DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
1. A... e B..., casados no regime de comunhão geral de bens, com os números de identificação fiscal ... e ..., respetivamente, residentes habitualmente em Rue ... Luxemburgo e em Portugal na Rua ..., ..., ...-...- ... ... - Pombal, vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2014 ... e a correspondente nota de compensação n.º 2014..., respeitantes ao exercício de 2011, no montante global de € 83.394,35, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago acrescido de juros indemnizatórios.
O pedido arbitral foi deduzido ao abrigo do regime de migração de processos dos tribunais tributários, previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro, na sequência da extinção da instância requerida no âmbito do Processo n.º .../15.../BELRA - ... UO, que correu seus termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Fundamentam o pedido nos seguintes termos.
Em 6 de Janeiro de 2000, foi constituída entre o Requerente marido e C... a sociedade comercial por quotas D..., Lda., com o capital social de € 50.000,00, correspondendo à soma de duas quotas de igual valor de € 25.000,00 pertencentes aos sócios.
Porém, por razões de necessidade de liquidez e financiamento, forem sendo sucessivamente constituídos a favor da sociedade suprimentos prestados por ambos os sócios que, em 20 de Janeiro de 2011, ascendiam ao valor total de € 2.850.000,00.
E nessa mesma data, em Assembleia Geral Extraordinária de sócios da sociedade D..., Lda. (acta n.º 11), foi deliberada a constituição das prestações suplementares por transformação/incorporação de suprimentos efetuados pelos sócios no referido montante de € 2.850.000.
Por escritura pública outorgada em 21 de Maio de 2011, os Requerentes cederam a C... a quota que detinham na sociedade comercial por quotas D..., Lda., no valor nominal de € 25.000,00, pelo preço de € 350.000,00.
Na sequência de uma acção inspetiva, a Autoridade Tributária determinou a correcção em sede de IRS relativamente ao período de tributação de 2011, tendo como verificada uma mais-valia por alienação onerosa de partes sociais, por entender que o valor de aquisição da quota detida pelo Requerente marido na sociedade corresponde ao seu valor nominal (€ 25.000,00), desconsiderando, para esse efeito, a quota parte dos suprimentos realizados (€ 1.425.000,00), que se converteram em prestações suplementares.
Entendem os Requerentes, conforme consta das alíneas 5 e 7 do contrato promessa de cessão de quota, que no preço pago pelo cessionário estão incluídos todos os direitos e obrigações inerentes à quota a transmitir, incluindo suprimentos, prestações suplementares, prestações acessórias e quaisquer outros créditos sobre a sociedade, e que, desse modo, igualmente ficaram prestadas todas as contas entre os sócios e os sócios e a sociedade, que nada mais podem exigir ou reclamar reciprocamente.
E, nesses termos, o Requerente marido cedeu pelo preço global de € 350.000,00 a quota que detinham na sociedade e todos os demais instrumentos de capital social, créditos e direitos, incluindo os suprimentos convertidos em prestações suplementares no montante de € 1.425.000,00.
Concluem que se verifica, não uma situação de mais-valias, mas de menos-valias no valor de € 1.311.230,92, resultante da cessão de quota e partes de capital próprio da sociedade pelo indicado valor de € 350.000,00.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta que os ganhos provenientes da cessão onerosa de uma quota, constituem uma mais-valia sujeita a IRS (artigo 10.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRS), em que haverá de considerar-se, como valor de realização, a contraprestação recebida pelo cedente, e, como valor de aquisição, tratando-se de quotas ou outras partes sociais, o custo documentalmente comprovado ou, na sua falta, ao valor nominal da quota (artigo 48.º, alínea b), do Código do IRS), sendo que, neste parâmetro, deverá atender-se ao valor das entradas pelo sócio aquando da constituição da sociedade, acrescido do valor das entradas em dinheiro realizadas a título de aumento do capital social, e as prestações suplementares em vista ao reforço dos capitais próprios da sociedade, como forma complementar de financiamento das sociedades.
Assim, tendo como assente que o valor de aquisição de partes sociais é composto pelo valor entregue pelo sócio aquando da constituição da sociedade, acrescido dos montantes despendidos a título de aumento do capital social, as prestações suplementares apenas deverão ser tidas em consideração no valor de aquisição da quota caso tenham sido integradas no capital social, e desde que haja prova documental de que hajam sido realizadas e os respectivos montantes tenham sido entregues à sociedade.
No caso vertente, a Administração considerou como valor da aquisição o valor nominal da quota por não ter sido apresentada prova documental do custo dessa aquisição, sendo que os documentos apresentados pelos Requerentes, em sede de procedimento inspectivo, não comprovam a efetiva entrega, por parte dos sócios, dos montantes referentes a suprimentos e a efetiva conversão dos suprimentos em prestações suplementares, bem como a efetiva integração do valor das prestações suplementares no capital social da empresa.
Conclui pela improcedência do pedido arbitral.
2. No pedido arbitral, os Requerentes indicaram prova testemunhal e requereram a notificação da sociedade comercial por quotas D..., Lda., com sede na Rua..., n.º..., ..., ... —...Pombal, para juntar aos autos os documentos da sua contabilidade respeitantes a prestações suplementares realizadas em 2011, e, designadamente as contas 51 a 56 relativas ao exercício de 2011, e cópia da Acta n.º 11, exarada no seu Livro de Atas das Assembleias Gerais.
Por despacho arbitral de 18 de julho de 2020 foi deferido o requerimento probatório, mediante a notificação da sociedade D..., Lda. para juntar os documentos solicitados. No mesmo despacho foi designado o dia 16 de setembro para a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, também destinada à produção de prova testemunhal.
Na reunião, o tribunal determinou que se aguardasse a junção aos autos dos elementos instrutórios solicitados ou o decurso do respectivo prazo.
Findo o prazo sem que tivessem juntos os documentos, o processo prosseguiu para alegações.
Em alegações, os Requerentes reiteraram a sua posição, considerando inequívoco que o valor de € 350.000,00 pago pelo sócio C... não foi apenas pela aquisição da quota de € 25.000 de que era titular o Requerente marido mas também pelas prestações suplementares no valor de € 1.425.000,00, sublinhando que a testemunha, E..., contabilista certificado da sociedade ao tempo dos factos, corroborou a veracidade das operações e confirmou que os suprimentos, posteriormente convertidos em prestações suplementares, foram devidamente inscritos na contabilidade da sociedade.
Acrescenta-se que os Requerentes prestaram esclarecimentos ao inspector tributário quanto ao enquadramento circunstancial dos factos e informaram da impossibilidade de acesso aos documentos na posse da sociedade, o que foi desconsiderado pela Administração que se absteve de realizar quaisquer diligências em vista à descoberta da verdade.
A Requerida, nas suas alegações, insiste que não foram juntos os documentos que demonstrem a efetiva entrega, por parte dos sócios, dos montantes referentes a suprimentos ou prestações suplementares, sendo que era sobre os Requerentes que impendiam o ónus da prova do que alegam, e, face à impossibilidade de acesso a documentos na posse de terceiro, considera que os interessados deveriam ter requerido a suspensão da instância e recorrido ao processo especial de apresentação de documentos, previsto no artigo 1045.º do CPC, e, no limite, à sua apreensão, nos termos do artigo 1047.º.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, os árbitros foram designados pelas partes, tendo o Conselho Deontológico designado o árbitro presidente, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 28 de Fevereiro de 2020.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
A) Por contrato celebrado em 6 de Janeiro de 2000, o Requerente A... e C... constituíram uma sociedade comercial por quotas, que adoptou a firma D..., Lda., tendo por objecto social a construção civil, obras públicas, comércio, importação e exportação de produtos relacionados com a actividade de construção civil, compra e venda de imóveis e revenda de propriedades, e por actividade acessória a gestão e administração de imóveis, com o capital social de € 50.000,00, correspondente à soma de duas quotas iguais no valor nominal de € 25.000,00, pertencentes a cada um dos sócios.
B) No artigo 7.º do contrato de sociedade consigna-se o seguinte:
UM - Aos sócios poderão ser exigidas prestações suplementares até ao montante global correspondente ao décuplo do capital social, reembolsáveis quando julgadas indispensáveis, sendo a data e a forma de restituição fixadas em Assembleia Geral, que delibere o reembolso.
DOIS - Qualquer sócio poderá fazer suprimentos à sociedade, quando esta deles carecer, nas condições de retribuição e reembolso que forem acordadas em Assembleia Geral.
C) Em 20 de janeiro de 2011, reuniu em sessão extraordinária a Assembleia Geral da sociedade D..., Lda., com a presença dos seus dois únicos sócios, tendo como ponto único da ordem de trabalhos "Deliberação sobre a constituição de prestações suplementares por incorporação de suprimentos", constando da respectiva acta (acta n.º 11), na parte que releva, o seguinte:
Abertos os trabalhos, a que presidiu o sócio mais velho A..., foi por este explicado que tendo esta sociedade nascido apenas com o capital subscrito e realizado de € 50.000,00, começou logo por adquirir e promover um grande loteamento no concelho da ..., para o qual, tanto para a sua aquisição como para o posterior licenciamento e arranjo, foram necessários grandes reforços financeiros, feitos em partes iguais por cada um dos sócios. Mais informou que reforços, entradas como "suprimentos facultativos" reembolsáveis e não onerosos, que ascendem atualmente a € 2.850.000,00 (dois milhões e oitocentos e cinquenta mil euros).
Mais explicou que "em face do momento atual da economia, tanto nacional como europeia, dificilmente nos anos mais próximos o investimento efetuado terá retorno e bem assim os suprimentos efetuados", avançou propondo que "os valores das subcontas 268501 (Sócios - Outras operações) deixassem, primeiro, de constituir passivo para a empresa, depois de ter a caraterística de reembolsabilidade e, por último, passassem a constituir capital próprio da sociedade, devendo ser transferidos para a conta 531 (Prestações Suplementares/Acessórias)-(Outros Instrumentos de capital próprio) com a finalidade de, logo que haja oportunidade, as incorporar em Capital Social ordinário".
Pediu então a palavra o outro sócio C..., o qual, informando de imediato da sua disponibilidade para aderir a tal proposta, avisou, contudo, que face ao n.º 1 do Artigo 7.º do pacto social da sociedade, o qual limita a exigibilidade de prestações suplementares ao décuplo do capital social, portanto a € 500.000,00, o operação proposta do seu sócio deverá ser conciliada com uma alteração ao referido pacto social de forma a aumentar a possibilidade da exigibilidade das prestações suplementares para um montante que venha a abarcar os pretendidos € 2.850.000,00.
Sugeriu passasse a ser € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros). Alertou ainda que se deveria acautelar a provável exigibilidade de relatório específico de um Revisor Oficial de Contas para o efeito.
Retorquiu o sócio presidente dos trabalhos que por ora se poderia avançar com a operação contabilístico-fiscal e, depois, em face das exigências administrativas para a necessária escritura se tratasse do resto.
[…];
D) O Requerente marido e C..., em 19 de Maio de 2011, celebraram um contrato promessa de cessão de quota com as seguintes cláusulas:
1.ª
O primeiro outorgante marido e o segundo outorgante são os únicos sócios e titulares da totalidade do capital social da sociedade comercial por quotas D..., com sede na Rua ..., n.º..., Lugar do ..., freguesia da ..., concelho de Pombal, NIPC n.º ... número de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Pombal, com o capital social de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), repartido por duas quotas, no valor cada uma de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) pertencendo uma a cada um dos antes referidos outorgantes (primeiro outorgante marido e o segundo outorgante).
2.ª
Os outorgantes pretendem pôr fim, na antes identificada sociedade, à sua relação societária, através da cessão por um deles ao outro da quota que detém, de modo a que o cessionário (um deles) fique titular da totalidade do capital social da sociedade, mas, até ao momento, não conseguiram, não obstante as várias negociações, por intermédio de terceiros, estabelecidas entre ambos, chegar a acordo quanto ao preço e condições da cessão.
3.ª
Nessas circunstâncias acordam para atingir, tal fim, no seguinte, que, reciprocamente, se obrigam a cumprir:
1) No próximo dia 21 de Maio de 2011, pelas 10,00 horas, ambos se obrigam a, por si ou por pessoa devidamente mandatada para o efeito, comparecer no Cartório Notarial do Dr. F..., sito em Coimbra, no ... à ..., n.º ..., 1.º, salas E, F e G;
2) Aí, nesse local e hora, cada um dos outorgantes, A... e C... ou seus representantes, apresentarão ao Sr. Notário e aos Advogados Dr. G..., com escritório em Av. ..., ..., ..., sala..., ...— ... Coimbra e Dr. H..., com escritório na Rua Dr. ..., n.º ...-... andar, ...— ... Coimbra, em envelope opaco e fechado, com a identificação do proponente no seu rosto, a sua proposta de preço de aquisição da quota do outro (da referida sociedade), em euros, que se dispõe e obriga a pagar, entregando-lhes os respetivos envelopes que os mesmos abrirão;
Dentro de cada um desses envelopes deverá também ser colocado, por cada um dos outorgantes, um cheque visado no montante igual à proposta do preço que cada um fará pela aquisição da quota do outro, em nome deste e que se destina ao pagamento de tal quota se a sua proposta for a vencedora.
3) O Sr. Notário e os referidos senhores advogados, antes identificados, abrirão os dois envelopes e comunicarão aos outorgantes as propostas/preços apresentados por cada um e ficarão na posse do cheque referente à proposta vencedora para entregar ao outro (o vendedor) no momento da celebração da escritura da cessão referida abaixo em 5);
4) O que deles apresentar a proposta de aquisição superior será adquirente da quota do outro (que menor proposta oferecer), por preço igual à proposta (superior) que apresentou;
5) Ambos se obrigam a, no mesmo local, outorgar imediatamente escritura de cessão de quota, pelo preço correspondente à proposta superior, a pagar integralmente através daquele cheque referido em supra 3) no momento e com a celebração da imediata escritura, ou seja, o que apresentar a proposta superior, desde já promete adquirir a quota ao que apresentou a proposta inferior, obrigando-se este a vendê-la àquele, ou a quem (no todo ou em parte e a uma ou mais pessoas individuais ou coletivas), este indicar até ao momento da celebração da escritura, pelo preço correspondente ao preço superior e no preço estão incluídos todos os direitos e obrigações inerentes à quota a transmitir, incluindo suprimentos, prestações suplementares, prestações acessórias e todos e quaisquer outros créditos sobre a sociedade, que ficam a pertencer ao adquirente da quota; os outorgantes, no caso da quota ser cedida em parte ou partes, obrigam-se, reciprocamente, a por si e em nome da sociedade, autorizar e proceder à divisão da quota.
6) Na escritura o outorgante cedente renunciará à gerência e alterarão a sede da sociedade transferindo-a para o local que o cessionário indicar, não podendo ser a residência ou qualquer outro local pertencente ao cedente e ambos prestam autorização para a continuação dos seus nomes na firma social durante o prazo de noventa dias a contar da data da celebração da escritura de cessão de quotas.
7) Com a celebração da escritura da cessão, pagamento do preço da quota, nos termos e condições definidos nos anteriores pontos, entre os outorgantes ficam prestadas toda as contas entre si, como sócios e com a sociedade e desta com eles, nada mais os sócios podendo reciprocamente exigir ou reclamar um do outro, nem da sociedade, nem esta deles.
8) O outorgante que, nos termos deste contrato vier a ceder a quota obriga-se a entregar ao adquirente toda a documentação e elementos referentes à sociedade, nomeadamente referentes à sua escrita e contabilidade, que detenha em seu poder.
[…];
E) Por escritura pública de cessão de quota, renúncia à gerência e alteração de pacto, celebrada em 20 de Maio de 2011, o Requerente marido cedeu a C..., pelo valor de € 350.000,00, a quota que detinha na sociedade por quotas denominada "D..., Lda”, no valor nominal de € 25.000,00.
F) Na mesma escritura, o segundo outorgante, C..., como único sócio da sociedade "D..., Lda”, deliberou alterar o pacto social quanto à titularidade do capital social, alterando o artigo 3.º desse pacto, que passou a ter a seguinte redacção:
“O capital social, integralmente subscrito e realizado em dinheiro, é de cinquenta mil euros e corresponde à soma de duas quotas, de vinte e cinco mil euros cada uma, pertencentes ao sócio C...”;
G) O Requerente marido foi alvo de uma acção inspectiva, credenciada pela Ordem de Serviço n.º I2012..., incidente sobre a inscrição constante do anexo G) da declaração de IRS, referente à alienação onerosa de partes sociais, apresentada em 2011;
H) Pelo ofício n.º..., de 30 de Outubro de 2014, os Requerentes foram notificados das correcções resultantes da acção de inspecção, determinando uma mais-valia nos rendimentos da categoria G no montante de € 325.000,00, para o ano de 2011, tendo por base os fundamentos expressos no Relatório de Inspecção Tributária.
I) O Relatório de Inspecção Tributária, na parte relevante, refere o seguinte:
III.1.Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas
Em 08-07-2014 foi solicitado ao sujeito passivo, via ofício n.º..., essencialmente o seguinte:
Listagem, emitida pelo intermediário financeiro, de apuramento das mais-valias, com indicação de cada operação de alienação, da data e valor de aquisição dos valores alienados, da mais ou menos valia apurada por operação e do valor global das mais-valias, por intermediário financeiro;
I..., NIF:..., supervisora do gabinete de contabilidade da J..., respondeu em nome do sujeito passivo, via e-mail, anexando cópia da ata de 20-01-2011, da sociedade D..., Lda, NIPC:..., doravante EMPRESA, para justificar o valor de aquisição declarado e posteriormente remeteu, pela mesma via, cópia da escritura de cessão de quota, renuncia à gerência e alteração de pacto para justificar o valor de realização declarado.
Via telefone, a mesma, esclareceu que as menos valias declaradas pelo sujeito passivo no anexo G da DRM3 não correspondiam a alienação de ações, mas sim à venda da quota que este detinha na EMPRESA, no montante de 25.000,00€ e que o valor de aquisição que consta no campo 801, do quadro 8, do Anexo G - Alienação Onerosa de Partes Sociais e Outros Valores Mobiliário, no montante de € 1.450.000,00 corresponde ao valor da quota acrescido de € 1.425.000,00 de empréstimos concedidos a titulo de suprimentos, conforme consta da ata que anexou ao e-mail.
Em 08-09-2014, o TOC responsável da EMPRESA, E..., NIF..., contactou-nos para se inteirar das correções que propomos efectuar, tendo sido informado de que o valor de aquisição, quando este haja sido efectuado a título oneroso, deve respeitar o estipulado na alínea c) do n.º 1 do art.º 48.º do CIRS , que se transcreve.
"Tratando-se de quotas ou de outros valores mobiliários não cotados em bolsa de valores, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respectivo valor nominal
Neste sentido, em conformidade, com:
- O que consta da escritura de Cessão de quota, renuncia à gerência e alteração de pacto, celebrada em vinte de Maio de dois mil e onze e que se transcreve "Que os seus mandantes cedem pelo valor trezentos e cinquenta mil euros, a referida quota da dita sociedade, no valor nominal de vinte e cinco mil euros, e
- A parte final da alínea b) do n.º 1 do art.º 48.ºdo CIRS
O valor de aquisição que deveria constar do campo 801, do quadro 8 do Anexo G da DRM3 seria o valor nominal/custo da quota que o sujeito passivo detinha na EMPRESA, ou seja € 25.000.00.
Atendendo ao exposto propomos a elaboração de DECLARAÇÃO OFICIOSA I DC para corrigir o valor de aquisição declarado, pelo sujeito passivo, no campo 801, do quadro 8 - ALIENAÇÃO ONEROSA DE PARTES SOCIAIS E OUTROS VALORES MOBILIÁRIOS - Artigo 10.º , n.º 1, alínea b), do Código do IRS, do Anexo G da DRM3, no montante de €1.450.000,00 para € 25.000, conforme se explicita no quadro seguinte.
As correções propostas alteram o rendimento coletável declarado, no ano de 2011, em € 1.425.000,00.
J) Os sócios C... e A... realizaram suprimentos na sociedade no montante de € 2.850.000,00, que, por deliberação tomada na assembleia geral extraordinária de 20 de Janeiro de 2011, foram convertidos em prestações suplementares;
K) A sociedade comercial por quotas D..., Lda., notificada por despacho arbitral de 18 de Julho de 2020, na sequência do requerimento probatório apresentado pelos Requerentes, para juntar aos autos os documentos da sua contabilidade respeitantes a prestações suplementares realizadas em 2011, e, designadamente as contas 51 a 56 relativas ao exercício de 2011, e cópia da Ata n.º 11, exarada no seu Livro de Atas das Assembleias Gerais, não os apresentou nem prestou qualquer informação.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, na produção de prova testemunhal em audiência.
Factos não provados
Não há factos não provados que relevem para a decisão da causa.
Motivação da decisão sobre a matéria de facto
O tribunal apreciou livremente as provas segundo a sua convicção relativamente a cada facto, tomando especialmente em consideração o seguinte.
Na acta da assembleia geral extraordinária (acta n.º 11), realizada em 20 de Janeiro de 2011, faz-se referência aos suprimentos efectuados por ambos os sócios, que ascendiam a € 2.850.000,00, e que, por deliberação adoptada nessa assembleia geral, foram convertidos em prestações suplementares (documento n.º 6 anexo ao pedido arbitral).
No contrato promessa de cessão de quotas foi acordado, além do mais, que (a) no preço mais elevado que vier a ser proposto em envelope fechado para a aquisição da quota do outro sócio estão incluídos todos os direitos e obrigações inerentes à quota a transmitir, incluindo suprimentos, prestações suplementares, prestações acessórias e todos e quaisquer outros créditos sobre a sociedade, que ficam a pertencer ao adquirente da quota (alínea 5) da cláusula 3.ª); (b) com a cessão de quota e o pagamento do preço ficam prestadas todas as contas entre os outorgantes entre si como sócios e com a sociedade, nada mais podendo os sócios reciprocamente exigir ou reclamar um do outro, nem da sociedade (documento n.º 3 anexo ao pedido arbitral).
A testemunha E..., contabilista certificado da sociedade D..., Lda., à data dos factos, em audiência, referiu que em 2011 a empresa entrou numa situação de impasse por desentendimento entre os sócios. Os sócios tinham realizado suprimentos, que, na assembleia geral de 2011, foram transformados em prestações suplementares, tendo sido o deponente, na sua qualidade de contabilista, que efectuou o registo contabilístico. Acrescentou que o valor de € 350.000,00, fixado no contrato de cessão de quotas, abrangia todos os direitos e obrigações do sócio transmitente. Após a cessão de quotas, o antigo sócio A... deixou de ter acesso à documentação da empresa.
A instância do tribunal, o depoente declarou que, no âmbito do procedimento inspectivo, não foram solicitados quaisquer documentos e que a empresa, ainda hoje, se encontra em condições de apresentar os documentos relativos à constituição de prestações suplementares.
A testemunha K... afirmou que, em 2011, havia um desentendimento profundo entre os sócios o que determinou que se avançasse para a cessão de quotas. O preço da transmissão de quota não foi negociado por isso se tendo optado pela apresentação de proposta em envelope fechado. As prestações suplementares foram registadas na contabilidade e toda a documentação ficou na posse de sócio C... . Confirmou ainda que o preço de € 350.000,00 representava o valor da quota e as entradas de capital e todos os direitos que pertencessem ao cedente.
Todos estes elementos de prova firmaram no tribunal a convicção de que os sócios C... e A... tinham realizado suprimentos na sociedade no montante de € 2.850.000,00, que, na assembleia geral extraordinária de 20 de Janeiro de 2011, foram convertidos em prestações suplementares, e que o preço de € 350.000,00 atribuído para efeito da cessão de quota cobria o valor da quota, as entradas de capital a título de suprimentos e todos os demais direitos societários que integrassem a esfera do transmitente.
Releva ainda nesse sentido que os Requerentes tivessem apresentado requerimento probatório para notificação da sociedade D..., Lda., em vista à junção aos autos de documentos contabilísticos respeitantes a prestações suplementares, a que a sociedade não deu cumprimento.
Matéria de direito
5. A única questão em debate traduz-se em saber se a mais-valia a apurar por efeito da alienação onerosa de partes sociais, nos termos previstos nos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), e 48.º, alínea b), do Código do IRS, deverá ter por base, como valor de aquisição, o valor nominal da quota adquirida pelo Requerente marido, no montante de € 25.000,00, ou esse montante deverá ser acrescido da meação dos suprimentos realizados pelos sócios, entretanto transformados em prestações suplementares, no montante de € 1425.000,00.
As referidas disposições legais, na parte que mais interessa considerar, estatuem nos seguintes termos:
Artigo 10.º
Mais-valias
1 - Constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de:
[…]
b) Alienação onerosa de partes sociais e de outros valores mobiliários, incluindo:
1)A remição e amortização com redução de capital de partes sociais;
2)A extinção ou entrega de partes sociais das sociedades fundidas, cindidas ou adquiridas no âmbito de operações de fusão, cisão ou permuta de partes sociais;
3)O valor atribuído em resultado da partilha, bem como em resultado da liquidação, revogação ou extinção de estruturas fiduciárias aos sujeitos passivos que as constituíram, nos termos dos artigos 81.º e 82.º do Código do IRC;
[…].
Artigo 48.º
Valor de aquisição a título oneroso de partes sociais e de outros valores mobiliários
No caso da alínea b) do n.º 1 do artigo 10.º, o valor de aquisição, quando esta haja sido efetuada a título oneroso, é o seguinte:
[…]
b) Tratando-se de quotas, outras partes sociais, warrants autónomos, certificados referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 10.º ou de outros valores mobiliários não cotados em mercado regulamentado, o custo documentalmente provado ou, na sua falta, o respetivo valor nominal;
[…]
Como resulta da matéria de facto dada como assente, o Requerente marido e C... constituíram uma sociedade comercial por quotas, com o capital social de € 50.000,00, correspondente a duas quotas iguais no valor nominal de € 25.000,00.
Entretanto, tinham sido realizados suprimentos por ambos os sócios, no valor de € 2.850.000,00, que, por deliberação adoptada em assembleia geral, foram transformados, por incorporação, em prestações suplementares.
Em 2011, o Requerente marido cedeu a C..., pelo valor de € 350.000,00, a quota que detinha na sociedade no valor nominal de € 25.000,00.
A título de alienação onerosa de partes sociais, na declaração de rendimentos de IRS referente ao ano de 2011, os Requerentes haviam inscrito, como valor de realização, o montante de € 350.000,00, e, como valor de aquisição, o montante de € 1450.000,00, correspondente ao valor nominal da quota que fora objecto de cessão (€ 25.000,00) acrescido da meação das prestações suplementares (€ 1.425.000,00), no montante global de € 1450.000,00.
No âmbito do procedimento inspectivo, o Relatório de Inspecção Tributária, invocando o disposto no artigo 48.º, n.º 1, alínea b), parte final, do Código do IRS, limita-se a referir que o consta da escritura de cessão de quotas é que o Requerente marido cedeu, pelo valor de € 350.000,00, a quota que detinha na sociedade, no valor nominal de € 25.000,00, daí concluindo que havia lugar à correcção do valor de aquisição do montante de € 1450.000,00 para € 25.000,00.
Os elementos dos autos, no entanto, apontam no sentido de terem sido constituídos suprimentos pelos sócios que ascenderam a € 2.850,000,00, e que, por deliberação dos sócios em assembleia geral, foram transformados em prestações suplementares. Por outro lado, no contrato promessa de cessão de quota ficou exarado na cláusula 3.ª, que, no preço de aquisição da quota, "estão incluídos todos os direitos e obrigações inerentes à quota a transmitir, incluindo suprimentos, prestações suplementares, prestações acessórias e quaisquer outros créditos sobre a sociedade, que ficam a pertencer ao adquirente da quota” (alínea 5), e que com o pagamento do preço da quota “ficam prestadas todas as contas entre si, como sócios, e com a sociedade e desta com eles, nada mais os sócios podendo reciprocamente exigir ou reclamar um do outro, nem da sociedade” (alínea 7).
6. Como é sabido, os suprimentos são considerados como verdadeiros empréstimos ou mútuos feitos à sociedade, ou, pelo menos, negócios jurídicos a eles equiparáveis, a que são aplicáveis as regras correspondentes (acórdão do STJ de 26 de outubro de 2010, Processo n.º 357/1999). É, no fundo, um financiamento sob a forma de empréstimo com características e regime próprios, e, ainda que possa ser tido como um contrato nominado e autónomo, nele concorrem elementos comuns ao contrato de mútuo e à finalidade social da prestação: o sócio contrata por ser sócio e pode ser compensado através dos lucros distribuídos ou através da valorização da quota (acórdãos do STJ de 3 de outubro de 2002, Processo n.º 03-A526, de 13 de outubro de 2011, Processo n.º 5356/07, e de 31 de outubro de 2017, Processo n.º 1374/12).
Por sua vez, as prestações suplementares encontram-se caracterizadas nos artigos 209.º a 213.º do Código das Sociedades Comerciais.
Se o contrato de sociedade assim o permitir, podem os sócios deliberar que lhes sejam exigidas prestações suplementares, fixando o contrato o montante global das prestações suplementares, os sócios que ficam obrigados a efectuar tais prestações e o critério de repartição das prestações suplementares entre os sócios a elas obrigados (artigo 210.º).
O que poderá dizer-se é que as prestações suplementares são entradas em dinheiro com vista a reforçar o património da sociedade, correspondendo a um reforço monetário que acresce ao capital, embora se não enquadrem na estrita acepção do capital, nem se encontrem subordinadas ao respectivo regime jurídico.
As prestações suplementares constituem assim um possível meio de financiamento das sociedades por quotas e, embora sejam tidas, à face do Plano Oficial de Contabilidade, como uma modalidade de capital próprio – tal como o capital social – têm uma natureza económica e jurídica diversa do capital social. Por um lado, os sócios poderão reaver as prestações suplementares dentro do condicionalismo do artigo 213.º do CSC, ao passo que a redução do capital social para libertação a favor dos sócios do que exceder as necessidades da sociedade está sujeito a requisitos mais exigentes, mormente por via da prévia autorização judicial, registo e publicação da deliberação social e formalização por escritura pública (artigos 85.º, n.º 1, e 95.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CSC). Por outro lado, a participação social, nas suas diferentes designações de parte, quota ou acção para os diversos tipos societários, constituindo uma fracção do capital social, representa a posição jurídica do sócio, com os correspondentes direitos e obrigações de índole geral e associativa, como seja o direito de quinhoar nos lucros, de participar nas deliberações sociais, de obter informações respeitantes à actividade social e de ser designado para os órgãos sociais e também a obrigação de entrada e participar nas perdas (sobre todos estes aspectos, cfr. PINTO FURTADO, Curso do Direito das Sociedades, 4.ª edição, Coimbra, págs. 219 e 320-321; COUTINHO DE ABREU, Curso de Direito Comercial, vol II, 6.ª edição, Coimbra, págs. 215 e 313 a 317; Rui Pinto Duarte, “Suprimentos, Prestações Acessórias e Prestações Suplementares – notas e questões”, in Problemas do Direito das Sociedades, Coimbra, págs. 275 a 277).
Na situação do caso, os suprimentos efectuados pelos sócios foram convertidos em prestações suplementares, passando a integrar o capital próprio da sociedade. E tendo os sócios acordado que a cessão de quota abrangia todos os direitos inerentes, incluindo as prestações suplementares, haverá de entender-se que o Requerente marido, ao ceder a quota na sociedade pelo valor de € 350.000,00, transmitiu a sua posição jurídica societária englobando a quota no valor nominal de € 25.000,00 e o capital próprio para havia contribuído mediante as prestações suplementares correspondendo a metade do valor global das prestações suplementares realizadas (€ 1.425.000,00).
Não se vê motivo, neste contexto, para reduzir o valor da aquisição para efeito do apuramento da mais-valia, ao valor nominal da quota, quando houve o propósito, mediante a cessão de quota, de transmitir a integralidade dos direitos do sócio e não só a quota, no seu valor nominal, mas as entradas em dinheiro que se destinaram a reforçar o capital da sociedade e que não chegaram a ser o objecto de reembolso.
Poderá dizer-se que as prestações suplementares se não encontram comprovadas contabilisticamente.
Mas importa ter presente que os impugnantes, na petição inicial, invocando não ter acesso a documentos que se encontrem na posse de terceiros, apresentaram um requerimento probatório em vista à notificação da sociedade D..., Lda. para juntar aos autos os documentos da sua contabilidade respeitantes a prestações suplementares realizadas em 2011, e, designadamente as contas 51 a 56 relativas ao exercício de 2011, e cópia da Acta n.º 11, exarada no seu Livro de Atas das Assembleias Gerais.
A notificação foi determinada, no âmbito da instrução do processo, por despacho arbitral de 18 de Julho de 2020, que não foi cumprida pelo destinatário.
A requisição de documentos em poder terceiro, admitida pelo artigo 432.º do CPC, constitui uma decorrência do dever de cooperação para a descoberta da verdade consagrado no artigo 417.º do mesmo Código e que recai sobre quaisquer pessoas, independentemente de serem ou não parte na causa, e a recusa pode originar a apreensão do documento, a condenação do notificado em multa ou a aplicação de outros meios de coacção (artigos 417.º, n.º 2, e 433.º).
Não dispondo o tribunal arbitral de poderes de execução próprios, não pode utilizar os meios coercitivos legalmente previstos para impor o cumprimento do despacho de requisição de documentos.
Em todo o caso, não é imputável aos Requerentes a impossibilidade de se fazer prova do registo contabilístico das prestações suplementares.
7. Acresce que a Autoridade Tributária, no âmbito do procedimento inspectivo, como ressalta do Relatório, limitou-se a solicitar ao sujeito passivo uma listagem de apuramento das mais-valias, com indicação de cada operação de alienação, da data e valor de aquisição dos valores alienados, da mais ou menos valia apurada por operação e do valor global das mais-valias.
Em resposta, o gabinete de contabilidade remeteu cópia da acta da assembleia geral da sociedade D..., Lda., de 20 de Janeiro de 2011, da escritura de cessão de quota, e informou que o valor de aquisição, para efeito do apuramento de mais-valias, corresponde ao valor da quota acrescido de € 1.425.000,00 de empréstimos concedidos a título de suprimentos.
Não obstante, a Autoridade Tributária não realizou quaisquer diligências instrutórias tendentes a averiguar a existência dos suprimentos ou de prestações suplementares, a que se fazia referência a acta, e determinou a correcção do rendimento coletável declarado, no ano de 2011, em € 1.425.000,00, apenas com base no entendimento de que o valor da aquisição corresponde ao valor nominal da quota.
A Administração Tributária está vinculada, ao nível do procedimento, ao princípio da verdade material, pelo qual lhe cabe o poder-dever de realizar todas as diligências que entenda serem úteis para a descoberta da verdade.
Um afloramento deste princípio surge no artigo 58.º da LGT, onde se refere que “a administração tributária deve, no procedimento, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido”. Mas consta também do artigo 6.º do RCPITA onde se diz que “o procedimento de inspecção visa a descoberta da verdade material, devendo a administração tributária adotar oficiosamente as iniciativas adequadas a esse objectivo”.
Podemos então defender que “no âmbito do procedimento tributário está consagrado o princípio da verdade material, que alguns reconduzem à menção ´justiça`, do qual resulta que o objectivo fundamental de toda a actuação no procedimento tributário é o da prossecução do interesse público, de acordo com o princípio da legalidade, apenas alcançável com uma avaliação não meramente formal dos factos. (SERENA CABRITA NETO/ CARLA CASTELO TRINDADE, Contencioso Tributário, vol. I , Coimbra, 2017, págs. 144-145).
Importa ainda reter que os órgãos da Administração Pública estão sujeitos a um princípio de colaboração, e, como tal, “devem actuar em estreita colaboração com os particulares, cumprindo-lhes, designadamente, prestar aos particulares as informações e os esclarecimentos de que careçam, apoiar e estimular as suas iniciativas e receber as suas sugestões e informações (artigo 11.º, n.º 1, do CPA). Princípio esse igualmente consagrado nos artigos 59.º da LGT e 48.º do CPPT.
No caso vertente, os serviços inspectivos omitiram quaisquer diligências que permitissem verificar a existência de suprimentos ou prestações suplementares, apesar da informação prestada pelo contribuinte e dos documentos juntos que lhe fazem menção. Isso, não obstante os serviços inspectivos poderem alargar o procedimento de inspecção ou obter a colaboração da sociedade D..., Lda. em vista à comprovação dos factos que pudessem relevar para o apuramento da mais-valia.
Na ausência de diligências instrutórias por iniciativa oficiosa da Administração e em face da impossibilidade do contribuinte obter elementos de informação que se encontravam na posse de uma terceira entidade, não é exigível que a prova documental da existência das prestações suplementares se centre unicamente na contabilidade ou escrita da sociedade em que o Requerente detinha a quota que foi objecto de cessão.
Dito de outro modo, a situação fiscal do contribuinte não pode ser agravada pelo facto de não lhe ser possível apresentar uma prova documental específica a que não pode ter acesso, quando a Autoridade Tributária se absteve de obter essa mesma prova pelos seus próprios meios.
Cabe referir, por outro lado, que a livre apreciação das provas apenas não abrange os factos cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (artigo 607.º do CPC).
Neste contexto, nada obsta a que o tribunal arbitral possa firmar a sua convicção quanto à factualidade a atender com base nos elementos de prova coligidos no processo, incluindo a prova documental, independentemente de não ter sido possível recorrer a registos contabilísticos.
E, nesse sentido, o tribunal considerou como assente que o Requerente marido, enquanto sócio da D..., Lda., efectuou suprimentos no valor de € 1.425.000,00, depois convertidos em prestações suplementares, e, em consequência, esse valor integra, juntamente com o valor nominal da quota, o custo documentalmente provado da sua posição societária, devendo ser considerado como valor de aquisição, para efeitos do apuramento da mais-valia nos termos das disposições conjugadas dos artigos 10.º, n.º 1, alínea b), e 48.º, alínea b), do Código do IRS.
Nestes termos, a correcção efectuada pela Autoridade Tributária, desconsiderando para o cálculo da mais-valia resultante da cessão de quota o valor das prestações suplementares realizadas, é ilegal e não pode manter-se na ordem jurídica.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
8. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do ato de liquidação de IRS, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido arbitral e anular a liquidação adicional de IRS n.º 2014 ... e a correspondente nota de compensação n.º 2014 ..., respeitantes ao exercício de 2011, no montante global de € 83.394,35;
b) Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 83.394,35, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Notifique.
Lisboa, 18 de Novembro de 2020
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Jesuíno Alcântara Martins
O Árbitro vogal
José Rodrigo de Castro