SUMÁRIO:
A fundamentação do ato tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de ato e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do ato para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do ato decidiu num certo sentido e não de forma diferente.
DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)
O árbitro singular, Luís Ricardo Farinha Sequeira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante apenas ‘CAAD’) para constituir o presente Tribunal Arbitral (TA) singular, no âmbito do qual se decide o seguinte
I – Relatório
A..., NIF ... e B..., NIF ...(adiante, respetivamente, designados por ‘Requerentes’, casados e com residência na Rua ..., ..., ...-..., ..., vêm requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea b), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do acto de liquidação adicional de IRS do ano de 2017, com o n.º 2019... (2019-06-08), da Demonstração de Liquidação de Juros Compensatórios n.º 2019..., as quais constituem o objeto destes autos e a respetiva Demonstração de Acerto de Contas com o Id. de documento 2019..., com o saldo apurado a pagar de € 5.291,83 peticionando os Requerentes ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
Os Requerentes fundamentam a ilegalidade do ato tributário, assente na existência de falta de fundamentação, preterição ilegal de audição prévia; insuficiência da notificação e alteração do objeto de imputação das correções, dado que as correções comunicadas não correspondem aos factos novos da liquidação adicional emitida e bem assim o facto de se imputar tributação autónoma a um sujeito passivo enquadrado no Regime Simplificado de tributação em sede de IRS, o que constitui violação do disposto no artigo 28º do CIRS.
A Requerida, notificada do teor do Pedido de Pronúncia Arbitral, veio a revogar parcialmente o ato tributário, no segmento respeitante ao facto de não ter sido considerado no ato tributário objeto de impugnação arbitral, os valores de aquisição referentes a obrigações alienadas e objeto de mais-valias.
Os Requerentes informaram que mantinham interesse no prosseguimento dos autos, não obstante a aludida revogação parcial.
Em sede de Resposta, veio a Requerida, em síntese, a refutar as apontadas ilegalidades do ato tributário, quer de índole formal, quer substantivamente, no que à qualificação e quantificação do ato tributário diz respeito, requerendo a final, a improcedência total do pedido.
No seguimento do processo, não houve lugar à reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, tendo Requerentes e Requerida procedido a alegações por escrito, nas quais mantiveram as posições anteriormente manifestadas.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o ora signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral singular foi constituído em 7 de Janeiro de 2020.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
II – Saneamento:
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.
Cabe apreciar e decidir.
III - Fundamentação
1. Matéria de facto
1.a) Factos Provados
Analisada a prova documental produzida, o posicionamento das partes face à factualidade trazida a estes autos, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
1. Os Requerentes apresentaram declaração Modelo 3 de IRS, referente aos rendimentos do ano de 2017.
2. Da referida declaração resultou a emissão da liquidação de IRS com o n.º 2018..., com o valor a pagar de € 13.810,12, a qual veio a ser paga pelos Requerentes em 31.08.2018.
3. Da versada liquidação, constava na linha 17 referente a “Imposto relativo a tributações autónomas”, um valor de € 0,00 (zero euros e cêntimos).
4. Por ofício datado de 03.06.2019, emanado do Serviço de Finanças de Sintra-..., com a referência GI-..., tomaram os Requerentes conhecimento do seguinte:
5. Os Requerentes foram notificados da liquidação adicional de IRS do ano de 2017 n.º 2019...,
da Demonstração de Liquidação de Juros compensatórios n.º 2019 ... e da respetiva Demonstração de Acerto de Contas com o Id. de documento 2019..., com o saldo apurado a pagar de € 5.291,83.
6. Os Requerentes procederam ao pagamento do montante relativo ao saldo apurado pela Requerida na Demonstração de Acerto de Contas, a que se refere o número anterior.
7. Os Requerentes requereram junto do Serviço de Finanças de Sintra-... a emissão de certidão para efeitos do artigo 37º do CPPT, da qual constasse a fundamentação dos acréscimos que estiveram na base da emissão da liquidação adicional a que se refere o ponto 4., nomeadamente no que respeito ao acréscimo do montante de € 4.288,48 a título de tributação autónoma.
8. Tal pedido veio a ser indeferido pela Chefe do Serviço de Finanças de Sintra-..., conforme ofício n.º..., de 01.08.2019, através de despacho com o seguinte teor:
“Analisado o peticionado e porque a fundamentação subjacente à liquidação de IRS n.º 2019... foi notificada aos Requerentes através de comunicação GI-... de 2019/06/03, recebida em 2019/06/21, indefiro o peticionado.”
9. Em 15 de Outubro de 2019, os Requerentes submeteram Pedido de Pronúncia Arbitral, tendo pago a respetiva taxa de justiça inicial.
10. Na sequência de tal pedido e após notificação da Requerida, através de Despacho proferido no âmbito da informação 1425/19, da Direção de Serviços do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, veio aquela a revogar parcialmente o ato tributário de liquidação objeto destes autos, revogação essa que se consubstanciou na consideração dos valores de aquisição das obrigações objeto de tributação em sede de categoria G, os quais não haviam sido relevados na liquidação arbitralmente impugnada.
11. Notificados os Requerentes do teor desta revogação parcial, vieram estes manifestar o seu interesse no prosseguimento da presente lide.
1.b) Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão que não se tenham provado.
1.c) Motivação da matéria de facto
Os factos provados integram matéria não contestada, documentalmente demonstrada nos autos e bem assim o posicionamento das partes relativamente ao mesmo.
2. Matéria de direito
2.a) Questões a Decidir:
Constituem questões a decidir através da presente decisão arbitral, a invocada falta de fundamentação, a preterição de audição prévia; insuficiência da notificação e alteração do objeto de imputação das correções e bem assim o facto de se imputar tributação autónoma a um sujeito passivo enquadrado no Regime Simplificado de tributação em sede de IRS, constituir violação do disposto no artigo 28º do CIRS.
2.b) Falta de fundamentação
Os Requerentes invocam a violação do dever de fundamentação, alegando nada ter sido mencionado em matéria de fundamentação e, muito menos, alguma vez ter a Autoridade Tributária feito qualquer menção relativamente à existência de tributação autónoma.
O direito à fundamentação dos actos administrativos, de que os actos de liquidação são um tipo especial, tem suporte no artigo 268.º, n.º 3, da CRP, que estabelece que «os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos».
A este respeito, importa, pelo exposto, ter presente o disposto no artigo 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas igualmente o preceituado no artigo 77.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária (LGT).
O artigo 268.º, n.º 3, da CRP estabelece que “os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmente protegidos”.
Sendo que, o artigo 77.º, n.º 1, da LGT prevê que a “(…) decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.
Como propugnam e aqui se acompanha, em anotação ao artigo 77.º da LGT, Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa: “Como o STA vem entendendo, a exigência legal e constitucional de fundamentação visa, primacialmente, permitir aos interessados o conhecimento das razões que levaram a autoridade administrativa a agir, por forma a possibilitar-lhes uma opção consciente entre a aceitação da legalidade do acto e a sua impugnação contenciosa. Para ser atingido tal objectivo a fundamentação deve proporcionar ao destinatário do acto a reconstituição do itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pela autoridade que praticou o acto, de forma a poder saber-se claramente as razões por que decidiu da forma que decidiu e não de forma diferente.” (vd., Lei Geral Tributária. Anotada e Comentada, 4.ª ed., Lisboa, Encontro da Escrita Editora, 2012, pp. 675).
O artigo 77.º da LGT concretiza o conteúdo da fundamentação dos actos tributários estabelecendo, além do mais, que «a fundamentação dos actos tributários pode ser efectuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo».
O Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a entender uniformemente que a fundamentação do acto administrativo ou tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, mas que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu como decidiu e não de forma diferente, de forma a poder desencadear dos mecanismos administrativos ou contenciosos de impugnação.
No específico caso dos actos tributários, trata-se das decisões que são tomadas no âmbito de procedimentos tributários, constituídos por uma «sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários», designadamente os arrolados nos artigos 54.º, n.º 1, da LGT e 44.º do CPPT.
Como é entendimento jurisprudencial corrente, a fundamentação do acto tributário é um conceito relativo que varia conforme o tipo de acto e as circunstâncias do caso concreto, sendo que a fundamentação é suficiente quando permite a um destinatário normal aperceber-se do itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo autor do acto para proferir a decisão, isto é, quando aquele possa conhecer as razões por que o autor do acto decidiu num certo sentido e não de forma diferente.
Isso mesmo se colhe do entendimento reiterado do STA nesta matéria e de que a decisão de 11.11.1998, no âmbito do processo n.º 31339 é exemplo quanto a tal entendimento“(…) o dever de fundamentação exige que um destinatário normal, colocado na posição do recorrente, face ao teor expresso do acto, possa apreender o percurso lógico-jurídico trilhado pela autoridade recorrida para chegar a tal decisão, por forma a poder determinar-se, conscientemente, no sentido da impugnação ou não impugnação.”
A fundamentação deve consistir, por isso, numa exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão.
As razões de facto e os fundamentos de direito da decisão devem ser percetíveis, claras e congruentes para o sujeito passivo.
Resulta assim de primacial exigência que ao sujeito passivo seja dada a possibilidade de alcançar e perceber as razões subjacentes a essa mesma decisão, para que sobre a mesma possa estar apto a permitir, em tese, formular um juízo sobre o seu mérito e não que a decisão não é uma pura demonstração de arbítrio ou de discricionariedade.
Assim, perante um ato tributário concreto a fundamentação exigível é aquela que se revele necessária (suficiente) e adequada para um contribuinte normal, com um conhecimento comum e normalmente diligente, compreender o percurso lógico-jurídico trilhado pela Autoridade Tributária e Aduaneira para chegar a tal decisão .
No caso destes autos, impõe-se constatar que a Autoridade Tributária e Aduaneira se limitou, em matéria de fundamentação do procedimento, a esquematicamente enunciar os NIF’s dos sujeitos passivos visados, os campos dos anexos da declaração Modelo 3 e os respetivos valores inicialmente dos mesmos constantes e aqueles que a Requerida entendia deverem constar, tudo conforme se colhe do teor do ponto 3 dos factos dados por provados.
Ou seja, a Requerida não aceitou os valores (ou a falta deles, isto é, a zeros) declarados pelos Requerentes nos respetivos campos por aquela mencionados, baseando-se no facto dos Requerentes não terem efetuado a demonstração dos elementos declarados, procedendo, nessa sequência, à alteração oficiosa do teor declarativo com montantes distintos.
Ora, independentemente do mérito ou falta dele relativamente à asserção da Requerida quanto à não comprovação pelos Requerentes dos elementos declarativos por estes declarados, o qual não é aqui objeto de apreciação, certo é que, não podia a Requerida, perante a decisão comunicada, deixar de proceder à fundamentação dos valores que, em substituição aos constantes da declaração apresentada pelos Requerentes, entendia terem de constar para efeitos de liquidação de IRS.
E, a esse propósito e respeito, a Requerida, nada referiu, como que impondo, por si mesmos e sem qualquer substrato de enunciação, a razão, a origem e a explicação para que devessem ser efetivamente tidos em consideração, afinal, os valores por esta decididos e não quaisquer outros.
Isto é, a decisão ocorrida em procedimento tributário, traduzida na alteração dos valores declarados pelos sujeitos passivos, por via de pretensa omissão de comprovação dos elementos declarativos não legitima a Requerida a dispensar, sem mais e em matéria de fundamentação, a explicitação da motivação que está na base dos novos valores que entende serem legalmente de relevar em declaração oficiosa e na subsequente liquidação de imposto.
Assim, impunha-se à Requerida dar a conhecer aos destinatários da correção oficiosa levada a efeito a enunciação do porquê ter entendido serem estes os valores (que constavam da sua decisão) que deveriam constar da declaração de rendimentos, uma vez que sem esta explicitação, não se afigura suficiente a um destinatário normal dentro do arquétipo do homem médio e bonus pater familiae compreender o porquê do percurso lógico trilhado.
E muito menos se mostra apta, dados os termos rarefeitos em que a decisão se encontra vertida, a formular um juízo quanto à conformidade legal ou não dos valores que a Requerida entende como corretos; porquê estes valores em concreto e não outros? Qual a base factual para o apuramento destes?
Ainda que sucintamente, estas eram questões que se impunham permitir dilucidar de uma decisão como aquela ora em apreciação, em ordem a se poder concluir por um juízo de suficiência quanto à fundamentação externalizada perante os seus destinatários
Releve-se que a Requerida, após notificada para a junção do processo administrativo relativo ao procedimento tributário a que a se reporta o ato tributário de liquidação objeto destes autos, a Requerida não procedeu à junção de qualquer documento de onde decorresse a externalização de motivação adicional e com relevância, quer de facto, quer de direito, para além da fundamentação já constante do teor da decisão comunicada pelo ofício GI-..., de 03.06.2019, tendo, de resto, o mesmo sucedido em matéria de Resposta.
Só se podendo colher de tal circunstância, aquilo que já decorre do teor da decisão da Sr.ª Chefe do Serviço de Finanças de Sintra-..., a qual, para efeito do indeferimento do pedido de certidão do artigo 37º do CPPT, expressamente refere que a fundamentação solicitada pelos Requerentes é aquela que consta da decisão do procedimento de Divergência, isto é, a que se colhe do ofício GI-... (cujo teor se encontra dado por provado – ponto 3), isto é, circunscrevendo, para efeitos de relevância em matéria de fundamentação, o acervo factual e jurídico constante do versado ofício.
Por outro lado, também em matéria de fundamentação de direito, o procedimento em causa se mostra aquém das exigências legais vindas de enunciar, uma vez que quer individualmente, quer da concatenação dos elementos documentais que redundaram, a final, na liquidação tributária objeto destes autos, não é possível descortinar uma explicitação jurídica que dê ao seu ou seus destinatários, a necessária informação apta à formulação de um juízo quanto à decisão tributária levada a efeito.
E tal decorre, in casu, não só da total ausência das razões jurídicas externalizadas na decisão a que vimos de nos reportar, como igualmente da, pelo menos, aparente incongruência resultante da leitura conjugada dessa mesma decisão do procedimento tributário e do ato tributário de liquidação, uma vez que, efetivamente, resulta, no mínimo, como plausível e pertinente esse mesmo juízo de incongruência.
Na verdade, a nota demonstrativa de liquidação tributária objeto destes autos na sua linha 17, referente a “Imposto relativo a tributações autónomas” faz menção de um valor de € 4.288,48, sendo que axiologicamente tal expressão nos faz reconduzir e remeter para as diversas “taxas de tributação autónoma” previstas no artigo 73º do CIRS, sendo certo que a montante dessa liquidação, nenhuma explicitação de direito existe que permita compreender juridicamente quanto ao enquadramento jurídico-tributário de tal cifra constante da linha 17.
Resulta pertinente, quanto mais não fosse para aferição da conformação ou não para com a atuação da Requerida, que esta pudesse explicitar se, efetivamente, havia sujeitado os valores corrigidos (ou parte deles) a taxas de tributação autónoma nos termos do artigo 73º do CIRS ou não, dando desta forma a conhecer o seu entorno jurídico-tributário (o que acabou por fazer, a posteriori), até porque, na primeira liquidação de IRS emitida, baseada em declaração entregue pelos Requerentes, tal campo 17 se mostrava sem qualquer montante preenchido (a zeros).
E tal correta compreensão sobre os fundamentos do decidido ficou prejudicada, justamente pela ausência de fundamentação jurídica a montante, o que, uma vez mais, legitima que um destinatário normal colocado ante uma sequência de atos externalizados numa liquidação, não consiga percecionar as razões pelas quais o imposto foi apurado naquele quantitativo e não noutro, dada a total omissão de enquadramento jurídico-tributário que, mesmo da leitura conjugada dos elementos documentais, resulta.
Importa realçar que não se olvida o entendimento que vem sendo sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo, o qual aqui se secunda, segundo o qual nos atos de liquidação de IRS, atenta a sua natureza de “processos de massa”, a fundamentação se possa efetivar de forma informatizada e padronizada, mas tal não pode, nem deve, eximir a Requerida de agir em conformidade com o propósito legislativo constante do artigo 77º da LGT e, de resto, com assento constitucional no n.º 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa, isto é, de dotar os destinatários dos seus atos do necessário conhecimento sobre as razões que a tal levaram e a poder formular um juízo de conformação ou não quanto à sua legalidade.
Ora, no caso vertente, os Requerentes tomaram a iniciativa de requerer certidão ao abrigo do artigo 37º do CPPT, na qual se solicitava informação que lhes permitisse alcançar as razões subjacentes àquele ato tributário de liquidação, considerando o contexto procedimental antecedente.
Se bem se entende o alcance teleológico do mecanismo consagrado pelo legislador através do artigo 37º do CPPT, o mesmo visa, por um lado, dotar os sujeitos passivos de um meio procedimental simples e célere de obter a clarificação ao nível de fundamentação que entendam estar omissa do ato tributário objeto desse mesmo expediente, para a partir daí formarem um entendimento esclarecido quanto a se conformarem ou não com tal decisão tributária.
E, por outro e cumulativamente, quer ao nível do procedimento antecedente, quer ao nível do ato tributário, até por se tratarem de “processos de massa”, em que potencialmente se podem verificar deficiências ao nível da fundamentação, evitar que questões tangentes à preterição de formalidades como as que tangem à fundamentação tenham de ser dirimidas em instância contenciosa, como acabou por suceder no caso destes autos, quando, efetivamente, poderiam ver-se, eventualmente e desde logo, sanadas graciosa e administrativamente.
De resto, é o reconhecimento sobre o facto de as liquidações constituírem “processos de massa”, isto é, padronizados, poderem, eventualmente e em função de cada caso em concreto, não estar conformes à exigência de fundamentação que tornou premente o erigir de um mecanismo garantístico como aquele que encontra consagração no artigo 37º do CPPT, enquanto mecanismo ou válvula de segurança que permite assegurar um equilíbrio entre tais exigências de fundamentação e a necessária celeridade que se impõe conferir a uma quantidade elevada de atos tributários de liquidação a processar pelo sujeito ativo da relação tributária, o que melhor se almeja de forma informatizada e com recurso a um modelo-tipo.
Em suma, a informatização padronizada de todos esses atos tributários não tem o virtuosismo de tornar de per se conformes ao dever legal de fundamentação todas essas liquidações “em massa” processadas, antes tendo tal aferição quanto à conformidade de tais atos com as exigências de fundamentação, de se efetuar através de análise e apreciação caso a caso, considerando o concreto contexto procedimental tributário a montante de cada uma dessas liquidações.
E é efetivamente neste contexto que o artigo 37º do CPPT adquire uma relevância primacial, porquanto não só é esse meio que confere o direito a obter as informações que o sujeito passivo entende serem devidas e essenciais para a compreensão de determinado ato tributário que lhe foi dirigido, como igualmente, o recurso a este mecanismo de garantia dos contribuintes se torna imprescindível para que, caso entenda não estarem reunidas tais exigências em matéria de fundamentação do ato tributário, possa invocar tal causa de pedir a jusante, quer em sede graciosa ou contenciosa.
Regressando ao caso dos autos, não obstante tal oportunidade e ensejo para a explicitação dos fundamentos em causa, a verdade é que a Autoridade Tributária e Aduaneira optou pelo indeferimento da certidão solicitada pelos Requerentes, limitando-se a remeter para a fundamentação já constante da decisão do procedimento de divergência, assim coartando a possibilidade de eventual sanação deste vício.
Destarte, também em matéria de fundamentação de direito, também o procedimento tributário e o consequente ato tributário de liquidação, não se mostram conformes aos ditames legais que uma fundamentação suficiente e congruente exigem.
Por outro lado, têm-se bem presentes as explicitações veiculadas pela Requerida após a submissão do Pedido de Pronúncia Arbitral , quer em sede de revogação parcial do ato tributário, quer de Resposta, no que à fundamentação do procedimento e respetivo ato de liquidação concerne, ponto assente sendo que, a exigência da fundamentação, além de lógica, clara, congruente e suficiente, tem ainda de ser contextual e contemporânea do ato, não relevando quando externalizada a posteriori , como acaba por suceder in casu.
Ante o exposto, não pode a argumentação propugnada pela Requerida merecer acolhimento, sob pena de subversão do quadro de vinculação constitucional e legal em vigor em matéria de fundamentação, quando resulta, inclusivamente, ter tido a oportunidade de sanar a versada falta de clareza, insuficiências e incongruências ao nível da fundamentação por tal entidade veiculada.
Se assim não se entendesse, tal equivaleria a fazer passar para os Requerentes, enquanto destinatários do ato tributário, o ónus de tentar dilucidar as razões e dessa forma suprir as falhas de fundamentação em que a entidade administrativa incorreu e cuja dilucidação por estes não se apresenta como exigível, atento o padrão do denominado «homem médio», colocado na posição de destinatário do ato tributário em apreço, não podendo os destinatários do ato ficar adstritos a substituírem-se à Requerida na busca do sentido da fundamentação a fim de poderem exercer de forma eficaz as suas garantias de defesa.
Quando para mais, teve a Autoridade Tributária a oportunidade de efetuar esse mesmo exercício de fundamentação através da emissão de certidão nos termos do artigo 37º do CPPT, cujo pedido acabou objeto de indeferimento.
Destarte, deverá ser considerada procedente a arguida preterição de formalidade essencial, decorrente do incumprimento do dever legal de fundamentação, que nos termos do artigo 268.º da CRP e 77.º da LGT impende sobre a Autoridade Tributária e, em consequência não poderá deixar de ser declarado ilegal o ato tributário de liquidação, assente em vício de falta de fundamentação e anulado o respetivo ato.
Fica, deste modo, prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas pelos Requerentes, à exceção da atinente ao pedido da condenação da Requerida em juros indemnizatórios, por pagamento indevido da prestação tributária.
Juros Indemnizatórios:
Por fim, os Requerentes vêm peticionar o pagamento de juros indemnizatórios sobre o montante da prestação tributária indevidamente paga.
Nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
A propósito desta questão, teve o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa o ensejo de anotar posicionamento, ao qual aderimos in totum, segundo o qual: “... a existência de vícios de forma ou incompetência significa que houve uma violação de direitos procedimentais dos administrados e, por isso, justifica-se a anulação do acto, por estar afectado de ilegalidade. Mas o reconhecimento de um vício daqueles tipos não implica a existência de qualquer vício na relação jurídica tributária, isto é, qualquer juízo sobre o carácter indevido da prestação pecuniária cobrada pela Administração Tributária com base no acto anulado, limitando-se a exprimir a desconformidade com a lei do procedimento adoptado para a declarar ou cobrar ou a falta de competência da autoridade que a exigiu. Ora, é inquestionável que, quando se detecta um vício respeitante à relação jurídica tributária, se impõe a atribuição de uma indemnização ao contribuinte, pois a existência desse vício implica a lesão de uma situação jurídica subjectiva, consubstanciada na imposição ao contribuinte da efectivação de uma prestação patrimonial contrária ao direito. Por isso, se pode justificar que, nestas situações, não havendo dúvidas em que a exigência patrimonial feita ao contribuinte implica para ele um prejuízo não admitido pelas normas fiscais substantivas, se dê como assente a sua existência e se presuma o montante desse prejuízo, fazendo-se a sua avaliação antecipada através da fixação de juros indemnizatórios a favor daquele. Porém, nos casos em que o vício que leva à anulação do acto é relativo a uma norma que regula a actividade da Administração aquela nada revela sobre a relação jurídica fiscal e sobre o carácter indevido da prestação, à face das normas fiscais substantivas. Nestes casos, a anulação do acto não implica que tenha havido uma lesão da situação jurídica substantiva e, consequentemente, da anulação não se pode concluir que houve um prejuízo que mereça reparação. Por isso, pode-se considerar justificado que, nestas situações, não resultando da decisão anulatória a comprovação da existência de um prejuízo, não se presuma o seu valor, fixando juros indemnizatórios, mas apenas se deva restituir aquilo que foi recebido, o que poderá constituir já um benefício para o contribuinte, perante a realidade da sua situação tributária.” (in anotação ao artigo 61º do CPPT do Código de Procedimento e de Processo Tributário, vol. I, 6ª ed., Lisboa, Áreas Editora, 2011, pp. 531 e 532).
Nesta mesma linha de sentido e orientação, poder-se-á igualmente trazer à colação aquela que vem sendo a jurisprudência dos tribunais superiores, mormente a emanada do Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito do recurso n.º 0416/11, de 07.09.2011.
Nos autos vertentes, a anulação do ato de liquidação resulta de vício de índole formal, ocorrendo assim violação dos direitos procedimentais dos Requerentes, in casu por falta de fundamentação e não por qualquer vício substantivo que afetasse ao nível da relação tributária a prestação tributária, tornando-a indevida, pelo que, não sendo o caso deste vício procedimental que supra se reconheceu, atento o disposto no artigo 43.º da LGT, não pode obter o pedido de juros indemnizatórios formulado pelos Requerentes merecer provimento.
Do Valor da Causa:
No pedido de constituição de tribunal arbitral, foi indicada a quantia de € 5.291,83 como sendo o valor da utilidade económica do pedido.
Já após a receção do pedido de pronúncia arbitral, veio a entidade requerida a proceder à revogação parcial do ato tributário de liquidação objeto destes autos.
Na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal, como decorre do disposto no artigo 299.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
Conforme resulta do disposto no artigo 259.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a instância inicia-se pela propositura da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial.
Que o mesmo é dizer que, para efeitos de processo arbitral tributário, o facto relevante se verifica uma vez se mostre recebida na secretaria do CAAD o pedido de constituição de tribunal arbitral.
Nas palavras de Jorge Lopes de Sousa , «são irrelevantes as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos.
Da mesma forma não implicarão alteração ao valor da causa, eventuais ampliações do pedido primitivo que se considerem admissíveis, por serem, desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (artigo 265.º, n.º 2, do CPC), como, por exemplo, aumento derivado de juros indemnizatórios ou de indemnização por garantia indevida.»
Nestes termos, fixa-se o valor da causa em € 5.291,83.
Da Responsabilidade pelas Custas Processuais
No caso concreto, como resulta do sobredito, não obstante a ocorrência de revogação parcial da liquidação de IRS controvertida, a responsabilidade pelas custas é imputável à Requerida Autoridade Tributária e Aduaneira, porquanto, aquando da dedução pelos Requerentes do pedido de constituição de tribunal arbitral, tal revogação não havia ainda tido lugar, não podendo, assim, deixar de se concluir ter sido a Requerida a dar causa a estes autos.
Por outro lado, o pedido de condenação da Requerida ao pagamento de juros indemnizatórios não colhe provimento, conforme fundamentação já supra alinhada.
No entanto, na esteira do entendimento já alinhado atrás em matéria de valor da causa, entendemos que, igual e coerentemente, para efeitos de decaimento, o hipotético valor de tais juros não deverá ser objeto de computação, porquanto sendo um mero desenvolvimento do pedido de anulação dos atos tributários sindicados sem impacto no valor da ação (in casu, em razão do pagamento indevido da prestação tributária) e tendo o presente meio de defesa processual arbitral escopo anulatório (e só, acessoriamente, condenatório), logo, sendo, inclusivamente, processualmente impróprio para, apenas e em exclusividade, obter a condenação da entidade demandada ao pagamento de juros indemnizatórios, prejudica a elegibilidade dos mesmos para efeitos da aferição quantitativa dessa mesma responsabilidade por custas na ação, seja por falta de apetência de autonomização, seja por insusceptibilidade de ser objeto de per se, de pedido de pronúncia arbitral, logo, inaptos a dar causa à ação.
Desta forma, independentemente do sentido da decisão que em matéria de juros indemnizatórios peticionados se viesse a tomar (de procedência ou não), entende-se que estes não devem integrar o valor da causa e, em coerência, não poderão afetar a aferição da responsabilidade pelo pagamento das mesmas, acautelando assim a sua neutralidade.
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, deverá a Requerida ficar responsável pelo pagamento das custas na totalidade.
IV – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, declarando a ilegalidade e consequente anulação do ato de liquidação adicional de IRS do ano de 2017 nº 2019... e de Liquidação de Juros compensatórios n.º 2019 ... e a condenação da Requerida à devolução do montante pago pelos Requerentes em excesso, por referência à Demonstração de Acerto de Contas com o Id. de documento 2019 ..., com um saldo apurado de € 5.291,83.
b) Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios.
Valor do Processo:
De harmonia com o disposto no artigo 315.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 5.291,83 (cinco mil duzentos e noventa e um euros e oitenta e três cêntimos).
Responsabilidade pelas Custas:
Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, vão as custas a cargo da Requerida, no valor de € 612,00 (seiscentos e doze euros) – Tabela I a que se refere o artigo 4º do RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 26 de Novembro de 2020,
O Árbitro Singular
Luís Ricardo Farinha Sequeira