Acordam os Árbitros Manuel Luís Macaísta Malheiros (Árbitro Presidente), José Pedro Carvalho e João Santos Pinto, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A, contribuinte fiscal n.º …, com sede na …, requereu a constituição de Tribunal Arbitral, ao abrigo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 10.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, previsto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, doravante designado “RJAT”, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, tendo por objeto o despacho de indeferimento parcial da reclamação graciosa interposta contra a liquidação de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento n.º 2012 …, de 17 de Agosto de 2012, bem como da liquidação de juros compensatórios n.º 2012 …, relativas ao exercício de 2008.
2. É requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (adiante designada por ATA ou Requerida), que sucedeu à Direção–Geral dos Impostos.
3. O pedido de constituição de tribunal arbitral foi validado e aceite em 05 de junho de 2013 pelo Exm.º Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (doravante designado por “CAAD”), tendo sido a ATA notificada da apresentação do aludido pedido na mesma data.
4. Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 1, do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD como árbitros no presente tribunal arbitral, tendo aceite a designação nos termos legalmente previstos.
5. O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído no CAAD, no dia 07 de agosto de 2013 para apreciar e decidir o objeto do presente processo.
6. Em síntese, a Requerente sustenta a sua pretensão no seguinte:
ü De acordo com o n.º 4 do artigo 63.º da Lei Geral Tributária ("LGT"), apenas é permitida a realização de um novo procedimento de inspeção externo respeitante ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação, mediante autorização fundamentada do dirigente máximo do serviço e com base em factos novos.
ü A Autoridade Tributária, após a emissão do relatório final com as conclusões de um procedimento de inspeção externo ao exercício de 2008 e, portanto, após o termo deste, utilizou documentos obtidos em tal procedimento para promover uma correcção a posteriori, encapotada sobre um suposto procedimento de inspeção "interno".
ü A Requerente não entende como pode a Autoridade Tributária argumentar que "não existe uma continuidade de procedimentos inspectivos", mas sim uma acção de inspeção externa, seguida de uma outra interna "despoletada por documentos novos, maxime, documentos da AFH [Autoridade Fiscal holandesa] obtidos no âmbito da assistência mútua e cooperação administração internacional.
ü Se por um lado a Autoridade Tributária considera que apenas procedeu a uma mera análise formal de documentos e coerência dos mesmos, por outro vem invocar novos documentos, que inexistiam à data do termo do procedimento de inspeção.
ü Não se vislumbra qual o enquadramento legal que legitime a realização de uma acção inspectiva de carácter interno ao exercício de 2008 (i) após conclusão da acção inspectiva externa ao mesmo exercício e com o mesmo âmbito e (ii) com base em documentação recolhida no contexto da referida acção inspectiva externa.
ü Os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da proporcionalidade e da boa-fé impõem que o sujeito passivo não se encontre ad eternum dependente da conclusão de diligências por parte da Autoridade Tributária, mormente após ter sido notificado do Relatório de Inspeção, o qual, conforme referido, acarreta o termo do procedimento de inspeção.
ü O procedimento de inspeção interna realizado pelos serviços de Inspeção ao exercício de 2008 padece do vício de ilegalidade, pelo que a respectiva nota de liquidação deverá ser anulada, facto este agravado pelo facto de a situação descrita não ter sido objecto de pronúncia pelos serviços da Autoridade Tributária na decisão de indeferimento da reclamação graciosa.
ü Os argumentos aduzidos pela Requerente em sede de reclamação graciosa, tanto no que concerne à legalidade da acção inspectiva interna com base em documentação obtida no âmbito de uma acção inspectiva externa, como no que respeita à apreciação da questão controvertida de fundo, não merecem qualquer reflexão ou conclusão por parte da UGC, limitando-se esta a apresentar um resumo dos mesmos.
ü Pelo que decisão de indeferimento da reclamação graciosa padece do vício de ilegalidade, por défice de fundamentação, devendo a respectiva nota de liquidação deverá ser anulada.
ü Aquando do pagamento à B, a Requerente efetuou todas as diligências necessárias, por forma a cumprir as obrigações a que se encontrava adstrita em sede de retenção na fonte, tendo requerido à entidade em apreço o formulário 21-RFI, devidamente preenchido, por forma a que beneficiasse das disposições do ADT, encontrando-se a Requerente desse modo dispensado da obrigação de efectuar retenção na fonte.
ü No âmbito da acção inspectiva externa, a Requerente tinha na sua posse o referido formulário, devidamente preenchido e autenticado pelas autoridades tributárias holandesas, as quais atestaram a residência da B para efeitos fiscais, enquanto beneficiária efectiva do rendimento.
ü Para a Requerente, a Autoridade Tributária holandesa certificou que a B, enquanto beneficiário efectivo do rendimento, é residente para efeitos fiscais na Holanda.
ü A Requerente não tinha forma de aferir qual o beneficiário efectivo do rendimento em causa, nem tinha conhecimento de que no caso em apreço seria necessário tal procedimento, uma vez que, conforme referido, se encontrava na posse de um documento devidamente certificado pelas autoridades fiscais holandesas, tendo agido de boa-fé.
ü Se atentarmos às disposições do Código do IRC que impõem ao sujeito passivo o ónus de averiguar se a entidade à qual o rendimento é pago, constitui, igualmente, o beneficiário efectivo (conceito que não se encontra definido na legislação fiscal portuguesa), é notório que esta obrigação é imposta em situações nas quais existem relações especiais (designadamente de capital), permitindo mais facilmente o referido controlo, o que, claramente, não sucede na situação em apreço.
ü A questão da determinação do beneficiário efectivo consubstancia uma questão de natureza complexa, tendo dado origem a relatórios relativos a esta temática por parte da OCDE e ocupando parte dos Comentários ao artigo 1.º do Modelo de Convenção Fiscal sobre o Rendimento e o Património ("Convenção Modelo").
ü À Requerente assiste total liberdade nas decisões de gestão que a afectam, podendo as mesmas ser tomadas com base em diferentes critérios, de diversa natureza, sem que à Autoridade Tributária seja concedida a faculdade discricionária de escrutínio de tais decisões ou de especular acerca das motivações subjacentes às mesmas, sem apresentar elementos concretos que sustentem a sua posição.
ü A "troca de correspondência" que a DIEF pretendia que lhe fosse disponibilizada é inexistente, não porque estejamos perante um elaborado esquema de planeamento fiscal, mas apenas porque, de acordo com os usos comerciais, as negociações nesta sede são desenvolvidas nos termos descritos: numa lógica de proximidade e confidencialidade.
ü O Relatório de Inspeção é omisso quanto aos elementos em que se baseia para promover a liquidação de juros compensatórios sub judice, não fazendo qualquer menção à culpa da Requerente no suposto atraso na liquidação do imposto.
ü A liquidação de juros compensatórios não é uma consequência imediata e automática de qualquer liquidação adicional de imposto, só podendo corresponder, ao invés, ao resultado final de todo o processo cognitivo e valorativo onde se estabeleça o nexo de causalidade referido e se formule um juízo de censura quanto à actuação do contribuinte.
ü Impõe-se, assim, concluir haver ausência de fundamentação da liquidação dos juros compensatórios, nomeadamente no que respeita à culpa da Requerente no suposto atraso na liquidação de imposto, o que viola o disposto no n.º 1 do artigo 35.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 77.º, ambos da LGT, bem como o disposto no artigo 268.º, n.º 3 da CRP.
ü Termina a Requerente pedindo:
o a declaração da ilegalidade da demonstração de liquidação de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento n.º 2012 ...;
o a declaração de ilegalidade do acto de liquidação de juros compensatórios n.º 2012 ....
7. Na sua resposta, a ATA vem tecer, em síntese, as seguintes considerações:
ü No estrito cumprimento da legalidade e, por conseguinte, dos seus deveres, a Requerida efetuou dois procedimentos inspetivos distintos, cumprindo o disposto artigo 13.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT), o qual prevê a possibilidade dos procedimentos inspetivos serem de dois tipos (interno e externo);
ü Não se trata, portanto, ao contrário do alegado pela Requerente, de uma reabertura do procedimento inspetivo mas tão-somente a "...análise formal e de coerência de documentos..." que já estavam na posse da Requerida e, por conseguinte, logicamente e atento à letra da lei, um procedimento interno.
ü No caso sub judice não existe uma continuidade de procedimentos inspetivos, antes sim, tal como resulta dos autos, uma inspeção externa e, posteriormente despoletada por documentos novos, maxime, documentos da AFH obtidos no âmbito assistência mútua e cooperação administrativa internacional, uma inspeção interna;
ü Conforme consta dos autos, a correção fiscal efetuada pela AT resultou do facto da Requerente não ter apresentado documentos que comprovassem, a prestação efetiva do serviço pela B, BV, e consequentemente que provassem que era esta a beneficiária efetiva daquele rendimento para efeitos de aplicação do artigo 98.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas - adiante CIRC.
ü Não tendo ficado provado que foi a entidade B BV que prestou efetivamente o serviço à A, mas que este terá sido prestado por outra entidade residente nas Ilhas Virgens Britânicas, as quais fazem parte da lista dos países de tributação privilegiada, tendo a B sido contratada com o intuito de agir por conta e em nome desta, na faturação e recebimento do "serviço de negociação" com a A, a AT, no estrito cumprimento das suas atribuições, efetuou a correspetiva correção;
ü Um relatório, na sequência de um procedimento inspetivo, é tão só e apenas isso, um relatório que contém, ou não, correções, não é uma ratificação das contas apresentadas pelo contribuinte;
ü A Requerente rebate os argumentos vertidos no relatório de inspeção e sua conclusão, tendo a AT, na apreciação de tais argumentos, indeferido a reclamação graciosa, mantendo o ato tributário com toda a argumentação anteriormente apresentada.
ü Resulta demonstrado que a Requerente entendeu perfeitamente o sentido e alcance da razão de indeferimento e o respetivo fundamento, como resulta do próprio exercício jurídico-argumentativo que faz através do presente pedido de pronúncia arbitral.
ü Não assistindo razão aos argumentos aduzidos pela Requerente, a qual é devedora dos montantes em falta, não havendo lugar à sua dispensa, sendo, por conseguinte, enquanto substituto fiscal, responsável pela entrega do imposto, nos termos do n.º 5, do artigo 90.º-A do CIRC.
ü Pese embora seja verdade que a exigência de juros compensatórios depende da existência de um nexo de causalidade entre a atuação do contribuinte e as consequências referidas lesivas para o Estado, certo é, porém, que a imputabilidade exigida para a responsabilização pelo pagamento de juros, compensatórios depende da existência de culpa por parte do contribuinte e essa culpa existe quando determinada conduta constitui um fato qualificado por lei como ilícito, não porque a culpa seja meramente presumida, mas por ser algo que em regra ou prima-facie se liga ao caráter ilícito-típico do fato respetivo.
ü Conclui a ATA que no seu entendimento o ato tributário é de manter e que os juros compensatórios em causa são devidos, porquanto houve retardamento daquela liquidação, existindo também um nexo de causalidade entre a atuação do contribuinte e as consequências referidas lesivas para o Estado, enquanto credor.
8. Realizou-se no dia 25 de novembro de 2013, pelas 11.00 horas, a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, da qual foi lavrada a respectiva acta que se encontra junta aos autos.
9. Na referida reunião foi decidido que as partes apresentariam as respectivas alegações por escrito, o que ambas fizeram.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- No exercício de 2008, a Requerente efetuou um pagamento de €500.000,00 à entidade B, não residente, sem estabelecimento estável em Portugal, o qual não foi objeto de retenção na fonte.
2- O referido pagamento é suportado por um contrato celebrado entre a Requerente e a referida entidade, em … e a 16-07-2008, com o seguinte conteúdo:
- “The ... will grant the total net amount of € 500.000 to B ...for the assistant for the transfer of the ... to ... from ....”.
3- O mesmo pagamento foi efectuado com base num documento denominado “Invoice”, datado de 21-07-2008, o qual procede à cobrança do valor em causa, com a seguinte referência:
- “Services for our assistance in the transfer of the professional ... Mr. ..., from ... to A, following the agreement signed on 16.07.2008”
4- Aquando do pagamento à B, a Requerente solicitou àquela entidade o formulário 21-RFI, devidamente preenchido, por forma a beneficiar das disposições do ADT em vigor entre a República Portuguesa e o Reino dos Países Baixos.
5- Através do oficio nº …, datado de 2010-07-01, foi acionado pela AT o mecanismo da troca de informações com as autoridades fiscais holandesas, no sentido de serem fornecidas informações e documentos sobre a confirmação dos serviços prestados, para além do mais, pela sociedade B, residente na Holanda, na intermediação da negociação e cedência dos direitos de imagens do ….
6- Na resposta ao pedido de troca de informações supra-referido, a autoridade tributária holandesa, através de ofício junto aos autos, informou, para além do mais, que:
a. a B é residente na Holanda para efeitos de tributação;
b. o serviço em questão (relativo ao …) não foi efectivamente prestado pela B, mas pela sociedade C, residente nas Ilhas Virgens Britânicas;
c. A sociedade B recebeu os montantes facturados que os transferiu imediatamente para o destinatário final, depois de deduzidas as suas comissões.
d. A sociedade B não beneficiou de tratamento mais favorável com base no artigo 28.º do ADT em vigor entre a República Portuguesa e o Reino dos Países Baixos.
7- A resposta acima referida, estava já na posse da AT portuguesa no dia 13-04-2011.
8- No âmbito da Ordem de Serviço n.º …, foi efectuada uma ação inspetiva externa às demonstrações financeiras da Requerente, relativa ao exercício de 2008, que foi devidamente concluída e em cujo relatório final, relativamente à matéria em causa nos presentes autos, não propunha qualquer tipo de correcção.
9- No decurso da referida acção inspectiva externa, a Requerente tinha na sua posse o formulário 21-RFI acima referido, devidamente preenchido e autenticado pelas autoridades tributárias holandesas, as quais atestaram a residência da B para efeitos fiscais.
10- As transferências de valores da Requerida para a B e desta para o destinatário final daqueles, encontram-se devidamente suportados em documentos bancários igualmente remetidos pela autoridade tributária holandesa.
11- No âmbito da Ordem de Serviço n.º … foi efectuada uma ação inspetiva, qualificada pela AT como interna, às demonstrações financeiras da Requerente, relativa ao exercício de 2008, de âmbito parcial, respeitante aos procedimentos adaptados em sede de retenções na fonte de IRC.
12- No âmbito da referida acção de inspeção, em 17 de Abril de 2012, a Requerente foi notificada para a apresentação de elementos comprovativos de que “a entidade B, residente na Holanda, terá efectivamente prestado os serviços declarados”, tendo a Requerente prestado os esclarecimentos que entendeu em 9 de Maio de 2012
13- Em 10 de Julho de 2012, a Requerente foi notificada do Projecto de Conclusões de Relatório, mediante o qual os serviços da Autoridade Tributária propunham uma correcção referente à retenção na fonte alegadamente em falta sobre os pagamentos efectuados à entidade B, pela intermediação na negociação e celebração de contrato de trabalho desportivo de um ….
14- A Requerente não exerceu o direito de audição prévia sobre o Projecto de Conclusões, pelo que a proposta de correcção foi integralmente mantida no Relatório Final de Inspeção Tributária, do qual a Requerente foi notificada em 1 de Agosto de 2012.
15- Na sequência foram emitidas, em 17-08-2012, a liquidação de retenções na fonte de imposto sobre o rendimento n.º 2012 ..., bem como a liquidação de juros compensatórios n.º 2012 ..., relativas ao exercício de 2008.
16- Em 6 de Dezembro de 2012, a Requerente apresentou a respectiva reclamação graciosa.
17- Em 12 de Março de 2013, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, através do Ofício n.º …, de 11 de Março de 2013.
A.2. Factos dados como não provados
1- A informação da autoridade tributária holandesa, foi prestada, após o encerramento do procedimento inspetivo externo, efetuado ao abrigo da referida ordem de serviço n.º OI….
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
A matéria de facto dada como provada resulta essencialmente dos documentos juntos aos autos pelas partes, sendo de uma forma geral consensual entre as partes.
Em especial, o ofício e a data indicados no facto dado como provado no ponto 5, bem como a data indicada no facto dado como provado no ponto 7, resultam do documento 1 junto com a resposta da ATA.
O facto dado como não provado, resulta da ausência de prova suficiente a seu respeito, que deveria, forçosamente, ser documental, e passaria pela demonstração, que não foi feita, das datas em que terminou o procedimento inspectivo externo e em que foi recebida a informação da autoridade tributária holandesa.
B. DO DIREITO
Em face das regras sobre a ordem de conhecimento de vícios que constam do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, apreciar-se-ão prioritariamente os vícios de violação de lei substancial, por serem, aqueles cuja eventual procedência determina a mais estável tutela dos interesses da Requerente.
B.1 Da impossibilidade de realização de mais do que um procedimento de inspecção externo
No caso em análise ocorreram duas inspecções, uma externa e posteriormente outra interna, ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação.
Vem a Requerente alegar que a inspecção interna deveria ser qualificada como externa. A confirmar-se essa possibilidade a realização da segunda inspecção estaria vedada em face da proibição de realização de duas inspecção externas, nos termos do artigo 63.º n.º 4 da LGT. Nos termos do mesmo número apenas se excepcionam i) os casos em que haja decisão fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço ou em que ii) a fiscalização visar apenas a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspecção ou inspecções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.
Analise-se:
Quanto ao lugar do procedimento da inspecção, o artigo 13.º do RCPIT classifica em externa e interna. Nos termos da respectiva alínea a) uma inspecção pode qualificar-se como – interna - “quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;”. Por seu turno, uma inspecção pode qualificar-se como – externa - “quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”
Constata-se assim que a distinção entre inspecção externa e interna não é indiferente, não só pela proibição do aludido artigo 63.º n.º 4 da LGT como também pelo facto de que, no caso de uma inspecção externa, suspende-se o prazo de caducidade do direito à liquidação (cf. artigo 46.º n.º 1 LGT). Na realidade, com a proibição da realização de mais de uma inspecção externa, o legislador pretendeu obstar que a AT suspenda mais de uma vez o prazo de caducidade, abrindo sucessivamente procedimentos de inspecção externa, e de evitar que os contribuintes se sujeitem mais de uma vez às diligências intrusivas permitidas no quadro daqueles procedimentos.
Por último, não obstante a qualificação pela AT de uma determinada inspeção como externa ou interna, nada impede que tal qualificação seja sindicada judicialmente ou em sede arbitral e alterada a sua qualificação em conformidade, se os actos materiais não corresponderem à qualificação inicial, pelo que a questão objecto dos autos é pertinente e importa analisar.
A fim de sustentar a sua posição, veio a Requerente ainda alegar que ao presente caso se deveria aplicar a mesma solução jurídica no âmbito da decisão arbitral proferida no âmbito Proc. n.º 14/2012-T do CAAD.
Nos termos do referido aresto, ofende o princípio da legalidade a “reanálise” de elementos obtidos pela Administração Tributária no âmbito do direito de audição de um procedimento de inspecção depois de elaborado o relatório e concluído o procedimento. Foi entendido que “(…) independentemente de algumas correcções terem sido efectuadas com base em outros elementos fornecidos pela Requerente ao exercer o direito de audição sobre o projecto daquele relatório, é de considerar assente que as correcções efectuadas e notificadas à Requerente tiveram com o fonte elementos recolhidos no procedimento de inspecção externa ao ano de 2001”.
Por seu turno, em sede de alegações de direito, veio a Requerida invocar o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em 13-12-2013 no âmbito do processo n.º 20/13.2BEBRG, o qual em sentido contrário da supra decisão proferida no CAAD, entendeu que: “(…) natureza interna ou externa da inspecção não depende da natureza dos elementos recolhidos, mas do lugar onde se encontram aquando desse procedimento de inspecção.” Concluindo que “para aferir do local dos actos de inspecção não releva saber quais os documentos a inspeccionar mas o local onde estes se encontram.”
Quid juris.
Resulta claro dos autos que em sede da inspecção interna o elemento decisivo para motivar a correcção em causa foi a informação obtida junto da AFH.
Ainda que se tome em consideração a decisão arbitral proferida no âmbito Proc. n.º 14/2012-T, constata-se assim que o elemento decisivo, ou na expressão do Proc. n.º 14/2012-T, a “fonte”, que fundamentou as correcções efectuadas que motivaram a liquidação em causa, foi a informação da AFH obtida através da assistência mútua e cooperação administrativa internacional.
Destarte, conclui-se que teve lugar uma inspeção externa e posteriormente uma inspeção interna, o que é permitido por força do artigo 63.º n.º 4 da LGT, a contrario.
Assim, tendo a liquidação sido efectuada e legalmente notificada dentro do prazo de caducidade, conclui-se que não assiste razão à Requerente, não estando ferido por essa via por vício de lei a realização da segunda inspeção interna. Improcede, assim, o primeiro fundamento de ilegalidade imputado pela Requerente ao acto de liquidação impugnado.
B.2 Da correção promovida
À data dos factos estava em vigor o artigo 90.º-A n.º 2 alínea a) do CIRC, actualmente artigo 98.º CIRC, cuja redacção não difere no que concerne o presente caso.
Nos termos do artigo 90.º-A n.º 1 do CIRC existe dispensa de retenção na fonte (RF) “(…) quando por força de uma convenção destinada a eliminar a dupla tributação ou de um outro acordo de direito internacional que vincule o Estado Português ou de legislação interna, a competência para a tributação dos rendimentos auferidos por uma entidade que não tenha sede direccção efectiva em território português e aí não possua estabelecimento estável (…)”. (sublinhado nosso)
Estipula o artigo 90.º-A n.º 2 alínea a) do CIRC que “nas situações referidas no número anterior, bem como na alínea g) do n.º 2 do artigo 80.º do CIRC, os beneficiários dos rendimentos devem fazer prova perante a entidade que se encontra obrigada a efectuar a retenção na fonte, até ao termo do prazo estabelecido para a entrega do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos das normas legais aplicáveis:
a) Da verificação dos pressupostos que resultem de convenção destinada a eliminar a dupla tributação ou de um outro acordo de direito internacional ou ainda da legislação interna aplicável, através da apresentação de formulário de modelo a aprovar por despacho do Ministro das Finanças certificado pelas autoridades competentes do respectivo Estado de residência;” (negrito e sublinhado nosso)
Como refere Alberto Xavier: “São, pois, características essenciais do regime do artigo 90-A do CIRC: (i) ser uma prova necessária, por considerar que os factos, objecto da prova – em especial a residência do beneficiário dos rendimentos – só podem ser demonstrados por um certo meio de prova, com exclusão de todos os demais admitidos em Direito, (ii) consistir essa prova necessária num acto administrativo de Estado estrangeiro (certificado); (iii) essa prova deve ter como momento necessário de apresentação a data em que o substituto tributário efectuar a retenção na fonte; a consequência da não apresentação da prova nos termos e prazo atrás referidos dar origem a uma prestação patrimonial compulsória consistente no excesso do imposto retido às taxas da lei interna comparado com as convencionais, reembolsável no prazo de dois anos contados da data da verificação do facto gerador do imposto.” (Direito Tributário Internacional, 2ª Ed. Actualizada, Almedina, p. 540)
O artigo 90.º-A n.º 5 do CIRC reforça ainda que: “ (…) quando não seja efectuada a prova até ao termo do prazo estabelecido para a entrega do imposto, e, bem assim, nos casos previstos nos n.ºs 3 e seguintes do artigo 14.º, fica o substituto tributário obrigado a entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos da lei. (Redacção da Lei n.º 67-A/2007, de 31/12)”. (negrito e sublinhado nosso)
A condição da dispensa de RF é assim a apresentação de formulário de modelo a aprovar por despacho do Ministro das Finanças certificado pelas autoridades competentes do respectivo Estado de residência.
Na sequência das alterações ao artigo 90.º-A do CIRC introduzidas pelo Orçamento de Estado para 2008, foi publicado despacho 4743-A/2008, de 8 de Fevereiro de 2008, publicado no Diário da República n.º 37, 2ª série, de 21 de Fevereiro de 2008, foram aprovados novos formulários RFI, em substituição dos que haviam sido aprovados pelo Despacho n.º30359/2007, de 29 de Novembro e que se encontravam em vigor desde 1 de Janeiro de 2008.
Tratando-se de pedido de dispensa total de retenção na fonte do imposto português ao abrigo da CDT o formulário correcto é efectivamente o modelo 21-RFI.
Resulta assim claramente da lei que a apresentação de formulário devidamente certificado pelas autoridades fiscais é o único elemento exigido para a dispensa da retenção nos termos exigidos pelo artigo 90.º-A do CIRC.
No caso em análise, ficou provado que a Requerente fez prova que cumpriu com a condição exigida pelo artigo 90.º-A do CIRC, ou seja, no momento do pagamento da comissão tinha em seu poder o modelo 21 RFI devidamente certificado pelas AFH que a entidade beneficiária do rendimento é residente fiscal na Holanda.
O artigo 90.º-A CIRC não contém qualquer cláusula anti-abuso específica, ou qualquer outra condição adicional. Mais ainda, poderia o legislador ter instituído unicamente o mecanismo do reembolso para dar oportunidade à AT para sindicar o cumprimentos dos requisitos, o que não o fez.
Estando em causa o pagamento de uma comissão por parte de uma entidade residente em Portugal a outra entidade residente na Holanda, deve tomar-se em consideração a CDT em vigor.
Sendo o pagamento efectuado a uma entidade residente na Holanda, tal como ressalta do modelo 21-RFI, a competência para a tributação dos rendimentos é da Holanda dado tratarem-se de rendimentos empresariais (‘lucros das empresas’), e, portanto, enquadráveis no artigo 7.º da CDT (Convenção para Evitar a Dupla tributação) e que não são imputáveis a um estabelecimento estável nos termos do artigo 5.º da CDT.
Constata-se assim que, por força da CDT, a AT não tem assim qualquer legitimidade para questionar o pagamento a uma entidade residente na Holanda, nem tão pouco o pagamento subsequente dessa mesma entidade a uma entidade terceira, in casu residente nas Ilhas Virgens Britânicas, dado estarmos no campo da extraterritorialidade da fiscalidade.
Decorre dos autos, em particular da informação da AFH que terá existido um acordo entre a B e a entidade residente nas Ilhas Virgens Britânicas, à qual a Requerente, por falta de prova em contrário, é alheia.
Ainda quanto à CDT em questão, não se vislumbra qualquer cláusula específica que faça depender o direito de tributar de Estado contratante (neste caso a Holanda) do respectivo nível de tributação. A CDT em questão segue de uma forma geral a Convenção Modelo OCDE (CMOCDE). Acresce ainda que, são os próprios comentários à CMOCDE que propõem um conjunto de soluções em complemento à Convenção Modelo como forma de combater situações de abuso. Um claro exemplo, seria uma clausula adicional de sujeição a imposto “Subject to tax aproach” tal como referido no parágrafo 15 ao artigo 1 da CMOCDE.
A AT na resposta vem ainda apelar ao conceito de beneficiário efectivo, conceito esse presente nos artigos relativos a pagamento de dividendos, juros e royalties (Cf. Art 10, 11 e 12 da CDT Portugal/Países Baixos), citando inclusivamente (erroneamente) comentários da Convenção Modelos OCDE referente a dividendos.
Tal como se referiu supra, o facto da entidade receptora do pagamento ser residente num país com o qual Portugal celebrou um tratado para prevenir a dupla tributação e cuja residência não é questionada, no âmbito de uma comissão paga à entidade residente no outro Estado Contratante e portanto enquadrável nos lucros empresariais, entende-se que apenas através de uma cláusula anti-abuso específica se poderia questionar tal pagamento.
Acresce ainda que, havia um contrato assinado entre a Requerente e a B e o … objecto do contrato celebrado entre as partes foi inclusivamente transferido, aliás, como é do conhecimento público. Até demonstração em contrário, a Requerente, de boa-fé, não reteve na fonte o pagamento efectuado à B cumprindo com o (único) requisito legal para a dispensa de RF.
Se a B, entidade residente na Holanda, ficou com uma parte da comissão e transferiu o remanescente para uma entidade residente nas Ilhas Virgens Britânicas, são factos alheios à Requerente, dado nada não ter ficado provado nos autos que a Requerida sabia ou estaria envolvida nesses acordos. Conclui-se assim que, os termos desse acordo é realizado entre duas entidades não residentes em Portugal – Holanda e Ilhas Virgens Britânicas.
Recorde-se que a Requerida tem a qualidade de substituta tributária, sendo por essa via, enquanto entidade pagadora dos rendimentos responsável pela RF de imposto devido pela entidade beneficiária em caso de não se verificar os requisitos da dispensa. Cumprindo a Requerida com o exigido por lei para que se verifique a situação de dispensa de RF, seria extremamente desproporcional e oneroso imputar a um substituto tributário, sem mais, factos relativos a terceiros e que a AT teve conhecimento através de mecanismos de troca de informações e que não estão ao alcance das partes e nem tão pouco o próprio artigo 90.º-A n.º 2 do CIRC o exige.
A AT em sede de decisão final da reclamação graciosa (cf. pg. 4), vem ainda reforçar que “o certificado RFI só afasta da tributação os rendimentos que sejam auferidos pela entidade B BV abrangidos nos termos da Convenção e cuja tributação se localize na Holanda”. Ora, os requisitos adicionais de prova que a AT exigiu e veio fundamentar a liquidação adicional implicam a violação do artigo 90.º-A n.º 1 CIRC. Como não poderia deixar de ser, o próprio despacho 4743-A/2008, de 8 de Fevereiro de 2008, estipula que os novos formulários decorrem da adaptação à nova redacção do próprio artigo 90.º-A do CIRC.
Deste modo, resulta dos autos que não tenha ficado provado que a B não prestou o serviço. Mesmo que assim não se entendesse, e se concluísse que dos autos resulta, para lá de qualquer dúvida razoável, que o serviço faturado não foi prestado pela B, tal seria insuficiente para legitimar a tributação operada pela liquidação impugnada. Com efeito, tal tributação não se bastaria com a mera prova negativa relativamente àquela entidade, mas demandaria que se demonstrasse, pela positiva, que o serviço (ou um serviço) havia sido prestado por uma entidade não residente. Ora, para lá de tudo o mais, esta prova não está efectivamente feita.
A este respeito, diga-se, a argumentação da AT acaba por ser contraditória, na medida em que alega que a Requerente não demonstra que o serviço foi efectivamente prestado, dispensando-se ela própria de demonstrar que tal serviço foi efectivamente prestado por uma entidade não residente, o que seria pressuposto da liquidação por si elaborada.
Assim, e em suma, se a convicção da AT era a de que o serviço faturado não foi, de todo prestado, deveria desconsiderar o custo da mesma, no exercício da requerente, e não, como pretende, tributar a operação reputadamente inexistente. Se a convicção da AT era a de que o serviço havia sido prestado, mas por um não residente, deveria demonstrar, ela própria isso mesmo, e não o fez.
Fica provado que a B com o pagamento reservou para si parte da comissão e transferiu o remanescente para uma sociedade residente nas Ilhas Virgens Britânicas, a que a Requerente, por falta de prova em contrário, é totalmente alheia, não tendo assim como conhecer nem tendo a obrigação de conhecer. Ainda que assim não se entendesse, o contrato existe, o pagamento foi feito a uma entidade residente na Holanda, e a Requerente cumpriu com o requisito de dispensa de RF, não tendo por seu turno a Requerida accionado qualquer mecanismos anti-abuso eventualmente aplicável.
Em consequência, conclui-se que a correcção efectuada não tem fundamento legal, pelo que enferma de vício de violação de lei por erro sobre os pressupostos de direito, que justifica sua anulação nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT e 2.º, alínea c) da LGT.
B.3 Da falta de fundamentação do acto tributário
Tal como já anteriormente decidido em sede arbitral em sede do Processo n.º 91/2012-T – CAAD: “A procedência integral dos vícios de violação de lei prejudica o conhecimento dos vícios de forma e procedimentais, como decorre da ordem do conhecimento de vícios
prevista no n.º 2 do artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável por força do disposto
na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Na verdade, o estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios só se justifica pela eventual procedência dos vícios de conhecimento prioritários tornar desnecessário o conhecimento dos restantes, pois, se fosse sempre necessário conhecer se todos os vícios seria irrelevante a ordem do seu conhecimento.
Pelo exposto, procedendo os vícios de violação de lei, fica prejudicado o conhecimento do vício de falta de fundamentação.
C. Decisão
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar procedente o pedido declaração de ilegalidade da liquidação adicional de IRC impugnada, e correspondente liquidação de juros compensatórios anulando-as; e
b) Condenar a Requerida nas custas do processo, devendo ter-se em conta os pagamentos entretanto efetuados.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 86.515,06, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força do das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 2.754,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar integralmente pela Requerida, uma vez que o seu pedido foi integralmente indeferido, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, Centro de Arbitragem Administrativa, 5 de Fevereiro de 2014.
Os Árbitros
(Manuel Luís Macaísta Malheiros - Presidente)
(José Pedro Carvalho)
(João Santos Pinto - Relator)
A decisão arbitral foi redigida em conformidade com as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo
Civil, aplicável ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do Regime de Arbitragem Tributária.