DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
I – RELATÓRIO
1. A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., Lisboa (doravante também designada por “Requerente”), apresentou, em 14-02-2020, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada também por Requerida, ou AT).
2. O Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade de cinquenta e oito atos de liquidação de Imposto Único de Circulação (Anexo A do pedido arbitral), relativos aos anos de 2018 e 2019, no valor global de € 5.055,39 bem como do ato de indeferimento das reclamações graciosas apresentadas (Anexo B do pedido arbitral), do reembolso dos montantes de impostos pagos e do respetivo reconhecimento ao direito a juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.
3.1. O Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou a signatária como árbitro do tribunal arbitral, a qual comunicou a aceitação da designação dentro do respetivo prazo.
3.2. Em 06-07-2020 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 05-08-2020.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
4. A fundamentar o pedido de pronúncia arbitral o Requerente alega, em síntese, que:
É uma instituição de crédito em que, de entre as suas áreas de atividade, assume especial relevância o financiamento ao sector automóvel, parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
Os veículos automóveis a que se referem as liquidações objeto do pedido arbitral (cfr. anexo A – Docs. N.os 1 a 58 - junto com o pedido arbitral) foram dados em contratos de locação financeira (LGS) e aluguer de longa duração (ALD) pelo Requerente.
Quase todos os clientes naqueles contratos adquiriram, no termo do respetivo contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA (cfr. Docs. N.os 59 a 116 juntos com o PPA).
No que se refere aos veículos com as matrículas ..., ... e ..., por indicação expressa do locatário, ou por ter existido cedência da posição contratual, os sujeitos que vieram a adquirir aquelas viaturas não são coincidentes com aqueles que, originalmente, celebraram os contratos.
Nos anos a que reportam os atos tributários em análise o Requerente não pode ser responsável pelo pagamento do IUC, pois já não era proprietário dos veículos a que se reportam as liquidações de imposto.
Se a jurisprudência arbitral tem maioritariamente realçado que nem mesmo durante a vigência de um LSG ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo de IUC, por maioria de razão menos ainda deve ser atribuída a incidência subjetiva desse imposto quando, após o término do contrato, o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA.
O registo não é condição de validade do contrato de compra e venda nem tão pouco condição de produção do efeito translativo do mesmo, pelo que a ausência daquele não afeta a qualidade de proprietário nem afeta a eficácia plena de tal contrato perante a AT, por não ter a qualidade de terceiro para efeitos de registo.
A presunção derivada de registo derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, em especial por força do disposto no artigo 73.º da LGT, por admitir sempre prova em contrário.
Prova bastante para tal ilisão consubstancia-se nas faturas de vendas dos veículos automóveis, a qual é suficiente para atestar a venda de todas as viaturas constantes das liquidações de imposto aos respetivos adquirentes.
Conclui, por isso, o Requerente pela ilegalidade das liquidações objeto do pedido arbitral, bem como do aludido despacho de indeferimento, reclamando ainda o direito a juros indemnizatórios e a responsabilização da Requerida pelas custas do processo.
5. Por seu turno a Requerida, apresentou resposta – e o respetivo processo administrativo em 16-09-2020 - e veio alegar em síntese que:
O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontram registados.
Realça que o legislador não usou a expressão “presume-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontram registados”.
O normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.
Em face da redação do preceito não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende o Requerente. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
A pretensão do Requerente assenta em equívoco e resulta de interpretação que não atende ao elemento sistemático, violando a unidade do regime consagrado em todo o CIUC e, mais amplamente, em todo o sistema jurídico-fiscal e, por último, decorre de uma interpretação que ignora a ratio do regime consagrado no artigo em apreço, e bem assim, em todo o CIUC.
Esclarece que a não atualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não do Estado Português, enquanto sujeito ativo deste imposto.
À luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pelo Requerente no sentido de que o sujeito passivo do IUC é o proprietário ou o locatário financeiro (mesmo que não figure no registo automóvel o registo dessa qualidade) é manifestamente errada, na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no Código do IUC que constitui prova clara de que o que o legislador fiscal pretendeu foi criar um Imposto Único de Circulação assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
Os documentos que o Requerente junta para ilisão de pretensa presunção não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veículo e consequentemente da propriedade do mesmo, não sendo junto um único extrato financeiro ou cheque que prove que as faturas foram pagas ou que os contratos foram cumpridos a que acresce o facto de as faturas não serem aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático.
Sustenta que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços, mais defendendo não estarem, em qualquer circunstância, reunidos os pressupostos legais que conferem o direito peticionado a juros indemnizatórios.
6. Em 09-10-2020 foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, posição que se manteve no despacho de 04-11-2020, e foi concedido prazo para alegações escritas.
7. A Requerente apresentou alegações a 26-10-2020, e a Requerida apresentou-as a 06-11-2020, sustentando as posições já anteriormente manifestadas.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos. 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A cumulação de pedidos é legal (artigo 3.º, n.º1 do RJAT).
III. FUNDAMENTAÇÃO
1. MATÉRIA DE FACTO
1.1. Factos provados
Atendendo às posições assumidas pelas partes, à prova documental junta aos autos e à prova testemunhal produzida – tendo presente que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado [cfr. artigos. 596.º, nº.1 e 607.º, n.ºs 2 a 4, do CPC, na redação da Lei 41/2013, de 26/6, e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artigo 123.º, nº.2, do CPPT)] - consideram-se, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, provados os seguintes factos:
a) O Requerente é uma instituição de crédito, assumindo especial relevância, na sua atividade comercial, o financiamento ao sector automóvel, designadamente através da celebração de contratos de locação financeira e de aluguer de longa duração.
b) O Requerente foi notificado das seguintes liquidações de IUC:
c) Num total de cinquenta e oito, relativas aos anos de 2018 e 2019, conforme consta quadro do ponto anterior.
c) O Requerente apresentou reclamações graciosas àqueles atos tributários.
d) No referido procedimento de reclamação graciosa foi proferido despacho de indeferimento, sendo que, quanto a um deles foi proferido deferimento parcial, conforme Anexo B junto ao pedido inicial.
e) O Requerente emitiu faturas de venda relativamente a todas as viaturas automóveis a que respeitam as liquidações objeto do presente processo, antes da data a que as mesmas respeitam.
f) Em todos os contratos foi exercida opção de compra pelos respetivos locatários, que pagaram o valor residual, com exceção dos referentes aos veículos com as matrículas ..., ... e ... que, por indicação expressa do locatário, ou por ter existido cedência da posição contratual, os sujeitos que vieram a adquirir aquelas viaturas não são coincidentes com aqueles que, originalmente, celebraram os contratos.
g) O Requerente procedeu ao pagamento do imposto a que respeitam os presentes autos.
1.2. Fundamentação da Fixação da Matéria de Facto
Os factos foram dados como provados com base na análise crítica dos documentos juntos ao processo pelo Requerente.
1.3 Factos não provados
Não existem factos dados como não provados com relevância para a apreciação do pedido.
2. MATÉRIA DE DIREITO
As questões de direito que se colocam no presente processo são as seguintes:
i) Saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita;
ii) Saber se, como alega a AT, a interpretação da Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; e
iii) Saber se são devidos os peticionados juros indemnizatórios.
A resposta às duas primeiras questões de direito assenta na interpretação do artigo 3.º do CIUC, pelo que se torna necessário:
a) saber se a norma de incidência subjetiva, constante desse artigo 3.º, estabelece uma presunção;
b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico, como alegado pela AT; e c) saber - a admitir que a presunção existe e que é iuris tantum - se foi feita a sua ilisão.
Ora, este tema já foi objeto de várias decisões do CAAD, designadamente, da decisão de 3 de Abril de 2020, proferida no processo nº 557/2019-T, que tem subjacente factualidade idêntica à dos presentes autos, na qual nos revemos e que passamos a transcrever:
«O artigo 3.º, nºs 1 e 2, do CIUC, tinha a seguinte redação até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto:
“Artigo 3.º – Incidência Subjetiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
20. Contudo, com o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do citado artigo 3.º passou a ter uma redacção bem distinta:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.
21. Ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjectiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.
22. É uma alteração que faz toda a diferença em face das liquidações ora em causa, dado que, sendo as mesmas posteriores a 2016, a elas se aplica esta redacção e as suas consequências: i) a nova redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC (já) não contempla uma presunção; ii) consequentemente, também (já) não se coloca aqui, quanto a estas liquidações, a questão de saber se a ilisão da presunção foi feita (como pretendeu demonstrar a ora Requerente), nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico (como defendeu a Requerida na sua resposta, ainda à luz da anterior redacção deste n.º 1 do art. 3.º).
23. Com efeito, e como bem refere, a este respeito, o Acórdão do TCA Norte de 21/2/2019, no proc. n.º 00611/13.4BEVIS: “«No tocante à incidência subjetiva de imposto, dispunha à data dos factos o art. 3.º daquele Código: ‘1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. (...)”. Ulteriormente, mediante a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março de 2016 (Orçamento de Estado para 2016) a Assembleia da República conferiu ao Governo a seguinte autorização legislativa, através do seu art. 169.º: “(...) Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação. Fica o Governo autorizado a introduzir alterações no Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão: a) Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º (...)”. Essa autorização foi utilizada para emanação do Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01 de Agosto, em cujo preâmbulo se afirmou: “(...) o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)”. O art. 3.º daquele Decreto-Lei conferiu a seguinte redação ao art. 3.º, n.º 1, do CIUC: “1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. (...)”. Em face da nova redação conferida ao preceito, dúvidas não subsistem que o legislador pretende que seja sujeito passivo de imposto o proprietário constante do registo, independentemente de poder não ser o titular do direito real de propriedade sobre veículo.(...)» Embora a decisão recorrida seja, afinal, no sentido da verificação de dúvidas sérias quanto à existência física das viaturas em causa, cuja propriedade estriba as liquidações impugnadas, entendemos que a alteração do regime legal operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, não é aplicável aos presentes autos. É verdade que o identificado Decreto-Lei veio dar cumprimento à norma constante da Lei do Orçamento de Estado (doravante LOE) para 2016, no seu artigo 169.º, e aprovada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março. Na verdade, dispõe o referido normativo o seguinte: «Fica o Governo autorizado [...] no n.º 1 do artigo 3.º (...)». No uso desta autorização legislativa, foi publicado o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, e que alterou a redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que passou a ser, como se transcreve na sentença recorrida, a seguinte: «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.», norma esta que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (nos termos do disposto no artigo 15.º do identificado diploma legal). Ora, não se julga que a supra transcrita seja uma norma verdadeiramente interpretativa. Dúvidas não existem de que a lei habilitante, a LOE, no seu artigo 169.º, classifica a alteração legal a efectivar quanto ao artigo 3.º do CIUC como tendo carácter meramente interpretativo. Já a norma habilitada se limita a estabelecer, no seu preâmbulo, o seguinte: «(...) Finalmente, o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)» Porém, não classifica a norma como tendo natureza interpretativa, apesar de o diploma assumir que a alteração legal veio ao encontro da necessidade sentida pelo legislador de «ultrapassar dificuldades interpretativas». Da redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados. [...]. [...] [A] norma que vigorou até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016 nunca suscitou dúvidas, ao intérprete ou outros interessados, não sendo fonte de incerteza ou insegurança jurídica a definição do seu âmbito de aplicação. Contrariamente, sempre foi pacífica e uniformemente interpretado o referido artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, como estabelecendo uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo. Sublinhe-se que as normas de interpretação legal sempre impuseram a classificação de que era sujeito passivo deste tributo o proprietário do veículo, servindo a referida presunção para estabelecer que se considera como tal a pessoa singular ou colectiva que como tal figurar no registo automóvel, solução que bem se entende num sistema jurídico em que o registo tem como objectivo dar publicidade ao acto em questão, que não qualquer natureza constitutiva. [cfr. Acórdão do STA, de 08/07/2015, processo n.º 0606/15]. Esta posição vem sendo reiterada pelos tribunais superiores, designadamente, pelo nosso mais alto tribunal – cfr., entre outros, o Acórdão do STA, de 18/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 0206/17. É, portanto, certo que o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autorizou a alteração da redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC. O que foi cumprido pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, passando esta norma a prever que «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos». Trata-se de norma claramente inovadora, uma opção legislativa diversa da anterior, e, como tal, a nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC só se aplica para futuro.” (Sublinhados nossos.)
24. No mesmo sentido, veja-se, ainda, a recente Decisão Arbitral de 23/5/2019, proferida no proc. n.º 658/2018-T: “Confrontando a redação anterior do artigo 3.º do CIUC com a que a resulta da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/20[1]6, de 01/08, em vigor a partir do dia seguinte ao da sua publicação, bem como com a norma de autorização legislativa, ressalta, desde logo, que o legislador não pretendeu fazer uso daquela autorização na vertente relativa à natureza interpretativa da alteração a introduzir ao CIUC e que a «clarificação» por ele pretendida passou por afastar do âmbito da incidência subjetiva do IUC o proprietário efetivo da viatura atribuindo, para o efeito, exclusiva relevância à pessoa que constasse do registo de propriedade, independentemente de ser ela ou não a proprietário ou possuidora da viatura no momento da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto. Sobre esta matéria, pode ler-se em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-04-2018, proferido no Processo n.º 0206/17: «[...] O art. 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março – Orçamento de Estado 2016 – concedeu autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação para que o legislador definisse o exato alcance do disposto no art. 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, nomeadamente sobre a impossibilidade de o contribuinte poder demonstrar, para efeitos de tributação nesta sede que, ainda que constasse do registo automóvel como titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, não era efetivamente o titular desse direito, à data da liquidação, nos seguintes termos: ‘Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação. Fica o Governo autorizado [...] no n.º 1 do artigo 3.º’. Tal autorização legislativa veio a ser concretizado pelo DL 41/2016, de 01/08, cujos exatos termos, ao invés do que fez relativamente a outros impostos, não assumiu carácter interpretativo. Tendo sido concedida autorização legislativa para o governo regular certa matéria, com carácter interpretativo, dispõe, ainda, o órgão executivo, nesta circunstância, da possibilidade de consagrar ou não esse carácter interpretativo, por tal se conter dentro dos limites da autorização concedida.» Este entendimento sobre a relevância da inscrição no registo automóvel para a definição da sujeição subjetiva ao IUC, é acolhido, em idênticos termos, em acórdão de 20-09-2018, do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 01270/14.2BEPNF, que, afastando também uma eventual natureza interpretativa da norma atual do artigo 3.º do CIUC, sustenta que «Da redação dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados.» Também no mesmo sentido, e referindo-se à norma em análise na sua atual redação, pronuncia-se o mesmo Tribunal, em acórdão de 03-10-2018, proferido no processo n.º 01271/14.0BEPNF, nos seguintes termos: «Daqui resulta, que a incidência subjetiva do IUC, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do CIUC recai sobre “(...) as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, independentemente da propriedade efetiva do veículo e da sua posse.” O sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo no ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade. Perentório, conclui o acórdão que: “Com a nova redação do art. 3.º, n.º 1, do CIUC, a propriedade e a posse dos veículos não são elementos de incidência subjetiva do imposto...».” (Sublinhados nossos.)
25. Em face do supra exposto e acolhendo-se, aqui, a jurisprudência que se vem firmando nos Tribunais superiores quanto à incidência subjectiva do imposto na nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC (redacção que se aplica às liquidações aqui em causa), e estando provado que as viaturas a que tais liquidações dizem respeito se encontravam, nos anos de 2017 e 2018, registadas em nome da Requerente, não pode deixar de concluir-se pela legalidade das ora questionadas liquidações de IUC e juros compensatórios, bem como da decisão de indeferimento da correspondente reclamação graciosa.
26. Assim se concluindo, mostra-se inútil proceder à apreciação das questões suscitadas pela Requerente relativas à prova de que, à data da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto, as viaturas a que este respeita já lhe não pertenciam por terem sido transmitidas a terceiros; ficando, também, prejudicada a apreciação do pedido de juros indemnizatórios.
27. Quanto à questão relativa às custas arbitrais (…), seguimos, aqui, o entendimento que já foi expresso, por ex., na Decisão Arbitral de 6/10/2014 (no proc. n.º 241/2014-T): “a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527.º do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.”
28. No mesmo sentido, veja-se, e.g., a Decisão Arbitral de 4/11/2014, no proc. n.º 231/2014-T ou a Decisão Arbitral de 17/11/2014, no proc. n.º 171/2014-T.»
Parece manifesto que o legislador pretendeu alterar o preceito e dar-lhe um novo sentido interpretativo – e que importa uma nova interpretação em relação à que fazíamos no que tange à anterior redação – que, nos termos reproduzidos acompanha, na íntegra, o teor e sentido da decisão acabada de transcrever .
Não nos merecem, assim, qualquer censura as liquidações de IUC contestadas nos autos, pelo que improcede totalmente o pedido do Requerente.
III. DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação das liquidações de IUC impugnadas e de revogação das decisões proferidas em sede de reclamações graciosas objeto deste processo, pelo que tais atos impugnados se mantêm na ordem jurídica;
- Condenar o Requerente nas custas do processo.
IV. VALOR DO PROCESSO
De acordo com o disposto nos artigos 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, artigo 97.º-A, n.º 1, al. a) do Código do Processo e de Procedimento Tributário e artigo 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor € 5.055,39.
V. CUSTAS
Nos termos do disposto no artigo 22.º, n.º 4, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em € 612,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa e CAAD, 5 de Janeiro de 2021
O árbitro
(Marisa Almeida Araújo)