DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
A..., S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o número único de matrícula e de identificação de pessoa coletiva ..., com sede na Rua..., n.º ..., ... ... Lisboa (doravante Requerente), vem nos termos do artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico de Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado RJAT), requerer a constituição de Tribunal Arbitral singular, em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante AT ou Requerida, com vista à declaração de ilegalidade e consequente anulação sobre a ilegalidade de 39 (trinta e nove) actos de liquidação de imposto único de circulação (“IUC”), respeitantes aos anos de 2015, 2017 e 2019, no montante global de €3.095,27 e, bem assim, sobre a ilegalidade do acto de indeferimento da reclamação graciosa referente a 38 (trinta e oito) actos de liquidação e do acto de indeferimento de recurso hierárquico relativamente a 1 (um) acto de liquidação, devidamente identificados nos autos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral singular foi constituído em 5 de Agosto de 2020, tendo o Tribunal entendido que a produção de prova testemunhal seria meramente coadjuvante, uma vez que os factos relevantes que se prendem em determinar se 39 contratos teriam ou não sido transmitidos entre 2015, 2017 e 2019 não podem ser demonstrados pela memória humana sem base documental, sendo esse tipo depoimento por isso inútil, neste caso concreto.
A AT respondeu, defendendo que o pedido deve ser julgado improcedente.
Em face do teor da matéria contida nos autos, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e dada a faculdade de produção de alegações finais.
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas e estão representadas (artigo 4.º, e n.º 2 do artigo 10 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
II. MATÉRIA DE FACTO
Com base nos elementos que constam do processo e do processo administrativo junto aos autos, consideram-se com relevo para a presente decisão como provados os seguintes factos
a. A Requerente é uma instituição de crédito que opera no financiamento ao sector automóvel, celebrando contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis;
b. Os veículos automóveis identificados nos autos estavam à data dos actos de liquidação de IUC registados em nome da Requerente;
c. Os veículos automóveis identificados nos autos foram dados em leasing ou ALD pelo Requerente a terceiros (Anexo e documentos n.º 1 a 78);
d. No âmbito dos contratos celebrados, os veículos automóveis acima identificados poderiam vir a ser ou não adquiridos pelos locatários e/ou promitentes-compradores;
e. O Requerente emitiu as facturas de venda identificadas nos documentos n.º 40 a 78 relativamente aos veículos automóveis identificados;
f. Os actos de liquidação de IUC respeitam aos anos 2015, 2017 e 2019;
g. O Requerente apresentou reclamações graciosas e recurso hierárquico dos actos de liquidação de IUC identificados;
h. O Requerente pagou as notas de liquidação de IUC identificadas nos autos.
A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos aos autos, tendo sido selecionada de acordo com o disposto no artigo 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT) e artigo 607.º, n.º 3 e 4 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1 do RJAT.
Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT e a prova documental junta aos autos, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
O Tribunal não considerou provado que o veículo automóvel, objecto do acto de liquidação de IUC n.º 2015703964403 relativo ao ano 2015 foi transmitido pela Requerente ao locatário ou adquirente identificado na factura emitida, dado não ter sido efectuada a prova de pagamento.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A principal questão que se coloca nos presentes autos prende-se com saber se a Requerente deve ser qualificada como sujeito passivo do IUC relativamente aos actos de liquidação de IUC identificados nos autos.
A este propósito defende o Requerente, sinteticamente, o seguinte:
a) Os veículos automóveis catalogados no ANEXO A, sem exceção, foram dados em contratos de locação financeira («LGS») e aluguer de longa duração («ALD») pela Requerente aos clientes ali melhor identificados – conforme resulta dos contratos que se juntam como DOCS. N.ºs 1 a 39, destacados – por referência à viatura automóvel a que se reportam – no aludido ANEXO A;
b) Quase todos estes clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA – tal como atestam os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, faturas de venda), que se juntam como DOCS. N.ºs 40 a 78, melhor assinalados – com menção à viatura automóvel a que se referem – no ANEXO A, já junto.
c) Sendo certo que, num número mais reduzido de casos, mais concretamente nas duas viaturas automóveis com as matrículas ... e ..., ao contrário do «percurso» normal acima exposto, por motivo de «perda total» na sequência de um sinistro ocorrido antes do término de cada contrato, a viatura não foi transmitida para o correspondente locatário, mas antes para a esfera da Seguradora com quem tinha sido celebrado o contrato de seguro – como resulta da documentação remetida pela Seguradora, assim como da correspondência trocada entre esta e a Requerente.
d) Ou, num universo mais restrito composto pela viatura automóvel com a matrícula ..., por indicação expressa do locatário, o sujeito que veio a adquirir aquela viatura não coincide com aquele que originariamente celebrou o contrato (ou seja, com o anterior locatário).
e) Quer isto dizer que a propriedade de cada um dos veículos automóveis elencados no ANEXO A, já junto, havia sido transmitida para os seus anteriores locatários ou, em alternativa, por ter ocorrido um sinistro, para as competentes Seguradoras ou, por indicação expressa do locatário, para um terceiro;
f) Não obstante, a Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC, por não se encontrar efectuado o registo de propriedade pelos actuais proprietários dos veículos automóveis;
g) Como a jurisprudência maioritariamente arbitral tem realçado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG (vulgo, leasing) ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto.
h) Assim sendo, e por maioria de razão, menos ainda deve ser atribuída a incidência subjetiva deste imposto quando – após o término do contrato – o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA, tornando-se, nestas circunstâncias, o (novo) proprietário do veículo automóvel outrora locado, passando a aplicar-se-lhes integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.
i) É por demais evidente que não subscrevemos quaisquer argumentos que insinuam que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma “presunção ilidível de incidência subjetiva” do imposto com base tão só no registo automóvel, desde logo, porque os efeitos do registo automóvel nem tampouco o princípio da equivalência não apontam nessa direção, mas também porque esta «proposta» hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária («LGT») e 9.º do Código Civil («CC»).
j) O registo de propriedade automóvel não é condição de eficácia do contrato de compra e venda do veículo, mas tem somente de eficácia declarativa.
k) O sujeito do passivo do imposto deverá ser o real proprietário do veículo e não o proprietário registado, uma vez que será o primeiro que causa os custos ambientais e viários que este tributo comutativo visa compensar.
l) Através do recurso às regras elementares de hermenêutica jurídica (elemento histórico), extrai-se a observação preliminar de que, desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 59/72, de 30 de Dezembro, o primeiro a regular esta matéria, até ao Decreto-Lei n.º 116/94, de 3 de Maio, o último a anteceder o Código do IUC aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de Junho, o legislador consagrou (ou sempre quis consagrar) a presunção (segundo cremos, ilidível) dos sujeitos passivos do imposto serem as pessoas em nome das quais os veículos automóveis se encontravam registados.
m) O artigo 215.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro que aprovou o Orçamento de Estado para 2015, que veio aditar o artigo 17.º-A do Código do IUC sob a epígrafe «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade», apenas aplicável às transmissões de veículos automóveis ocorridas em ou após o dia 1 de Janeiro de 2015, mais não são do que uma «clarificação» das normas de incidência subjetiva do IUC;
n) Queremos com isto dizer que o artigo 17.º-A não contempla uma regra de incidência subjetiva, mas versa sobre os «[e]feitos fiscais da regularização da propriedade» e principia com «[s]em prejuízo do disposto no artigo 3.º», inferindo-se da redação do artigo que, sem prejuízo da possibilidade de ilidir a presunção derivada do registo, «a alteração da titularidade do direito de propriedade efetuada ao abrigo do procedimento especial para registo de propriedade de veículos adquirida por contrato verbal de compra e venda releva para efeitos de imposto único de circulação, desde a data da transmissão, quando aquele pedido for apresentado pelo vendedor no prazo de um ano após o decurso do prazo para cumprimento do registo obrigatório referido no artigo 2.º daquele procedimento especial».
o) Em face do exposto, acham-se reunidas as condições para assumirmos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada – e bem – pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível;
p) Em conclusão, mesmo que se pudesse interpretar o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC como se de uma presunção inilidível se tratasse, não era possível, contudo, aplicar essa interpretação à situação vertente (entidade locadora), sob pena de manifesta e crassa inconstitucionalidade, ferindo o ato de indeferimento da reclamação graciosa e o ato de indeferimento do recurso hierárquico e, em consequência, os atos de liquidação mediatamente impugnados – o que se invoca expressamente nesta sede – com apoio legal no artigo 13.º da CRP.
Por sua vez a AT alega, em síntese, o seguinte:
a) Não assiste razão ao Requerente quando alega a ilegalidade das liquidações de IUC (por violação do artigo 3.º, n.º 2 do Código do IUC) referentes aos veículos objecto de contratos de locação financeira celebrados;
b) Na verdade, o legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados;
c) Estabelece o artigo 6.º do Código do IUC, sob a epígrafe “Facto Gerador e Exigibilidade”, no seu n.º 1, que: “O facto gerador do imposto é constituído pela propriedade do veículo, tal como atestada pela matrícula ou registo em território nacional.”, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
d) Na falta de tal registo, naturalmente, será o proprietário notificado para cumprir a correspondente obrigação fiscal, pois a Requerida, tendo em conta a actual configuração do sistema jurídico, não terá que proceder à liquidação do imposto com base em elementos que não constem de registos e documentos públicos e, como tal, autênticos;
e) Nestes termos, a não actualização do registo, nos termos do disposto no artigo 42.º do Regulamento do Registo de Automóveis, será imputável na esfera jurídica do sujeito passivo do IUC e não na do Estado Português, enquanto sujeito activo deste Imposto;
f) De tudo quanto supra se expôs resulta claro que os actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 e do artigo 6.º do Código do IUC, a Requerente encontrava-se registada como proprietária dos veículos, i.e, sujeito passivo do IUC;
g) Todavia, ainda que assim não se entenda – o que somente por mera hipótese académica se admite – e aceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, entende-se que os contratos que o Requerente junta não são prova suficiente de que houve transmissão de propriedade dos veículos da Requerente para terceiro numa determinada data, uma vez que o mesma não junta prova documental do recebimento do preço, isto é, cópia de cheque ou extracto financeiro relativo às transmissões dos veículos, sendo certo que das facturas/recibos juntos consta do lado inferior direito “válido como recibo após boa cobrança”
h) Nestes termos, deve o presente pedido de pronúncia arbitral ser julgado improcedente, mantendo-se na ordem jurídica os actos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.
Vejamos o que deve ser entendido.
III. MATÉRIA DE DIREITO
A. Da Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC, na redacção da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12
Estabelecia o artigo 3.º do Código do IUC o seguinte:
“1-São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 – São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação.”
Resulta do artigo 11.º da Lei Geral Tributária (LGT) que a interpretação da lei fiscal deve ser efectuada atendendo aos princípios gerais de interpretação.
Os principais gerais de interpretação estão estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil (CC), nos seguintes termos:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Estabelece-se, assim, que são três os elementos de interpretação da Lei, a saber: o elemento literal, o elemento histórico e racional e o elemento sistemático.
Atendendo ao elemento literal da norma aqui em discussão, importará, em primeiro lugar, reconstruir o pensamento legislativo através das palavras da lei. Diz-se no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC que “são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.”
De acordo com a AT, a expressão “considerando-se” não constitui uma presunção legal, sendo intenção do legislador estabelecer expressa e intencionalmente que se consideram como tais (como proprietários) as pessoas em nome das quais os mesmos (veículos) se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
Sucede que, do ponto de vista literal, constata-se que a expressão “considerando-se” ou “considera-se” é muitas vezes utilizada com sentido equivalente à expressão “presumindo-se” ou “presume-se”.
Assim, a título exemplificativo, veja-se o artigo 191.º, n.º 6, do CPPT, entre outros artigos assinalados nas decisões arbitrais proferidas nos processos n.ºs 14/2013-T, 27/2013-T, 73/2013-T ou 170/2013-T.
Deste modo, pode dizer-se que a expressão “considerando-se” tem “um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, devendo reconhecer-se a tal vocábulo uma correspondência corrente e normal a esse sentido presuntivo (Vide decisão arbitral proferida, no âmbito do processo n.º 286/2013-T).
Não obstante, e tal como é salientado pela AT, o vocábulo “considerando” também é utilizado fora de contextos presuntivos – Vide artigo 18.º da sua resposta.
Por isso, importa submeter ao controlo dos demais elementos de interpretação de natureza lógica o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.
Assim, atendendo ao elemento histórico de interpretação, importa considerar que a proposta de lei n.º 118/X, de 7.03.2007, subjacente à Lei n.º 22-A/2007, de 29.06 consagra “como elemento estruturante e unificador (…) o princípio da equivalência, deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os Requerentes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária.”
Neste contexto, parece-nos claro que o legislador pretendeu tributar o sujeito passivo real e efectivo causador de danos viários e ambientais e não um qualquer detentor de registo automóvel.
Tal como já foi por diversas vezes salientado em várias decisões arbitrais, o princípio da equivalência visa internalizar as externalidades ambientais negativas, decorrentes da utilização dos veículos automóveis, e foi erigido em princípio fundamental da tributação dos veículos automóveis em circulação.
Como defende Sérgio Vasques, in Os Impostos Especiais de Consumo, Almedina, Coimbra, 2001, p. 122, “Assim, um imposto sobre os automóveis assente numa regra de equivalência será igual apenas se aqueles que provoquem o mesmo desgaste viário e o mesmo custo ambiental paguem o mesmo imposto; e aqueles que provoquem desgaste e custo ambiental diverso, paguem imposto diverso também”, acrescentando que a concretização do dito princípio “(…) dita outras exigências ainda no tocante à incidência subjectiva do imposto (…)”.
Tendo em conta os fundamentos subjacentes à criação do Código do IUC, em especial, a erupção do princípio da equivalência em princípio estruturante e unificador da tributação dos veículos em circulação, parece-nos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC não pode ser interpretado como um comando fechado, mas antes como uma presunção ilidível, que tem por base a assunção de que na realidade o agente responsável pelos danos ambientais é, em regra, o proprietário registado do automóvel. Assunção essa que não poderá deixar de ser desconsiderada, caso na realidade seja outro o agente responsável, isto é, o sujeito passivo de IUC.
Do ponto de vista sistemático, importará reforçar novamente que logo no artigo 1.º do Código do IUC se estabelece que “O imposto único de circulação obedece ao princípio da equivalência, procurando onerar os Requerentes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.”
Em suma: com base no artigo 9.º do CC, considera-se que todos os elementos de interpretação (literal, histórico e sistemático) apontam no sentido de que o artigo 3.º, n.º 1, do Código do IUC, na redacção da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12, estabelece uma presunção ilidível. Tal significa que os sujeitos passivos de IUC sendo, em princípio, os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas em nome dos quais os mesmos se encontram registados, poderão, afinal, ser outros, se forem efectivamente outros os provocadores dos danos ambientais, enquanto utilizadores dos veículos em circulação.
Tendo em conta o exposto supra, entende-se que a disposição em análise estabelece uma presunção de propriedade em favor das pessoas em nome de quem se encontrem registados os veículos, conforme resulta do artigo 73.º da LGT
Nos termos do artigo 73.º da LGT, “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário.”
B. Da Interpretação do n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC após a aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto
O Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto estabeleceu a seguinte nova redacção do n.º 1 do citado artigo 3.º: “1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.”
Conforme jurisprudência assente, o legislador ordinário não consagrou o carácter interpretativo dessa alteração (Cfr. entre outros, Acórdão do STA, Proc. 0206/17, de 18.04.2018 e Acórdão do TCA Norte, Proc. 611/13.4BEVIS, de 21.02.2019).
Assim, a partir de Agosto de 2016, o IUC passou a incidir sobre a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor (Vide, entre outros, Acórdão do STA, proc. 0206/17, de 18.04.2018, Acórdão do TCA Norte, proc. 611/13.4BEVIS, de 21.02.2019, Acórdão TCA Norte, proc. 1270/14.2BEPNF, de 20.09.2018, Decisão do CAAD n.º 658/2018, de 23.05.2019, Decisão do CAAD n.º 557/2019-T, de 3.04.2019).
Assim, entende-se, acompanhando o sentido do Acórdão do TCA Norte, proferida no processo n.º 1271/14.0BEPNF, de 3.10.2018 que o “o sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo no ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade.”
IV. DO CASO CONCRETO
Em face do exposto, considera-se que a responsabilidade pelo pagamento do IUC relativamente ao ano 2015 que tem subjacente o acto de liquidação de IUC devidamente identificado nos autos, é regulada pelo artigo 3.º do Código do IUC na redacção da Lei n.º 82-B/2014, de 31.12.
Conforme acima explicitado, ao abrigo daquela norma, entende-se que a Requerente poderia demonstrar que a responsabilidade pelo pagamento do IUC não era sua. Com tal propósito, a Requerente juntou aos autos o contrato de aluguer de veículo sem condutor com promessa de compra e a correspondente factura de venda.
Sucede que a Requerida impugnou não só o contrato, como também a factura junta pela Requerente, colocando questões que esses documentos não permitem clarificar tais como “os contratos foram cumpridos” e “o preço foi pago?”.
Analisados os documentos juntos pela Requerente não é possível concluir que houve transmissão do bem com pagamento do preço, uma vez que da factura consta “Válido após boa cobrança”, nada se sabendo sobre essa boa cobrança.
Na verdade, embora a factura emitida pela Requerente faça pressupor uma transmissão prévia do veículo pela Requerente, não é possível concluir pela transmissão da propriedade do veículo, uma vez que não foi junto qualquer comprovativo de pagamento, não se entendendo possível realizar essa prova mediante depoimento dos trabalhadores da Requerente, que sem base documental não poderão naturalmente ter retido esse saber (se o valor residual foi ou não pago em 2015) relativamente ao veículo específico em discussão.
Considerando que o ónus da prova é da Requerente, e uma vez que não é claro o modo de transmissão do veículo em discussão, por força do artigo 3.º, n.º 1 do Código do IUC, a responsabilidade pelo pagamento do IUC é imputável à Requerente (veja-se no mesmo sentido, as Decisões do CAAD n.º 226/2017, de 26.09.2017, n.º 430/2017, de 24.11.2017 e n.º 715/2015, de 29.03.2016).
Relativamente aos actos de liquidação de IUC relativos aos anos 2017 e 2019 encontrando-se provado que o registo dos veículos subjacentes aos actos de liquidação se encontrava à data em nome da Requerente, a responsabilidade fiscal pelo pagamento do imposto é da Requerente.
Na verdade, conforme resulta do exposto em III, toda a jurisprudência conhecida até à data tem reiterado o entendimento de que, desde a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, a responsabilidade pelo pagamento do IUC é de quem conste no registo como proprietário, dada a eliminação da presunção (ilidível) antes vigente.
Deste modo, encontrando-se provado que os veículos subjacentes aos actos de liquidação em discussão estavam registados em nome da Requerente, cabe à Requerente o seu pagamento.
V. DECISÃO
Assim, o Tribunal decide, nos seguintes termos:
A) Julgar totalmente improcedente o pedido de declaração de ilegalidade do indeferimento da reclamação graciosa e do recurso hierárquico subjacente aos actos de liquidação de IUC impugnados;
B) Julgar improcedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios.
C) Condenar a Requerente nas custas do processo.
VI. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, 97.º-A do CPPT e artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária o valor do pedido é fixado em €3.095,27 (três mil e noventa e cinco Euros e vinte e sete cêntimos).
VII. CUSTAS
Nos termos do disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT, e no artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €612 (seiscentos e doze Euros), nos termos da Tabela I do mencionado Regulamento, a cargo da Requerente.
Notifique-se.
Lisboa, 11 de Novembro de 2020
A Árbitro,
Magda Feliciano
(O texto da presente decisão foi elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, da alínea e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (RJAT) regendo-se a sua redacção pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.)