais sufragada e difundida, aponta no sentido de que a interpretação da lei, realizada pela administração tributária e aduaneira (AT), através de circulares…, não tem força de lei, nem possui o caráter de vinculação próprio das normas legais, bem como, não constitui interpretação autêntica e, por isso, a sua legalidade pode ser, sempre, questionada, destacadamente, pela via contenciosa.”.
Atentas as razões acabadas de expor, conclui-se que a Requerente reúne as condições substantivas de exercício do direito à dedução do IVA incorrido na aquisição de serviços de colocação de pessoal à disposição adquiridos à B..., nos moldes previstos no artigo 20.º, n.º 1 do Código do IVA, uma vez que:
a) Conseguiu demonstrar a extensão e natureza dos serviços concretos que foram faturados, a altura em que o foram e a sua quantificação;
b) Incidiu IVA sobre essas operações que foi devidamente liquidado pelo prestador;
c) Os serviços adquiridos contribuíram inequivocamente para a realização de operações tributáveis pela Requerente.
Razão pela qual as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios relativas ao ano 2013 enfermam, nesta parte, de erro nos pressupostos e são (parcialmente) anuláveis por vício de violação de lei, de harmonia com o disposto no artigo 163.º do CPA, ex vi artigos 2.º, alínea c) da LGT e 2.º, alínea d) do CPPT. É de igual modo anulável o despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa que, nesta parte, confirmou aqueles atos tributários.
5. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Conforme acima referido, não são devidos juros indemnizatórios em benefício da Requerente, quer por não se constatar o pressuposto da ocorrência de erro imputável aos serviços de que tenha resultado o pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (quanto à dedução de IVA duplicada no valor de € 5.313,00 e aos lapsos contabilísticos de € 21.780,51 relativos a IVA), quer por a Requerente não ter demonstrado que procedeu ao pagamento do imposto remanescente, no valor de € 29.470,59, conforme exigido pelo artigo 43.º da LGT.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil, nomeadamente o vício de duplicação de coleta suscitado pela Requerente.
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral e:
a) Anular parcialmente as liquidações de IVA e de juros compensatórios no valor de € 29.470,59 (IVA) e € 5.142,02 (juros compensatórios), relativas à correção da dedução do IVA das faturas emitidas pela B..., mantendo-se o remanescente;
b) Anular parcialmente a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa na medida em que confirmou os atos tributários na parte anulada;
c) Indeferir o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios,
Tudo com as legais consequências.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor da causa em € 62.632,82, indicado pela Requerente e não contraditado pela Requerida – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. CUSTAS
Fixam-se as custas no montante de € 2.448,00, de acordo com a Tabela I anexa ao RCPAT e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT, sendo, na proporção do respetivo decaimento, € 1.352,83 a cargo da Requerida (55,26%), e € 1.095,17 a cargo da Requerente (44,74%).
Notifique-se.
Lisboa, 30 de dezembro de 2021
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Manuel Fonseca Benfeito
Arlindo José Francisco