DESPACHO ARBITRAL
Na sequência da Decisão Sumária proferida pelo Tribunal Constitucional em 29 de outubro de 2021, já transitada em julgado, que determinou a reforma da decisão proferida nos presentes autos, profere-se nova decisão arbitral.
Lisboa, 7 de fevereiro de 2022
A árbitro presidente com a concordância de todos os árbitros,
Alexandra Martins
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), Fernando Borges de Araújo e João Menezes Leitão, designados pelas Partes, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua..., n.º..., ..., ..., ..., ...-... Algés, apresentou, em 6 de janeiro de 2020, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea b), 6.º, n.º 2, alínea b) e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade e anulado parcialmente o ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e derrama municipal referente ao período de tributação de 2014, no valor de € 285.321,75, na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa da referida (auto)liquidação, com a consequente restituição daquela quantia, acrescida de juros indemnizatórios.
Como fundamento da pretensão deduzida, a Requerente alega erro de direito, por considerar que a revogação do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), pelo artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, veio implicar a dedutibilidade fiscal, com referência ao período de tributação de 2014, dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital que havia acrescido à base tributável de IRC em exercícios anteriores, e que não puderam, até essa data, beneficiar do regime de exclusão de tributação (nomeadamente porque as partes de capital não foram alienadas), conforme reconhecido por diversa jurisprudência arbitral tributária que cita.
Em traços gerais, a Requerente destaca que o regime revogado consagrava uma exclusão de tributação das mais-valias realizadas por SGPS em relação a partes de capital de que fossem titulares, determinando, como contrapartida, a irrelevância fiscal dos encargos financeiros incorridos com a respetiva aquisição. Deste modo, a ratio desta disciplina não era limitar a dedutibilidade dos encargos financeiros suportados por SGPS per se, mas assegurar uma simetria ou balanceamento entre a exclusão de tributação e a não dedução fiscal dos gastos (financeiros) inerentes . Com esta solução, o legislador evitava que o sujeito passivo tivesse uma dupla vantagem – a exclusão da mais-valia da tributação e a dedução do gasto financeiro – com base no mesmo pressuposto económico.
Aduz a Requerente que, de acordo com a disciplina revogada e como corolário do sinalagma entre a exclusão de tributação (das mais-valias) e a indedutibilidade fiscal (dos encargos financeiros inerentes à aquisição das partes sociais), os encargos financeiros eram dedutíveis ao lucro tributável das SGPS se, e quando, o rendimento obtido com a alienação daquelas fosse tributado em IRC, conforme estipulava o ponto 6 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC.
Neste âmbito, determinava a referida Circular que, concluindo-se, no momento da alienação das participações, não estarem reunidos os requisitos de aplicação do regime de exclusão de tributação, devia proceder-se “à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.
Segundo a Requerente, a revogação da exclusão de tributação das mais-valias para as SGPS conduziu à impossibilidade definitiva de aplicação do regime por facto imputável ao legislador, circunstância que não pode deixar de enquadrar-se na solução do ponto 6 da Circular n.º 7/2004, sob pena de violação do princípio de proteção da confiança ínsito no artigo 2.º da Constituição, neste caso especialmente gravosa por contrariar expetativas que a própria AT gerou, por meio do “direito circulatório” – artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária (“LGT”).
Por outro lado, a consagração generalizada, em vigor a partir de 1 de janeiro de 2014, de um regime de não tributação das mais-valias (participation exemption), concomitante à revogação do regime especial que vigorava para as SGPS, não foi acompanhada de uma regra similar de desconsideração fiscal dos gastos financeiros suportados com a aquisição de participações elegíveis. Situação que, para a Requerente, gera desigualdade, pois as SGPS em relação às demais sociedades partem de um ponto distinto, já tendo sido penalizadas pelo acréscimo, até 31 de dezembro de 2013, dos encargos financeiros conexos com a aquisição daquelas participações.
Entende ainda a Requerente que o âmbito de aplicação e o objeto dos dois regimes (o do artigo 32.º, n.º 2 do EBF [revogado] e o da participation exemption) obedece a um racional distinto e que a manutenção da regra de não dedução condicionada dos encargos financeiros não pode prevalecer ao abrigo da participation exemption, pois não decorre de qualquer norma transitória estabelecida na Lei do Orçamento do Estado para 2014 [Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que revogou o artigo 32.º do EBF], ou da Reforma do IRC [aprovada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro].
À face do exposto, a Requerente conclui que se impunha à AT a revisão da autoliquidação de IRC, por desconsideração indevida da dedução de encargos financeiros, no valor de € 1.164.578,58, associados a dívida contraída para aquisição de partes de capital. Isto, na sequência do pedido de revisão oficiosa que lhe dirigiu, dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária. Salienta, a este respeito, que o erro na autoliquidação é assimilado a erro imputável aos serviços, para efeitos de enquadramento na previsão do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, dada a equiparação operada pelo artigo 78.º, n.º 2 da LGT, na redação vigente à data dos factos.
Em 7 de janeiro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT em 16 de janeiro de 2020.
No uso da prerrogativa prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, A Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo.
Por seu turno, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 3 do RJAT, a Requerida indicou como árbitro o Dr. João Menezes Leitão.
Na sequência dos requerimentos apresentados pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 10 de março de 2020, do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.
Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação, em 11 de março de 2020, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo estas manifestado oposição.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 6 de julho de 2020.
Em 23 de setembro de 2020, notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação e juntou, subsequentemente, o processo administrativo (“PA”)
Sustenta essencialmente a Requerida que:
a) A revogação do artigo 32.º do EBF coincide com a introdução generalizada do regime de participation exemption no artigo 51.º-C do Código do IRC, que mantém a possibilidade de realização de mais-valias em moldes idênticos [de não tributação] aos antes previstos para as SGPS, só que agora, de caráter universal e horizontal, i.e., também em benefício de outros sujeitos passivos de IRC, pelo que não ocorre qualquer penalização daquelas entidades;
b) A eliminação do artigo 32.º do EBF, que discriminava de forma positiva as SGPS face a outros contribuintes, não colocou essas entidades em situação globalmente desfavorável que viole o princípio constitucional da igualdade, na sua dimensão fiscal;
c) Não se verifica violação do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, situando-se a recaptura dos encargos financeiros prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, no exercício da alienação das partes sociais e nunca em 2014;
d) Não foi introduzida qualquer norma transitória que preveja a possibilidade de dedução dos encargos financeiros acrescidos nos exercícios anteriores pelas SGPS, pelo que seria materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente por violação dos princípios da legalidade tributária e da igualdade tributária (artigos 103.º e 13.º da Constituição) e, bem assim, do Estado de Direito, da reserva de lei fiscal e da separação de poderes (artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da Constituição);
e) A pretensão da Requerente consubstancia uma aplicação retroativa da lei, de uma só vez, por via da imputação ao lucro tributável de 2014, de encargos suportados em exercícios anteriores (2010 e 2013) e desrespeita o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real, na medida em que viola o princípio da especialização dos exercícios e se abstrai da situação concreta de tributação das participações quando, no futuro, forem alienadas;
f) Não se verifica unanimidade na jurisprudência arbitral tributária sobre esta matéria, que tem sido objeto de decisões divergentes;
g) Em qualquer caso, a Requerente não demonstrou os factos que invoca, diferentes dos constantes das suas declarações periódicas, que gozam de presunção de veracidade de acordo com o disposto no artigo 74.º da LGT, ónus que sobre si recai;
h) Não são devidos juros indemnizatórios, por não ser procedente o pedido arbitral, mas, se o fosse, seria de aplicar ao seu cômputo o disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.
A Requerida conclui pela improcedência do pedido, por não provado, e pela absolvição de todos os pedidos com as legais consequências.
Por despacho de 25 de setembro de 2020, o Tribunal Arbitral dispensou, por desnecessária, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e concedeu às Partes a possibilidade de se pronunciarem.
Em 15 de outubro de 2020, foi determinada a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando o Tribunal como data-limite para prolação da decisão arbitral a prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
Em 29 de outubro de 2020, a Requerente apresentou alegações, reiterando a posição anteriormente enunciada.
Em 12 de novembro de 2020, a Requerida contra-alegou e manteve os fundamentos e conclusões constantes da Resposta.
Foi prolatada decisão arbitral em 10 de dezembro de 2020, tendo a Requerida interposto recurso para o Tribunal Constitucional em 6 de janeiro de 2021.
O Tribunal Constitucional proferiu Decisão Sumária em 29 de outubro de 2021, a qual determinou a reforma da decisão, por não considerar desconforme ao princípio da igualdade e ao princípio da proteção da confiança a interpretação segundo a qual o artigo 210.º da Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), que revogou o artigo 32.º, n.º 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), não admite a dedução de encargos financeiros suportados pelas SGPS até 31 de dezembro de 2013 respeitantes à aquisição de partes de capital de que ainda fossem titulares à mesma data.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de autoliquidação de IRC na parte controvertida, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão submetido pela Requerente (alínea d)).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
A. A A..., S.A., aqui Requerente, é uma sociedade de direito português cujo objeto social consiste na gestão de participações sociais, como forma indireta do exercício de atividades económicas, sendo, no período de tributação de 2014 – coincidente com o ano civil – a sociedade dominante de um grupo de sociedades submetido ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”), previsto no artigo 69.º do Código do IRC, denominado GRUPO B... – cf. Documento 1 e provado por acordo.
B. Em 2014, faziam parte do perímetro do GRUPO B..., entre outras, as seguintes sociedades, cujo objeto social consistia na gestão de participações sociais:
i) C..., S.A., doravante, “C...”, pessoa coletiva n.º ...;
ii) D...– SGPS, S.A., doravante, “D...”, pessoa coletiva n.º ...; e a
iii) E...– SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, LIMITADA, doravante, “E...”, pessoa coletiva n.º...,
– cf. Documento 1 e provado por acordo.
C. Nos períodos de tributação compreendidos entre 2010 e 2013, as sociedades dominadas acima identificadas acresceram aos seus resultados tributáveis individuais o valor global de € 1.170.104,11, referente a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC, conforme discriminado no quadro seguinte:
SOCIEDADE ANO VALOR DOCUMENTO JUNTO
A...SGPS, SA 2012 € 91.915,37 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 3
A... SGPS, SA 2013 € 411.196,96 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 4
C... 2010 € 9.711,03 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 5
C... 2011 € 18.891,12 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 6
D... 2010 € 598.355,64 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 7
E... 2010 € 10.573,48 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 8
E... 2011 € 13.216,06 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 9
E... 2012 € 5.880,58 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 10
E... 2013 € 10.363,87 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 11
TOTAL € 1.170.104,11
D. No período de tributação de 2013, a Requerente alienou à F... a participação financeira (partes de capital) de 100% que detinha numa sociedade de direito espanhol, G..., S.A., e alienou à subsidiária H... a participação de 75% detida numa sociedade residente na Tunísia, a I... (Middle East & North Africa), em relação às quais considera serem imputáveis encargos financeiros não dedutíveis, no montante de € 5.525,40. Este valor foi determinado de acordo com um método proporcional que compara o peso relativo, tendo em conta o critério do respetivo custo histórico, das partes de capital alienadas em 2013, face ao total das partes de capital considerado no âmbito do cômputo dos encargos financeiros acrescidos (não aceites) nas Declarações Modelo 22 dos exercícios de 2012 e 2013, nos seguintes moldes – cf. Documento 13:
A..., SGPS, SA Custo histórico de aquisição % do custo histórico Encargos financeiros não aceites em 2012 e 2013
… das partes de capital considerado para efeitos do cômputo dos encargos financeiros não aceites em 2013 e 2012 € 211.897.272,10 100,00% 503.112,33
I... € 66.148,10 0,03% € 157,00
G... € 2.261.000,00 1,07% € 5.368,34
Total de encargos financeiros não aceites (em 2012 e 2013) imputáveis às partes de capital alienadas em 2013 € 5.525,40
E. Quer a Requerente, quer as sociedades dominadas C..., D... e E... não recuperaram qualquer montante dos encargos financeiros acrescidos nos exercícios de 2010 a 2013 por aplicação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e da Circular n.º 7/2004, na medida em que as participações sociais cuja aquisição está na origem desses encargos financeiros não deduzidos fiscalmente, com exceção das do ponto antecedente, não foram alienadas até 31 de dezembro de 2013 – cf. Documentos 12 a 25 e 26 a 30.
F. Em 28 de maio de 2015, a Requerente apresentou, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal que encabeça – o mencionado GRUPO B... –, a Declaração de Rendimentos Modelo 22 referente ao período de tributação de 2014, identificada pelo n.º...– cf. Documento 1 e provado por acordo.
G. Nesta Declaração Modelo 22 do Grupo, a Requerente apurou como resultado fiscal do Grupo o valor de € 11.808.485,65, que, após dedução de prejuízos fiscais na importância de € 3.995.644,15, se cifrou numa matéria coletável não isenta de € 7.812.841,50 e no valor a pagar de € 2.561.326,15, a título de IRC e derramas – cf. Documento 1 (campos 380, 382, 309, 346 e 367) e provado por acordo.
H. A Declaração Modelo 22 do Grupo, relativa ao exercício de 2014, deu origem à Demonstração de Liquidação n.º 2015..., datada de 13 de agosto de 2015, que evidencia o valor de IRC e derramas, no total de € 2.561.326,15, oportunamente pago pela Requerente – cf. Documento 2 e PA28.
I. Em 27 de maio de 2019, a Requerente submeteu pedido de revisão parcial do ato tributário de autoliquidação de IRC reportado ao exercício de 2014, tendo em vista a sua correção oficiosa, mediante dedução dos encargos financeiros de € 1.164.578,58, que haviam sido acrescidos ao lucro tributável, em observância do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, até 31 de dezembro de 2013, e peticionou o reembolso do IRC pago em excesso em 2014 e correspondentes juros indemnizatórios – cf. Documento 31 e PA.
J. Em 6 de janeiro de 2020, a Requerente apresentou no CAAD, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo, na sequência da formação da presunção de indeferimento do mencionado pedido de revisão de ato tributário, atento o decurso do prazo de 4 meses sem que lhe tivesse sido notificada qualquer decisão da AT – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão não se identificaram factos que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção do Tribunal fundou-se nas posições assumidas pelas Partes em relação aos factos essenciais e na análise crítica da prova junta aos autos – toda documental –, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.
A impugnação genérica da base de facto invocada pela Requerente no articulado da Requerida (artigo 141.º da Resposta) não contraria a força probatória dos documentos carreados ao processo, que são em parte significativa as próprias declarações Modelo 22 submetidas pela Requerente e sociedades subsidiárias, que contêm, no seu quadro 07, o acréscimo dos encargos financeiros cujo enquadramento jurídico-tributário aquela pretende revertido com a presente ação, além de que a falta de contestação especificada dos factos é livremente apreciada pelo julgador, de harmonia com o disposto no artigo 110.º, n.º 7 do CPPT.
IV. DO DIREITO
1. QUESTÃO A DECIDIR
A questão substancial a decidir respeita à determinação dos efeitos produzidos pela revogação do artigo 32.º do EBF, operada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014), com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2014 , no que diz respeito a encargos financeiros com partes de capital detidas por Sociedades Gestoras de Participações Sociais à data da referida revogação, não deduzidos em exercícios anteriores por aplicação do disposto no n.º 2 do citado artigo.
Está em causa saber se constitui consequência jurídica da revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF a dedutibilidade fiscal, no período de tributação de 2014, dos encargos financeiros suportados por uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) em períodos de tributação anteriores à data de entrada em vigor (em 1 de janeiro de 2014) da referida Lei n.º 83-C/2013, com financiamentos para aquisição de partes de capital ainda detidas em 31 de dezembro de 2013.
Segundo a Requerente, esses encargos financeiros [suportados em períodos de tributação anteriores, de 2010 a 2013, relativos à aquisição de participações que, em 31 de dezembro de 2013, permaneciam na sua titularidade] devem ser deduzidos ao seu lucro tributável no primeiro exercício subsequente à revogação da norma em causa, ou seja, em 2014.
Entendimento a que se opõe a Requerida, por considerar que, face à ausência de uma norma transitória que preveja expressamente a respetiva dedução e por aplicação das regras de sucessão das leis no tempo, tais encargos não são dedutíveis. Acrescenta, ainda que a Requerente não demonstrou os factos invocados, distintos dos declarados, o que lhe competia de acordo com as regras do ónus da prova.
2. SOBRE OS EFEITOS DA REVOGAÇÃO DO ARTIGO 32.º DO EBF – POSIÇÕES EM CONFRONTO
A título preliminar, salienta-se que esta questão tem sido apreciada pela jurisprudência arbitral, sem, contudo, lograr um entendimento consensual, apresentando-se, de seguida, um resumo das duas correntes.
2.1. JURISPRUDÊNCIA ARBITRAL EM FAVOR DA DEDUÇÃO DOS ENCARGOS FINANCEIROS
No sentido da pretensão da Requerente, começa por referir-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 645/2017-T, que, numa situação análoga à dos presentes autos, considera aplicável a estatuição contida no segmento final do ponto 6 da Circular n.º 7/2004: “Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime [de exclusão de tributação, previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF], proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.”
Declara-se neste aresto que, com a revogação, antes do “momento da alienação das participações”, do regime especificamente previsto para as SGPS no artigo 32.º do EBF, impõe-se concluir que, com caráter definitivo, o mesmo não mais poderá ser aplicado, por impossibilidade de verificação dos respetivos requisitos . Daí que, por identidade de razões, a AT esteja vinculada a aplicar a consequência ínsita na parte final do ponto 6 da Circular, i.e., a considerar como custo fiscal, no ano da revogação, os encargos [financeiros] que não foram deduzidos em exercícios anteriores, de harmonia com o disposto no artigo 68.º-A, n.º 1 da LGT.
Refere-se a esse propósito que o “reconhecimento como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores deve ser também acionado pela revogação do regime do 32.º [do EBF], dada a conexão entre a indedutibilidade daqueles e a exclusão de tributação estabelecida nesse regime. Assim, a impossibilidade de vir a ser aplicado um regime privilegiado a nível da alienação considerou-se justificação para que devesse ser eliminada a desvantagem referida.”
No sentido preconizado pela Requerente, militam também as decisões arbitrais dos processos n.º 285/2017-T, de 24 de maio de 2018 , e n.º 342/2018-T, de 9 de abril de 2019, que partem do princípio que o regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, tal como foi comummente interpretado, postulava uma indedutibilidade condicionada dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais . Sendo a condição da indedutibilidade que as mais-valias ou menos-valias geradas pela alienação dessas participações beneficiassem da disciplina de exclusão de tributação prevista no citado artigo 32.º, n.º 2 do EBF.
Neste contexto, a interpretação de que a revogação dessa disposição, desacompanhada de qualquer regra de direito transitório, implicaria a manutenção do regime especial de não dedutibilidade dos encargos financeiros e, em simultâneo, a perda do benefício fiscal, deixaria as sociedades gestoras de participações sociais em posição de injustificado desfavorecimento face à generalidade das sociedades, com violação do princípio da igualdade .
Salienta-se a esse respeito que “[n]ão estará aqui, assim e simplesmente, em causa uma norma especial que veda a dedução fiscal de certos custos, mas antes uma norma que consagra uma indedutibilidade não definitiva, em exercícios sucessivos, até que se verifiquem ou não determinados factos, dos quais decorra: a) a definitividade da indedutibilidade «ex ante»; ou b) a cessação daquela indedutibilidade.”
A decisão arbitral do processo n.º 342/2018-T, alicerça-se ainda na diferente natureza da disciplina estabelecida pelo artigo 32.º, n.º 2 do EBF e do novo regime da participation exemption que passou a constar do artigo 51.º-C do Código do IRC.
O regime revogado, do EBF, constituía um benefício fiscal, portanto uma medida de caráter excecional, instituída para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes, superiores aos da própria tributação que impediam .
A participation exemption faz parte integrante do regime geral do IRC e do modelo de tributação dos rendimentos de partes de capital . Foi a “constatação geral da limitação da «eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação» , que levaram a Comissão de Reforma a propor «a adoção de um regime participation exemption de cariz universal (i.e., aplicável ao investimento independentemente do país ou região em que este se materialize, salvo as indispensáveis normas anti-abuso) e horizontal (aplicável tanto à distribuição de lucros e de reservas, quanto às mais-valias, e, bem assim, às diversas operações suscetíveis de serem consideradas substitutos próprios destas operações)»” .
Sendo que, como argumenta o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 139/2016, “tentando apurar a igualdade substancial de posições jurídicas - no pressuposto de que só duas posições materialmente iguais ou equivalentes podem servir de parâmetro para aferir de um tratamento desigual -, não pode afirmar-se, de modo algum, que tal ligação exista entre uma relação que conduz à tributação-regra e uma outra relação que conduz à concessão ou não concessão do benefício fiscal.”
Assim, o regime da participation exemption não é uma continuação do regime anterior vertido no artigo 32.º, n.º 2 do EBF, mas um regime novo de diferente natureza substancial, tendo sido determinado por razões próprias e específicas. De onde se retira que, para efeitos de aplicação da lei no tempo, não se possa nem deva falar em sucessão de leis, pois o que ocorreu foi a revogação de um regime com a consagração de outro, 17 dias após, de âmbito e natureza distintos, em diplomas autónomos.
A compreensão dos gastos financeiros com participações sociais não deduzidos (fiscalmente) como sujeitos a uma indedutibilidade antecipada ou ex ante, diretamente condicionada ao gozo do benefício fiscal, pilar da constitucionalidade do regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, não permite que se considere que essa indedutibilidade se consolidou por efeito da revogação do artigo 32.º do EBF. Nem tão-pouco que se mantenha uma indedutibilidade “suspensa” até se verificar se as participações sociais subjacentes aos encargos financeiros em questão irão gerar ou não mais-valias tributáveis, pois, para tal, seria necessário o sustentáculo legal da produção desse efeito, que inexiste e que sempre esbarraria na distinta natureza dos regimes que se sucederam.
Preconiza-se, em síntese, que a 1 de janeiro de 2014 “a norma especial (relativa a benefícios fiscais) que impunha a indedutibilidade dos gastos financeiros, ora em causa, deixou de vigorar, pelo que deixou de condicionar (de ser aplicável) ao juízo de dedutibilidade ou indedutibilidade de tais gastos”. E que “A manutenção da indedutibilidade ex ante ou condicionada dos gastos em causa, não resulta igualmente quer da Lei n.º 83- C/2013, de 31/12, quer da Lei n.º 2/2014, de 16/01, que, quer uma quer outra, não contém qualquer disposição transitória, dispondo sobre tal questão.”
Pelo que só se o regime instituído pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, dispusesse, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, que se mantinha a indedutibilidade condicionada até aí imposta pelo artigo 32.º do EBF, poderia considerar-se legalmente suportada tal solução, o que não sucedeu.
Da lei nova resulta apenas que aos encargos financeiros das SGPS suportados a partir de 2014, também serão de aplicar as normas em vigor desde 1 de janeiro de 2014, ou seja, a regra geral do artigo 23.º do Código do IRC com a limitação prevista no artigo 67.º deste diploma. Deste modo, a lei nova não comina qualquer limitação aos gastos suportados anteriormente a 2014.
Sobre o momento da dedução, nota-se que na interpretação genericamente aceite e executada do artigo 32.º, n.º 2 do EBF nunca foi questionado que a dedução fiscal deveria ser efetuada no exercício em que cessasse a indedutibilidade ex ante, como resulta da leitura da própria Circular n.º 7/2004.
Nesse caso, e bem assim naquele que nos ocupa (materializado na revogação do regime jurídico do artigo 32.º do EBF), o facto jurídico apenas ocorreu em 2014, pelo que os gastos inerentes devem ser dedutíveis nesse exercício. Se porventura se entendesse que o princípio da especialização dos exercícios, conforme consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, representava um obstáculo a este entendimento, por hipotética incompatibilidade com as regras de periodização económica, seria de qualquer modo convocável a jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual deve ser permitida a imputação de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais com o objetivo de operar a transferência de resultados entre exercícios .
Sobre uma eventual retroatividade, considera-se não verificada, pois o que está em causa é extrair os efeitos jurídicos da revogação total (e não meramente parcial) do regime das SGPS face a gastos financeiros caracterizados por uma (in)dedutibilidade fiscal suspensa. Pelo contrário, entende-se que “a pretensão da AT […] é que mantém os gastos em questão no referido status jurídico de indedutibilidade ex ante, que resultava do regime do art.º 32.º/2 do EBF, após a revogação deste, e sem norma que disponha nesse sentido.”
Por outro lado, a indedutibilidade ex ante dos encargos financeiros não é enquadrável como “custo de formação de uma futura vantagem [correspondente à não tributação das mais-valias associadas]”, “mas antes como o efeito de um facto impeditivo da dedutibilidade daqueles gastos, decorrente da referida norma”. Todavia, mesmo que se aceitasse essa tese [do custo/vantagem], “o custo da vantagem prevista no mesmo regime não é o mesmo que estava previsto no regime anterior, dado que, como se viu, do novo regime apenas decorre a indedutibilidade dos gastos incorridos de 2014 em diante, e não em períodos anteriores àquele”. Inexiste qualquer norma vigente para o exercício de 2014 que faça a associação entre os encargos financeiros não deduzidos anteriormente àquele ano e as mais-valias que se venham a gerar daí em diante.
Deve, de acordo com esta tese, partir-se do pressuposto de que existem normas gerais que disciplinam a dedutibilidade dos gastos, e que, verificados os requisitos gerais, nomeadamente os previstos no artigo 23.º do Código do IRC, apenas poderá ser afastada pelas regras da periodização económica ou por uma norma especial. E é a ausência de tal norma que deve conduzir à conclusão – que se impõe à luz dos princípios da legalidade e da tipicidade a que obedece a lei fiscal – de que se o legislador quisesse que as SGPS tivessem um tratamento mais desfavorável, comparado com o dos restantes sujeitos passivos, deveria dizê-lo. Seria “afrontoso do princípio da legalidade […] qualificar, no exercício de 2014, os gastos em questão como indedutíveis (ex ante ou definitivamente), sem qualquer norma que sancione tal qualificação”.
“Para além disso […], não existe um nexo causal exclusivo entre a isenção da tributação de mais valias prevista pelo art.º 32.º/2 do EBF e a indedutibilidade ex ante, também decorrente do mesmo artigo, já que tal regime implica, igualmente, um tratamento mais desfavorável, em relação ao regime geral contemporaneamente vigente, no que diz respeito à tributação de dividendos e à consideração como gastos das menos-valias, tratando-se, assim, de um regime global, com um conjunto de equilíbrios e contrapesos, que não pode ser, simplesmente, reduzido a uma troca, entra a desconsideração de um gasto e a não tributação de um ganho. […] não há qualquer continuidade ou expansão de regimes, formal, substancial ou teleológica, mas antes a revogação de um, e a criação de outro, distinto, que tornou redundante o primeiro.”
2.2. JURISPRUDÊNCIA CONTRÁRIA À DEDUÇÃO DOS ENCARGOS FINANCEIROS
Em sentido oposto, identificamos as decisões arbitrais n.ºs 610/2017-T, de 17 de setembro de 2018, 377/2018-T, de 28 de fevereiro de 2019, 580/2018-T, de 4 de julho de 2019 e 496/2018-T, de 27 de novembro de 2019. Estas pronunciam-se no sentido de que a revogação do artigo 32.º do EBF não se enquadra na previsão do ponto 6 da Circular n.º 7/2004, por não ser equiparável à falta de preenchimento dos requisitos para a aplicação do regime de exclusão de tributação das mais-valias, quando este estava ainda em vigor.
Segundo este entendimento, a Circular n.º 7/2004, apesar de possuir eficácia vinculativa para a AT, pelo seu caráter de ato regulamentar interno, não vincula os tribunais, que têm de aferir da legalidade da atuação administrativa em função das normas e princípios jurídicos aplicáveis ao caso concreto, porquanto a ilegalidade do ato impugnado não pode resultar do incumprimento de uma orientação genérica, mas unicamente da violação da lei.
Acrescenta-se que a revogação do disposto no artigo 32.º do EBF teve como contrapartida a introdução do regime de participation exemption previsto no novo artigo 51.º-C do Código do IRC, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, de onde resulta que as SGPS continuam a beneficiar da não sujeição a tributação das mais-valias de participações sociais. E, nesse sentido, a sucessão dos regimes legais não afronta o princípio da igualdade ou da proteção da confiança.
Com efeito, o legislador substituiu o regime constante do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, “que implicava uma vantagem (isenção de mais-valias da alienação de participações sociais) e uma desvantagem (indedutibilidade de custos de financiamento para a aquisição dessas participações sociais), por um outro critério que permite que as sociedades possam beneficiar não apenas da isenção de mais-valias como também da dedução dos encargos financeiros segundo o regime geral, o que se traduz num benefício adicional relativamente ao regime precedente”
Assinala-se, por outro lado, que o legislador previu normas transitórias para as situações de entrada em vigor da lei nova, “pelo que, se tivesse querido salvaguardar a dedução da totalidade dos encargos financeiros no ano de 2014, tê-lo-ia previsto na Lei que revogou o artigo 32.º do EBF ou, no limite, na Lei da Reforma do IRC” . Não tendo sido estabelecida uma norma transitória sobre os encargos financeiros não deduzidos ao abrigo da lei antiga, não pode o intérprete criar essa norma transitória, admitindo a dedução dos referidos encargos financeiros, na totalidade, no exercício de 2014.
Conceder provimento à dedução dos encargos financeiros, sem a verificação da condição legalmente imposta (alienação das participações sociais) e independentemente do regime fiscal dessa alienação seria admitir a dissociação, para o passado, entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas, solução essa que não encontra apoio no regime anterior nem foi salvaguardada pelo atual e representaria a “a configuração ex nihilo de uma disposição transitória material ”, sem respaldo em disposição legal aplicável.
Admite-se que possa ocorrer uma recaptura e dedução dos encargos financeiros não deduzidos relacionados com participações financeiras no exercício futuro em que as participações sociais sejam alienadas, se a transmissão não vier a beneficiar, a final, da isenção de mais-valias prevista no artigo 51.º-C do Código do IRC. “Só então se poderá equacionar a invocação a favor da pretensão da Requerente dos princípios constitucionais da igualdade, da tributação pelo lucro real e da proteção da confiança .”
3. POSIÇÃO ADOTADA
3.1. QUADRO LEGAL
O enunciado do artigo 32.º, n.º 2 do EBF , conforme a redação resultante do artigo 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro rezava nos seguintes moldes: “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades” (redação que, em substância, remonta à Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, cujo artigo 38.º alterou o artigo 31.º do EBF, que foi após renumerado como artigo 32.º pela republicação do EBF efetuada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de junho).
Este preceito foi revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014).
Em 16 de janeiro de 2014, foi publicada a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro (Lei da Reforma do IRC) que aditou o artigo 51.º-C ao Código deste imposto, com produção de efeitos a 1 de janeiro de 2014 (nos termos do artigo 14.º da mencionada Lei), que, com relevo para a matéria dos autos dispunha no seu n.º 1 o seguinte:
“1 - Não concorrem para a determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e independentemente da percentagem da participação transmitida, de partes sociais detidas ininterruptamente por um período não inferior a 24 meses, desde que, na data da respetiva transmissão, se mostrem cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 51.º, bem como o requisito previsto na alínea d) do n.º 1 ou no n.º 2 do mesmo artigo.”
Interessa, por fim, considerar o n.º 6 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, que dispunha nos seguintes termos:
“Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correção fiscal dos que tiverem sido suportados com as aquisições de participações que sejam suscetíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no artigo 31.º, n.º 2, do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias, caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.”
3.2. ANÁLISE CONCRETA
A questão que se suscita nos presentes autos é de direito e reveste-se de complexidade dada a ausência de uma regra de aplicação imediata ou linear ao caso concreto, sendo ambas as posições esgrimidas na jurisprudência arbitral coerentes e equacionáveis de um ponto de vista metodológico.
Se bem compreendemos, na primeira tese que acima se descreveu, em linha com a Requerente, os encargos financeiros não deduzidos encontravam-se sob condição suspensiva [de dedução] no caso em que as participações a que respeitavam se mantinham na esfera da SGPS (e enquanto tal se verificasse), pelo que o seu status jurídico estava ativo à data [2014] em que foi revogado o regime que determinava essa suspensão, o artigo 32.º, n.º 2 do EBF. Em consequência, cessou o mencionado efeito suspensivo, com a consequente dedução de tais encargos, conquanto se verifiquem os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos constantes do artigo 23.º do Código do IRC, o que se afigura ser o caso .
Na segunda posição, a indedutibilidade dos encargos financeiros é aferida no momento em que estes são incorridos (atraída pela sua conexão com a aquisição de participações sociais) prefigura-se como definitiva, podendo operar um mecanismo corretivo que “recapture” esses encargos, se (e só se) não se verificar o pressuposto na origem da sua indedutibilidade. Pressuposto este correspondente à não tributação das mais-valias geradas pelas partes sociais a que respeitavam os encargos. Atento o caráter definitivo da não aceitação dos gastos financeiros no momento em que foram incorridos, a subsequente revogação do regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, per se, não conduz a qualquer recaptura daqueles, para efeitos da sua dedução. Numa perspetiva mais drástica, esses encargos nunca poderão vir a ser recapturados na sequência da revogação do regime, noutra, moderada, que aqui seguimos, poderão sê-lo por sobrevigência, se, e quando, ocorrer a alienação das partes sociais a que respeitam os encargos, se as mais-valias produzidas não beneficiarem do disposto no artigo 51.º-C do Código do IRC, i.e., se forem sujeitas a tributação.
Retomando a análise do caso, interessa salientar que a revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, operada pelo artigo 210.º da LOE 2014, não foi, como acima dito, acompanhada por qualquer norma de direito transitório. Inexiste, deste modo, suporte legal (expresso) que contenha na sua previsão a recaptura dos encargos financeiros não deduzidos ao abrigo do regime anterior. Desta forma, a solução que, em rigor, se retira do texto legal não implica a repristinação dos referidos encargos e a sua dedução à matéria coletável (da Requerente) do período de tributação em que a alteração legislativa produziu efeitos, i.e., 2014.
É esta a interpretação linear que se retira da mencionada substituição de regimes. O legislador podendo optar por conformação diversa, não o fez no caso concreto.
A superação desta interpretação, por outra, diversa, que permita a dedução dos encargos financeiros com referência ao período de 2014, foi anteriormente preconizada por este Tribunal, com fundamento na parametria dos princípios da igualdade e da proteção da confiança, tendo sido agora julgada pelo Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária n.º 665/2021, de 29 de outubro de 2021, como uma desaplicação implícita, mas efetiva, do artigo 210.º da LOE 2014 por ofensa aos mencionados princípios.
Acresce que o Tribunal Constitucional veio declarar, no âmbito do presente processo, que não é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da proteção da confiança a interpretação, defendida pela Requerida, do referido artigo 210.º, segundo a qual, em consequência da revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, não é admitida a dedução dos encargos financeiros suportados pelas SGPS com a aquisição de partes de capital ao abrigo desse regime, de que ainda fossem titulares em 31 de dezembro de 2013. Em consequência, determinou-se que seja reformulada a decisão recorrida, nessa conformidade.
Assim, se a interpretação alcançada no plano infraconstitucional em relação ao artigo 210.º da LOE 2014 for no sentido da não admissão da dedutibilidade fiscal dos referidos encargos financeiros, como sustenta a Requerida, a mesma não pode ser afastada por modelação dos parâmetros constitucionais da igualdade e da proteção da confiança, uma vez que estes são compatíveis com essa interpretação, não determinando tal afastamento.
O Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária em apreço [n.º 665/2021], subscreve a posição por si adotada no Acórdão n.º 638/2020 sobre questão idêntica, nos termos do excerto ilustrativo que se transcreve infra:
“22. O artigo 32.º, n.º 2, do EBF — que correspondia ao artigo 31.º, na redação anterior à republicação pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de junho —, dispunha, na redação vigente à data em que foi revogado (dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro), o seguinte:
Artigo 32.º
Sociedades gestoras de participações sociais (SGPS)
(…)
2 - As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades.
(…)»
O artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, revogou este preceito sem mais, com efeitos a 1 de janeiro de 2014 (artigo 260.º da Lei n.º 83-C/2013), não sendo possível encontrar no Relatório que acompanha a proposta de Orçamento do Estado para 2014 qualquer menção específica a esta alteração.
Todavia, nesse documento encontra-se já referência à iminente reforma do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de novembro, adiante designado «CIRC»), esclarecendo-se que a captação de investimento estrangeiro, tida como essencial para potenciar o crescimento económico do país, seria uma prioridade. Afirma-se a tal propósito nesse Relatório: «Os fatores fiscais não são os únicos a determinar a decisão de investimento. Contudo, uma reforma profunda e abrangente do IRC (a par das outras reformas estruturais aprovadas por este Governo) desempenha um papel decisivo no aumento da competitividade da economia portuguesa e na afirmação de Portugal como destino favorável ao investimento estrangeiro.» (cf. a p. 66 do Relatório, disponível em: https://www.dgo.gov.pt/).
Aquela reforma profunda e abrangente viria a efetivar-se com a aprovação da Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, tendo sido precedida da criação de uma Comissão para a Reforma do IRC (cf. o Despacho n.º 66-A/2013, de 2 de janeiro). Esta Comissão elaborou o Relatório intitulado Uma Reforma do IRC orientada para a Competitividade, o Crescimento e o Emprego (disponível
em https://www.occ.pt/fotos/editor2/relatorioirc.pdf), tornado público em julho de 2013, no qual se recomendava a alteração do regime aplicável às SGPS, já que este «não acrescenta[va] competitividade em termos internacionais, promovendo distorções comportamentais na adoção deste tipo de estruturas que são geradoras de custos de transação» (v. a p. 30). Esta alteração insere-se, por sua vez, numa reforma mais ampla, desenvolvidamente explicada no mesmo Relatório (a páginas 102-109) nos termos que se seguem:
«A temática da tributação de acordo com o princípio da territorialidade convive de perto com as preocupações relativas à eliminação da dupla tributação económica, nacional e internacional, na medida em que o método da isenção, expressão por excelência do princípio da territorialidade, é uma das técnicas conhecidas para evitar que o mesmo resultado económico seja tributado mais do que uma vez. (…)
No entanto, quando comparado com as legislações congéneres da União Europeia, verifica-se que a eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação é extremamente limitada.
Veja-se, por um lado, que as regras vigentes em Portugal não se aplicam genericamente a mais-valias (com exceção do regime das SGPS), para além de que, mesmo no caso das distribuições de lucros, a sua aplicação se encontra restrita aos lucros oriundos da União Europeia, dos restantes países que compõem o Espaço Económico Europeu e da Suíça, assim como às distribuições de dividendos ocorridas internamente.
A isto acresce que, em Portugal, não vigora um método alternativo para eliminação da dupla tributação económica, nem a título de regime-regra opcional, nem como switch-over clause. (…)
Às insuficiências apontadas acresce ainda a extrema permeabilidade das regras atualmente vigentes a comportamentos de substituição, o que determina, muitas vezes, a criação adicional de relevantes custos de transação associados a considerações de eficiência pós-impostos, afastando a estruturação dos negócios daquele que seria o curso normal da atividade económica caso a sua tributação não constituísse uma variável relevante na decisão de investimento.
A este propósito, é possível invocar dois exemplos: de um lado, a referida assimetria no tratamento fiscal que é conferido às distribuições de dividendos e às mais-valias; de outro, o tratamento, também assimétrico, que é dado aos lucros obtidos no estrangeiro através de uma filial e aos lucros obtidos através de um estabelecimento estável, nomeadamente através de uma sucursal.
Quanto ao primeiro ponto, a literatura económica tem considerado que a realização de mais-valias e a distribuição de dividendos são duas formas alternativas de aportação de valor aos acionistas, sendo concebidas como substitutos próximos, em função da sua inerente substituibilidade relativa. Nestes termos, considera-se que um tratamento fiscal discrepante entre estas duas formas de realização do rendimento é suscetível de influenciar a decisão fundamental de detenção de capital nas empresas, modificando, desta forma, o comportamento “natural” dos agentes económicos, ou, por outras palavras, criando ineficiências. (…)
Pelos motivos expostos, a Comissão de Reforma propõe a adoção de um regime participation exemption de cariz universal (i.e., aplicável ao investimento independentemente do país ou região em que este se materialize, salvo as indispensáveis normas antiabuso) e horizontal (aplicável tanto à distribuição de lucros e de reservas, quanto às mais-valias, e, bem assim, às diversas operações suscetíveis de serem consideradas substitutos próprios destas operações). (…)
(…) [A] adoção do novo regime de participation exemption veio tornar redundantes, na perspetiva da Comissão de Reforma, diversos regimes fiscais especiais atualmente existentes. Por esta razão, propõe-se a eliminação dos seguintes regimes:
(…)
c) uma vez que o novo regime também consome o regime fiscal previsto para as SGPS, e atendendo a que estas não lograram atingir o objetivo originariamente proposto de se afirmarem como veículo de investimento fiscalmente competitivo no plano internacional, propõe-se a eliminação do artigo 32.º do EBF, recomendando ainda que seja extinto o regime jurídico-societário destas entidades, hoje previsto no Decreto-lei n.º 495/88, de 30 de dezembro; por razões de idêntica natureza, julga-se apropriada a revogação do artigo 32.º-A (sociedade de capital de risco e investidores de capital de risco) do mesmo EBF; (…).»
Na concretização da referida reforma, a Lei n.º 2/2014 aditou ao CIRC o seu atual artigo 51.º-C, no qual, em matéria de transmissão onerosa de participações sociais, passou a dispor-se o seguinte:
«Artigo 51.º-C
Mais-valias e menos-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais
1 - Não concorrem para a determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e independentemente da percentagem da participação transmitida, de partes sociais detidas ininterruptamente por um período não inferior a 24 meses, desde que, na data da respetiva transmissão, se mostrem cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 51.º, bem como o requisito previsto na alínea d) do n.º 1 ou no n.º 2 do mesmo artigo.
(…)»
Já os gastos de financiamento suportados com a aquisição de partes sociais passaram «numa lógica de simplicidade» (cf. a p. 107 do Relatório supracitado) a concorrer para a formação do lucro tributável em sede de IRC.
Este regime, como sintetiza Daniel Taborda, veio assim «alarga[r] a abrangência do mecanismo de eliminação da dupla tributação dos lucros recebidos e inclui[r] a isenção das mais-valias obtidas com a venda de participações sociais, outrora privativo das sociedades gestoras de participações sociais (SGPS), no sistema de tributação regra.» (in “Notas sobre o regime de participation exemption previsto no CIRC”, Boletim de Ciências Económicas – Homenagem ao Prof. Doutor António José Avelãs Nunes, Vol. LVII, Tomo III, 2014, p. 3258).
Conquanto o n.º 1 do artigo 51.º-C do CIRC tenha sido objeto de ulteriores alterações no que respeita às condições de isenção da tributação das mais-valias — nomeadamente no que se refere ao período de detenção das participações sociais em questão, inicialmente fixado em 24 meses e entretanto reduzido novamente a um «período não inferior a um ano», pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março —, manteve-se no essencial inalterada a isenção da tributação destes rendimentos, de que as SGPS passaram a beneficiar em termos, em geral, mais favoráveis do que aqueles que resultavam da aplicação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF. Assim é, desde logo, porque os encargos financeiros passaram a poder ser considerados como gastos dedutíveis, nos termos gerais (cf. os artigos 23.º e 23.º-A do CIRC), ainda que com os limites impostos, no artigo 67.º do CIRC, para desincentivar o endividamento excessivo.
23. Na verdade, o regime prescrito no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, embora sendo geralmente aceite como um benefício fiscal — porquanto, com vista à realização da finalidade extrafiscal de promover o investimento, impedia a tributação das mais-valias realizadas pelas SGPS com a alienação de participações sociais (cf. o n. 1 do artigo 2.º do EBF) —, não deixou de se revelar um benefício sui generis.
As particularidades deste benefício decorrem, desde logo, das especificidades das próprias mais-valias que, relembre-se, se caracterizam por advir de acréscimos patrimoniais incertos (expressivamente designados na literatura anglo-saxónica «windfall gains»), irregulares e geralmente dependentes do decurso do tempo, ou do arco temporal entre o momento da aquisição de bens ou ativos e o momento da sua transmissão onerosa, durante o qual tais bens podem ver o seu valor aumentado (ou diminuído). Assim também, pode ocorrer um significativo desfasamento entre o momento em que este tipo de rendimento se realiza e o(s) momento(s) em que é necessário assumir as despesas indispensáveis para a sua obtenção. Por sua vez, esse desfasamento dificilmente será assumido, sem qualquer entorse, por um sistema de tributação periódica de rendimentos em que as mais-valias se incluam. Razões de simplicidade, eficiência, neutralidade e praticabilidade podem justificar, portanto, não apenas que as mais-valias sejam tributadas no momento da sua realização (cf. o artigo 46.º, n.º 2, do CIRC), como também que os custos suportados com a obtenção desses rendimentos sejam considerados no período ou exercício em que ocorrem.
No que respeita ao regime especialmente aplicável às SGPS até 2013, questionou-se por isso se poderia ser considerado um verdadeiro benefício o desagravamento fiscal sobre um ganho incerto, quando este vinha associado a um agravamento fiscal certo — ou seja, o agravamento resultante da não concorrência dos encargos financeiros para o apuramento do lucro tributável e dos custos associados ao cumprimento deste dever.
Quanto a esta questão, pronunciou-se este Tribunal, no Acórdão n.º 42/2014, concluindo:
«21. (…) [O] argumento da incerteza da realização de mais-valia, e consequentemente da isenção da sua contribuição para a formação do lucro tributável, não comporta, neste campo valorativo, o resultado que a recorrente lhe atribui. Essa suscetibilidade – em si mesma portadora de valor e assente numa perspetiva de implícita continuidade da atividade da SGPS - persiste, ao contrário do que acontece com outros contribuintes, em termos de equilibrar – neutralizar - os encargos financeiros em que incorreu o contribuinte, cabendo na sua margem de determinação económica, no âmbito regular da atividade de gestão de participações sociais, a escolha quanto à conveniência e oportunidade da alienação de parte de capital e realização de mais-valias. Outras soluções normativas capazes de atingir o mesmo desiderato poderiam, é certo, ter sido acolhidas, mas essa escolha cabe na margem de determinação do legislador democrático, que no plano das normas de incidência negativa, como em geral no estabelecimento de benefícios fiscais (em sentido lato, na definição de Nuno Sá Gomes, Teoria Geral dos Benefícios Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 165, pp. 31 e segs.), haverá que reconhecer como dotada de especial amplitude, em função de maior ou menor performance económica do setor empresarial visado e da margem orçamental a que o Estado possa recorrer.
Acresce que, no caso em apreço, intercedem especiais razões de praticabilidade e exequibilidade. Elaborando sobre as várias soluções normativas para o problema da dilação entre encargos financeiros e realização de mais-valia – critério da intenção de dedução; adoção de um princípio de dedutibilidade; adoção de um princípio de não dedutibilidade – Tiago Guerreiro afasta as duas primeiras, pelo convite à fraude fiscal e por inviabilidade de se proceder a acerto a posteriori, mormente com a apresentação de declarações de substituição relativas a períodos de imposto anteriores, conclui que “[e]sta terceira opção parece a mais viável, e consiste em os sujeitos passivos adotarem como regime regra em termos genéricos no novo regime estabelecido, e, no momento da realização, caso se verifiquem algumas das situações previstas no n.º 3 do artigo 31.º que implicam o afastamento do regime regra, então fazer as devidas correções, permitindo ao sujeito passivo considerar para a formação do seu lucro tributável os encargos financeiros suportados” (O Novo Regime Fiscal das SGPS, 2003, pp. 35 e 36).»
O benefício fiscal concedido ao abrigo do n.º 2 do artigo 32.º do EBF — tendo deixado de ser temporário, por força da alteração legislativa introduzida no artigo 3.º, n.º 3, do mesmo Estatuto pelo artigo 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro — não deixa de apresentar um conjunto de caraterísticas que Nuno Sá Gomes qualifica como reveladoras da natureza paracontratual ou bilateral dos benefícios (v., a este respeito, os Acórdãos deste Tribunal n.º 175/2018 e 309/2018). Segundo este Autor, «sempre que estivermos perante benefícios fiscais que sejam medidas dinâmicas de fomento fiscal ainda que puras ou estabelecidas por tempo indeterminado, devemos considerá-los como benefícios paracontratuais de que emergem direitos adquiridos que devem ser respeitados», uma vez que tais medidas se revelaram «determinantes do comportamento do contribuinte» (Nuno Sá Gomes, “Teoria Geral dos Benefícios Fiscais”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 362, p. 250).
Por conseguinte, à livre revogabilidade de benefícios com esta natureza opõem-se relevantes objeções emergentes dos princípios da segurança jurídica, da boa fé e da proteção da confiança, prima facie invocáveis também a respeito da revogação do artigo 32.º, nº 2, do EBF, já que, tal como se afirma na decisão recorrida, é inegável a existência de «uma ligação inextrincável entre os factos tributários passados, em que a Requerente não deduziu os encargos financeiros incorridos no exercício da sua atividade de SGPS com a aquisição de partes de capital de outras sociedades, que se consolidaram no passado, com os factos tributários futuros concretizados na realização das mais-valias que passaram a ser tributadas.» (cf. o n.º 25 da parte III.C.2.7).
Mas é também esta ligação que, esclareça-se já, leva a excluir a possibilidade de considerar abrangida pela proibição consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição a disposição legislativa que revogou o artigo 32.º, n.º 2, do EBF. Com efeito, tal como recentemente se reafirmou no Acórdão n.º 175/2018, «continua a poder retirar-se da orientação desde há muito sufragada na jurisprudência deste Tribunal que a proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, para além de «sancionar, de forma automática», «a mera natureza retroativa de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares» (Acórdão n.º 128/2009), apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo somente os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular produziu já todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga; excluídas do âmbito de aplicação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, encontram-se, por isso, as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, isto é, aquelas em que a lei nova é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ainda perduram no presente, como sucede com as normas fiscais que produzem um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga, continuando a formar-se sob a vigência da nova lei (cf. Acórdão n.º 267/2017, bem como os Acórdãos n.ºs 617/2012 e 85/2013, que, por sua vez, remetem para os Acórdãos n.ºs 128/2009, 85/2010 e 399/2010).»
Produzindo efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014 e não tangendo as mais-valias realizadas (e não tributadas) com a transmissão de participações sociais até essa data, a revogação do regime privilegiado aplicável às SGPS não pode considerar-se autenticamente retroativa, na medida em que, embora se reporte a valorizações de bens e ativos que começaram a formar-se na vigência da lei antiga, terá repercussões sobre a posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio desta.
24. A verificação de que uma norma não contende diretamente com o disposto no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição não é suficiente, porém, para concluir pela respetiva conformidade constitucional. Assim o é porque, conforme entendimento constante deste Tribunal (cf., entre outros, os Acórdãos n.os 128/2009, 175/2018 e 309/2018), também no âmbito tributário as mutações da ordem jurídica não podem atingir as expetativas criadas ao abrigo da lei antiga em termos incompatíveis com aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição.
Impõe-se, assim, verificar se a norma em causa efetivamente excede, tal como entendeu o tribunal recorrido, os limites decorrentes do princípio da proteção da confiança.
Tendo em conta a anterior jurisprudência constitucional, o Acórdão n.º 309/2018, proferido em matéria fiscal, densificou tal princípio do seguinte modo:
«13. (…) [O] legislador não está impedido de alterar o sistema legal afetando relações jurídicas já constituídas e que ainda subsistam no momento em que é emitida a nova regulamentação, sendo essa uma necessária decorrência da autorevisibilidade das leis. O que se impõe determinar é se poderá haver por parte dos sujeitos de direito um investimento de confiança na manutenção do regime legal (Acórdão n.º 188/09).
Se bem que a aplicação do princípio da proteção da confiança depende, necessariamente, do confronto entre a finalidade de interesse público e as expectativas frustradas pela medida em causa, para aferir da existência de uma “situação de confiança” e do “investimento na confiança”, importa ter presente o método que a jurisprudência constitucional adota quando procede à ponderação desses interesses.
De acordo com essa jurisprudência, para que haja lugar à tutela jurídico-constitucional da confiança é necessário: em primeiro lugar, que as expectativas de estabilidade do regime jurídico em causa tenham sido induzidas por comportamentos dos poderes públicos; que elas sejam legítimas, ou seja, fundadas em boas razões, a avaliar no quadro axiológico jurídico-constitucional; por fim, o cidadão deve ter orientado a sua vida e feito opções, precisamente, com base em expectativas de manutenção do quadro jurídico. Dados por verificados esses requisitos cumulativos, há que proceder a um balanceamento ou ponderação entre os interesses particulares desfavoravelmente afetados pela alteração do quadro normativo que os regula e o interesse público que justifica essa alteração. Com efeito, para que a situação de confiança seja constitucionalmente protegida, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (Acórdãos n.ºs 287/90, 128/2009, 399/2010, 396/2011, 353/2012, 187/2013, 474/13, 602/2013, 794/2013 e 862/2013).»
Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança são, de resto, conforme relembra a decisão recorrida plenamente assumidos também pelo direito da União Europeia, enquanto limite à atuação dos poderes públicos. Na verdade, «[q]uanto ao princípio da proteção da confiança legítima, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que a possibilidade de invocar este último é reconhecida a qualquer operador económico em relação ao qual a autoridade nacional tenha feito surgir esperanças fundadas. Todavia, quando um operador económico prudente e avisado esteja em condições de prever a adoção de uma medida suscetível de afetar os seus interesses, não poderá invocar o benefício de tal princípio, quando essa medida for adotada. Além disso, os operadores económicos não têm fundamento para depositar a sua confiança legítima na manutenção de uma situação existente que pode ser alterada no quadro do poder de apreciação das autoridades nacionais.» (v. o Acórdão de 11 de julho de 2019, Agrenergy Srl, Procs. C-180/18, C-286/18 e C-287/18, n.º 31, e em termos idênticos o Acórdão de 10 de setembro de 2009, Plantanol, C 201/08, n.º 53).
Mas a este respeito, tem o Tribunal de Justiça da União Europeia reconhecido também que «os princípios gerais da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima não se opõem, em princípio, a que um Estado Membro (…) suprima, antes da data de extinção prevista inicialmente pela regulamentação nacional, o regime de isenção fiscal que era aplicável (…).» (cf. o citado Acórdão de 10 de setembro de 2009, Plantanol, n.º 68).
A jurisprudência dos tribunais da União Europeia admite, pois, que sejam devidamente sopesadas todas as circunstâncias e comportamentos aptos a consolidar, ou pelo contrário a debilitar, as expetativas dos operadores económicos prudentes e avisados atingidos por alterações legislativas, tais como a circunstância de os benefícios fiscais deterem caráter temporário – caso em que, tal como vem reconhecendo este Tribunal, é particularmente justificada a expetativa de que o regime jurídico que o consagra vigore até ao termo do prazo previsto (neste sentido, v., entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.º 410/95 e 309/2018); mas também a mutabilidade inerente aos regimes que concretizam opções políticas em certos domínios estratégicos. Assim, por exemplo, estando em causa uma situação de confiança depositada na atuação das instituições da própria União, admitiu o Tribunal Geral que «os operadores económicos não têm fundamento para depositar a sua confiança legítima na manutenção de uma situação existente que pode ser alterada no quadro do poder de apreciação das instituições da União, em especial num domínio como o da política monetária, cujo objetivo implica uma constante adaptação em função das variações da situação económica (…).» (cf. o n.º 76 do Acórdão de 7 de outubro de 2015, Alessandro Accorinti e o., Proc. T-19/2013).
25. Segundo a jurisprudência estável deste Tribunal, a imposição constitucional de proteger a confiança legitimamente depositada na estabilidade de um determinado regime jurídico é aferível em concreto mediante a realização dos seguintes testes: em primeiro lugar, é necessário que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expetativas» de continuidade; depois, importa essas expetativas sejam legítimas e fundadas em razões atendíveis à luz do ordenamento jurídico-constitucional; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa (v. o Acórdão n.º 128/2009).
Antes, porém, de submeter a norma objeto do presente recurso à análise para que remetem os quatro testes acima referidos, há um aspeto que convém clarificar. No que respeita à atuação esperada do Estado, tanto a decisão arbitral como as alegações da recorrente referem-se a duas ordens de expetativas que, embora indissociáveis, são de algum modo distintas. Trata-se, por um lado, (i) da expetativa de que as SGPS continuariam a ser beneficiárias especiais de um desagravamento fiscal, com as características do benefício consagrado no artigo 32º, n.º 2, do EBF; e, por outro (ii) da expetativa de que uma eventual revogação desse benefício seria acompanhada da aprovação de um regime transitório, idêntico ao previsto na Circular Normativa n.º 7/2004, que permitisse deduzir os encargos financeiros suportados entre 2003 e 2013.
É o que se extrai, v.g., do segmento do acórdão recorrido que serviu para o tribunal arbitral afirmar que «a conjugação da revogação da isenção constante do artigo 32°, 2 do EBF pela Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro, por um lado, com a total desconsideração da não dedução dos mencionados encargos financeiros em exercícios passados, por outro lado, não supera com êxito qualquer dos quatro testes ou requisitos que o Tribunal Constitucional português tem adotado, e nos quais assenta a aplicação do princípio constitucional da proteção da confiança legítima (…).» (v., v.g., o n.º 30 da parte III.C.2.7. da decisão recorrida, citado supra). Ou do entendimento segundo o qual, uma vez revogado o regime especial consagrado no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, «o que contenderia com a proteção da confiança seria não aplicar o regime previsto no referido final do nº 6 da Circular aos contribuintes que agiram em sintonia com o entendimento que a Administração Tributária decidiu adotar, quanto à possibilidade de deduzir os encargos quando se viesse a verificar que não podia ser aplicado o regime referido» (cf. o n.º 9 da parte III.C.2.5.).
Não perdendo tal dado de vista, comecemos, pois, por averiguar se pode dar-se como verificada uma efetiva lesão das expetativas geradas quanto à estabilidade do regime cuja revogação nos ocupa.
26. Em face do que se afirmou já a respeito das características do benefício fiscal consagrado no n.º 2 do artigo 32.º do EBF (v. supra o n.º 23), não é possível negar a existência de uma expetativa fundada, e merecedora de consideração, na isenção das mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de participações sociais por SGPS cujos encargos de financiamento não tenham concorrido para o lucro tributável apurado entre 2003 e 2013. Com efeito, não há dúvida de que o benefício concedido às SGPS pelo artigo 32.º, n.º 2, do EBF, embora automático e irrenunciável (cf. os artigos 5.º, n.º 1, e 14.º, n.º 8, do EBF), é suscetível de ter condicionado as opções de gestão destes agentes económicos durante a vigência do benefício e implicou, como se referiu já, a não dedução de gastos que de outro modo teriam sido relevantes para o apuramento do lucro tributável, o que só é justificável como reverso do direito a beneficiar da isenção correspetiva.
O que já não se mostra minimamente demonstrado — em face da sucessão de regimes legais a que se aludiu supra — é que essa expetativa tenha sido, realmente, frustrada.
A aprovação da Lei n.º 2/2014 e a revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF perturbaram, é certo, o «binómio encargo financeiro não dedutível/realização de mais-valia isenta», sobre o qual detidamente versou o Acórdão deste Tribunal n.º 42/2014, tendo a realização de mais-valias passado a ser tributada nos termos do IRC.
Todavia, pressupondo a lesão da confiança que a mutação do direito infraconstitucional afete, em sentido desfavorável, as expetativas da comunidade «na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado» (Acórdão n.º 128/2009), percebe-se que não seja possível apreciar a questão de constitucionalidade com que se debateu o tribunal recorrido abstraindo da aprovação daquela nova disciplina que, nos termos dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 2/2014, «consum[iu] o regime fiscal previsto para as SGPS».
Ora, com a aprovação da Lei n.º 2/2014, a realização de mais-valias passou realmente a ser tributada. Simplesmente, passou a ser tributada segundo o novo regime-regra previsto no artigo 51.º-C do CIRC, que manteve, sem aparente interrupção, a isenção da tributação de mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de participações sociais. E embora a nova lei tenha introduzido para aquele efeito algumas regras e condições, diferentes das aplicáveis ao abrigo do regime antes constante do EBF, nem o tribunal a quo, nem a própria recorrida identificaram qualquer uma que pudesse constituir um obstáculo à isenção da tributação das mais-valias a realizar no futuro com a alienação das participações sociais, a cuja aquisição corresponderam os encargos financeiros não deduzidos nos exercícios de 2003 a 2013.
De resto, aquilo que distingue o regime-regra do anteriormente vigente é a circunstância de não se tratar já de um benefício fiscal, mas antes, e assumidamente, de um mecanismo de eliminação da dupla tributação económica, que tem um âmbito de aplicação mais amplo e do qual não se mostram excluídas as SGPS.
A aprovação deste regime obsta, pois, a que se encare a norma objeto do presente recurso como uma norma da qual resultou como efeito automático a eliminação in totum daquele «binómio». Da revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF resultou, imediatamente e apenas, a sujeição das SGPS ao regime-regra (cf. o artigo 13.º, n.º 1, do EBF) e, se este foi alterado praticamente em simultâneo, ainda que pela Lei n.º 2/2014 e não pelo Lei do Orçamento do Estado para 2014, tal dado legislativo não pode ser desconsiderado quando se trate de determinar se existiu ou não uma efetiva frustração da confiança depositada na vigência das condições estabelecidas pela norma fiscal revogada.
Da consideração desse dado legislativo retiram-se, desde logo, duas conclusões.
A primeira é que não pode ser reconhecida uma legítima confiança na existência de um regime especialmente aplicável às SGPS e formalmente inserido no EBF, do mesmo modo que não pode atribuir-se relevo autónomo à circunstância de este ter deixado de constar do EBF para passar a constar do IRC ou de ter deixado de configurar um benefício fiscal em consequência da própria alteração do regime-regra.
A segunda conclusão, mais importante ainda, é esta: se a contrapartida dos encargos acrescidos assumidos entre 2003 e 2013 era a isenção das mais-valias a realizar com a alienação das participações sociais a que respeitaram, então, mantendo-se substancialmente, e no essencial, em vigor a norma que exclui esses rendimentos do lucro tributável a apurar pelos sujeitos passivos antes abrangidos pelo artigo 32.º, n.º 2, do EBF, não se mostra substancialmente ofendida a confiança depositada na vigência desse regime.
27. Tendo em conta o afirmado supra (v. ponto 25), resta verificar se pode dar-se como legítima e gorada a expetativa de que uma eventual revogação do benefício consagrado no artigo 32.º, n.º 2, do EBF seria acompanhada da aprovação ou sobrevigência de um regime transitório que permitisse deduzir os encargos financeiros suportados entre 2003 e 2013.
O principal argumento mobilizado pelo tribunal a quo a favor desta hipótese é, como se referiu já, a existência da Circular n.º 7/2004, cujo n.º 6 prevê que «[c]aso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime [i.e., do regime especial consagrado, então, no artigo 31.º, n.º 2, do EBF], proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.»
Admitindo «que o futuro não pode ser um perpétuo prisioneiro do passado, nem podem a segurança jurídica e a proteção [da] confiança transformar-se em valores absolutos, capazes de petrificar a ordem jurídica, imobilizando o Estado e impedindo-o de realizar as mudanças que o interesse público reclama» (cf. o n.º 17 da parte III.C.2.7), o tribunal recorrido aceitou, em abstrato, a possibilidade de o regime consagrado no artigo 32.º, n.º 2, do EBF ser validamente revogado. Mas, nessa hipótese, entendeu que a interpretação veiculada pelo n.º 6 da Circular n.º 7/2004, da Direção-Geral de Contribuições e Impostos era idónea a gerar nos contribuintes a expetativa de que o artigo 32.º, n.º 2, do EBF, seria ainda, e transitoriamente, interpretado e aplicado no sentido de permitir deduzir os encargos financeiros suportados enquanto esse regime se manteve em vigor – pois tal era o entendimento que, no passado, a Administração Tributária decidiu adotar e em sintonia com o qual os contribuintes agiram (cf. o n.º 9 da parte III.C.2.5.).
Não se mostra, todavia, possível acompanhar este entendimento.
Importa relembrar, antes do mais, que segundo a opinião que pode dizer-se ainda maioritária na doutrina, tal como resumida por Sérgio Vasques, «(…) Seguramente que as circulares constituem normas jurídicas, que projetam os seus efeitos na esfera da administração, vinculando o subalterno à interpretação da lei ditada pelo superior hierárquico, mas não se pode dizer que representem em si mesmas fontes do direito fiscal por não constituírem parâmetro de validade dos atos praticados pela administração, que hão de encontrar esse parâmetro nas normas legais que as circulares visam interpretar. Significa isto que os tribunais não estão obrigados a fazer da lei a mesma interpretação que a administração fixa no seu direito circular e que os contribuintes não estão obrigados a aplicar a lei seguindo as orientações que através das circulares se dirigem aos serviços.» (v. Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 161).
Não se ignora que a relevância da vinculação da Administração às orientações genéricas que emite e publicita vem sendo debatida na doutrina (v., com especial contundência, João Taborda da Gama, “Tendo surgido dúvidas sobre o valor das circulares e outras orientações genéricas…”, Estudos em Memória do Prof. Doutor Saldanha Sanches, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 157-225). No caso presente, tal aspeto não é, todavia, determinante para uma tomada de posição quanto à pretensa violação da confiança dos contribuintes. Com efeito, por maior relevo que pudesse ser conferido ao valor vinculativo de uma Circular — cuja ilegalidade, relativamente a outros pontos, já foi repetidamente afirmada pelos tribunais administrativos (v., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 26 de setembro de 2018, Proc. n.º 0406/18.9BALSB; e de 11 de dezembro de 2019, Proc. n.º 0333/18.0BALSB) —, dos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica não pode extrair-se uma força imobilizadora que constrinja a Administração a manter imutável uma dada interpretação das normas tributárias, mesmo depois de estas terem sido alteradas ou revogadas por opção do legislador. Aliás, tal como defendem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, «se, depois de ter mantido uniformemente, durante um certo período de tempo, uma mesma interpretação da lei, na sua aplicação aos casos concretos, a administração tributária se convence que é correta uma outra interpretação, o princípio da igualdade não é obstáculo a que a passe a adotar na sua prática, exigindo apenas, para não existir discriminação, que a nova interpretação seja aplicada generalizadamente.» (in Lei Geral Tributária – Anotada e comentada, 4.ª Edição, 2012 p. 626). Por maioria de razão, não se mostra possível defender que a Administração esteja vinculada a manter uma orientação interpretativa que pressupõe a sobrevigência de um regime revogado — ou, como sucede in casu, a desaplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, de uma disposição revogatória —, nem que seria absolutamente imprevisível que essa orientação pudesse ser objeto de revisão, ou que deixasse de vigorar após a aprovação de uma reforma profunda do regime de tributação a que, ainda que indiretamente, se refere.
De resto, sempre se relembrará que a Circular em causa fundava uma expetativa de dedução dos custos incorridos no exercício correspondente ao momento da alienação das participações — o que, como supra se referiu, não se verificou no caso dos autos.
Por último, não será de mais chamar a atenção para o facto de o próprio tribunal a quo ter acabado por concluir que a ausência de um regime de direito transitório — ou de uma «solução justa», como lhe chamou — «não é de modo algum compensada ou remediada pela circunstância de se ter introduzido, com a Reforma do IRC que começou a vigorar em 1 de janeiro de 2014, o regime de “participation exemption”», e mais relevantemente ainda, de ter afastado a possibilidade de essa compensação vir a ocorrer com base na ideia de que o novo regime, ao não depender na sua aplicação «da forma jurídica que assuma a sociedade na esfera da qual sejam apuradas essas mais-valias ou menos-valias», «não resolve a discriminação negativa das SGPS, que perdurará enquanto não for resolvido, quanto a elas, o problema de terem, em cumprimento de obrigações legalmente determinadas, acrescido, até 31 de dezembro de 2013, os encargos financeiros com a aquisição das referidas participações sociais, e terem sido tributadas em função desse acréscimo.» (cf. o n.º 18 da parte III.C.2.8. da decisão recorrida). Ou seja, sem negar que as mais-valias a realizar com a alienação de partes sociais pelas SGPS continuarão a não concorrer para a formação do lucro tributável — logo, que não será frustrada qualquer expetativa legitimamente formada a esse respeito —, o tribunal recorrido acabou por reconduzir a questão colocada pela ausência de um regime transitório a um problema de igualdade. Para o tribunal recorrido, a revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, é inconstitucional uma vez que da consagração do regime de «participation exemption» resulta uma discriminação negativa das SGPS, no que se refere à não dedução dos encargos financeiros suportados com a aquisição, durante a vigência desse regime, de participações sociais ainda detidas em 31 de dezembro de 2013 — e não por a adoção desse regime frustrar qualquer expetativa legitimamente depositada na sobrevigência de orientações interpretativas vertidas em circulares, ou na sua transposição para um regime de direito transitório, que viesse a permitir às SGPS beneficiar da isenção das mais-valias a realizar com a alienação dessas participações (agora ao abrigo do artigo 51.º-C do CIRC) e ainda deduzir os respetivos encargos financeiros suportados no mesmo período.
28. Não há dúvida, afirmámo-lo já, de que os sujeitos passivos de IRC que, desde 1 de janeiro de 2014, se encontram abrangidos pelo regime consagrado no artigo 51.º-C do CIRC — universo em que se incluem as SGPS — beneficiam de um tratamento fiscal mais favorável do que aquele que, ao abrigo do n.° 2 do artigo 32.º do EBF, era reservado a estas sociedades. Não há igualmente dúvida de que os sujeitos passivos ora abrangidos por esse regime, que venham a realizar mais-valias com a transmissão onerosa de participações sociais adquiridas entre 2003 e 2013, não tiveram que suportar os custos acrescidos que as SGPS suportaram durante o mesmo período, para agora beneficiarem da mesma isenção.
Todavia, como este Tribunal tem constantemente afirmado, «a mera diferença de direitos resultantes da sucessão de regimes legais do tempo não convoca a dimensão de censura assacável ao princípio da igualdade. Deste parâmetro apenas resulta a proibição de tratamentos diferenciados sincrónicos e não diacrónicos, sob pena de inadmissível cerceamento da liberdade de conformação do legislador, enquanto espaço autónomo do poder legislativo configurado pela própria Constituição.» (v. o Acórdão n.º 364/2015).
Também neste caso é de reafirmar que as exigências que defluem do princípio da igualdade não impõem uma cristalização da ordem jurídica — sobretudo em matérias, como a versada nos regimes legais em questão, que convocam uma reconfiguração dinâmica dos interesses públicos extrafiscais prosseguidos pelos benefícios fiscais ou, mais amplamente, das opções de política fiscal a adotar em cada momento —, nem podem fundar a exigência de uma aplicação retroativa de regimes fiscais mais favoráveis. Ad absurdum, o legislador seria nessa hipótese dissuadido de aprovar uma legislação tributária mais favorável aos contribuintes, por se mostrar inviável restituir-lhes os montantes que não teriam pago, se o regime mais favorável tivesse sido adotado mais cedo.
De resto, não pode esquecer-se que, enquanto se manteve em vigor o n.º 2 do artigo 32.º do EBF, as SGPS se encontraram numa posição simétrica de relativa vantagem (ao menos, potencial), pois, como se salientou no Acórdão n.º 42/2014, «o termo de comparação com outras sociedades não pode ignorar que estas não se encontram em posição de partida equivalente, na medida em que os ganhos decorrentes de mais-valias realizadas com a alienação de participações sociais não são suscetíveis de isenção de tributação em IRC. Não existe, por isso, identidade de condições entre a recorrente e tais contribuintes, de forma a que se possa considerar ter sido criado regime de tributação particular globalmente desfavorável para as SGPS, com referência a encargos financeiros geneticamente ligados à aquisição de participações sociais.»
29.O tribunal recorrido entendeu, por último, que a norma que constitui objeto do presente recurso contende com o princípio consagrado no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «[a] tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real». E isto na medida em que «os grupos de sociedades que se encontrem numa situação como a da Requerente acabam sendo tributados por um rendimento que efetivamente não obtiveram, porquanto se trata de um rendimento que não corresponde ao rendimento que económica e contabilisticamente foi apurado – sendo que efetivamente o lucro tributável que a Requerente apurou nos anos de 2003 a 2013, e pelo qual foi objeto, nesses exercícios, de tributação em IRC, não teve em conta todos os correspondentes gastos incorridos no desenvolvimento da sua atividade empresarial, porquanto os encargos financeiros com a aquisição de partes de capital social das sociedades dominadas não foram objeto de qualquer dedução, como o referido princípio constitucional da tributação das empresas pelo rendimento real inequivocamente o exigiria.» (cf. o n.º 33 da parte III.C.2.7. da decisão recorrida).
Assim colocada a questão, a crítica do tribunal recorrido parece dirigir-se exclusivamente à regra da não dedução dos encargos financeiros suportados com a aquisição de participações sociais, consagrada no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, e não à norma que a revogou.
Esta censura assenta, além do mais, no pressuposto de que a revogação do benefício fiscal foi injusta, por violação do princípio da igualdade e do princípio da proteção da confiança: é a eliminação injusta da vantagem antes consagrada no artigo 32.º, n.º 2, do EBF, que torna especialmente injusta a desvantagem suportada para a obter.
Tal como a questão da violação do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição, foi colocada pelo Tribunal recorrido — e, consequentemente, pelo próprio Ministério Público no recurso que interpôs —, resta notar que o juízo formulado pelo tribunal a quo deverá também quanto a este fundamento decair atenta a conclusão a que acima se chegou quanto à alegada violação de ambos aqueles princípios.”
À face do exposto, considerando que:
a) A revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, não foi acompanhada de uma norma de direito transitório que preveja a alteração do status quo dos encargos financeiros anteriormente não deduzidos, em relação participações ainda detidas a 31 de dezembro de 2013;
b) A indedutibilidade dos encargos financeiros das SGPS, ao abrigo do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, radicava no pressuposto da sua conexão ao regime de isenção das mais-valias na alienação das participações sociais, o qual se mantém com o novo regime-regra de participation exemption contemplado no artigo 51.º do Código do IRC;
c) A administração não está vinculada a manter uma orientação interpretativa que pressupõe a sobrevigência de um regime revogado (o dito artigo 32.º, n.º 2 do EBF);
d) A possibilidade de dedução dos encargos financeiros é equacionável, no caso de eventual tributação das mais-valias, no período de tributação em que venha a ocorrer a alienação das participações;
e) A desigualdade no tratamento dos encargos financeiros entre SGPS e demais entidades no período que antecedeu a 2014 constitui, de acordo com o Tribunal Constitucional, uma diferença de direitos resultantes da sucessão de regimes que não convoca a “dimensão de censura assacável ao princípio da igualdade”;
é de concluir que o artigo 210.º da LOE 2014 deve ser interpretado no sentido literal defendido pela Requerida e, em consequência, não é de admitir a peticionada dedução fiscal no período de tributação de 2014 dos referidos encargos financeiros derivada da revogação do regime previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF. Nestes termos, a presente ação deve ser julgada improcedente.
4. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da prestação tributária [IRC e derramas] em montante superior ao legalmente devido e, nas situações de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, tem enquadramento específico no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT: os mesmos são devidos se a revisão do ato se efetuar mais de um ano após o pedido deste, “salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
In casu, o decaimento da Requerente implica a conclusão de que não ocorreu o pagamento de prestação tributária em excesso, não se encontrando reunidos os pressupostos de que depende a constituição do direito a juros indemnizatórios.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil, nomeadamente no que se refere ao ónus da prova (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 285.321,75 (duzentos e oitenta e cinco mil, trezentos e vinte e um euros e setenta e cinco cêntimos), correspondente ao valor da autoliquidação de IRC cuja anulação é peticionada – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
Notifique-se.
Lisboa, 7 de fevereiro de 2022
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Fernando Borges de Araújo
João Menezes Leitão
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”), Fernando Borges de Araújo e João Menezes Leitão, designados pelas Partes, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., doravante designada por “Requerente”, pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ..., ..., ...-... Algés, apresentou, em 6 de janeiro de 2020, pedido de constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea b), 6.º, n.º 2, alínea b) e 10.º, n.º 1, alínea a), todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes.
É Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente pretende que seja declarada a ilegalidade e anulado parcialmente o ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e derrama municipal referente ao período de tributação de 2014, no valor de € 285.321,75, na sequência do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa da referida (auto)liquidação, com a consequente restituição daquela quantia, acrescida de juros indemnizatórios.
Como fundamento da pretensão deduzida, a Requerente alega erro de direito, por considerar que a revogação do artigo 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (“EBF”), pelo artigo 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, veio implicar a dedutibilidade fiscal, com referência ao período de tributação de 2014, dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital que havia acrescido à base tributável de IRC em exercícios anteriores, e que não puderam, até essa data, beneficiar do regime de exclusão de tributação (nomeadamente porque as partes de capital não foram alienadas), conforme reconhecido por diversa jurisprudência arbitral tributária que cita.
Em traços gerais, a Requerente destaca que o regime revogado consagrava uma exclusão de tributação das mais-valias realizadas por SGPS em relação a partes de capital de que fossem titulares, determinando, como contrapartida, a irrelevância fiscal dos encargos financeiros incorridos com a respetiva aquisição. Deste modo, a ratio desta disciplina não era limitar a dedutibilidade dos encargos financeiros suportados por SGPS per se, mas assegurar uma simetria ou balanceamento entre a exclusão de tributação e a não dedução fiscal dos gastos (financeiros) inerentes . Com esta solução, o legislador evitava que o sujeito passivo tivesse uma dupla vantagem – a exclusão da mais-valia da tributação e a dedução do gasto financeiro – com base no mesmo pressuposto económico.
Aduz a Requerente que, de acordo com a disciplina revogada e como corolário do sinalagma entre a exclusão de tributação (das mais-valias) e a indedutibilidade fiscal (dos encargos financeiros inerentes à aquisição das partes sociais), os encargos financeiros eram dedutíveis ao lucro tributável das SGPS se, e quando, o rendimento obtido com a alienação daquelas fosse tributado em IRC, conforme estipulava o ponto 6 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC.
Neste âmbito, determinava a referida Circular que, concluindo-se, no momento da alienação das participações, não estarem reunidos os requisitos de aplicação do regime de exclusão de tributação, devia proceder-se “à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.
Segundo a Requerente, a revogação da exclusão de tributação das mais-valias para as SGPS conduziu à impossibilidade definitiva de aplicação do regime por facto imputável ao legislador, circunstância que não pode deixar de enquadrar-se na solução do ponto 6 da Circular n.º 7/2004, sob pena de violação do princípio de proteção da confiança ínsito no artigo 2.º da Constituição, neste caso especialmente gravosa por contrariar expetativas que a própria AT gerou, por meio do “direito circulatório” – artigo 68.º-A da Lei Geral Tributária (“LGT”).
Por outro lado, a consagração generalizada, em vigor a partir de 1 de janeiro de 2014, de um regime de não tributação das mais-valias (participation exemption), concomitante à revogação do regime especial que vigorava para as SGPS, não foi acompanhada de uma regra similar de desconsideração fiscal dos gastos financeiros suportados com a aquisição de participações elegíveis. Situação que, para a Requerente, gera desigualdade, pois as SGPS em relação às demais sociedades partem de um ponto distinto, já tendo sido penalizadas pelo acréscimo, até 31 de dezembro de 2013, dos encargos financeiros conexos com a aquisição daquelas participações.
Entende ainda a Requerente que o âmbito de aplicação e o objeto dos dois regimes (o do artigo 32.º, n.º 2 do EBF [revogado] e o da participation exemption) obedece a um racional distinto e que a manutenção da regra de não dedução condicionada dos encargos financeiros não pode prevalecer ao abrigo da participation exemption, pois não decorre de qualquer norma transitória estabelecida na Lei do Orçamento do Estado para 2014 [Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, que revogou o artigo 32.º do EBF], ou da Reforma do IRC [aprovada pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro].
À face do exposto, a Requerente conclui que se impunha à AT a revisão da autoliquidação de IRC, por desconsideração indevida da dedução de encargos financeiros, no valor de € 1.164.578,58, associados a dívida contraída para aquisição de partes de capital. Isto, na sequência do pedido de revisão oficiosa que lhe dirigiu, dentro do prazo de 4 anos previsto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária. Salienta, a este respeito, que o erro na autoliquidação é assimilado a erro imputável aos serviços, para efeitos de enquadramento na previsão do artigo 78.º, n.º 1 da LGT, dada a equiparação operada pelo artigo 78.º, n.º 2 da LGT, na redação vigente à data dos factos.
Em 7 de janeiro de 2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação com a notificação da AT em 16 de janeiro de 2020.
No uso da prerrogativa prevista no artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT, A Requerente designou como árbitro o Prof. Doutor Fernando Borges de Araújo.
Por seu turno, ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 2, alínea b) e 11.º, n.º 3 do RJAT, a Requerida indicou como árbitro o Dr. João Menezes Leitão.
Na sequência dos requerimentos apresentados pelos árbitros designados pelas Partes para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 10 de março de 2020, do Exmo. Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do RJAT.
Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação, em 11 de março de 2020, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, não tendo estas manifestado oposição.
O Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído em 6 de julho de 2020.
Em 23 de setembro de 2020, notificada para o efeito, a Requerida apresentou Resposta, defendendo-se por impugnação e juntou, subsequentemente, o processo administrativo (“PA”)
Sustenta essencialmente a Requerida que:
i) A revogação do artigo 32.º do EBF coincide com a introdução generalizada do regime de participation exemption no artigo 51.º-C do Código do IRC, que mantém a possibilidade de realização de mais-valias em moldes idênticos [de não tributação] aos antes previstos para as SGPS, só que agora, de caráter universal e horizontal, i.e., também em benefício de outros sujeitos passivos de IRC, pelo que não ocorre qualquer penalização daquelas entidades;
j) A eliminação do artigo 32.º do EBF, que discriminava de forma positiva as SGPS face a outros contribuintes, não colocou essas entidades em situação globalmente desfavorável que viole o princípio constitucional da igualdade, na sua dimensão fiscal;
k) Não se verifica violação do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, situando-se a recaptura dos encargos financeiros prevista na Circular n.º 7/2004, de 30 de março, no exercício da alienação das partes sociais e nunca em 2014;
l) Não foi introduzida qualquer norma transitória que preveja a possibilidade de dedução dos encargos financeiros acrescidos nos exercícios anteriores pelas SGPS, pelo que seria materialmente inconstitucional a interpretação normativa proposta pela Requerente por violação dos princípios da legalidade tributária e da igualdade tributária (artigos 103.º e 13.º da Constituição) e, bem assim, do Estado de Direito, da reserva de lei fiscal e da separação de poderes (artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da Constituição);
m) A pretensão da Requerente consubstancia uma aplicação retroativa da lei, de uma só vez, por via da imputação ao lucro tributável de 2014, de encargos suportados em exercícios anteriores (2010 e 2013) e desrespeita o princípio constitucional da capacidade contributiva e tributação do lucro real, na medida em que viola o princípio da especialização dos exercícios e se abstrai da situação concreta de tributação das participações quando, no futuro, forem alienadas;
n) Não se verifica unanimidade na jurisprudência arbitral tributária sobre esta matéria, que tem sido objeto de decisões divergentes;
o) Em qualquer caso, a Requerente não demonstrou os factos que invoca, diferentes dos constantes das suas declarações periódicas, que gozam de presunção de veracidade de acordo com o disposto no artigo 74.º da LGT, ónus que sobre si recai;
p) Não são devidos juros indemnizatórios, por não ser procedente o pedido arbitral, mas, se o fosse, seria de aplicar ao seu cômputo o disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.
A Requerida conclui pela improcedência do pedido, por não provado, e pela absolvição de todos os pedidos com as legais consequências.
Por despacho de 25 de setembro de 2020, o Tribunal Arbitral dispensou, por desnecessária, a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e concedeu às Partes a possibilidade de se pronunciarem.
Em 15 de outubro de 2020, foi determinada a notificação das Partes para apresentação de alegações facultativas e sucessivas, fixando o Tribunal como data-limite para prolação da decisão arbitral a prevista no artigo 21.º, n.º 1 do RJAT.
Em 29 de outubro de 2020, a Requerente apresentou alegações, reiterando a posição anteriormente enunciada.
Em 12 de novembro de 2020, a Requerida contra-alegou e manteve os fundamentos e conclusões constantes da Resposta.
II. SANEAMENTO
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer do ato de autoliquidação de IRC na parte controvertida, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
A ação é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT, por remissão para o artigo 102.º, n.º 1 do CPPT, contado da formação da presunção de indeferimento tácito do pedido de revisão submetido pela Requerente (alínea d)).
Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
A. A A... – SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., aqui Requerente, é uma sociedade de direito português cujo objeto social consiste na gestão de participações sociais, como forma indireta do exercício de atividades económicas, sendo, no período de tributação de 2014 – coincidente com o ano civil – a sociedade dominante de um grupo de sociedades submetido ao Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (“RETGS”), previsto no artigo 69.º do Código do IRC, denominado GRUPO B...– cf. Documento 1 e provado por acordo.
B. Em 2014, faziam parte do perímetro do GRUPO B..., entre outras, as seguintes sociedades, cujo objeto social consistia na gestão de participações sociais:
iv) C...– SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, S.A., doravante, “C...”, pessoa coletiva n.º ...;
v) D...– SGPS, S.A., doravante, “D...”, pessoa coletiva n.º ...; e a
vi) E...– SOCIEDADE GESTORA DE PARTICIPAÇÕES SOCIAIS, LIMITADA, doravante, “E...”, pessoa coletiva n.º ...,
– cf. Documento 1 e provado por acordo.
C. Nos períodos de tributação compreendidos entre 2010 e 2013, as sociedades dominadas acima identificadas acresceram aos seus resultados tributáveis individuais o valor global de € 1.170.104,11, referente a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, da Direção de Serviços do IRC, conforme discriminado no quadro seguinte:
SOCIEDADE ANO VALOR DOCUMENTO JUNTO
A...SGPS, SA 2012 € 91.915,37 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 3
A... SGPS, SA 2013 € 411.196,96 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 4
C... 2010 € 9.711,03 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 5
C... 2011 € 18.891,12 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 6
D... 2010 € 598.355,64 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 7
E... 2010 € 10.573,48 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 8
E... 2011 € 13.216,06 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo752 – Doc. 9
E... 2012 € 5.880,58 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 10
E... 2013 € 10.363,87 Mod. 22 – A acrescer Q07-campo779 – Doc. 11
TOTAL € 1.170.104,11
D. No período de tributação de 2013, a Requerente alienou à F... a participação financeira (partes de capital) de 100% que detinha numa sociedade de direito espanhol, G..., S.A., e alienou à subsidiária H... a participação de 75% detida numa sociedade residente na Tunísia, a I... (Middle East & North Africa), em relação às quais considera serem imputáveis encargos financeiros não dedutíveis, no montante de € 5.525,40. Este valor foi determinado de acordo com um método proporcional que compara o peso relativo, tendo em conta o critério do respetivo custo histórico, das partes de capital alienadas em 2013, face ao total das partes de capital considerado no âmbito do cômputo dos encargos financeiros acrescidos (não aceites) nas Declarações Modelo 22 dos exercícios de 2012 e 2013, nos seguintes moldes – cf. Documento 13:
A..., SGPS, SA Custo histórico de aquisição % do custo histórico Encargos financeiros não aceites em 2012 e 2013
… das partes de capital considerado para efeitos do cômputo dos encargos financeiros não aceites em 2013 e 2012 € 211.897.272,10 100,00% 503.112,33
I... € 66.148,10 0,03% € 157,00
G... € 2.261.000,00 1,07% € 5.368,34
Total de encargos financeiros não aceites (em 2012 e 2013) imputáveis às partes de capital alienadas em 2013 € 5.525,40
E. Quer a Requerente, quer as sociedades dominadas C..., D... e E... não recuperaram qualquer montante dos encargos financeiros acrescidos nos exercícios de 2010 a 2013 por aplicação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e da Circular n.º 7/2004, na medida em que as participações sociais cuja aquisição está na origem desses encargos financeiros não deduzidos fiscalmente, com exceção das do ponto antecedente, não foram alienadas até 31 de dezembro de 2013 – cf. Documentos 12 a 25 e 26 a 30.
F. Em 28 de maio de 2015, a Requerente apresentou, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal que encabeça – o mencionado GRUPO B...–, a Declaração de Rendimentos Modelo 22 referente ao período de tributação de 2014, identificada pelo n.º...– cf. Documento 1 e provado por acordo.
G. Nesta Declaração Modelo 22 do Grupo, a Requerente apurou como resultado fiscal do Grupo o valor de € 11.808.485,65, que, após dedução de prejuízos fiscais na importância de € 3.995.644,15, se cifrou numa matéria coletável não isenta de € 7.812.841,50 e no valor a pagar de € 2.561.326,15, a título de IRC e derramas – cf. Documento 1 (campos 380, 382, 309, 346 e 367) e provado por acordo.
H. A Declaração Modelo 22 do Grupo, relativa ao exercício de 2014, deu origem à Demonstração de Liquidação n.º 2015..., datada de 13 de agosto de 2015, que evidencia o valor de IRC e derramas, no total de € 2.561.326,15, oportunamente pago pela Requerente – cf. Documento 2 e PA28.
I. Em 27 de maio de 2019, a Requerente submeteu pedido de revisão parcial do ato tributário de autoliquidação de IRC reportado ao exercício de 2014, tendo em vista a sua correção oficiosa, mediante dedução dos encargos financeiros de € 1.164.578,58, que haviam sido acrescidos ao lucro tributável, em observância do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, até 31 de dezembro de 2013, e peticionou o reembolso do IRC pago em excesso em 2014 e correspondentes juros indemnizatórios – cf. Documento 31 e PA.
J. Em 6 de janeiro de 2020, a Requerente apresentou no CAAD, o requerimento de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo, na sequência da formação da presunção de indeferimento do mencionado pedido de revisão de ato tributário, atento o decurso do prazo de 4 meses sem que lhe tivesse sido notificada qualquer decisão da AT – cf. registo de entrada do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) no SGP do CAAD.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevo para a decisão não se identificaram factos que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.
A convicção do Tribunal fundou-se nas posições assumidas pelas Partes em relação aos factos essenciais e na análise crítica da prova junta aos autos – toda documental –, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente.
A impugnação genérica da base de facto invocada pela Requerente no articulado da Requerida (artigo 141.º da Resposta) não contraria a força probatória dos documentos carreados ao processo, que são em parte significativa as próprias declarações Modelo 22 submetidas pela Requerente e sociedades subsidiárias, que contêm, no seu quadro 07, o acréscimo dos encargos financeiros cujo enquadramento jurídico-tributário aquela pretende revertido com a presente ação, além de que a falta de contestação especificada dos factos é livremente apreciada pelo julgador, de harmonia com o disposto no artigo 110.º, n.º 7 do CPPT.
IV. DO DIREITO
1. QUESTÃO A DECIDIR
A questão substancial a decidir respeita à determinação dos efeitos produzidos pela revogação do artigo 32.º do EBF, operada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014), com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2014 , no que diz respeito a encargos financeiros com partes de capital detidas por Sociedades Gestoras de Participações Sociais à data da referida revogação, não deduzidos em exercícios anteriores por aplicação do disposto no n.º 2 do citado artigo.
Está em causa saber se constitui consequência jurídica da revogação do artigo 32.º, n.º 2 do EBF a dedutibilidade fiscal, no período de tributação de 2014, dos encargos financeiros suportados por uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS) em períodos de tributação anteriores à data de entrada em vigor (em 1 de janeiro de 2014) da referida Lei n.º 83-C/2013, com financiamentos para aquisição de partes de capital ainda detidas em 31 de dezembro de 2013.
Segundo a Requerente, esses encargos financeiros [suportados em períodos de tributação anteriores, de 2010 a 2013, relativos à aquisição de participações que, em 31 de dezembro de 2013, permaneciam na sua titularidade] devem ser deduzidos ao seu lucro tributável no primeiro exercício subsequente à revogação da norma em causa, ou seja, em 2014.
Entendimento a que se opõe a Requerida, por considerar que, face à ausência de uma norma transitória que preveja expressamente a respetiva dedução e por aplicação das regras de sucessão das leis no tempo, tais encargos não são dedutíveis. Acrescenta, ainda que a Requerente não demonstrou os factos invocados, distintos dos declarados, o que lhe competia de acordo com as regras do ónus da prova.
2. SOBRE OS EFEITOS DA REVOGAÇÃO DO ARTIGO 32.º DO EBF – POSIÇÕES EM CONFRONTO
A título preliminar, salienta-se que esta questão tem sido apreciada pela jurisprudência arbitral, sem, contudo, lograr um entendimento consensual, apresentando-se, de seguida, um resumo das duas correntes.
2.1. JURISPRUDÊNCIA ARBITRAL EM FAVOR DA DEDUÇÃO DOS ENCARGOS FINANCEIROS
No sentido da pretensão da Requerente, começa por referir-se a decisão arbitral proferida no processo n.º 645/2017-T, que, numa situação análoga à dos presentes autos, considera aplicável a estatuição contida no segmento final do ponto 6 da Circular n.º 7/2004: “Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime [de exclusão de tributação, previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF], proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.”
Declara-se neste aresto que, com a revogação, antes do “momento da alienação das participações”, do regime especificamente previsto para as SGPS no artigo 32.º do EBF, impõe-se concluir que, com caráter definitivo, o mesmo não mais poderá ser aplicado, por impossibilidade de verificação dos respetivos requisitos . Daí que, por identidade de razões, a AT esteja vinculada a aplicar a consequência ínsita na parte final do ponto 6 da Circular, i.e., a considerar como custo fiscal, no ano da revogação, os encargos [financeiros] que não foram deduzidos em exercícios anteriores, de harmonia com o disposto no artigo 68.º-A, n.º 1 da LGT.
Refere-se a esse propósito que o “reconhecimento como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores deve ser também acionado pela revogação do regime do 32.º [do EBF], dada a conexão entre a indedutibilidade daqueles e a exclusão de tributação estabelecida nesse regime. Assim, a impossibilidade de vir a ser aplicado um regime privilegiado a nível da alienação considerou-se justificação para que devesse ser eliminada a desvantagem referida.”
No sentido preconizado pela Requerente, militam também as decisões arbitrais dos processos n.º 285/2017-T, de 24 de maio de 2018 , e n.º 342/2018-T, de 9 de abril de 2019, que partem do princípio que o regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, tal como foi comummente interpretado, postulava uma indedutibilidade condicionada dos encargos financeiros suportados com a aquisição de partes sociais . Sendo a condição da indedutibilidade que as mais-valias ou menos-valias geradas pela alienação dessas participações beneficiassem da disciplina de exclusão de tributação prevista no citado artigo 32.º, n.º 2 do EBF.
Neste contexto, a interpretação de que a revogação dessa disposição, desacompanhada de qualquer regra de direito transitório, implicaria a manutenção do regime especial de não dedutibilidade dos encargos financeiros e, em simultâneo, a perda do benefício fiscal, deixaria as sociedades gestoras de participações sociais em posição de injustificado desfavorecimento face à generalidade das sociedades, com violação do princípio da igualdade .
Salienta-se a esse respeito que “[n]ão estará aqui, assim e simplesmente, em causa uma norma especial que veda a dedução fiscal de certos custos, mas antes uma norma que consagra uma indedutibilidade não definitiva, em exercícios sucessivos, até que se verifiquem ou não determinados factos, dos quais decorra: a) a definitividade da indedutibilidade «ex ante»; ou b) a cessação daquela indedutibilidade.”
A decisão arbitral do processo n.º 342/2018-T, alicerça-se ainda na diferente natureza da disciplina estabelecida pelo artigo 32.º, n.º 2 do EBF e do novo regime da participation exemption que passou a constar do artigo 51.º-C do Código do IRC.
O regime revogado, do EBF, constituía um benefício fiscal, portanto uma medida de caráter excecional, instituída para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes, superiores aos da própria tributação que impediam .
A participation exemption faz parte integrante do regime geral do IRC e do modelo de tributação dos rendimentos de partes de capital . Foi a “constatação geral da limitação da «eficiência do regime utilizado, a nível nacional, para eliminação da dupla tributação» , que levaram a Comissão de Reforma a propor «a adoção de um regime participation exemption de cariz universal (i.e., aplicável ao investimento independentemente do país ou região em que este se materialize, salvo as indispensáveis normas anti-abuso) e horizontal (aplicável tanto à distribuição de lucros e de reservas, quanto às mais-valias, e, bem assim, às diversas operações suscetíveis de serem consideradas substitutos próprios destas operações)»” .
Sendo que, como argumenta o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 139/2016, “tentando apurar a igualdade substancial de posições jurídicas - no pressuposto de que só duas posições materialmente iguais ou equivalentes podem servir de parâmetro para aferir de um tratamento desigual -, não pode afirmar-se, de modo algum, que tal ligação exista entre uma relação que conduz à tributação-regra e uma outra relação que conduz à concessão ou não concessão do benefício fiscal.”
Assim, o regime da participation exemption não é uma continuação do regime anterior vertido no artigo 32.º, n.º 2 do EBF, mas um regime novo de diferente natureza substancial, tendo sido determinado por razões próprias e específicas. De onde se retira que, para efeitos de aplicação da lei no tempo, não se possa nem deva falar em sucessão de leis, pois o que ocorreu foi a revogação de um regime com a consagração de outro, 17 dias após, de âmbito e natureza distintos, em diplomas autónomos.
A compreensão dos gastos financeiros com participações sociais não deduzidos (fiscalmente) como sujeitos a uma indedutibilidade antecipada ou ex ante, diretamente condicionada ao gozo do benefício fiscal, pilar da constitucionalidade do regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, não permite que se considere que essa indedutibilidade se consolidou por efeito da revogação do artigo 32.º do EBF. Nem tão-pouco que se mantenha uma indedutibilidade “suspensa” até se verificar se as participações sociais subjacentes aos encargos financeiros em questão irão gerar ou não mais-valias tributáveis, pois, para tal, seria necessário o sustentáculo legal da produção desse efeito, que inexiste e que sempre esbarraria na distinta natureza dos regimes que se sucederam.
Preconiza-se, em síntese, que a 1 de janeiro de 2014 “a norma especial (relativa a benefícios fiscais) que impunha a indedutibilidade dos gastos financeiros, ora em causa, deixou de vigorar, pelo que deixou de condicionar (de ser aplicável) ao juízo de dedutibilidade ou indedutibilidade de tais gastos”. E que “A manutenção da indedutibilidade ex ante ou condicionada dos gastos em causa, não resulta igualmente quer da Lei n.º 83- C/2013, de 31/12, quer da Lei n.º 2/2014, de 16/01, que, quer uma quer outra, não contém qualquer disposição transitória, dispondo sobre tal questão.”
Pelo que só se o regime instituído pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, dispusesse, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2014, que se mantinha a indedutibilidade condicionada até aí imposta pelo artigo 32.º do EBF, poderia considerar-se legalmente suportada tal solução, o que não sucedeu.
Da lei nova resulta apenas que aos encargos financeiros das SGPS suportados a partir de 2014, também serão de aplicar as normas em vigor desde 1 de janeiro de 2014, ou seja, a regra geral do artigo 23.º do Código do IRC com a limitação prevista no artigo 67.º deste diploma. Deste modo, a lei nova não comina qualquer limitação aos gastos suportados anteriormente a 2014.
Sobre o momento da dedução, nota-se que na interpretação genericamente aceite e executada do artigo 32.º, n.º 2 do EBF nunca foi questionado que a dedução fiscal deveria ser efetuada no exercício em que cessasse a indedutibilidade ex ante, como resulta da leitura da própria Circular n.º 7/2004.
Nesse caso, e bem assim naquele que nos ocupa (materializado na revogação do regime jurídico do artigo 32.º do EBF), o facto jurídico apenas ocorreu em 2014, pelo que os gastos inerentes devem ser dedutíveis nesse exercício. Se porventura se entendesse que o princípio da especialização dos exercícios, conforme consagrado no artigo 18.º do Código do IRC, representava um obstáculo a este entendimento, por hipotética incompatibilidade com as regras de periodização económica, seria de qualquer modo convocável a jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, segundo a qual deve ser permitida a imputação de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais com o objetivo de operar a transferência de resultados entre exercícios .
Sobre uma eventual retroatividade, considera-se não verificada, pois o que está em causa é extrair os efeitos jurídicos da revogação total (e não meramente parcial) do regime das SGPS face a gastos financeiros caracterizados por uma (in)dedutibilidade fiscal suspensa. Pelo contrário, entende-se que “a pretensão da AT […] é que mantém os gastos em questão no referido status jurídico de indedutibilidade ex ante, que resultava do regime do art.º 32.º/2 do EBF, após a revogação deste, e sem norma que disponha nesse sentido.”
Por outro lado, a indedutibilidade ex ante dos encargos financeiros não é enquadrável como “custo de formação de uma futura vantagem [correspondente à não tributação das mais-valias associadas]”, “mas antes como o efeito de um facto impeditivo da dedutibilidade daqueles gastos, decorrente da referida norma”. Todavia, mesmo que se aceitasse essa tese [do custo/vantagem], “o custo da vantagem prevista no mesmo regime não é o mesmo que estava previsto no regime anterior, dado que, como se viu, do novo regime apenas decorre a indedutibilidade dos gastos incorridos de 2014 em diante, e não em períodos anteriores àquele”. Inexiste qualquer norma vigente para o exercício de 2014 que faça a associação entre os encargos financeiros não deduzidos anteriormente àquele ano e as mais-valias que se venham a gerar daí em diante.
Deve, de acordo com esta tese, partir-se do pressuposto de que existem normas gerais que disciplinam a dedutibilidade dos gastos, e que, verificados os requisitos gerais, nomeadamente os previstos no artigo 23.º do Código do IRC, apenas poderá ser afastada pelas regras da periodização económica ou por uma norma especial. E é a ausência de tal norma que deve conduzir à conclusão – que se impõe à luz dos princípios da legalidade e da tipicidade a que obedece a lei fiscal – de que se o legislador quisesse que as SGPS tivessem um tratamento mais desfavorável, comparado com o dos restantes sujeitos passivos, deveria dizê-lo. Seria “afrontoso do princípio da legalidade […] qualificar, no exercício de 2014, os gastos em questão como indedutíveis (ex ante ou definitivamente), sem qualquer norma que sancione tal qualificação”.
“Para além disso […], não existe um nexo causal exclusivo entre a isenção da tributação de mais valias prevista pelo art.º 32.º/2 do EBF e a indedutibilidade ex ante, também decorrente do mesmo artigo, já que tal regime implica, igualmente, um tratamento mais desfavorável, em relação ao regime geral contemporaneamente vigente, no que diz respeito à tributação de dividendos e à consideração como gastos das menos-valias, tratando-se, assim, de um regime global, com um conjunto de equilíbrios e contrapesos, que não pode ser, simplesmente, reduzido a uma troca, entra a desconsideração de um gasto e a não tributação de um ganho. […] não há qualquer continuidade ou expansão de regimes, formal, substancial ou teleológica, mas antes a revogação de um, e a criação de outro, distinto, que tornou redundante o primeiro.”
2.2. JURISPRUDÊNCIA CONTRÁRIA À DEDUÇÃO DOS ENCARGOS FINANCEIROS
Em sentido oposto, identificamos as decisões arbitrais n.ºs 610/2017-T, de 17 de setembro de 2018, 377/2018-T, de 28 de fevereiro de 2019, 580/2018-T, de 4 de julho de 2019 e 496/2018-T, de 27 de novembro de 2019. Estas pronunciam-se no sentido de que a revogação do artigo 32.º do EBF não se enquadra na previsão do ponto 6 da Circular n.º 7/2004, por não ser equiparável à falta de preenchimento dos requisitos para a aplicação do regime de exclusão de tributação das mais-valias, quando este estava ainda em vigor.
Segundo este entendimento, a Circular n.º 7/2004, apesar de possuir eficácia vinculativa para a AT, pelo seu caráter de ato regulamentar interno, não vincula os tribunais, que têm de aferir da legalidade da atuação administrativa em função das normas e princípios jurídicos aplicáveis ao caso concreto, porquanto a ilegalidade do ato impugnado não pode resultar do incumprimento de uma orientação genérica, mas unicamente da violação da lei.
Acrescenta-se que a revogação do disposto no artigo 32.º do EBF teve como contrapartida a introdução do regime de participation exemption previsto no novo artigo 51.º-C do Código do IRC, aditado pela Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro, de onde resulta que as SGPS continuam a beneficiar da não sujeição a tributação das mais-valias de participações sociais. E, nesse sentido, a sucessão dos regimes legais não afronta o princípio da igualdade ou da proteção da confiança.
Com efeito, o legislador substituiu o regime constante do artigo 32.º, n.º 2, do EBF, “que implicava uma vantagem (isenção de mais-valias da alienação de participações sociais) e uma desvantagem (indedutibilidade de custos de financiamento para a aquisição dessas participações sociais), por um outro critério que permite que as sociedades possam beneficiar não apenas da isenção de mais-valias como também da dedução dos encargos financeiros segundo o regime geral, o que se traduz num benefício adicional relativamente ao regime precedente”
Assinala-se, por outro lado, que o legislador previu normas transitórias para as situações de entrada em vigor da lei nova, “pelo que, se tivesse querido salvaguardar a dedução da totalidade dos encargos financeiros no ano de 2014, tê-lo-ia previsto na Lei que revogou o artigo 32.º do EBF ou, no limite, na Lei da Reforma do IRC” . Não tendo sido estabelecida uma norma transitória sobre os encargos financeiros não deduzidos ao abrigo da lei antiga, não pode o intérprete criar essa norma transitória, admitindo a dedução dos referidos encargos financeiros, na totalidade, no exercício de 2014.
Conceder provimento à dedução dos encargos financeiros, sem a verificação da condição legalmente imposta (alienação das participações sociais) e independentemente do regime fiscal dessa alienação seria admitir a dissociação, para o passado, entre os encargos financeiros não deduzidos e as mais-valias isentas, solução essa que não encontra apoio no regime anterior nem foi salvaguardada pelo atual e representaria a “a configuração ex nihilo de uma disposição transitória material ”, sem respaldo em disposição legal aplicável.
Admite-se que possa ocorrer uma recaptura e dedução dos encargos financeiros não deduzidos relacionados com participações financeiras no exercício futuro em que as participações sociais sejam alienadas, se a transmissão não vier a beneficiar, a final, da isenção de mais-valias prevista no artigo 51.º-C do Código do IRC. “Só então se poderá equacionar a invocação a favor da pretensão da Requerente dos princípios constitucionais da igualdade, da tributação pelo lucro real e da proteção da confiança .”
3. POSIÇÃO ADOTADA
3.1. QUADRO LEGAL
O enunciado do artigo 32.º, n.º 2 do EBF , conforme a redação resultante do artigo 144.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro rezava nos seguintes moldes: “As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades” (redação que, em substância, remonta à Lei n.º 32-B/2002, de 30 de dezembro, cujo artigo 38.º alterou o artigo 31.º do EBF, que foi após renumerado como artigo 32.º pela republicação do EBF efetuada pelo Decreto-Lei n.º 108/2008, de 26 de junho).
Este preceito foi revogado pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro (LOE 2014).
Em 16 de janeiro de 2014, foi publicada a Lei n.º 2/2014, de 16 de janeiro (Lei da Reforma do IRC) que aditou o artigo 51.º-C ao Código deste imposto, com produção de efeitos a 1 de janeiro de 2014 (nos termos do artigo 14.º da mencionada Lei), que, com relevo para a matéria dos autos dispunha no seu n.º 1 o seguinte:
“1 - Não concorrem para a determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC com sede ou direção efetiva em território português as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e independentemente da percentagem da participação transmitida, de partes sociais detidas ininterruptamente por um período não inferior a 24 meses, desde que, na data da respetiva transmissão, se mostrem cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a), c) e e) do n.º 1 do artigo 51.º, bem como o requisito previsto na alínea d) do n.º 1 ou no n.º 2 do mesmo artigo.”
Interessa, por fim, considerar o n.º 6 da Circular n.º 7/2004, de 30 de março, que dispunha nos seguintes termos:
“Relativamente ao exercício em que deverão ser desconsiderados como custos, para efeitos fiscais, os encargos financeiros, dever-se-á proceder, no exercício a que os mesmos disserem respeito, à correção fiscal dos que tiverem sido suportados com as aquisições de participações que sejam suscetíveis de virem a beneficiar do regime especial estabelecido no artigo 31.º, n.º 2, do EBF, independentemente de se encontrarem já reunidas todas as condições para a aplicação do regime especial de tributação das mais-valias, caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime, proceder-se-á nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.”
3.2. PARAMETRIZAÇÃO PELOS PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA
A questão que se suscita nos presentes autos é de direito e reveste-se de complexidade dada a ausência de uma regra de aplicação imediata ou linear ao caso concreto, sendo ambas as posições esgrimidas na jurisprudência arbitral coerentes e equacionáveis de um ponto de vista metodológico.
Se bem compreendemos, na primeira tese que acima se descreveu, em linha com a Requerente, os encargos financeiros não deduzidos encontravam-se sob condição suspensiva [de dedução] no caso em que as participações a que respeitavam se mantinham na esfera da SGPS (e enquanto tal se verificasse), pelo que o seu status jurídico estava ativo à data [2014] em que foi revogado o regime que determinava essa suspensão, o artigo 32.º, n.º 2 do EBF. Em consequência, cessou o mencionado efeito suspensivo, com a consequente dedução de tais encargos, conquanto se verifiquem os requisitos gerais da dedutibilidade dos gastos constantes do artigo 23.º do Código do IRC, o que se afigura ser o caso .
Na segunda posição, a indedutibilidade dos encargos financeiros aferida no momento em que estes são incorridos (atraída pela sua conexão com a aquisição de participações sociais) prefigura-se como definitiva, sem prejuízo de poder operar um mecanismo corretivo que “recapture” esses encargos, se (e só se) não se verificar o pressuposto na origem da sua indedutibilidade. Pressuposto este correspondente à não tributação das mais-valias geradas pelas partes sociais a que respeitavam os encargos. Atento o caráter definitivo da não aceitação dos gastos financeiros no momento em que foram incorridos, a subsequente revogação do regime do artigo 32.º, n.º 2 do EBF, per se, não conduz a qualquer recaptura daqueles, para efeitos da sua dedução. Numa perspetiva mais drástica, esses encargos nunca poderão vir a ser recapturados na sequência da revogação do regime, noutra, moderada, poderão sê-lo por sobrevigência, se, e quando, ocorrer a alienação das partes sociais a que respeitam os encargos, se as mais-valias produzidas não beneficiarem do disposto no artigo 51.º-C do Código do IRC, i.e., se forem sujeitas a tributação.
A interpretação do direito e a sua aplicação ao caso concreto, necessariamente dotadas de um suporte gramatical, não podem desprender-se de uma ponderação valorativa, pois o direito, para além de o ser, é um dever ser. Assim, sem prejuízo da viabilidade lógico-jurídica das duas soluções, e até, talvez, de um maior rigor lógico-formal da segunda, julga-se que a primeira tem o mérito, que a aquela [segunda] não alcança, de se parametrizar por dois princípios fundamentais – a igualdade e a proteção da confiança.
Começamos pelo princípio da igualdade.
Dois sujeitos passivos de IRC, um que seja SGPS e outro que o não seja, teriam, na solução sufragada pela AT, sem qualquer justificação material, um distinto tratamento dos encargos financeiros com as partes de capital adquiridas até 2014, quando o regime de tributação das mais-valias provenientes da venda desses instrumentos de capital próprio é exatamente o mesmo para as SGPS e demais sujeitos passivos de IRC: o previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC.
A SGPS não poderia deduzir fiscalmente esses encargos não obstante todos os demais sujeitos passivos o terem feito.
Apesar de o legislador ter pretendido eliminar as diferenças entre os diversos tipos de sociedades, criando um modelo único de tributação das mais-valias, conforme refere o Relatório do Anteprojeto da Reforma do IRC, na realidade, esta interpretação criaria um regime distinto para as participações adquiridas em 2014 por SGPS que ficariam, ao contrário de todos os outros sujeitos passivos de IRC, impedidas de incluir, como componente negativa do lucro tributável, os gastos financeiros suportados com essas participações e, portanto, veriam aumentar a sua base de incidência e o IRC devido.
Solução anacrónica dado que, ao contrário do que se esperaria de uma disciplina geral, aplicável transversalmente a todos os sujeitos passivos de IRC, a posição tributária das SGPS, em vez de igual, ficaria, paradoxalmente, agravada em relação aos demais sujeitos passivos de IRC, passando, de uma só vez, de beneficiárias de um enquadramento fiscal tendencialmente mais favorável (justificado como benéfico para o mercado de capitais) para uma situação de desfavor fiscal, sem que a lei revele ou manifeste de alguma forma tal desígnio e, muito menos, que seja justificada a desigualdade e enunciado o critério subjacente.
Em suma, a solução legal que se preconiza está em linha com a da Requerente, pois permite que todos os sujeitos passivos de IRC fiquem sujeitos às mesmas variáveis qualitativas ou categóricas, no âmbito de aplicação de um modelo de tributação de mais-valias estruturado e pensado de forma transversal, nomeadamente:
a) a dedução dos encargos financeiros inerentes à aquisição das partes de capital incorridos até 31 de dezembro de 2013;
b) a não tributação das mais-valias da transmissão das partes de capital, de acordo com o disposto no artigo 51.º-C do Código do IRC.
É certo que inexiste norma transitória que determine de forma expressa esta solução, ou qualquer outra. Porém, também não existe norma que a vede. Assim, com base nos elementos interpretativos descritos, em particular o histórico e teleológico, e a ponderação, com caráter decisivo, de um critério de maior igualdade, o resultado interpretativo alcançado é o da afirmada dedutibilidade dos encargos financeiros.
Com efeito, seguindo a argumentação de anteriores decisões arbitrais (645/2017-T, 285/2017-T e 342/2018-T), deve considerar-se que a indedutibilidade dos encargos financeiros associados a partes de capital prevista no artigo 32.º, n.º 2 do EBF era condicionada ao regime de exclusão de tributação das mais-valias obtidas por SGPS.
Tendo este regime deixado de vigorar desapareceu a condição, pelo que de harmonia com a apreensão que a AT fez do regime em causa na Circular n.º 7/2004 (de correspetividade entre a não dedução dos encargos e o regime de exclusão de tributação do citado artigo 32.º, n.º 2 do EBF), cai o pressuposto de indedutibilidade, embora não seja por alienação das participações sociais fora do quadro de exclusão de tributação, mas por circunstância ope legis, de revogação do regime pelo legislador. Em qualquer dos casos, o expressamente previsto pela Circular [alienação das partes de capital fora do regime de exclusão de tributação do artigo 32.º, n.º 2] e o assimilado [revogação do artigo 32.º, n.º 2] constata-se a circunstância que se reputa determinante para reverter a indedutibilidade que é a de, em definitivo, o regime [do artigo 32.º, n.º 2] não mais poder ser aplicado, com a consequente “consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.
É verdade que a exclusão de tributação das mais-valias acaba por ser retomada pelo regime geral do artigo 51.º-C do Código do IRC. Porém, em termos e condições próprias que não excluem a dedução dos encargos incorridos antes de 2014. Assim, a paridade de circunstâncias com todos os outros sujeitos passivos, que não ficaram abrangidos por aquela restrição, postula que, sendo sustentável, mesmo que a par de outros possíveis, deve ser este o sentido acolhido.
Por outro lado, idêntica recomendação resulta da ponderação do princípio da confiança, desde logo na aceção defendida na decisão arbitral do processo n.º 285/2017-T, de que se extrai o ilustrativo argumento:
“24) No momento em que é eliminada a isenção relativamente às mais-valias das SGPS realizadas a partir de a partir de 1 de Janeiro de 2014, a medida pareceria dispor somente para o futuro (apenas atinge as mais-valias cuja realização ocorra depois da sua entrada em vigor, ou seja, nos períodos tributários correspondentes ao ano 2014 e anos seguintes, tributando assim apenas factos tributários cujo arco temporal termina já no domínio da lei nova); mas, ao desconsiderar as componentes negativas dos encargos financeiros com a aquisição de partes de capital das suas participadas, ao fazer tábua-rasa da correspetividade que justificava e fazia funcionar o regime revogado, explicando a formação e conformação do rendimento gerado, a medida só não se consubstancia em verdadeira retroatividade porque, na imprescindível divisão do tempo em períodos tributários, a formação de um tal rendimento acaba, por convenção, totalmente imputado ao período em que ocorreu a realização.
25) Todavia, na medida em que essa revogação suporta, na interpretação e aplicação das pertinentes normas legais feitas pela Administração Tributária, a impossibilidade de consideração fiscal de gastos financeiros cuja não-dedução atempada teve por base a existência no futuro da mencionada isenção, viola claramente o princípio da proteção da confiança legítima. De facto, verifica-se uma ligação inextrincável entre os factos tributários passados, em que a Requerente não deduziu os encargos financeiros incorridos no exercício da sua atividade de SGPS com a aquisição de partes de capital de outras sociedades, que se consolidaram no passado, com os factos tributários futuros concretizados na realização das mais-valias que passaram a ser tributadas.”
Além do mais, afigura-se decisivo o teor da Circular n.º 7/2004 e da autovinculação da AT à mesma. Entendendo-se, como entendemos, que a vicissitude da revogação do regime do artigo 32.º, n.º 2 deve ser assimilada à impossibilidade definitiva de cumprimento dos requisitos desse regime, para efeitos de exclusão da tributação das mais-valias ainda não realizadas respeitantes a partes de capital, e, portanto, abrangida pela estatuição do seu ponto 6, então, deve proceder-se no período em que ocorreu a “quebra” do regime, à “consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores.”
Neste contexto, discorda-se que o direito circulatório tenha uma mera e “exclusiva valia jurídica interno-hierárquica, mesmo que assistida de uma relevância persuasiva ou argumentativa externa”.
Apesar de não ser fonte de direito para os contribuintes, que não se encontram vinculados a seguir as orientações administrativas constantes das Circulares, e, bem assim, para os Tribunais, não é irrelevante para a decisão que, no caso concreto, a AT não se tenha atido às instruções por si emanadas, como deveria segundo o prescrito pelo artigo 68.º-A, n.º 1 da LGT.
Como declara o Acórdão n.º 583/2009, de 18 de novembro de 2009, do Tribunal Constitucional, também seguido nesta matéria pelo Acórdão n.º 42/2014, de 9 de janeiro de 2014, do mesmo Tribunal:
“Esses atos, em que avultam as «circulares», emanam do poder do poder de auto-organização e do poder hierárquico da Administração. Contêm ordens genéricas de serviço e é por isso e só no respetivo âmbito subjetivo (da relação hierárquica) que têm observância assegurada. Incorporam diretrizes de ação futura, transmitidas por escrito a todos os subalternos da autoridade administrativa que as emitiu. São modos de decisão padronizada, assumidos para racionalizar e simplificar o funcionamento dos serviços. Embora indiretamente possam proteger a segurança jurídica dos contribuintes e assegurar igualdade de tratamento mediante aplicação uniforme da lei, não regulam a matéria sobre que versam em confronto com estes, nem constituem regra de decisão para os tribunais.
A circunstância de a Administração Tributária ficar vinculada (n.º 1 do artigo 68.º -A da lei Geral Tributária) às orientações genéricas constante de circulares que estiverem em vigor no momento do facto tributário e de ter o dever de proceder à conversão das informações vinculativas ou de outro tipo de entendimento prestado aos contribuintes em circulares administrativas, em determinadas circunstâncias (n.º 3 do artigo 68.º da LGT), não altera esta perspetiva porque não transforma esse conteúdo em norma com eficácia externa. É certo que o administrado pode invocar, no confronto com a administração, o conteúdo da orientação administrativa publicitada e, se for o caso, fazê-lo valer perante os tribunais, mesmo com sacrifício do princípio da legalidade (cf. Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, lei Geral Tributária, comentada e anotada, 3.ª ed., pág. 344). Mas é ao abrigo do princípio da boa-fé e da segurança jurídica, não pelo seu valor normativo, que o conteúdo das circulares prevalece. O administrado só as acata se e enquanto lhe convier, pelas mesmas razões que justificam que possa invocar informações individuais vinculativas que o favoreçam (artigo 59.º, n.º 3, alínea e) e artigo 68.º da LGT).”
Assim, a liquidação que enferme de contradição com o teor de Circulares emanadas da AT, como sucede in casu, pode ser invalidada com fundamento autónomo na tutela da confiança, como se decidiu na situação análoga subjacente ao processo arbitral n.º 645/2017-T.
Não se desconhece a posição distinta recentemente perfilhada no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 638/2020-T, de 16 de novembro de 2020, nos seguintes moldes:
“Importa relembrar, antes do mais, que segundo a opinião que pode dizer-se ainda maioritária na doutrina, tal como resumida por Sérgio Vasques, «(…) Seguramente que as circulares constituem normas jurídicas, que projetam os seus efeitos na esfera da administração, vinculando o subalterno à interpretação da lei ditada pelo superior hierárquico, mas não se pode dizer que representem em si mesmas fontes do direito fiscal por não constituírem parâmetro de validade dos atos praticados pela administração, que hão de encontrar esse parâmetro nas normas legais que as circulares visam interpretar. Significa isto que os tribunais não estão obrigados a fazer da lei a mesma interpretação que a administração fixa no seu direito circular e que os contribuintes não estão obrigados a aplicar a lei seguindo as orientações que através das circulares se dirigem aos serviços.» (v. Manual de Direito Fiscal, 2.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 161).
Não se ignora que a relevância da vinculação da Administração às orientações genéricas que emite e publicita vem sendo debatida na doutrina (v., com especial contundência, João Taborda da Gama, “Tendo surgido dúvidas sobre o valor das circulares e outras orientações genéricas…”, Estudos em Memória do Prof. Doutor Saldanha Sanches, Vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 157-225).”
Porém, pelas razões expostas, na parte em que se conclua que não tem desvalor invalidante uma conduta da AT dissonante das normas regulamentares por si mesma emitidas, não se pode acompanhar tal posição, que equivale a afirmar que os cidadãos não poderiam repousar a sua confiança nas normas emanadas pelos órgãos executivos do Estado, no exercício válido das suas atribuições e competências.
As Circulares são atos de natureza normativa, verdadeiros regulamentos administrativos que, embora juridicamente desprovidos de eficácia externa (por terem formalmente como destinatários apenas a administração tributária) , são publicitados. Esta publicidade não se destina somente à adoção de procedimentos uniformes e tipificados pelos serviços, pretende também, e essencialmente, orientar a conduta dos contribuintes e transmitir-lhes o que estes podem esperar dos serviços da AT. É verdade que as Circulares não são vinculativas para os contribuintes, mas estes não podem deixar de ter a expetativa de que o Estado (administrador) que as emanou e, principalmente, as publicitou como o entendimento oficial da sua administração, as vai cumprir, sob pena de, assim não sendo, se legitimar um “venire contra factum proprium”, uma contradição insanável no seio da ordem jurídica.
Em síntese, estamos perante gastos enquadrados no critério geral ínsito no artigo 23.º do Código do IRC (n.ºs 1 e 2, alínea c)), relativos a encargos financeiros afetos à aquisição de participações sociais pela Requerente, cujo escopo social é precisamente a gestão dessas participações, passíveis de dedução para efeitos deste imposto nos termos acima expostos.
Esta solução não equivale ao preenchimento de uma lacuna através da criação de uma disciplina dispositiva construída ex novo, desenvolvendo-se em sintonia com o suporte normativo do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e as normas gerais de interpretação e de aplicação da lei no tempo. Também não contraria uma opção de política legislativa, pois pretende, precisamente, coordenar-se aos objetivos gizados pelo legislador, de equiparação das SGPS às demais sociedades, no âmbito de um modelo geral de tributação das mais-valias. Legislador que nunca manifestou a intenção de colocar as SGPS em posição de desvantagem face a outras sociedades.
Deste modo, afigura-se não ser de acolher a alegação trazida pela Requerida de inconstitucionalidade material por violação do princípio da legalidade decorrente dos artigos 13.º e 103.º da Constituição e da consequente violação do princípio do Estado de Direito, da reserva da lei fiscal e da separação de poderes, com a subordinação dos tribunais à lei (artigos 2.º, 103.º, 165.º e 202.º da Constituição). É, igualmente, de rejeitar o vício de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, pois é a solução defendida pela AT que gera a desigualdade e não a que aqui se aplica. No tocante à inconstitucionalidade da interpretação que impõe o caráter vinculativo das orientações genéricas à AT, também se afigura improcedente, atento o teor do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 583/2009, acima parcialmente transcrito.
Por outro lado, não se crê que haja uma aplicação retroativa da lei, pois o facto jurídico relevante que origina a dedução dos encargos financeiros (a revogação da lei) produz-se contemporaneamente a essa dedução e incide sobre encargos que têm status jurídico ativo, nos moldes supra enunciados .
Por fim, não colhe o vício, arguido pela Requerida, de ilegalidade e inconstitucionalidade da dedutibilidade dos encargos num único momento. Com efeito, na ausência de opção expressa do legislador pelo diferimento da dedução dos encargos, ou pela sua repartição faseada, como frequentemente sucede noutros casos, o exercício relevante não pode deixar de ser aquele em que se verificou a quebra de regime, por via da sua revogação.
Trata-se de uma situação perfeitamente enquadrável no princípio da especialização dos exercícios, nos termos do artigo 18.º, n.º 2 do CIRC, dada a sua imprevisibilidade (o “se” e o “quando” da revogação). Mesmo que assim não se entendesse, seria aplicável a posição consagrada pelo Supremo Tribunal Administrativo que determina a “conformação” do princípio da periodização com o princípio da justiça “por forma a permitir a imputação a um exercício de custos referentes a exercícios anteriores, desde que não resulte de omissões voluntárias e intencionais, com vista a operar a transferência de resultados entre exercícios.” (acórdão do processo n.º 0716/13, de 14 de março de 2018).
A própria Requerida, na Circular n.º 7/2004, postula o reconhecimento de uma só vez da dedução dos encargos, com referência ao momento em que se verificar o facto determinante da inaplicabilidade do regime de exclusão de tributação previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF. Aliás, parece que esta posição continua a ser defendida em relação às situações de alienação das participações sociais (ponto 123.º da Resposta).
Nem tão pouco se considera que a dedutibilidade dos encargos com referência ao momento de revogação do artigo 32.º do EBF consubstancie uma violação do princípio constitucional da capacidade contributiva e da tributação do lucro real (artigo 104.º, n.º 2 da Constituição), uma vez que essa dedução se limita a colocar em exata igualdade de circunstâncias as entidades que não são SGPS e aquelas que o são, no que tange à contribuição dos encargos financeiros associados à aquisição de partes sociais para o apuramento do respetivo lucro tributável. Não se trata de uma erosão injustificada da base de incidência, mas de uma medida corretiva visando que todas as entidades sejam tributadas pelo mesmo lucro real.
À face do exposto, conclui-se que devem ser considerados dedutíveis no período de tributação de 2014 os encargos financeiros incorridos com a aquisição de participações sociais detidas pela Requerente à data da revogação do artigo 32.º do EBF, não deduzidos em exercícios anteriores, por ser a solução que melhor se conforma a critérios valorativos derivados dos princípios da igualdade e de proteção da confiança.
4. SOBRE O ÓNUS DA PROVA
De acordo com a Requerida a Requerente não demonstrou os factos que suportam a pretensão deduzida que afirma divergirem daqueles constantes das suas declarações periódicas que gozam da presunção de veracidade (artigo 75.º, n.º 1 da LGT).
Afigura-se, contudo, não ser assim. Os encargos financeiros não deduzidos fiscalmente pela Requerente ao longo dos anos 2010 a 2013 encontram-se relevados e bem identificados nas declarações Modelo 22 apresentadas com referência a esses períodos, nos campos próprios, a acrescer ao lucro tributável (procedimento necessário para reverter a dedução efetuada no plano contabilístico que não obedece às regras fiscais), como resulta do probatório.
Este é o facto essencial constitutivo que subjaz (como pressuposto) à estatuição do efeito jurídico visado, de “recaptura” da dedução fiscal: os encargos financeiros incorridos com as participações sociais não terem sido deduzidos fiscalmente, ou dito de outra forma, terem sido acrescidos, como o foram, no quadro 07 das declarações Modelo 22. Sobre este ponto não há dissonância ou diferença entre os factos declarados e os invocados como pressuposto da correção das liquidações de imposto: a Requerente tratou esses gastos como indedutíveis. Assim, dada a presunção de veracidade das declarações e a não alegação de quaisquer indícios que abalem essa presunção, tem de concluir-se pela satisfação do ónus da prova por parte da Requerente.
O que não está refletido nas declarações fiscais da Requerente é a dedução dos ditos encargos na Declaração de 2014, o que também é consensual. Estamos aqui perante uma questão de enquadramento – de alegado erro de direito (e não de um pressuposto de facto) – que condicionou que não tivesse sido inscrita tal dedução no mencionado quadro 07. Foi precisamente para “corrigir” esse lapso de enquadramento que foi dirigido o pedido de pronúncia a este Tribunal Arbitral, concluindo-se, ao contrário da Requerida que estão provados, tendo a Requerente satisfeito tal ónus, os factos essenciais que alegou.
5. JUROS INDEMNIZATÓRIOS
O direito a juros indemnizatórios deriva do pagamento da prestação tributária [IRC e derramas] em montante superior ao legalmente devido e, nas situações de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, tem enquadramento específico no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT: os mesmos são devidos se a revisão do ato se efetuar mais de um ano após o pedido deste, “salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
No caso concreto, tendo o procedimento de revisão do ato tributário sido iniciado em 27 de maio de 2019, e não sendo o atraso imputável à Requerente, o cômputo dos juros indemnizatórios que lhe são devidos terá início a partir de um ano a contar dessa data, ou seja, a partir de 27 de maio de 2020.
* * *
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar procedente o pedido arbitral e, em consequência:
(a) Anular parcialmente o IRC liquidado em 2014, na parte que incidiu sobre encargos financeiros no valor de € 1.164.578,58, incorridos com participações sociais (e não deduzidos em exercícios anteriores) que não beneficiaram do regime de exclusão de tributação previsto no artigo 32.º, n.º 2 do EBF; e
(b) Condenar a AT no pagamento de juros indemnizatórios contados nos termos do disposto no artigo 43.º, n.º 3, alínea c) da LGT.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 285.321,75 (duzentos e oitenta e cinco mil, trezentos e vinte e um euros e setenta e cinco cêntimos), correspondente ao valor da autoliquidação de IRC cuja anulação é peticionada – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).
Notifique-se.
Lisboa, 10 de dezembro de 2020
Os Árbitros,
Alexandra Coelho Martins
Fernando Borges de Araújo
João Menezes Leitão
(vencido, conforme declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
I. Nota preliminar
1. Como outros casos já julgados no âmbito deste CAAD, o presente processo incide – novamente, pois – sobre a questão da dedução, no período de tributação de 2014, de encargos financeiros suportados em conexão com a aquisição de partes de capital, que foram acrescidos à base tributável de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas (IRC) por sociedade gestora de participações sociais (SGPS) em exercícios fiscais anteriores, como efeito da revogação do art. 32.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF) operada pelo art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12.
2. Começo, então, por sinalizar que já expressei posição sobre esta questão na declaração de voto de vencido que apresentei no processo arbitral, que incidia sobre análogo thema decidendum, com o n.º 342/2018-T, declaração esta que, aliás, é referenciada em peças processuais destes autos e a que se faz alusão, bem merecidamente parca, no acórdão. Perseverando, porém, no meu sustained dissent quanto à solução que fez vencimento neste processo, tenho que lavrar – novamente, pois – voto de vencido.
3. No cumprimento da exigência, em conformidade com o previsto no art. 22.º, n.ºs 3 e 5 do RJAT, de exposição das minhas razões, seguramente não conseguirei escapar a reiterar fundamentos já ali postos. Ainda que com perigo da presteza com que o Coletivo me intima, tentarei, ainda assim, ir um pouco além de decalcar ou remeter, não apenas para ter especificamente em conta a fundamentação particular do acórdão destes autos, mas sobretudo porque “In rebus quibuscumque difficilioribus non expectandum, ut quis simul, et serat, et metat, sed praeparatione opus est, ut per gradus maturescant” (BACON, Sermones Fideles sive Interiora Rerum, XLV). Justamente, parece-me conveniente nesta coisa difícil da dedutibilidade em 2014 dos encargos financeiros relativos a dívida contraída para a aquisição de partes de capital por SGPS verificar o amadurecimento das posições assumidas, já que é possível contar agora com o recente e importante acórdão do Tribunal Constitucional n.º 638/2020.
II. Inadmissibilidade da solução da dedução una tantum, in totum e ad nutum em 2014 da totalidade dos encargos financeiros acrescidos em exercícios fiscais anteriores
4. Vejamos então – novamente, pois – a questão de Direito aqui em jogo, não sem fazer previamente um curto desvio para observar que talvez pudesse ser totalmente imaculada a decisão da matéria de facto de modo a não ficar qualquer dúvida nesse âmbito.
5. Refiro-me, designadamente, ao que ficou consignado na alínea C) dos factos provados segundo o qual as sociedades dominadas identificadas em B) [diga-se que, em bom rigor, como resulta do quadro incluído, não são apenas as sociedades dominadas, mas também a própria Requerente ] “acresceram aos seus resultados tributáveis individuais o valor global de € 1.170.104,11, referente a encargos financeiros suportados com a aquisição de partes de capital, nos termos do artigo 32.º, n.º 2 do EBF e da Circular n.º 7/2004, de 30 de março”, o que se fundamentou nas “próprias declarações Modelo 22 submetidas pela Requerente e sociedades subsidiárias, que contêm, no seu quadro 07, o acréscimo dos encargos financeiros cujo enquadramento jurídico-tributário aquela pretende revertido com a presente ação” quando é certo que em relação às declarações Modelo 22 do ano de 2010 (cfr. os docs. n.ºs 5, 7 e 8 juntos ao pedido de pronúncia arbitral) o campo pertinente no Quadro 07 era o 752, de cariz genérico para outras correcções não expressamente previstas (destinando-se, pois, à inclusão de montantes que não devam ser inscritos em campos específicos, pelo que, quando utilizado, deve juntar-se uma nota explicativa ao processo de documentação fiscal previsto no artigo 130.º do CIRC – cfr. a Declaração n.º 245/2010 in DR, 2.ª Série, n.º 252, de 30.12.2010), logo sem se reportar necessariamente aos encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do art. 32.º, n.º 2 do EBF (campo específico que veio a constituir o 779). Deste modo, sem a devida nota explicativa (que não foi junta) não se alcança qual a “força probatória” que possui o valor inscrito nesse campo 752 (valores que conforme docs. 5, 7 e 8 são, respectivamente, de €9.711,03, €598.355,64 e €11.582,30) para os encargos financeiros não dedutíveis ao abrigo do art. 32.º, n.º 2 do EBF. Aliás, é a Requerente que nota no art. 14.º do pedido de pronúncia arbitral que o acréscimo de €11.582,30 na Mod. 22 da E... de 2010 não respeita na totalidade a gastos financeiros, mencionando ainda que o mesmo sucede com o montante de €13.243,71 na Mod. 22 da E... de 2011 e aí já no próprio campo 779. É, pois, claro que o enunciado fáctico objecto da alínea C) não se ampara apenas nas declarações periódicas Mod. 22 e que, para além do próprio reconhecimento de factos pela Requerente, careceria ainda de outros elementos probatórios.
Por outro lado, há outros factos que não mereceram atenção como sucede com a referência no Relatório da Requerente relativo ao exercício de 2012 (doc. n.º 12, p. 4) à alienação de uma participação de 60% detida na Nacional-Mediadora de Seguros em Janeiro de 2012, a propósito da qual surge apenas a declaração, na nota 2 do pedido de pronúncia arbitral e das alegações da Requerente, de que “essa participação nunca chegou a influenciar o cálculo dos encargos financeiros não aceites como gasto ao abrigo do regime fiscal aplicável às SGPS”, sem, porém, ter sido produzida qualquer prova de que os encargos financeiros acrescidos em 2012 são totalmente alheios a esta participação social. Assinalo ainda, nesta sequência, que o enunciado da alínea D) não se reporta à alienação pela D... das partes de capital que detinha na G..., SA, ainda que com encargos financeiros acrescidos insignificantes, matéria esta que não consta de nenhum documento, mas que é alegada pela Requerente (arts. 16.º e 17.º do pedido de pronúncia arbitral).
Julgo ainda que, atento o reconhecido pelo próprio Requerente no art. 22.º do pedido de pronúncia arbitral e consignado na (incompleta) alínea D) e na alínea I), deveria referir-se expressamente na alínea E) dos factos provados o montante susceptível de recuperação de €1.164.578,58 (que é, evidentemente, distinto da totalidade dos encargos financeiros acrescidos de €1.170.104,11 que surge indicado na alínea C)).
Por fim, dadas as várias soluções plausíveis da questão de Direito, julgo que seria relevante a demonstração de que no ano de 2014 não ocorreu a alienação de partes sociais detidas pela Requerente ou pelas sociedades dominadas de que eventuais mais-valias tivessem sido sujeitas a tributação.
6. Deixando para o rés da terra estas minúcias fácticas, levantemos o olhar para a posição triunfante, que retoma – novamente, pois – a orientação assumida noutros acórdãos arbitrais (ainda que com motivações não coincidentes) de que, perante a revogação do n.º 2 do art. 32.º do EBF pelo art. 210.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31.12, há necessariamente que reconhecer às SGPS a dedução – instantânea, em globo e sem qualquer condição – ao lucro tributável de 2014, primeiro exercício subsequente à referida revogação, de todos os encargos financeiros anteriormente acrescidos que foram incorridos em conexão com a aquisição de partes sociais ainda detidas à data de 1.1.2014 independentemente de estas virem a originar mais-valias excluídas de tributação.
7. Pelo meu lado, entendo – novamente, pois – que esta solução de dedutibilidade una tantum, in totum e ad nutum em 2014, pelas SGPS, da totalidade dos encargos financeiros anteriormente incorridos e associados à aquisição de partes de capital ainda detidas em 1.1.2014, não possui sustentáculo na normatividade legal susceptível de aplicação, falhando um “texto-norma” em que se possa fundar uma tal estatuição, já que, por um lado, o revogado art. 32.º, n.º 2 do EBF, na orientação interpretativa que veio a ficar consagrada, designadamente em atenção à Circular n.º 7/2004, de 30.3, e ao exame desenvolvido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014, legitimava unicamente a recuperação dos encargos financeiros não deduzidos fiscalmente ex ante apenas se, e no período temporal em que, as mais valias realizadas com a alienação das partes de capital a que se reportavam concorressem para a determinação do lucro tributável e, por outro lado, o Código do IRC, na versão resultante da Lei n.º 2/2014, de 16.01, por força do disposto no art. 14.º desta Lei, “aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014” .
8. Não posso deixar de observar que a inelutabilidade desta conclusão me parece romper, ainda que como erva ínfima em terreno árido, na motivação do acórdão que fez vencimento: não se perscruta nele um enunciado normativo ou uma conjugação de enunciados normativos de que emerja como sentido juridicamente relevante a dedutibilidade una tantum, in totum e ad nutum em 2014 dos encargos financeiros em causa; admite-se expressamente que “inexiste norma transitória que determine de forma expressa esta solução, ou qualquer outra. Porém, também não existe norma que a vede” (numa metanoia do princípio da legalidade fiscal em vácuo de disposições legais); acaba-se a afirmar, sic et simpliciter, que “é a solução que melhor se conforma a critérios valorativos derivados dos princípios da igualdade e de proteção da confiança”.
9. E, de facto, se bem vejo, a orientação vencedora radica o juízo decisório da dedutibilidade una tantum, in totum e ad nutum em 2014 dos encargos financeiros anteriormente incorridos por SGPS na asserção – ainda que subordinada a um etéreo caveat “necessariamente dotadas de um suporte gramatical” – de que a interpretação do direito e a sua aplicação ao caso concreto que são acolhidas têm o mérito de se parametrizarem pelos dois princípios fundamentais da igualdade e da proteção da confiança, porquanto:
- no que concerne ao princípio da igualdade, a não admissão da imediata dedutibilidade em 2014 de todos os encargos financeiros acrescidos associados a partes de capital implicaria que dois sujeitos passivos de IRC, um que seja SGPS e outro que o não seja, teriam, sem qualquer justificação material, um distinto tratamento dos encargos financeiros com as partes de capital adquiridas até 2014, quando o regime de tributação das mais-valias provenientes da venda desses instrumentos de capital próprio é exatamente o mesmo para as SGPS e demais sujeitos passivos de IRC, o previsto no artigo 51.º-C do Código do IRC, sendo que as SGPS não poderiam deduzir fiscalmente esses encargos não obstante todos os demais sujeitos passivos o terem feito;
- quanto ao princípio da proteção da confiança legítima, este seria atingido ao considerar-se que a revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF envolveria “a impossibilidade de consideração fiscal de gastos financeiros cuja não-dedução atempada teve por base a existência no futuro da mencionada isenção” e ao desatender-se ao direito circulatório emanado pela AT com a Circular n.º 7/2004, a que esta se auto-vinculou.
10. Mas não parece que seja assim.
11. Começando pelo princípio da igualdade, recordemos, preliminarmente, que, na síntese do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 695/2014, “o princípio da igualdade tributária pode ser concretizado através de vertentes diversas: uma primeira, está na generalidade da lei de imposto, na sua aplicação a todos sem exceção; uma segunda, na uniformidade da lei de imposto, no tratar de modo igual os contribuintes que se encontrem em situações iguais e de modo diferente aqueles que se encontrem em situações diferentes, na medida da diferença, a aferir pela capacidade contributiva; uma última, está na proibição do arbítrio, no vedar a introdução de discriminações entre contribuintes que sejam desprovidas de fundamento racional”.
12. Colocando-se a posição vencedora neste último plano das discriminações entre contribuintes, há que dizer preliminarmente que a aplicação do princípio da igualdade para parametrizar soluções reputadas preferíveis em termos de não discriminação não pode ser realizada em função estrita de um elemento singular do regime ou de uma disposição isolada – tem que se fazer em razão de todo o instituto ou regime jurídico do qual decorre a situação jurídica global do contribuinte. Na verdade, apreciar isoladamente uma disposição fiscal separada artificialmente do contexto legal em que se inclui – ou, como sucede in casu, configurar ex nihilo uma solução especial – em vez de se encarar a totalidade do regime fiscal e o encargo fiscal global por ele determinado, põe em crise a coerência do quadro normativo de referência e conduz a um uso prepóstero do princípio da igualdade, em que sujeitos passivos em situação de benefício fiscal são, sem justificação bastante e sem base legal, ainda mais beneficiados.
13. É este o efeito da solução triunfante da dedução una tantum, in totum e ad nutum em 2014 dos encargos financeiros anteriormente suportados por SGPS em concatenação com a aquisição de partes de capital não sujeitas a tributação: oferece, privilegiadamente, às SGPS no período de tributação de 2014, independentemente da alienação de quaisquer partes de capital e da tributação das mais-valias daí resultantes (como exigido pelo revogado art. 32.º, n.º 2 do EBF), a dedução integral de todos os encargos financeiros acrescidos em exercícios anteriores relativos a financiamentos para aquisição de partes de capital ainda detidas em 2014 enquanto simultaneamente lhes garante a isenção da tributação de mais-valias que possam vir a obter com a alienação dessas partes de capital (art. 51.º-C do Código do IRC) e ainda a libertação dos limites gerais e especiais à dedução de encargos financeiros existentes quer nos períodos anteriores quer em 2014 (cfr. art. 67.º do CIRC, nas versões anterior, designadamente a resultante da Lei n.º 66-B/2012, de 31.12, e posterior à Lei n.º 2/2014).
14. Em qualquer caso, bem se recorda no indicado acórdão n.º 638/2020 (n.º 28), que o Tribunal Constitucional “tem constantemente afirmado, [que] «a mera diferença de direitos resultantes da sucessão de regimes legais do tempo não convoca a dimensão de censura assacável ao princípio da igualdade. Deste parâmetro apenas resulta a proibição de tratamentos diferenciados sincrónicos e não diacrónicos, sob pena de inadmissível cerceamento da liberdade de conformação do legislador, enquanto espaço autónomo do poder legislativo configurado pela própria Constituição.»”.
15. A invocação do princípio da confiança como parâmetro para a solução da dedução una tantum, in totum e ad nutum dos encargos financeiros em 2014 também não merece acolhimento.
16. Em primeiro lugar, há que notar que a concretização deste princípio deve ser feita em termos substantivos e não como um bordão linguístico. Ora, uma concretização substantiva da tutela da confiança exige verificar, na ponderação dogmática bem estabelecida pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente em matéria fiscal, a satisfação de quatro requisitos ou “testes”, a saber, “em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa” (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 128/2009 e 18/2011, bem como o acórdão já acima referenciado n.º 638/2020).
17. Pois bem, a este respeito, nada mais posso fazer senão abrigar-me à apreciação substantiva desenvolvida neste acórdão do Tribunal Constitucional n.º 638/2020 (n.º 26):
- “não há dúvida de que o benefício concedido às SGPS pelo artigo 32.º, n.º 2, do EBF, embora automático e irrenunciável (cf. os artigos 5.º, n.º 1, e 14.º, n.º 8, do EBF), é suscetível de ter condicionado as opções de gestão destes agentes económicos durante a vigência do benefício e implicou (...) a não dedução de gastos que de outro modo teriam sido relevantes para o apuramento do lucro tributável, o que só é justificável como reverso do direito a beneficiar da isenção correspetiva.
O que já não se mostra minimamente demonstrado — em face da sucessão de regimes legais (...) — é que essa expetativa tenha sido, realmente, frustrada”;
- “pressupondo a lesão da confiança que a mutação do direito infraconstitucional afete, em sentido desfavorável, as expetativas da comunidade «na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação do Estado» (Acórdão n.º 128/2009), percebe-se que não seja possível apreciar a questão de constitucionalidade com que se debateu o tribunal recorrido abstraindo da aprovação daquela nova disciplina que, nos termos dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 2/2014, «consum[iu] o regime fiscal previsto para as SGPS».
Ora, com a aprovação da Lei n.º 2/2014, a realização de mais-valias passou realmente a ser tributada. Simplesmente, passou a ser tributada segundo o novo regime-regra previsto no artigo 51.º-C do CIRC, que manteve, sem aparente interrupção, a isenção da tributação de mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de participações sociais. E embora a nova lei tenha introduzido para aquele efeito algumas regras e condições, diferentes das aplicáveis ao abrigo do regime antes constante do EBF, nem o tribunal a quo, nem a própria recorrida identificaram qualquer uma que pudesse constituir um obstáculo à isenção da tributação das mais-valias a realizar no futuro com a alienação das participações sociais, a cuja aquisição corresponderam os encargos financeiros não deduzidos nos exercícios de 2003 a 2013.
De resto, aquilo que distingue o regime-regra do anteriormente vigente é a circunstância de não se tratar já de um benefício fiscal, mas antes, e assumidamente, de um mecanismo de eliminação da dupla tributação económica, que tem um âmbito de aplicação mais amplo e do qual não se mostram excluídas as SGPS.
A aprovação deste regime obsta, pois, a que se encare a norma objeto do presente recurso como uma norma da qual resultou como efeito automático a eliminação in totum daquele «binómio». Da revogação do artigo 32.º, n.º 2, do EBF resultou, imediatamente e apenas, a sujeição das SGPS ao regime-regra (cf. o artigo 13.º, n.º 1, do EBF) e, se este foi alterado praticamente em simultâneo, ainda que pela Lei n.º 2/2014 e não pelo Lei do Orçamento do Estado para 2014, tal dado legislativo não pode ser desconsiderado quando se trate de determinar se existiu ou não uma efetiva frustração da confiança depositada na vigência das condições estabelecidas pela norma fiscal revogada.
Da consideração desse dado legislativo retiram-se, desde logo, duas conclusões.
A primeira é que não pode ser reconhecida uma legítima confiança na existência de um regime especialmente aplicável às SGPS e formalmente inserido no EBF, do mesmo modo que não pode atribuir-se relevo autónomo à circunstância de este ter deixado de constar do EBF para passar a constar do IRC ou de ter deixado de configurar um benefício fiscal em consequência da própria alteração do regime-regra.
A segunda conclusão, mais importante ainda, é esta: se a contrapartida dos encargos acrescidos assumidos entre 2003 e 2013 era a isenção das mais-valias a realizar com a alienação das participações sociais a que respeitaram, então, mantendo-se substancialmente, e no essencial, em vigor a norma que exclui esses rendimentos do lucro tributável a apurar pelos sujeitos passivos antes abrangidos pelo artigo 32.º, n.º 2, do EBF, não se mostra substancialmente ofendida a confiança depositada na vigência desse regime”.
18. Se fica assim já perfeitamente rejeitada a pretensa ofensa ao princípio da confiança na intervenção legislativa resultante da revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF e da consagração do regime geral do artigo 51.º-C do Código do IRC, atrever-me-ia apenas a acrescentar que não ocorre sequer o sacrifício de qualquer situação de confiança, com o investimento alegadamente associado, no que concerne especificamente à possibilidade da dedução dos encargos financeiros em causa em caso de tributação das mais-valias das partes sociais no período de tributação em que ocorrer a respectiva alienação, se se aplicar a solução que julgo hermenêuticamente adequada ao quadro legal pertinente, incluindo a correcta concretização das regras de aplicação da lei no tempo (arts. 12.ºda LGT, 12.º do Código Civil e 11.º do EBF), como tentei expor na indicada declaração de voto emitida no proc. n.º 342/2018-T.
19. Com efeito, entendo que, por força daquelas regras, para os encargos financeiros associados a partes de capital de SGPS suportados em exercícios anteriores ao ano de 2014 susceptíveis de recuperação fiscal em período posterior, como factos ou situações cujos efeitos ainda perduram no presente, vale, em sobrevigência, ainda que tal disposição tenha sido revogada com efeitos a partir de 1.1.2014, a regra constante do art. 32.º, n.º 2 do EBF, com os requisitos nela exigidos, tal como foram determinados interpretativamente, quanto à alienação de partes de capital e à tributação das mais-valias daí resultantes.
20. Por força desta sobrevigência do art. 32.º, n.º 2 do EBF e da eventualidade, interpretativamente acolhida, da dedução fiscal dos encargos financeiros anteriormente suportados caso no exercício da alienação das partes de capital ocorra a tributação das mais-valias realizadas, poderá ter lugar nesse exercício – e só nesse exercício – o cômputo no lucro tributável respectivo dos encargos anteriormente suportados e não deduzidos se efectivamente os rendimentos de mais-valias realizados com a transmissão das participações sociais forem igualmente incluídos no lucro tributável.
21. Nesta base, a possibilidade de recaptura, para a determinação do lucro tributável do período de tributação da alienação das partes sociais, dos encargos financeiros suportados com financiamentos para a sua aquisição, caso eventualmente tenha lugar a tributação das mais-valias correspondentes, perdura no horizonte das expectativas do contribuinte.
22. Não existe nem é configurável qualquer situação de confiança ou expectativa merecedora de tutela que vá para além disto, que é a essência do conteúdo normativo do art. 32.º, n.º 2 do EBF na concretização hermenêutica que resultou da Circular n.º 7/2004, de 30.3 e do desenvolvimento dogmático do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/2014. Por isso, pretender que as SGPS confiaram, como resultado querido pela lei, na dedução una tantum, in totum e ad nutum em 2014 de encargos fiscais anteriormente acrescidos associados a partes de capital mesmo que as mais-valias resultantes da sua alienação seja sujeitas a tributação pode ter como ensejo resoluções de casos manifestadas em arestos arbitrais proferidos no CAAD após a revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF, mas não possui como vector de justificação o plano normativo da intervenção legal.
23. E também não possui cabimento convocar uma ofensa à confiança legítima em atenção à autovinculação da AT resultante do ponto n.º 6 da Circular n.º 7/2004, segundo o qual: “Caso se conclua, no momento da alienação das participações, que não se verificam todos os requisitos para aplicação daquele regime [do art. 32.º, n.º 2 do EBF], proceder-se-á, nesse exercício, à consideração como custo fiscal dos encargos financeiros que não foram considerados como custo em exercícios anteriores”.
24. É que, como se assume na decisão que fez vencimento, as pretensas vinculação e correspondente confiança não radicam no “expressamente previsto pela Circular [alienação das partes de capital fora do regime de exclusão de tributação do artigo 32.º, n.º 2]” mas no a isso “assimilado [revogação do artigo 32.º, n.º 2]”, já que esta revogação do art. 32.º, n.º 2 do EBF “deve ser assimilada à impossibilidade definitiva de cumprimento dos requisitos desse regime, para efeitos de exclusão da tributação das mais-valias ainda não realizadas respeitantes a partes de capital, e, portanto, abrangida pela estatuição do seu ponto 6”.
25. Como se vê, não é a letra e o conteúdo da própria Circular n.º 7/2004 que constitui a fonte do juízo da presença de uma actuação administrativa determinativa de formação de confiança pelos contribuintes que não poderia ser atingida, mas é sim a assimilação, da autoria de tribunais arbitrais deste CAAD, da revogação da lei a pressuposto de uma estatuição da Circular que, de modo perfeitamente distinto, tem a aplicação da lei no momento da alienação das participações como fundamento e critério.
26. Se se trata aqui de uma analogia absolutamente problemática e questionável, dada a distância e total ausência de similitude entre estas duas realidades perfeitamente heterogéneas, para cuja aproximação não encontro razões justificativas válidas, o que parece evidente é que afinal a confiança não tem raiz na Circular n.º 7/2004, mas sim num desenvolvimento jurisprudencial criativo de tribunais arbitrais deste CAAD que, no espaço externo dos contribuintes, portanto extra-administrativo, que se diria ter de ser ocupado pela lei, de acordo com os princípios da legalidade e da tipicidade fiscais, faz entrar soluções “analogicamente” erguidas (mas com realidades não comparáveis) na base de instruções administrativas, o que inviabiliza configurar in casu uma contradição directa com regulamentos internos a que a Administração se auto-vinculou.
27. Em face do exposto, como julgo que a invocação dos princípios da igualdade e da confiança não possui virtualidade para parametrizar a solução da dedução una tantum, in totum e ad nutum em 2014 de encargos fiscais anteriormente acrescidos associados a partes de capital ainda detidas em 1.1.2014, a qual não encontra guarida nem justificação na normatividade legal aplicável, não posso acompanhar o juízo decisório que fez vencimento, pelo que voto vencido.
(João Menezes Leitão)