Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 51/2020-T
Data da decisão: 2020-11-30  ISV  
Valor do pedido: € 38.311,17
Tema: ISV – Admissão de veículo usado – prazo do pedido de anulação da DAV.
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DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 28 de janeiro de 2020, a sociedade A..., Lda., contribuinte n.º..., com sede na ..., n.º..., ...-... AVEIRO, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto sobre veículos (ISV) n.º 2019/... e juros compensatórios, no valor total de €38.311,17.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido a Requerente, alega, em síntese, em primeiro lugar, a anulação da liquidação ora impugnada por alegada tempestividade do pedido que havia formulado junto da AT de destruição total do veículo ou a sua transformação em sucata; subsidiariamente, a ilegalidade do artigo 11.º do Código do Imposto sobre os Veículos (CISV), norma que sustenta a liquidação, por violação do artigo 110.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (UE).

 

3.            Em reposta ao solicitado, a Autoridade Tributária e Aduaneira alega, em síntese:

 

(i)           Após o prazo de três anos em que o veículo permaneceu em suspensão de imposto, verificou-se uma introdução ilegal no consumo, ocorrendo o facto gerador de imposto; por outro lado, nos termos do n.º 4 do artigo 21.º do CISV, não há lugar a anulação da DAV quando a Direção Geral das Alfândegas tenha informado previamente o interessado que iria proceder a uma inspeção do veículo ou da documentação apresentada.

(ii)          Acrescenta ainda que a liquidação do ato impugnado foi feita de acordo com o direito nacional e comunitário, pelo que não enferma de qualquer vício, devendo manter-se na ordem jurídica a liquidação impugnada.

 

4.            No dia 28-01-2020, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

5.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

6.            Em 16-03-2020, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro.

 

7.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 07-10-2019.

 

8.            Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes.

 

10.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação do mérito da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir decisão.

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            Em 11 de janeiro de 2016, foi apresentada na Alfândega de Aveiro a Declaração Aduaneira de Veículos (DAV) n.º 2016/..., para introdução no consumo do veículo ligeiro de passageiros, usado, da marca ..., modelo ..., movido a gasóleo, com o quadro n.º...;

2-            A referida DAV foi processada em nome da Requerente enquanto adquirente e na qualidade de titular do estatuto de Operador Reconhecido, a que se refere o artigo 15.º do CISV;

3-            Nessa qualidade, o veículo permaneceu, nos termos do n.º 2 do artigo 19.º, em suspensão pelo período de três anos;

4-            Em 29 de janeiro de 2019, a Requerente formulou o pedido de anulação da DAV n.º 2016/..., ao abrigo do previsto no artigo 21.º do CISV, tendo em vista a sua destruição ou transformação em sucata;

5-            Em 14/05/2019, a ora Requerente foi sujeita à ação de fiscalização OI2019..., tendo sido indeferido o pedido de anulação, por extemporâneo, e liquidado o ISV ora impugnado no valor de € 37.566,02 de ISV, a que acresce € 745,15 de juros compensatórios.

 

A.2. Factos dados como não provados

Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

B. DO DIREITO

 

A título principal, a Requerente considera que apresentou, em tempo, o pedido de anulação da DAV porque, de acordo com a al. d) do n.º 3 do artigo 21.º do CISV, a DAV pode ser anulada com fundamento em destruição total, devida a caso fortuito ou de força maior ou transformação do veículo em sucata sob controlo aduaneiro, livre de ónus ou encargos de qualquer natureza para o erário público, antes de pago ou garantido o imposto. Tendo o facto gerador de imposto ocorrido após o termo em 11/01/2019 do prazo de três anos de suspensão, o pedido de anulação da DAV foi pedido de anulação foi apresentado antes de terminar o prazo de 20 dias úteis, previstos no n.º 1 do artigo 19.º.

Ademais, não deve prevalecer o alegado quanto à inspeção porque esta ocorreu após a apresentação do pedido de anulação da DAV.

 

Em sentido contrário, a Requerida defende que tal deveria ter sido requerido no decorrer do período de suspensão do imposto já que ocorrido o termo final do prazo para apuramento de regime não se reinicia um novo prazo de 20 dias úteis para a apresentação de nova DAV. Por outro lado, a realização da inspeção afasta a possibilidade de anulação da DAV com o fundamento previsto na al. a) do n.º 3 do artigo 21.º do CISV.

 

Vejamos.

 

O artigo 21.º do CISV, com a epigrafe “Registo e anulação das declarações”, estabelece que:

“1 – As alfândegas devem proceder ao registo numérico da DAV na data da sua apresentação ou, quando tal se revele impossível, no dia útil seguinte.

2 — Pode haver lugar a anulação da DAV já registada antes de pago ou garantido o imposto, a pedido do interessado, quando se comprove que um veículo foi erradamente declarado para um determinado regime fiscal ou que, na sequência de circunstâncias especiais, deixou de se justificar a sujeição a esse regime.

3 – A DAV apresentada por operadores registados e reconhecidos pode ser anulada antes de pago ou garantido o imposto com os seguintes fundamentos:

a) exportação, comprovada por documento administrativo único com carimbo de saída efetiva, ou expedição, comprovada por declaração de expedição;

b) afetação ao regime de admissão temporária por venda a missões diplomáticas e consulares de carreiras acreditadas em Portugal e respetivos funcionários;

b) afetação ao regime de admissão temporária por venda a missões diplomáticas e consulares de carreiras acreditadas em Portugal e respetivos funcionários;

c) venda do veículo a pessoa que transfira a sua residência habitual de Portugal para outro país, com atribuição de matrícula de expedição ou exportação;

d) destruição total, devida a caso fortuito ou de força maior, ou transformação do veículo em sucata sob controlo aduaneiro, livre de ónus ou encargos de qualquer natureza para o erário público;

e) abandono a favor da fazenda pública, livre de ónus ou encargos de qualquer natureza para o erário público, ou declaração de perda do veículo proferida por autoridade judicial ou administrativa;

f) furto ou roubo do veículo, devidamente participado às autoridades policiais, sem que o automóvel tenha sido encontrado e restituído ao seu proprietário no prazo de seis meses, e desde que se comprove o cancelamento da matrícula;

g) declaração indevida por duplicação da DAV.

4 – Não há lugar à anulação da DAV quando a Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo tenha previamente informado o interessado da intenção de proceder a uma inspeção do veículo ou da documentação apresentada, ou depois de lhe ter sido atribuída matrícula nacional.

5 – A anulação da DAV previamente registada não prejudica a responsabilização penal ou contraordenacional pela prática de infrações tributárias.

6 – No caso de ter sido apresentado um pedido de benefício fiscal e de o mesmo ter sido indeferido, o interessado é notificado para, no prazo de 30 dias, solicitar a anulação da DAV e declarar o destino que pretende dar ao veículo, sob pena de introdução ilegal no consumo.”

 

O artigo 19.º, com a epigrafe “Introdução no consumo por operadores reconhecidos”, estabelece ainda o seguinte,

“1 - Os operadores reconhecidos estão obrigados à apresentação da DAV no prazo máximo de 20 dias úteis após a ocorrência do facto gerador do imposto.

2 - Apresentada a DAV pelos operadores reconhecidos, os veículos tributáveis permanecem em suspensão de imposto pelo período máximo de três anos, termo até ao qual deve ser apresentado o pedido de introdução no consumo ou realizada a expedição, exportação ou sujeição dos veículos a outro regime fiscal de apuramento do regime suspensivo, considerando-se, de outro modo, haver introdução ilegal no consumo.

3.(…)

4.(…)”

 

 Do disposto no artigo 21.º, n.º 3 resulta que a DAV apresentada por operadores registados e reconhecidos pode ser anulada antes de pago ou garantido o imposto, com os fundamentos previstos nas suas várias alíneas, desse que antes de pago ou garantido o imposto.

 

Ou seja, a única limitação “temporal” que resulta da lei é a de que a anulação tem que ser anterior à garantia e ao pagamento do imposto.

 

Por outro lado, no n.º 4 do artigo 21.º determina que a anulação está condicionada à não ocorrência prévia de qualquer das seguintes circunstâncias (i) a Direção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo ter previamente informado o interessado da intenção de proceder a uma inspeção do veículo ou da documentação apresentada; (ii) ter sido atribuída matrícula nacional ao veículo.

 

In casu, a Requerida invoca que o interessado foi objeto de uma inspeção do veículo ou da documentação apresentada, o que afasta a possibilidade de anulação da DAV com o fundamento previsto na alínea d) do n.º 3 do artigo 21.º.

 

Ora, da análise das disposições legais citadas, resulta, conforme decidido no Proc. 711/2019-T, que “o prazo previsto no art. 19º, nº 2, do CISV, é, manifestamente, inaplicável à transformação de veículos em sucata, uma vez que tal situação não é contemplada por este preceito legal, nem relativamente a esta situação, o art. 21º procede, explicita ou implicitamente, a qualquer remissão para aquela norma.

 

Nos termos do art. 19º, nº 2, do CISV, a consequência da não apresentação do  pedido de introdução no consumo ou realizada a expedição, exportação ou sujeição dos veículos a outro regime fiscal de apuramento do regime suspensivo,  até ao termo dos três anos legalmente previstos será a de se considerar ter ocorrido “introdução ilegal no consumo”, prevendo-se, por sua vez, no art. 109º, nº 3, al. a),  do RGIT, coima de € 250 a € 165 000 a quem “Introduzir no consumo, expedir, utilizar ou mantiver a posse de veículos tributáveis, sem o cumprimento das obrigações prescritas por lei;”.

 

Assim,  as consequências jurídicas  do incumprimento do prazo previsto no art. 19º, nº 2, do CISV são, por um lado, o ter-se como verificado o facto gerador do imposto à luz desta norma e do nº 2, do art. 5º do Código que dispõe que “(…) quando à entrada em território nacional os veículos tributáveis forem colocados em regime de suspensão de imposto, considera-se gerado o imposto no momento em que se produza a sua saída desse regime” e, por outro lado, a eventual   responsabilidade contraordenacional, nos termos do art. 109º, nº 3, al. a),  do RGIT.

 

Mas, o art. 21º do CISV, não prevê, como consequência do não cumprimento do prazo previsto no art. 19º, nº 2, a impossibilidade de anulação da DAV inicialmente apresentada.

 

Diferentemente, distinguindo o plano da relação jurídica de imposto e o plano sancionatório estabelece   o nº 5 do artigo 21º que “A anulação da DAV previamente registada não prejudica a responsabilização penal ou contraordenacional pela prática de infrações tributárias”.

 

Quanto ao segundo argumento apresentado pela Requerida, nos termos do n.º 4 do artigo 21.º, não há lugar à anulação quando o interessado tenha sido previamente (nosso sublinhado) informado da intenção de proceder a uma inspeção do veículo ou da documentação. No caso, o pedido de anulação da DAV foi apresentado em 28 de janeiro de 2019 e a ordem de serviço da inspeção foi despachada pelo Sr. Diretor da Alfândega do Porto em 14 de maio de 2019, alguns meses mais tarde. Com resulta expressamente da lei, não tendo sido notificado da inspeção antes de requerer a anulação da DAV, a limitação prevista no n.º 4 do artigo 21.º não lhe é aplicável.

 

Em conclusão, o pedido de anulação da DAV foi apresentado antes de pago ou exigido o imposto (artigo 21.º, n.º 3, al. d)) e previamente à notificação da inspeção do veículo, pelo que é legítima e está em tempo.

 

Assim, o ato de liquidação impugnado padece do vício de violação da lei, não podendo deixar de ser anulado ficando, em consequência, prejudicada a apreciação dos demais vícios alegados conducentes à anulação parcial dos atos tributários impugnados.

 

*

C. DECISÃO

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência, determinar a anulação da liquidação de ISV e juros compensatórios identificados no pedido arbitral.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 38.311,17, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi integralmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de novembro de 2020

 

O Árbitro

(Amândio Silva)