DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. No dia 30-7-2020, o sujeito passivo A..., UNIPESSOAL LDA, pessoa colectiva nº..., com sede social sita na ..., ..., ..., ..., ...-... Lisboa, apresentou um pedido de constituição do tribunal arbitral singular, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), tendo em vista a declaração de ilegalidade das liquidações de ISV 2019/... e 2019/..., de 20/11/2019 e 21/11/2019, respectivamente, resultante da apresentação pela Requerente da declaração aduaneira de veículo (DAV), à qual foi atribuído o n.º 2019/..., cuja data-limite para pagamento terminou, respectivamente, a 04/12/2019 e 05/12/2019, no valor total de € 6.506,21 (seis mil quinhentos e seis euros e vinte e um cêntimos), mas que o Requerente contesta, a título principal, no valor de € 591,00 (quinhentos e noventa e um euros) referente estritamente à componente ambiental do veículo ... matrícula ... .
2. Nos termos do n.º 1 do artigo 6.º do RJAT, o Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem designou o árbitro ora signatário, disso notificando as partes.
3. O tribunal encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objecto do processo.
4. Os fundamentos que sustentam o pedido de pronúncia arbitral da Requerente são em súmula, os seguintes:
4.1. Em 29 de Outubro de 2020, a Requerente adquiriu o veículo automóvel de passageiros, usado – Marca ..., modelo ..., designado comercialmente como “...”, movido a gasolina, n.º de motor..., cilindrada 1984 cc e com emissão de gases CO2 de 170g/km e de partículas 0.0004 g/km.
4.2. A primeira matrícula deste veículo está datada de 20 de março de 2018, com o número ....
4.3. Proveniente da Alemanha, este veículo entrou no território nacional a 18 de novembro de 2019, com 29646 kms percorridos.
4.4. Em sequência disso, a Requerente, na sua qualidade de operador sem estatuto, apresentou a 20 de Novembro de 2019, por transmissão electrónica de dados, dirigida à Alfândega de Faro, e para introdução no consumo do referido veículo usado, a respectiva DAV que ficou identificada sob o n.º 2019/..., tendo dessa DAV resultado a liquidação de ISV de € 6.506,21.
4.5. O imposto em causa já foi integralmente pago pela Requerente.
4.6. Deste modo, a 25 de novembro de 2019, a Direção Regional de Mobilidade e Transportes do Algarve emitiu a respetiva matrícula portuguesa do veículo aqui em causa e que ficou definida como: ... .
4.7. Com pertinência para o caso concreto, a liquidação de ISV aqui visada foi efetuada com recurso às tabelas A e D, previstas, respetivamente, nos artigos 7.º e 11.º do CISV, assentando assim, e de modo esquemático, nas seguintes parcelas:
4.8. A percentagem de redução (no caso, 20%), aplicada em função do número de anos de uso do veículo (no caso, mais de 1 a 2 anos), incidiu apenas sobre a componente cilindrada, não tendo sido aplicável, no cálculo da liquidação de ISV, à componente ambiental.
4.9. Considera a Requerente que a AT, ao proceder à liquidação de ISV nos moldes em que o fez incorreu, numa ilegalidade, porquanto aquela padece de um erro sobre os pressupostos de direito, pelo que vem solicitar a anulação parcial do ato de liquidação de ISV, em face do vício apontado, conforme melhor se detalha:
4.10. Daqui resulta que a AT liquidou ISV num valor de € 6.506,21, quando deveria ter sido liquidado apenas € 5.915,22, o que é demonstrativo de uma liquidação ilegal na diferença excessiva de € 591,00.
4.11. A Requerente, visando contestar a legalidade da liquidação aqui em causa, apresentou previamente, junto da AT, um procedimento tributário de reclamação graciosa, o qual veio a ser totalmente indeferido, posição com a qual a Requerente não concorda.
4.12. Isto porque a liquidação de ISV promovida pela AT, baseada maxime no artigo 11.º do CISV, enferma de ilegalidade por não ter sido considerada na componente ambiental qualquer percentagem de redução do imposto relativamente ao tempo de uso do veículo, mas apenas na componente cilindrada, o que contende com o disposto no primeiro parágrafo do artigo 110.º do TFUE, disposição esta que estipula uma proibição da tributação interna discriminatória e que tem como objetivo último assegurar a livre circulação de mercadorias entre os Estados-membros, em condições normais de concorrência e mediante a eliminação de quaisquer formas de protecção que possam resultar na aplicação de imposições internas discriminatórias em relação aos produtos originários de outros Estados-membros (vd., designadamente, Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) de 18 de janeiro de 2007, Brzeziński, C‑313/05, e de 7 de abril de 2011, Tatu, C‑402/09).
4.13. Apesar disto, analisando-se a referida norma do artigo 11.º do CISV, aplicável aos veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias, com vista a contemplar no cálculo do imposto devido a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, constata-se que a mesma prevê uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo, mas que esta incide apenas na componente cilindrada, deixando de fora a componente ambiental.
4.14. Deste modo, a norma aplicada (i.e. artigo 11.º do CISV) na liquidação que aqui é contestada conduz a que seja cobrado, sobre os veículos oriundos de outros Estados-membros da União Europeia, um imposto determinado com base num valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis no mercado nacional, pelo que não está garantida a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos nacionais e produtos oriundos de outros Estados-membros.
4.15. Nestes termos, a liquidação aqui impugnada está ferida de ilegalidade porquanto, sendo efetuada com base no artigo 11.º do CISV, atenta contra o direito comunitário, mormente contra o primeiro parágrafo do artigo 110.º do TFUE, na medida em que a tributação subjacente à mesma é diretamente discriminatória e mais gravosa para os veículos introduzidos no consumo em Portugal provenientes de outros Estados-membros da União Europeia do que a que recai sobre veículos usados transacionados no mercado nacional.
4.16. A evolução da redação legal inerente ao artigo 11.º do CISV é ela própria demonstrativa de uma praxis de ilegalidade face ao direito comunitário.
4.17. Efectivamente, na sua redacção inicial, previa-se que o imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-membros da União Europeia fosse objecto de liquidação provisória feita em função da desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional, ponderados fatores como a respetiva marca, modelo, modo de propulsão, quilometragem, estado mecânico e de conservação, atentos os valores médios que resultam das publicações de referência no sector, apresentadas pelo interessado e reduzindo-se o imposto em conformidade com a Tabela D do artigo 11º, que era aplicável a todo o ISV, sem destrinça daquele que resultava da componente cilindrada, como daquele que resultava da componente ambiental.
4.18. Entretanto, através do artigo 89.º da Lei n.º 64-A/2008, diploma que aprovou a Lei do Orçamento do Estado para 2009, com entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2009, passou a estipular-se que o imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados-membros da União Europeia seria objeto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução, previstas na tabela D, ao imposto resultante da componente cilindrada da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respetivo custo de impacte ambiental, levando assim a que a percentagem de redução considerando o tempo de uso incidiu apenas sobre a componente cilindrada, mas já não sobre a componente ambiental.
4.19. Com a redação dada ao artigo 11.º do CISV pelo artigo 113.º da Lei do Orçamento do Estado para 2011, a percentagem de redução passou a incidir sobre as duas componentes, conforme se afere pelo texto legal, não se tendo, contudo, alterado a tabela aplicável.
4.20. Em face de a redacção legal não prever qualquer percentagem de redução aplicada a situações em que o tempo de uso era inferior a 1 ano ou manter-se inalterável a percentagem de redução de 52% para as situações em que o tempo de uso era superior a 5 anos, a Comissão Europeia apresentou no TJUE, no dia 29 de Abril de 2015, uma ação por incumprimento contra Portugal (processo C-200/15).
4.21. Previamente, na sequência de uma troca de correspondência entre os serviços da Comissão e as autoridades portuguesas, a Comissão dirigiu a Portugal, em 22 de Novembro de 2012, uma notificação para cumprimento porquanto considerava que o artigo 11.° do CISV não respeitava o plasmado no artigo 110.° TFUE.
4.22. Na sua resposta de 30 de janeiro de 2013, Portugal contestou esta acusação, alegando que o regime nacional de tributação dos veículos automóveis usados provenientes de outros Estados‑membros não era discriminatório, uma vez que as tabelas de percentagens fixas e a possibilidade de os sujeitos passivos pedirem uma avaliação do veículo, previstas no artigo 11.° do Código do Imposto sobre Veículos, eram susceptíveis de garantir que o montante deste imposto não excedia o montante do imposto residual incorporado no valor dos veículos similares já matriculados em Portugal.
4.23. O incumprimento do direito comunitário pelo Estado Português foi declarado pelo TJUE (sétima secção), através do seu Acórdão proferido a 16 de junho de 2016, no qual se sustentou haver uma discriminação porquanto: “a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (vd., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C‑345/93, e de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C‑393/98). (…) A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.° TFUE”.
4.24. Na sequência deste Acórdão, o Legislador Português introduziu uma nova alteração ao artigo 11.º do CISV e à tabela D nele ínsita, através do artigo 217.º da Lei n.º 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2017), e que entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2017.
4.25. Na tabela o Estado Português observou o decidido pelo TJUE, mormente ao alargar as percentagens de redução para que as mesmas incidissem no primeiro ano de uso do veículo e se alargassem até aos 10 e mais anos de uso.
4.26. Todavia, a par desta alteração, foi introduzida uma outra que consistiu na limitação da aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental atinente às emissões de CO2.
4.27. Essa alteração contraria o art. 110º do TFUE como resulta das seguintes decisões arbitrais sobre esta temática e todas elas favoráveis aos sujeitos passivos que as interpuseram, conforme aqui se detalham:
4.28. A desconformidade da redacção actual do artigo 11.º do CISV com o direito comunitário conduziu ao início de um novo procedimento de infracção instaurado pela Comissão Europeia contra Portugal, por este não ter em conta a componente ambiental no cálculo do ISV aplicável aos veículos usados “importados” de outros EM, gerando efeitos discriminatórios nestes veículos face aos veículos usados adquiridos em território nacional.
4.29. Com efeito, conforme comunicado de 24 de janeiro de 2019, a Comissão Europeia deu início a um procedimento de infracção contra Portugal “por este Estado-Membro não ter em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta. Se Portugal não atuar no prazo de dois meses, a Comissão poderá enviar um parecer fundamentado sobre esta matéria às autoridades portuguesas”.
4.30. Entretanto, a 27 de Novembro de 2019, a Comissão Europeia decidiu enviar um parecer fundamentado a Portugal “por tributar veículos usados importados de outros Estados-Membros mais do que os automóveis usados adquiridos no mercado português. Atualmente, a legislação portuguesa não tem plenamente em conta a depreciação de veículos importados de outros Estados-Membros, pelo que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE. O Tribunal de Justiça Europeu tinha já concluído, em 16 de junho de 2016 (Acórdão C-200/15), que uma versão anterior deste imposto português era contrária ao direito da UE. Se Portugal não atuar no prazo de um mês, a Comissão pode decidir remeter o processo para o Tribunal de Justiça da UE.”.
4.31. Em conformidade, a 12 de Fevereiro de 2020, em face da persistência de Portugal na manutenção do regime inerente ao artigo 11.º do CISV, a “Comissão decidiu instaurar uma ação contra Portugal junto do Tribunal de Justiça da União Europeia por não ter alterado as regras do imposto de matrícula sobre os veículos usados importados. Ao abrigo das regras da UE, nenhum Estado-Membro deve fazer incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas superiores às que incidam sobre produtos nacionais similares. A legislação portuguesa em causa não tem plenamente em conta a depreciação dos veículos usados importados de outros Estados-Membros. Isso resulta numa tributação mais elevada desses veículos importados em comparação com veículos nacionais semelhantes, o que não é compatível com o artigo 110.º do TFUE. O Tribunal de Justiça Europeu já concluiu, em 16 de junho de 2016 (Acórdão C-200/15), que uma versão anterior deste imposto português era contrária ao direito da União. A decisão de remeter a questão para o Tribunal de Justiça decorre do facto de Portugal não ter alterado a sua legislação para a tornar conforme com o direito da UE, na sequência do parecer fundamentado da Comissão".
4.32. O princípio do primado foi erguido pelo TJUE a partir da constatação de que a transferência de competências efetuada pelos Estados-membros em favor das instituições europeias, ainda que em domínios determinados, implicou uma limitação definitiva dos poderes soberanos de que os Estados-membros eram titulares.
4.33. Cabendo aos Estados-membros respeitar uma ordem jurídica autónoma, quer quanto às fontes, quer quanto à autoridade, o direito resultante do Tratado (ou em ordem a alcançar os seus objetivos) não pode, em razão da sua específica natureza, encontrar um limite em qualquer disposição interna sem que resulte abalado o fundamento jurídico da União Europeia.
4.34. Deste modo, um Estado não pode invocar uma disposição do seu direito interno, mesmo que seja do ramo constitucional, para impedir a aplicação de uma disposição de direito comunitário que esteja em vigor, cf. Acórdão do TJUE, San Michele, processos 9 e 58/64, de 2 de junho de 1965.
4.35. Da mesma maneira, o Juiz nacional tem a obrigação de aplicar integralmente o direito comunitário e de conferir proteção aos direitos que este atribui aos particulares, e que tenham efeito direto, deixando inaplicável toda e qualquer norma nacional contrária, incluindo as regras nacionais que delimitam a sua competência.
4.36. O efeito directo permite que um particular invoque uma norma comunitária junto de um tribunal nacional ou europeu para afastar assim a norma nacional que lhe é desfavorável.
4.37. Os particulares podem assim prevalecer-se destes direitos e invocar diretamente normas europeias perante jurisdições nacionais, não sendo necessário que o país da UE integre a norma europeia em questão na sua ordem jurídica interna.
4.38. No que diz respeito ao direito primário, ou seja, aos textos de base da ordem jurídica europeia, o TJUE estabeleceu no acórdão Van Gend en Loos o princípio do efeito directo, não obstante, indicou, como condição para o mesmo, que as obrigações devem ser precisas, claras, incondicionais e não devem requerer medidas complementares, de carácter nacional ou europeu.
4.39. Com base neste quadro, o TJUE declarou que a disposição da não-discriminação fiscal (i.e. e que atualmente deriva do artigo 110.º do TFUE) é clara, incondicional e não carece de quaisquer medidas complementares, de carácter nacional ou europeu (vd. por exemplo, Acórdãos de 16 de junho de 1966, no processo 57/65, Lütticke, Rewe-Zentrale des Lebensmittel-Großhandels GmbH, de 17 de fevereiro de 1976, processo 45/75, acórdão de 22 de Fevereiro de 2001, Gomes Valente, C 393/98).
4.40. Nos termos do art. 8º, nº4, da Constituição, o Direito Comunitário prevalece sobre o Direito Interno Português e é diretamente aplicável em território nacional.
4.41. É objectivo que a liquidação impugnada, e o normativo subjacente a ela (maxime o artigo 11.º do CISV) viola o artigo 110.º do TFUE, quando este preceito proíbe que as imposições aplicáveis aos produtos provenientes de um outro Estado-Membro sejam superiores ou mais onerosas do que as imposições colocadas aos produtos similares nacionais.
4.42. Caso este Tribunal Arbitral considere que o acto de liquidação de ISV é incindível (rectius, indivisível), então, mas a título meramente subsidiário, a Requerente solicita a anulação total do ISV cuja liquidação é aqui contestada.
4.43. Considera ainda a Requerente que este Tribunal Arbitral, procedendo à anulação parcial do acto de liquidação de ISV aqui visado, deverá ainda determinar as inerentes consequências previstas legalmente, e entre elas, além da devolução do ISV pago a mais pela Requerente, o ressarcimento desta através dos exigíveis juros indemnizatórios, conforme plasmado nos artigos 43.º e 100.º da Lei Geral Tributária, bem como no artigo 61.º do CPPT.
4.44. Isto porque, como fixou o Acórdão do STA, de 29 de maio de 2002, processo n.º 0114/02: “A violação do direito comunitário por parte da Administração Pública portuguesa integra o conceito de erro imputável aos serviços, para efeito de condenação em juros indemnizatórios”.
5. Por seu turno, a Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, na qual se defendeu, em súmula, nos seguintes termos:
5.1. Conforme resulta dos elementos constantes do Processo Administrativo (PA), constituído pelo procedimento atinentes à introdução no consumo através da Declaração Aduaneiras de Veículo (DAV) 2019/..., de 26.12.2010, e procedimento de reclamação graciosa n.º ...2020... (06/RG/2020), da Alfândega de Faro, resulta o seguinte:
5.2. Em 20.11.2019 (data de aceitação da DAV) a Requerente procedeu à regularização fiscal de um veículo ligeiro de passageiros, usado, proveniente de outro Estado-membro, tendo para o efeito processado, para introdução no consumo, através de transmissão electrónica de dados, a supra identificada declaração, na referida estância aduaneira.
5.3. Constatando-se que, quanto ao veículo em questão, para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, aquele se insere no escalão da tabela de “Mais de 1 a 2 anos” de uso, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 20 %, conforme resulta da referida tabela (cf. teor da DAV junto ao PA).
5.4. No Quadro E das DAV (características do veículo), consta, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2, respetivamente, o valor de 170 g/Km indicado na pág. 1 das DAV.
5.5. O cálculo do imposto sobre veículos, que consta do Quadro R da DAV, foi efectuado com recurso à tabela A, aplicável aos veículos ligeiros de passageiros, e calculado o ISV atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, conforme o disposto na tabela D constante do n.º 1 do artigo 11.º do CISV, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo (cf. consta das respectivas DAV).
5.6. Foi efectuada a liquidação do imposto, relativa aos veículos identificados nas DAV, conforme indicado nos Quadros T e V da declaração, incluindo esta, igualmente, a identificação dos atos de liquidação (n.º 2019/... e 2019...), bem como a data da liquidação (20.11.2019 e 21.11.2019 respetivamente), montante (6.506,21 €) e termo final do prazo de pagamento (04.12.2019 e 05.12.2019), e a identificação do autor do acto.
5.7. Em 27.11.2019, a Requerente apresentou, junto da Alfândega de Faro, um pedido de reclamação graciosa dos actos de liquidação do imposto, o qual foi objeto de indeferimento, por despacho, de 07.07.2020, proferido pelo Director daquela Alfândega.
5.8. E da decisão de indeferimento da mesma reclamação graciosa, veio a Requerente, em 30.07.2020, apresentar junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 591,00 € acrescido de juros indemnizatórios.
5.9. Estando em causa, nos presentes autos, a admissão de veículo usado, oriundo de outro Estado-membro, no caso, a Alemanha, deve atender-se, especificamente, ao artigo 11.º do CISV na redação atualmente em vigor, o qual já foi sujeito a alterações desde a entrada em vigor do diploma que aprovou o mesmo código.
5.10. Não obstante o artigo 11.º do CISV ter sido objeto de várias alterações desde a sua entrada em vigor, para o caso em apreço releva, particularmente, a redação actual introduzida pela Lei n.º 42/2016, de 28.12.2016 (Lei do OE para 2017), a qual procedeu ao alargamento das percentagens de redução da tabela D, tendo sido criado o escalão “até um ano”, a que corresponde uma percentagem de redução de 10%, sendo ainda criados novos escalões a partir dos cinco anos de uso, com percentagens de redução que atingem os 80% para veículos com mais de 10 anos, permitindo estabelecer uma maior correspondência entre a desvalorização comercial média sofrida pelos veículos usados no mercado nacional e o seu nível de tributação, em sede de ISV, que na redacção anterior se cifrava no máximo de 52 % para veículos com mais de 5 anos de uso.
5.11. Relevando, também, no contexto da tributação automóvel, o disposto no artigo 1.º do CISV que consagra o Princípio da Equivalência, de acordo com o qual o imposto sobre veículos deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infraestruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.
5.12. Não obstante o disposto no artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), há ainda que considerar a previsão do artigo 191.º do TFUE, que consagra, expressamente, que a política da União no domínio do ambiente contribuirá para a prossecução dos objectivos da preservação, a protecção e a melhoria da qualidade do ambiente, da protecção da saúde das pessoas e a promoção, no plano internacional de medidas destinadas a enfrentar os problemas regionais ou mundiais do ambiente e designadamente, a combater as alterações climáticas, acrescentando o nº2 que a política da União se baseará nos princípios da precaução e da acção preventiva, da correcção, prioritariamente na fonte, dos danos causados ao ambiente e do poluidor-pagador.
5.13. Resultando ainda do art. 66º, nº2, da Constituição que incumbe ao Estado: a) prevenir e controlar a poluição; f) Promover a integração de objectivos ambientais nas várias políticas de âmbito sectorial; h) Assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com protecção do ambiente e qualidade de vida.
5.14. E o art. 103º, nº2, da Constituição que estabelece que os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
5.15. No caso concreto o imposto foi calculado de acordo com o previsto no artigo 7.º. do CISV, tendo sido aplicada uma redução para a componente ambiental nos termos deste artigo, não tendo sido aplicada outra redução à componente ambiental porque tal redução não se encontra prevista no artigo 11.º do CISV, ao contrário do estabelecido para a componente cilindrada, que prevê uma redução em função dos “anos de uso” de acordo com a tabela D.
5.16. Não obstante a alteração ao artigo 11.º do CISV tenha surgido após o acórdão proferido no Processo n.º C- 200/15 do TJUE, este não se pronuncia, em concreto, sobre a matéria em causa nos presentes autos, designadamente quanto à questão da percentagem de redução de ISV aplicável a veículo usado incidir apenas sobre o elemento específico de tributação (Cilindrada), e não sobre a componente ambiental do ISV, limitando-se aquele a analisar a questão da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro Estado-Membro, introduzidos no território nacional, no sentido de afirmar que um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes destes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpre as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.º do TFUE.
5.17. Sendo que, tal opção legislativa, pretendendo imprimir coerência entre a tributação dos veículos novos e veículos usados, não contraria o direito comunitário nem aquela decisão do TJUE, antes visa respeitar as orientações comunitárias em matéria da redução das emissões de CO2 e os compromissos assumidos no âmbito do Protocolo de Quioto e, mais tarde, pelo Acordo de Paris.
5.18. Por isso, não pode deixar de se referir o estabelecido no artigo 191.º do TFUE, o qual tendo surgido depois do artigo 90.º do TCE (anterior 110.º do TFUE), exige que se proceda a uma interpretação atualista, no que concerne ao enquadramento da questão sub judice, que deve atender aos elementos sistemático e teleológico, porquanto, naquele dispositivo, afirma-se, expressamente, no n.º 1, que a política da União, no domínio do ambiente, contribuirá para a prossecução, entre outros, da preservação, da proteção e a melhoria da qualidade do ambiente, não podendo o artigo 110.º do TFUE ser interpretado nos termos defendidos pela Requerente.
5.19. Devendo, pois, a interpretação do artigo 110.º do TFUE ser efetuada à luz do disposto no artigo 191.º do mesmo tratado, sob pena de conflitualidade e desarmonia entre as duas normas, a não ser que o TJUE, em sede de interpretação, venha defender a existência de tal violação e que a norma do artigo 110.º do TFUE tem valor superior ao previsto no artigo 191.º quanto à proteção e a melhoria da qualidade ambiental.
5.20. No que concerne aos automóveis usados, não existem dúvidas que o potencial poluidor do automóvel se agrava com a idade, tornando-se mais poluentes e, consequentemente, mais nefastos para o meio ambiente, destinando-se a componente ambiental a orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono.
5.21. No que concerne aos automóveis usados, não existem dúvidas que o potencial poluidor do automóvel se agrava com a idade, tornando-se mais poluentes e, consequentemente, mais nefastos para o meio ambiente, destinando-se a componente ambiental a orientar os consumidores na escolha de veículos com menores emissões de dióxido de carbono.
5.22. Por outro lado, a aplicação da mesma percentagem de redução às duas componentes resulta claramente numa subversão da tributação da componente ambiental, dando origem a um desagravamento que, por via da alteração à taxa do imposto, incentiva os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, interpretação que não pode deixar de se considerar inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa.
5.23. Acrescendo que, em rigor, os artigos 7.º e 11.º do CISV não violam a norma prevista no artigo 110.º do TFUE, por gerarem uma discriminação negativa dos veículos usados admitidos no território nacional, uma vez que estes artigos não são de aplicação exclusiva aos veículos usados admitidos no território nacional, aplicando-se igualmente a veículos matriculados no território nacional, designadamente nos casos previstos no artigo 5.º, n.º 2, alíneas a) e b).
5.24. Configurando a aplicação da interpretação, pugnada pela Requerente, uma desaplicação do direito internacional - do artigo 191.º do TFUE, do Protocolo de Quioto e do Acordo de Paris - que vincula o Estado Português, por força do artigo 8.º da CRP, bem como uma violação do disposto no n.º 1, e alíneas a), f) e h), do n.º 2, do artigo 66.º e do n.º 2 do artigo 103.º da CRP.
5.25. Concluindo-se que a liquidação de ISV, que aplicou o artigo 11.º do CISV, foi efetuada em conformidade com a lei nacional e o direito comunitário, cumprindo, designadamente, o disposto nos artigos 110.º e 191.º do TFUE e nos artigos 66.º e 103.º da Constituição.
5.26. Destarte, tendo os actos impugnados sido efectuados de acordo com o direito nacional e comunitário, não enfermam de qualquer vício, devendo, consequentemente, a liquidação, na parte que vem impugnada, quanto ao cálculo do imposto efectuado nos termos do n.º 1 do artigo 11.º e à não aplicação de redução à componente ambiental, considerar-se conforme ao direito constituído em vigor.
5.27. Da interpretação do artigo 11.º do CISV defendida pela Requerente resulta uma violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º (Princípios fundamentais) da Constituição da República Portuguesa (CRP), o qual, além de estabelecer, no n.º 1, que a administração pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos, impõe aos órgãos e agentes administrativos a subordinação à Constituição e à lei, devendo actuar no exercício das suas funções com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé (n.º 2).
5.28. Concomitantemente, no que concerne ao princípio da legalidade tributária, nos termos do artigo 8.º da Lei Geral Tributária, estão sujeitos a este princípio a incidência, a taxa, os benefícios fiscais, as garantias dos contribuintes, bem como a liquidação e cobrança dos tributos.
5.29. Ora, no caso concreto a administração tributária agiu nos termos da lei, de acordo com as normas de incidência, taxas e liquidação do imposto em causa, não podendo ter atuado de modo diferente, face ao direito constituído sob pena de violar os referidos princípios da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.
5.30. Assim, relativamente à liquidação ora impugnada, a mesma foi efectuadas de acordo com as normas aplicáveis em vigor, o artigo 7.º e o artigo 11.º do CISV
5.31. Mas, sustentando a Requerente a anulação parcial dos actos de liquidação, face à actual redação do artigo 11.º, introduzida pela Lei do OE para 2017, lei de valor reforçado, não é possível extrair da norma a aplicação de uma nova redução, além da prevista no artigo 7.º do CISV, atinente à componente ambiental.
5.32. De facto, não se retira da letra da lei, no caso, do artigo 11.º do CISV, ou de outra norma do mesmo código, a aplicação da redução prevista na admissão de veículos usados, para a componente cilindrada, à componente ambiental, além da que já é aplicada por força do artigo 7.º.
5.33. Nesta medida, a interpretação da Requerente ofende claramente o princípio da equivalência previsto no artigo 1.º do CISV, sobre o qual assenta o atual modelo de tributação automóvel, e o artigo 9.º, alínea e) e artigo 66.º, n.º 1 e n.º 2, ambos da CRP, ocorrendo uma violação do princípio constitucional do Estado de direito ambiental.
5.34. Na elaboração do CISV foram considerados os referidos princípios constitucionais, estando subjacentes, designadamente, nos artigos 1.º e 11.º do CISV, não podendo afastar-se a aplicação deste artigo, impondo-se que se afira a sua conformidade com os princípios constitucionais consagrados no artigo 9.º e 66.º da CRP, até porque está em causa matéria de reserva de lei (âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República).
5.35. Acrescendo que, a interpretação defendida pela Requerente, posto que defende a aplicação de uma fórmula de cálculo, com atribuição de uma redução não prevista na tabela D do artigo 11.º, acrescenta uma redução à componente ambiental que não está consagrada na letra da lei, que não foi querida pelo legislador, consubstancia assim, também nesta parte, uma violação dos princípios constitucionais aludidos, da legalidade e da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica.
5.36. Por outro lado, a aplicação de tal redução, não prevista na lei, não pode deixar de se considerar como um benefício fiscal que não se encontra previsto na lei e que é inconstitucional face ao disposto no n.º 2 do artigo 103.º da CRP, que estabelece que os impostos são criados por lei, determinando esta igualmente a incidência, taxa, benefícios fiscais e garantias dos contribuintes, que coloca igualmente a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal.
5.37. Ademais, a pretensão da Requerente também olvida que estamos perante um imposto sobre o consumo não harmonizado, e que a tributação do consumo visa adaptar a estrutura do consumo à evolução das necessidades do desenvolvimento económico e da justiça social, devendo onerar os consumos de luxo, conforme o consagrado no n.º 4 do artigo 104.º da CRP.
5.38. E, sendo um dos princípios gerais da interpretação das normas jurídicas e “critério de interpretação” o da interpretação conforme à Constituição, de acordo com este critério, no caso de o intérprete, mediante a aplicação dos elementos interpretativos, chegar a mais do que um sentido possível a atribuir a um preceito normativo, deve preferir aquele que mais se adeque à Constituição.
5.39. Não podendo, assim, deixar de se considerar o artigo 204.º da CRP, que impõe que os tribunais não apliquem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
5.40. Por outro lado, ao defender a ilegalidade das liquidações por entender que existe uma desconformidade do artigo 11.º do CISV com o artigo 110.º do TFUE, a Requerente, além de violar, por via de tal interpretação, os já referidos princípios, consagrados na nossa Lei Fundamental, viola ainda, por via da desaplicação do artigo 11.º do CISV na redação actualmente em vigor, uma violação do princípio do acesso ao direito à tutela jurisdicional efectiva.
5.41. De facto, tendo a Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar as liquidações, a administração encontra-se coartada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, em geral e, concretamente, quanto ao recurso de decisão que desaplica norma nacional com fundamento em violação de princípio de direito da União Europeia.
5.42. É que o RJAT prevê tão somente três tipos de reações recursórias, sendo eles o recurso para o Tribunal Constitucional, o recurso para uniformização de jurisprudência e a impugnação arbitral, com base nas nulidades elencadas no artigo 28.º, n.º 1 do RJAT.
5.43. Ora, defendendo a Requerente a violação de um princípio do TFUE no caso concreto, e prevendo o RJAT que o recurso para o Tribunal Constitucional só pode ter como fundamento as alíneas a) e b) do artigo 70.º da Lei do TC, não há dúvida que, a vingar tal interpretação, estamos perante uma violação do princípio do livre acesso aos tribunais.
5.44. Verifica-se, pois, face ao disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4 e 266.º, todos da CRP, a violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
5.45. Em face do exposto, a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento, o qual, desde já, reputamos de inconstitucional, não podendo por isso, ser aplicado no caso concreto.
5.46. Quanto ao direito a juros indemnizatórios, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, o mesmo pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
5.47. E, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer erro que possa ser imputável à administração tributária.
5.48. É que, efetivamente, as liquidações em causa nos presentes autos decorreram exclusivamente da aplicação da lei em vigor, tendo aquela sido efetuadas nos termos das normas aplicáveis, previstas no CISV, que determinam a exigibilidade e consequente liquidação do imposto, o que nem sequer é posto em causa pela Requerente.
5.49. E, estando a AT e os seus órgãos, vinculados, na sua atuação, ao princípio da legalidade, a Requerida AT agiu, sempre, em obediência àquele e em conformidade com o direito em vigor, não podendo ter agido de modo diverso, não devendo, consequentemente, ser-lhe atribuído qualquer erro que lhe seja imputável, nos termos do artigo 43.º da LGT, posição que já foi sufragada em sede arbitral, conforme resulta das decisões proferidas nos Processos n.º 348/2019-T e n.º 34/2020-T.
5.50. Pelo que, face ao invocado, tendo a AT agido no cumprimento estrito da lei, não se verifica qualquer erro de que possa resultar o pagamento indevido do imposto, sob pena de se verificar com tal interpretação, uma violação, também aqui, do invocado princípio constitucional da legalidade e legalidade fiscal, não devendo assistir, por conseguinte, à Requerente, o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
6. Em 18/11/2020 foi proferido despacho arbitral, dispensando a reunião prevista no art. 18º do RJAT por não estarem preenchidas as circunstâncias que justificam a sua realização, podendo as partes requerer que a mesma tivesse lugar, o que estas não fizeram.
II – Factos provados
7. Com base na prova documental constante do processo administrativo junto aos autos pela Requerida, consideram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
7.1. A Requerente apresentou a Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) 2019/..., de 20/11/2019, através da qual declarou o veículo da marca ... e, ..., designado comercialmente como “...”, movido a gasolina, n.º de motor ..., cilindrada 1984 cc e com emissão de gases CO2 de 170g/km e de partículas 0.0004 g/km, ao qual foi atribuída a matrícula ... .
7.2. Proveniente da Alemanha, este veículo entrou no território nacional a 18 de Novembro de 2019, com 29646 kms percorridos.
7.3. Para efeitos de aplicação da tabela D prevista no n.º 1 do artigo 11.º do CISV, o referido veículo da marca ... insere-se no escalão correspondente à percentagem de redução de 20%.
7.4. No Quadro E das DAV (características do veículo), consta, na casa 50, quanto à Emissão de Gases CO2, respetivamente, o valor de 170 g/Km indicado na pág. 1 das DAV.
7.5. Foi efectuada a liquidação do imposto, relativa ao veículo identificado na DAV, conforme indicado nos Quadros T e V da declaração, incluindo esta, igualmente, a identificação dos atos de liquidação (n.º 2019/... e 2019/...), bem como a data da liquidação (20.11.2019 e 21.11.2019 respetivamente), montante (6.506,21 €) e termo final do prazo de pagamento (04.12.2019 e 05.12.2019), e a identificação do autor do acto.
7.6. O imposto em causa foi pago pela Requerente.
7.7. Em 27.11.2019, a Requerente apresentou, junto da Alfândega de Faro, um pedido de reclamação graciosa dos actos de liquidação do imposto, sob o n.º ...2020..., o qual foi objeto de indeferimento, por despacho, de 07.07.2020, proferido pelo Director daquela Alfândega.
7.8. E da decisão de indeferimento da mesma reclamação graciosa, veio, a Requerente, em 30.07.2020, apresentar junto da Instância Arbitral o presente pedido de constituição de tribunal arbitral, peticionando a anulação parcial da liquidação de ISV e o reembolso do montante de 591,00 € acrescido de juros indemnizatórios.
III - Factos não provados
8. Não há factos não provados com relevo para a decisão da causa.
IV - Do Direito
9. São as seguintes as questões a examinar no presente processo.
- Da ilegalidade das liquidações de ISV.
- Da inconstitucionalidade da interpretação do artigo 11.º do CISV em conformidade com o artigo 110.º do TFUE.
- Do direito a juros indemnizatórios.
Examinar-se-ão assim essas questões:
DA ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE ISV.
10. Sustenta a Requerente existir ilegalidade das liquidações de ISV, uma vez que a disposição do art. 11º do CISV contraria o art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia.
Ora vejamos:
O art. 110º do Tratado de Funcionamento da União Europeia dispõe expressamente o seguinte:
"Nenhum Estado-Membro fará incidir, directa ou indirectamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, directa ou indirectamente, sobre produtos nacionais similares. Além disso, nenhum Estado-Membro fará incidir sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas de modo a proteger indirectamente outras produções".
Dispõe o artigo 11.º, nº1, do CISV o seguinte:
O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional:
TABELA D
Esta redacção do art. 11º, nº1, do CISV foi introduzida pela Lei 42/2016, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2017), surgida após o Acórdão do Tribunal de Justiça (Sétima Secção) de 16 de junho de 2016, emitido no processo C-200/15 relativo à acção incumprimento interposta pela Comissão Europeia contra a República Portuguesa no qual se declarou a desconformidade da anterior redacção desta disposição com o art. 110º TFUE, nos seguintes termos:
"A República Portuguesa, ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro estado-membro, introduzidos no território de Portugal, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta uma desvalorização antes de estes atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do art. 11º do TFUE (…)Este artigo (110º do TFUE) é violado sempre que a imposição que incide sobre o artigo importado e a que incide sobre o produto nacional similar são calculados de forma diferente e segundo modalidades diferentes que conduzam, ainda que apenas em certos casos, a uma imposição superior do produto importado (acórdão de 22 de fevereiro de 2001, Gomes Valente, C-393/98, EU: C:2001:109, nº 21; de 19 de setembro de 2002, Tulliasiames e Siilin, C-101/00, EU: C:2002:505, nº 53; e de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, nº 25)” (nº 24 dos fundamentos do acórdão). Assim, a cobrança, por um Estado-Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado-membro é contrária ao artigo 110º. do TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional (v., designadamente, acórdãos de 9 de março de 1995, Nunes Tadeu, C-345/93, EU:C:1995:66, n.º 20, e de 22 de fevereiro de 2001, GomesValente, C-393/98, EU:C:2001:109, n.º 23)” (nº 25 dos fundamentos do acórdão).“ (…) Mais precisamente, um Estado-Membro não pode cobrar um imposto sobre os veículos usados importados, calculado com base num valor superior ao valor real do veículo, tendo como efeito uma tributação mais onerosa destes relativamente à dos veículos usados similares, disponíveis no mercado nacional. O valor do veículo usado importado utilizado pela Administração como base de tributação deve refletir fielmente o valor de um veículo similar já registado no território nacional (v. acórdão de 20 de setembro de 2007, Comissão/Grécia, C-74/06, EU:C:2007:534, n.ºs 27 e 28 (…) ".
Sucede, porém, que a actual redacção do art. 11º do CISV mantém uma diferenciação com os valores do ISV aplicáveis aos veículos nacionais, e que constam do art. 7º CISV e tabelas anexas, dado que o legislador, em conformidade com o acima referido acórdão do TJUE, alargou as percentagens de redução ao primeiro ano de uso do veículo, prolongando-a até aos 10 e mais anos de uso, mas introduziu uma outra alteração diferenciadora em relação aos veículos com origem noutros Estados-Membros, com impacto no cálculo do ISV, uma vez que a actual redacção do art. 11º CISV limita a aplicação das percentagens de redução apenas à componente cilindrada, excluindo-a da componente ambiental (emissão de CO2), ao contrário do que sucede com os veículos usados já matriculados no território nacional.
Por esse motivo, a jurisprudência deste CAAD tem decidido uniformemente que a actual redacção do art. 11º CISV viola o disposto no art. 110º TFUE (cfr. as decisões dos processos 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350-2019-T, 459/2019-T e 660/2019-T).
É claramente essa a solução desta questão, uma vez que as normas do Direito da União Europeia, no caso o art. 110º TFUE, têm efeito directo e primado sobre o Direito Nacional, não podendo assim o art. 11º CISV contrariar aquela disposição. Ora, existe uma clara violação do artigo 110.° TFUE sempre que o montante de imposto que incide sobre um veículo usado proveniente de outro Estado-Membro exceda o montante residual do referido imposto incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional, o que é o caso.
Quanto à justificação apresentada pela Requerida que a diferenciação na tributação resulta de razões ambientes, a mesma não pode proceder. Como se escreveu na Decisão no processo 660/2019-T "decorre da jurisprudência do TJUE e da própria sistemática do TFUE que, ao contrário do que indica a AT, a norma do artigo 110.º do TFUE é imperativa e sobrepõe-se às normas de cariz ambiental do artigo 191.º do TFUE. Assim, ainda que um EM utilize componente ambientais na determinação do cálculo do regime de tributação de veículos, nunca poderá, com base nessa componente, agravar a tributação de veículos usados provenientes de outros EM face aos veículos usados já matriculados em território nacional". Tal "equivale a dizer que não decorre da legislação aplicável que as regras e princípios ambientais constantes do artigo 191.º do TFUE e artigo 66.º da CRP prevaleçam sobre a regra do artigo 110.º do TFUE que é imperativa para os EM".
É manifesta assim a ilegalidade das liquidações de ISV impugnadas, tendo razão a Requerente nesta questão.
- DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 11º DO CISV EM CONFORMIDADE COM O ARTIGO 110º DO TFUE.
11. Veio ainda a Requerida alegar que a desaplicação do artigo 11.º do CISV resulta numa violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 266.º da CRP e do disposto nos artigos 20.º, n.º 1 e n.º 4, 66º, e 266.º, todos da CRP, i.e. violação dos princípios do Estado de Direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
É manifesto que tal não sucede, sendo de salientar que, nos termos do art. 8º, nº4 da Constituição, "as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático". Não é assim possível aos tribunais, salvo em caso de violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que in casu não se verificam, recusar a aplicação de normas do Direito da União Europeia invocando disposições do Direito Interno Português.
Relativamente à invocação da limitação dos recursos em sede da arbitragem tributária, tal resulta da vinculação da Administração Tributária à jurisdição do CAAD resultante da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março, com as alterações resultantes da Portaria 287/2019, de 3 de Outubro, e ao regime instituído no RJAT que este Tribunal tem que observar. É por isso que tem o dever de apreciar a legalidade dos actos tributários de liquidação de ISV aqui em causa, limitado e no âmbito da competência que lhe é conferida pelo artigo 2.º n.º s 1 e 2 do RJAT, não se verificando qualquer inconstitucionalidade nessa sua competência. Na verdade, a existência de tribunais arbitrais é reconhecida pelo art. 209º, nº2, da Constituição.
- DO DIREITO A JUROS INDEMNIZATÓRIOS.
12. A Requerente solicitou ainda o pagamento de juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43º da LGT.
Decorre do número 1 desse artigo que "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido".
Podemos entender ainda que, como decorre do n.º 5 do art. 24.º do RJAT, o direito a juros indemnizatórios pode ser reconhecido em processo arbitral. Ter-se-á, no entanto, de determinar se houve ou não erro imputável aos serviços.
Como já se referiu, a Autoridade Tributária tinha pleno conhecimento da jurisprudência existente no sentido da interpretação da incompatibilidade do art. 11º do CISV como o art. 110º do TFUE, devendo por isso ter aceite a revisão oficiosa pedida pelo contribuinte. Estamos assim, neste caso, perante uma actuação por parte da Autoridade Tributária, que se traduz num “erro imputável aos serviços”, conforme consta do art. 43º da LGT.
Tendo em conta o estabelecido no artigo 61º do CPPT e tendo sido verificada a existência de erro imputável aos serviços da Administração Tributária, do qual resultou pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido (vide art. 43º, nº1 da LGT), entendemos que a Requerente tem direito a juros indemnizatórios à taxa legal, calculados sobre o valor de € 21.555,74, que serão contados desde a data do pagamento desse montante, até ao integral reembolso dessa mesma quantia.
V – Decisão
Nestes termos, julga-se procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de ISV 2019/... e 2019/..., de 20/11/2019 e 21/11/2019, respectivamente, resultante da apresentação pela Requerente da declaração aduaneira de veículo (DAV), à qual foi atribuído o n.º 2019/..., no valor de € 591,00.
Julga-se procedente o pedido de reembolso do ISV, acrescido dos componentes juros indemnizatórios, condenando-se a Requerida a pagar ao Requerente a quantia de € 591,00 acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios desde o pagamento indevido até que ocorra o reembolso.
Fixa-se ao processo o valor de € 591,00 e o valor da correspondente taxa de arbitragem em € 306,00 nos termos da Tabela I do Regulamento de Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, condenando-se a Requerida nas custas do processo.
Lisboa, 14 de Dezembro de 2020
O Árbitro
(Luís Menezes Leitão)