Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 371/2020-T
Data da decisão: 2020-11-25  IRS  
Valor do pedido: € 38.254,68
Tema: IRS – Categoria E; presunção de lucros ou adiantamento de lucros do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS.
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SUMÁRIO:

1.            Uma decisão sobre a ilisão da presunção do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, pressupõe uma análise completa e contextual de todos os elementos fácticos e circunstanciais relevantes.

2.            A existência de uma relação jurídica e economicamente indesejável de promiscuidade financeira e patrimonial entre os a sociedade e os sócios, à margem das regras contabilísticas geralmente aceites, pode, em determinadas circunstâncias, ilidir a presunção de adiantamento de lucros.

3.            A expressão “quaisquer contas correntes dos sócios” do n.º 4, do artigo 6.º, do CIRS, significa que a presunção contida nesta disposição não se limita aos casos em que existam lançamentos a favor dos sócios efetuados na conta 26, podendo abranger lançamentos noutras contas.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:

 

1             RELATÓRIO

 

1. A..., LDA., NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, (“doravante Requerente”), notificada da demonstração de liquidação adicional de retenções na fonte de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) relativa ao ano de 2015, n.º 2020 ... (RF IRS 2015), veio, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e nos artigos 10.º, 15.º e seguintes, todos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (“Regime Jurídico da Arbitragem Tributária” ou “RJAT”), deduzir pedido de constituição de tribunal arbitral, para apreciação da legalidade da referida liquidação.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 16.07.2020.

 

3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 03.09.2020.

 

4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

 

5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 06.10.2020.

 

6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 11.11.2020, onde, por impugnação, sustentou a improcedência da pretensão da Requerente.

 

7. Por ter não ter sido requerida pelas partes e não subsistir qualquer controvérsia sobre matéria de facto, decidiu o presente tribunal, em despacho proferido em 11.11.2020, dispensar a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e a produção de alegações. 

 

1.1          Descrição dos factos

 

8. A Requerente – inicialmente constituída como sociedade por quotas, tendo em 27.12.2007 sido transformada em sociedade anónima e, posteriormente, em 29.12.2014, novamente transformada em sociedade por quotas – é sujeito passivo de IRC, tendo como objeto, entre outros, comércio e indústria farmacêuticos, bem como a compra, venda e revenda, a retalho e por grosso de produtos farmacêuticos, cosméticos, perfumes e prestação de serviços.

 

9. A Ordem de Serviço n.º OI2018... a Direção de Finanças de Lisboa (doravante “DFL”) determinou uma ação de inspeção externa de âmbito parcial em sede de IRC e IVA, referente ao ano de 2015 (posteriormente alargado para incluir a análise de IRS).

10. Na inspeção foram identificados os seguintes os movimentos registados na conta n.º ... – B..., no ano de 2015, que originaram as conclusões da equipa de inspeção: 

 

11. Da análise desta conta, entende a AT que 29.940,00€ correspondem a adiantamentos por conta de lucros (269.958,62€ - 241.664,56€ - 354,06€ + 2.000€) e, consequentemente, existiria imposto em falta no montante de 8.383,20€ (29.940,00€ x 28%). 

12. A inspeção identificou os seguintes os movimentos registados, no ano de 2015, na conta n.º...– Dra. C..., sócia-gerente da Requerente: 

 

13. Na conta de C... existe uma divergência de 500,00€ (no mês de abril) entre o extrato de conta extraído do SAFT e o extrato de conta extraído pelo sujeito passivo, pelo que os valores devedores totalizam 110.219,96€, ao invés de 109.719,96€. Ao total referido de € 28.577,96€, a AT deduziu o saldo inicial da conta (8.137,48€), € 1.000,00€ pagos a título de subsídio de Natal e 4.008,52€ relativos aos pagamentos efetuados pela Requerente à D.G.T., tendo acrescido os montantes de 442,94€ e 1.146,54€ referentes aos vencimentos de janeiro e fevereiro, respetivamente, 800,00€ correspondente a “Trf. p/ o C... Pag. D...”, 231,91€, 66.666,90€ e € 1.000,00€, refletidos na contabilidade, mas relativamente aos quais “não foram apresentados à AT documentos bancários que permitam aferir que tais montantes foram efetivamente pagos através da conta pessoal do sócio” e 2.453,71€ que aparece suportado por  documento bancário no valor de 779,71€, inferior ao refletido na contabilidade, tendo a inspeção tributária concluído que o montante a considerar enquanto adiantamento por conta  de lucros relativamente à sócia Dra. C... ascende a € 88.173,96€ (28.577,96€ - 8.137,48€ - 1.000,00€ - 4.008,52€ + 442,94€ + 1.146,54€ + 800,00€ + 231,91€ + 66.666,90€ + 1.000,00€+  2.453,71€).

 

14. O Ofício n.º..., de 06.12.2019, notificado a Requerente para exercer o seu direito de audição sobre o projeto de relatório proferido no âmbito do referido procedimento de inspeção.

 

15. A DFL propôs, em sede de IRC, a liquidação adicional de 21.750,00€, a título de tributações autónomas, devidas sobre despesas não documentadas, nomeadamente “despesas efetivas, incorridas através de saídas de recursos financeiros [para a entidade “E..., Lda.”] sem suporte documental e que, no entanto, obtiveram registo contabilístico, através das contas da contabilidade”. 

 

16. Em sede de IRS, a DFL propôs a liquidação adicional de 33.071,91€, por alegadamente não ter sido retido e entregue imposto sobre rendimentos pagos a C... (sócia-gerente) e B... (sócio), alegadamente a título de adiantamento de lucros. 

17. Por discordar do referido projeto, a 18.12.2019 a Requerente exerceu o direito de audição, no qual contestou o entendimento da DFL, invocando, (i) que não existe qualquer caráter confidencial, nem falta de documentação nas operações  financeiras efetuadas com a firma E..., Lda. e que nenhuma  das transferências em causa foi deduzida ao lucro tributável da Requerente; (ii) que os montantes disponibilizados aos seus sócios não o foram a título de lucros/adiantamento  por conta de lucros, uma vez que foram sujeitos a devolução nos períodos seguintes ou correspondiam ao reembolso de montantes anteriormente disponibilizados pelos sócios/gerente à sociedade. 

18. No dia 06.01.2020, a Requerente foi notificada por parte da DFL, do relatório final de inspeção  tributária nos termos do qual a DFL decidiu manter integralmente as correções  propostas, tendo a Requerente sido notificada dos seguintes  atos tributários a seguir discriminados:  i) da liquidação n.º 2020... de IRC e juros compensatórios, que apurou um valor  a pagar de 24.843,85€ e da respetiva demonstração de acerto de contas n.º 2020 ...;  ii) da demonstração de liquidação de retenções na fonte n.º 2020... e respetiva  demonstração de liquidação de juros compensatórios, que apurou um valor a pagar de  38.254,68€, ato tributário objeto do presente pedido arbitral.

19. Não obstante discordar dos mesmos, a Requerente procedeu ao pagamento dos atos tributários acima referidos. 

 

1.2. Argumentos das partes

 

20. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação de IRS n.º 2020... e respetiva liquidação de juros compensatórios com argumentos que a seguir se sintetizam:

a)            Dos artigos 5.º, n.º 2, alínea h), e 6.º, n.º 4, CIRS, na redação vigente à data dos factos, resulta uma presunção no sentido da existência de pagamento de rendimentos de capitais, relativamente às quantias escrituradas em quaisquer contas  de sócios de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quantias essas que não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, as quais se presumem assim  efetuadas a título de lucros ou de adiantamento por conta de lucros;

b)           A tributação em sede de IRS baseada na presunção da existência de rendimentos de capitais decorrentes de adiantamentos por conta de lucros, onera a AT com a prova do facto base da presunção, ou seja, a prova de que os lançamentos na conta dos sócios não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais;

c)            Embora a AT goze de uma inversão do ónus de prova, por força de presunção legal, nas situações que preencham os pressupostos do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, cabe-lhe em primeiro lugar preencher as condições constitutivas da estatuição de tal presunção;

d)           O enquadramento previsto no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS e a consequente aplicação da presunção aí consagrada implica o lançamento em contas correntes dos sócios e o afastamento da existência, quer de retribuição profissional, quer de mútuos;

e)           Caem por terra as conclusões formuladas pela equipa de inspeção em sede do relatório final de inspeção, uma vez que não se encontra cumprido o primeiro requisito exigido para que a presunção legal funcione;

f)            Ao abrigo do Sistema de Normalização Contabilística ("SNC") vigente no ano de 2015, a conta 26 é a utilizada para registar as operações relativas às relações da sociedade com os titulares de capital, agindo como tal, sendo que, no caso em apreço, os valores objeto de correção por parte da DFL estão contabilizados na conta 27 (“outras contas a receber e a pagar”), que não é uma conta de sócios ou titulares de capital;

g)            O RIT é omisso quanto à verificação ou demonstração dos dois requisitos para funcionamento da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do CIRS;

h)           Do histórico das contas correntes de ambos os sócios ao longo dos vários períodos de tributação resulta que, não raras vezes, estes injetavam dinheiro na empresa, que visava gerar pontual e momentaneamente liquidez e provisionar as contas bancárias da empresa, de forma a que pudessem ser honrados os compromissos assumidos pela Requerente para com os seus fornecedores, credores, etc., montantes posteriormente sujeitos a acerto de contas;

i)             O montante a débito de 2.000€ corresponde a uma obrigação da Requerente, assumida pelo sócio, a título de empréstimo, resultante da prestação de serviços por parte da F..., jamais podendo ser acrescido ao saldo da conta por não configurar qualquer tipo de rendimento do sócio;

j)             As descrições que constam do extrato da conta n.º ... –B..., permitem verificar que a maior parte dos movimentos a débito dizem  respeito ao pagamento de ordenados, depósitos e despesas bancárias, não sendo possível presumir que se está perante adiantamentos por conta de lucros;  

k)            No que aos restantes movimentos respeita, trata-se de movimentos financeiros legítimos e relacionados com a gestão normal do dia-a-dia da sociedade;

l)             Relativamente à conta de C... jamais o montante de 66.666,90€ poderia ser acrescido e sujeito a tributação por se tratar de um movimento a débito, correspondente à regularização de um fornecedor, o qual, aliás, se encontra devidamente identificado – “G..., S.A.” – e,  como tal, jamais o valor da correção efetuada poderia ultrapassar os 21.507,06€ (88.173,96€ -   66.666,90€);

m)          O mesmo se aplica aos montantes de € 800,00€, € 231,91€ e € 1.000,00€, os quais respeitam a pagamentos que a sócia-gerente efetuou a fornecedores, em nome da sociedade e que, naturalmente, teriam de lhe ser restituídos;

n)           Grande parte dos movimentos a débito apresenta a descrição “Trf. p/ Dev. Emp.”, o que naturalmente indicia que estamos perante a restituição de quantias à sócia que esta adiantara à Requerente e vice-versa, quando as transferências contêm o  descritivo “Trf. p/ Emp. Pessoal”;

o)           A sócia-gerente, nesta qualidade, injetava por vezes dinheiro na empresa, que visava gerar liquidez e provisionar as contas bancárias da sociedade, de forma a que a Requerente pudesse honrar os seus compromissos para com fornecedores, credores, etc., resultando duma análise mais detida destes movimentos que estão em causa despesas realizadas nessa qualidade e não na de mera sócia;

p)           Não se está diante de uma conta corrente de sócio, para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, estando em causa o exercício da função de gerente e não a de mera sócia, pelo que a AT não poderia valer-se da presunção em que baseia exclusivamente o ato de liquidação ora impugnado, e assim eximir-se do ónus de prova que lhe incumbia nos termos das regras gerais de repartição do ónus de prova em procedimento tributário;

q)           Não se aplicando a presunção, retomam as regras gerais de repartição do ónus de prova, cabendo à DFL demonstrar e fundamentar que os montantes registados na Conta 27 deveriam ser qualificados como adiantamentos por conta de lucros;

r)            Dada a presunção legal de que os lançamentos em conta corrente do sócio se presumem feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros, a AT apenas deverá provar a base da presunção – o lançamento em conta corrente de verbas a favor do sócio – enquanto o sujeito passivo estaria onerado com o encargo de provar os outros factos que paralisam a presunção;

s)            As saídas reportadas, em 2015, no montante de € 29.940,00 relativamente  ao sócio B... e de 88.173,96€ relativamente à sócia/gerente C... foram lançadas na contabilidade da Requerente na conta “278 – Outros Devedores e Credores” e não em qualquer conta de “Acionistas/Sócios”, não sendo adquirida a qualificação dos referidos fluxos como “adiantamento por conta de lucros” (que, se  assim fossem, seriam contabilizados na “conta 263”); não estando preenchido o primeiro pressuposto de aplicação  da presunção prevista no n.º 4 do  artigo 6.º do CIRS;

t)            Não tendo a veracidade da contabilidade da Requerente sido colocada em causa, deverá considerar-se, de acordo com o n.º 1 do artigo 75.º da LGT, que a mesma espelha a realidade dos factos, gozando da presunção de veracidade legalmente prevista;

u)           As quantias contabilizadas na “278 – Outros Devedores e Credores” foram sendo parcelarmente devolvidas à Requerente nos anos seguintes e até ao ano de 2018, resultando das contas correntes em questão que, em relação à conta #2784000003 – B..., o saldo  devedor, que em 2015 era de 269.958,62€, foi decrescendo até ao ano de 2018 para 118.946,39€, sendo que ao longo dos anos de 2016 e 2017  praticamente todos os movimentos foram a débito, contêm a descrição “TRF B...” e representam transferências do sócio para a sociedade, e que, em relação à conta #2784000006 – Dra. C..., o saldo  devedor, que em 2014 era de 103.266,55€, foi decrescendo até ao ano de 2018, terminando com 35.998,58€, sendo que, nos anos de 2015, 2016 e 2017, diversos  movimentos a débito, com a descrição “TRF C...” que representam transferências da  sócia-gerente para a sociedade;

v)            As referidas devoluções foram efetuadas antes do procedimento inspetivo, pelo que inexistiu qualquer intuito de obter qualquer vantagem patrimonial na esfera dos sócios ou da Requerente;

w)          A ata  n.º 26 da reunião havida a 30.03.2016, atesta que nela se deliberou sobre a afetação dos resultados do  exercício, tendi sido decidido, por unanimidade, que ao resultado transitado de 2014, devedor de 472.737,12€, fosse acrescido o resultado apurado em 2015, credor  de 539.529,37€, originando, deste modo, um saldo credor de 66.792,25€,a distribuir como reservas legais, no montante de 8.536,45€, e reservas livres, de 58.250,00€”, não tendo sido deliberada a distribuição de lucros/adiantamento por conta de lucros;

x)            A AT não poderia socorrer-se da presunção legal prevista  no n.º 4 do artigo 6.º do Código do IRS, tendo a Requerente demonstrado que os lançamentos em  causa jamais poderiam configurar adiantamentos por conta de lucros, sendo antes a devolução de  montantes anteriormente emprestados pelos sócios à Requerente (a débito) e vice-versa (a crédito),  o que se invoca para efeitos de anulação da demonstração  de liquidação de retenções na fonte de IRS ora sindicada, por assentar em errados pressupostos de  facto e de direito.

20.1. Com base nestes argumentos, a Requerente pede a este Tribunal Arbitral que julgue procedente o presente pedido, determinando a anulação do ato tributário ora sindicado, por vício de ilegalidade com a reposição da situação tributária relativa ao exercício de 2015, e o reembolso do imposto pago, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.

 

21. A AT sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos seguintes fundamentos:

a)            Na sequência do procedimento inspetivo em sede de IRS e dos factos detetados relativamente aos lançamentos efetuados em contas correntes dos sócios: ...–B..., no valor total de 29.940€ e 2784000006 –C... no valor total de 88.173,93€, perfazendo um valor global de 118.113,93€ em 2015, conclui-se pela aplicação da presunção prevista no n.º 4 do art.º 6º do CIRS (como feitos a título de lucros ou de adiantamento dos lucros) porquanto não resultam de mútuos, de prestação de trabalhos ou do exercício de cargos sociais, devendo as importâncias em causa ser tributáveis em sede de IRS, nos termos do disposto nos artigos 5.º n.º 1 e 2 alínea h) e art.º 6.º nº. 4, todos do CIRS;

b)           Neste sentido, por força das normas aplicáveis, a distribuição de lucros e adiantamento de lucros está sujeita à taxa liberatória de 28% de retenção na fonte a titulo definitivo, atento o disposto nos artigos 5º, nº. 2, alínea h), art.º 7º n.º3 alínea 2) e alínea a) do n.º 1 do artigo 71.º do CIRS;

c)            O entendimento da AT está devidamente justificado e fundamentado no ponto III.2, páginas 13 a 17 do Relatório de inspeção da DF de Lisboa (OI2018... de 25.05.2018);

d)           Foram efetuadas todas as diligências e cruzamento de informações/dados, com observância dos princípios de inquisitório, do contraditório/participação e da verdade material (art.º 58º e 60º da LGT, arts. 6º e 7º e 60º do RCPITA) e recolhidos todos os meios de prova tendo em vista o apuramento dos factos tributários que sustentaram a correção/liquidação adicional de retenção na fonte de IRS 2015;

e)           A AT demonstrou os pressupostos de aplicação da presunção prevista no artigo 6.º, n.º 4 do CIRS, porquanto foram confirmadas transferências de fundos e respetivos lançamentos nas contas correntes dos sócios-gerentes (B... e C...) e os mesmos não resultaram de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais:

f)            As conclusões da AT basearam-se nos dados contabilísticos e extracontabilísticos (fluxos financeiros/movimentos bancários, faturação, ficheiros SAFT entre outros disponibilizados pela Requerente e em posse da AT), que foram coligidos e analisados durante a ação inspetiva, tendo em vista a descoberta da verdade material dos factos tributários agora em crise;

g)            Incumbia à Requerente fazer prova de que as referidas transferências resultaram de mútuos, prestação de trabalho ou exercício de caros sociais, não o tendo feito mesmo depois de interpelada pela inspeção tribuária;

h)           Nos termos do art.º 74.º da LGT conjugado com o n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, cabia ao agora requerente o ónus de provar os factos constitutivos dos seus direitos e de provar a legalidade e a regularidade dos referidos fluxos financeiros nos termos aí definidos e a AT o ónus de provar os lançamentos em conta-corrente da contabilidade da sociedade, o que a AT fez;

i)             A AT tem o ónus da prova dos lançamentos em contas correntes dos sócios, cabendo ao sujeito passivo o ónus da prova de que os mesmos correspondem a situação enquadrável em mútuos, em prestação de trabalho ou no exercício de cargos sociais;

j)             Não é razoável que a Requerente considere normal e regular a transferência de valores/montantes da conta da sociedade para a conta dos respetivos sócios-gerentes (sob pretexto destes terem pago ou adiantado valores ou faturas pagas em nome da respetiva entidade) sem mostrar provas efetivas/convincentes do alegado, devendo este relacionamento financeiro, não pela via normal da distribuição de lucros decidida em assembleia geral, ser presumido como tal nos termos dispostos no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS;

k)            No n.º 4 do art.º 6º do CIRS, o legislador fala de lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, não parecendo que tenham de ser lançados necessariamente na conta 26 (dos titulares do capital – acionistas/sócios);

l)             Estão cumpridos os dois requisitos exigidos para que a presunção legal funcione, nomeadamente o lançamento em contas correntes dos sócios e que não resultem mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais;

m)          Com a presunção do nº 4 do art.º 6º do CIRS o legislador quis resolver a qualificação das quantias escrituradas nas contas correntes dos sócios, cuja «causa» jurídica não tenha sido expressamente declarada, assim conduzindo a que tais montantes tenham o tratamento dos lucros distribuídos;

n)           Ao estabelecer que as presunções (no caso legais) podem ser ilididas mediante prova em contrário nos termos previstos no n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, art.º 73º da LGT, art.º 64º do CPPT e nº 5 do arº 6º do CIRS, facilmente se compreende que o legislador pretende dar fundamento e “corpo” à efetivação dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva constitucionalmente consagrados.

 

21.1. Com base nestes argumentos, a Requerida sustenta que o ato impugnado não padece de qualquer ilegalidade, impugnando por infundado o alegado na Petição Inicial.

 

1.3. Saneamento  

 

22. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.

 23. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra. 

 

24. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.

 

2             FUNDAMENTAÇÃO

2.1          Factos dados como provados

25. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:

a)            A Requerente é sujeito passivo de IRC, tendo como objeto, entre outros, comércio e indústria farmacêuticos, bem como a compra, venda e revenda, a retalho e por grosso de produtos farmacêuticos, cosméticos, perfumes e prestação de serviços; (PA)

b)           A Requerente foi inicialmente constituída como sociedade por quotas, tendo em 27.12.2007 sido transformada em sociedade anónima e, posteriormente, em 29.12.2014, novamente transformada em sociedade por quotas; (PA)

c)            A Ordem de Serviço n.º OI2018... a Direção de Finanças de Lisboa (doravante “DFL”) determinou uma ação de inspeção externa de âmbito parcial em sede de IRC e IVA, referente ao ano de 2015 (posteriormente alargado para incluir a análise de IRS);

d)           O Ofício n.º..., de 06.12.2019, notificou a Requerente para exercer o seu direito de audição sobre o projeto de relatório proferido no âmbito do referido procedimento de inspeção;

e)           Em relação às contas #2784000003 – B... e 2784000006 – Dra. C..., foram identificados os movimentos acima referidos (PA)

f)            Por serviços prestados, a F... recebeu o montante de 2.000,00€ diretamente da conta pessoal do sócio B...; (Documento n.º 5). 

g)            Em relação à conta #2784000003 – B..., o saldo  devedor, que em 2015 era de 269.958,62€, foi decrescendo até ao ano de 2018 para 118.946,39€, sendo que ao longo dos anos de 2016 e 2017  praticamente todos os movimentos foram a débito, contêm a descrição “TRF B...” e representam transferências do sócio para a sociedade; (Documento 6)

h)           Em relação à conta #2784000006 – Dra. C..., o saldo  devedor, que em 2014 era de 103.266,55€, foi decrescendo até ao ano de 2018, terminando com 35.998,58€, sendo que, nos anos de 2015, 2016 e 2017, diversos  movimentos a débito, com a descrição “TRF C...” que representam transferências da  sócia-gerente para a sociedade; (Documento 7)

i)             Em reunião havida a 30.03.2016, deliberou-se que ao resultado transitado de 2014, devedor de 472.737,12€, fosse acrescido o resultado apurado em 2015, credor de 539.529,37€, originando um saldo credor de 66.792,25€, a distribuir como reservas legais, no montante de 8.536,45€, e reservas livres, de 58.250,00€. (Documento 8) 

 

2.2          Factos não provados

 

26. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.

 

2.3          Motivação

27. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

 

28. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

 

29. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

2.4          Questões decidendas

 

30. O objeto do presente pedido consiste na análise da legalidade do ato de liquidação de retenções na fonte de IRS n.º 2020... e juros compensatórios, o qual se encontra sustentado numa alegada falta de retenção na fonte de IRS sobre adiantamentos por conta de lucros, pagos ao sócio e à sócia-gerente da Requerente no ano de 2015. Em causa está, quanto ao mérito, indagar da aplicação ao caso concreto da presunção resultante do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, tendo em vista aquilatar se o ato tributário controvertido padece do apontado vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito.

31. O artigo 5.º, n.º 2, alínea h), do CIRS, depois da delimitação dos rendimentos de capitais como frutos e demais vantagens económicas, independentemente da sua natureza ou denominação, empreendida no n.º 1, dispõe que os mesmos compreendem “[o]s lucros e reservas colocados à disposição dos associados ou titulares e adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20.º”. É em conjugação com este preceito que o artigo 6.º, n.º 4, do artigo CIRS, dispõe que “[o]s lançamentos a seu favor, em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros”. O n.º 5 deste mesmo artigo estabelece que “[a]s presunções estabelecidas no presente artigo podem ser ilididas com base em decisão judicial, ato administrativo, declaração do Banco de Portugal ou reconhecimento pela Autoridade Tributária e Aduaneira.”

32. Estabelece-se, no artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, uma presunção da maior relevância, tendo em conta a própria natureza dos rendimentos de capitais, especialmente propícia a fácil sonegação. Da verificação de alguns eventos específicos, a lei, repousando em observações da experiência, extrai a ocorrência de um evento não observado, no caso o adiantamento de lucros. Esta presunção visa evitar a fraude e a evasão fiscal num domínio onde existe um risco sério de ocultação de rendimentos, assegurando eficiência na tributação diante das dificuldades probatórias da AT, as quais só seriam colmatadas através da mobilização de quantidades irrealistas de meios humanos e materiais e da realização de investigações altamente complexas e intrusivas. Esta presunção facilita a prova da AT relativamente à existência de certos rendimentos e à respetiva quantificação, resolvendo o problema da qualificação das quantias escrituradas cuja “causa” jurídica não tenha sido expressamente declarada. No entanto, sendo o IRS baseado, em primeira linha, na produção efetiva de rendimentos geradores de capacidade contributiva, compreende-se que as presunções neste âmbito tenham que ser necessariamente excecionais e relativas (iuris tantum). Na linha do que se dispõe para as presunções consagradas nas normas de incidência tributária (art. 73.º LGT), a presunção em causa admite prova em contrário, dizendo-se expressamente que pode ser ilidível por um diversificado conjunto de meios (art. 6.º, n.º 5, do CIRS).

33. A presunção do artigo 6.º, n.º4, do CIRS, adquire relevância, no caso concreto, em virtude de o n.º 1, alínea a), do artigo 71.0 do CIRS, sujeitar a retenção na fonte a uma taxa liberatória de 28% “[o]s rendimentos de capitais obtidos em território português, por residentes ou não residentes, pagos  por ou através de entidades que aqui tenham sede, direção efetiva ou estabelecimento estável a que deva imputar-se o pagamento e que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada”. Por sua vez, a alínea a), do n.º 2, do artigo 101.º, do CIRS, determina que, tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe "[à]s entidades devedoras dos rendimentos (…)”, sendo que da leitura conjugada dos artigos 98.º e 101.º, do CIRS, a entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, é obrigada, no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhes as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem.

 

34. Nos termos do artigo 74.º1, da LGT, “[o] ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.” No caso, isso significa que se a AT quiser valer-se da presunção consagrada no artigo 6.º, n.º 4, do CIRS – de que os lançamentos efetuados na conta corrente do sócio são feitos a título de lucros ou adiantamento de lucros – tem o ónus de provar, de forma razoavelmente convincente, o fato base da presunção, a saber, i) que tais lançamentos são feitos em conta corrente do sócio e ii) não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais . São estes os dois elementos em que assenta a prova do facto base que desencadeia a presunção. 

 

35. Do probatório resulta a existência de lançamentos efetuados em contas correntes dos sócios: ... – B..., no valor total de 29.940€ e ... – C... no valor total de 88.173,93€, perfazendo um valor global de 118.113,93€ em 2015. Do ponto de vista contabilístico, é indiscutível que os lançamentos estão contabilizados na conta 27 (“outras contas a receber e a pagar”), e não na conta 26, que, de acordo com o Sistema de Normalização Contabilística ("SNC") vigente no ano de 2015, é a utilizada para registar as operações relativas às relações da sociedade com os titulares de capital, agindo como tal. No entanto, falando o legislador, n.º 4 do artigo 6.º do CIRS, de “lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios” (e não numa conta específica), não parece que se deva considerar, para efeitos da presunção do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, apenas os lançamentos efetuados na conta 26 (dos titulares do capital – acionistas/sócios). Tanto mais quanto é certo que, na prática de muitas pequenas e médias empresas, a conta 27 é utilizada de forma indiferenciada para os usos mais diversos. O acolhimento da interpretação restritiva proposta pela Requerente criaria um forte incentivo à manipulação criativa das diferentes contas para proceder a distribuição oculta de lucros, incluindo a conta 27, frustrando em boa medida a teleologia antiabuso da presunção em causa e comprometendo a efetivação dos princípios constitucionalmente consagrados da legalidade tributária, da igualdade tributária e da capacidade contributiva. Daí que se deva considerar que a AT provou devidamente o primeiro elemento do facto base em que assenta a presunção.

 

36. Relativamente ao segundo elemento da prova do facto base da presunção –  de que os lançamentos não resultam de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais – exige-se apenas uma prova prima facie, baseada num grau razoável de convicção, não necessariamente definitiva, sendo que mesmo que a AT consiga provar os elementos do facto base e ativar a presunção do artigo 6.º, n.º 4 do CIRS , a mesma pode sempre vir a ser ilidida mediante prova em contrário, nomeadamente pela refutação das provas apresentadas pela AT.

No caso, a AT alega que os dados contabilísticos e extracontabilísticos (fluxos financeiros/movimentos bancários, faturação, ficheiros SAFT entre outros disponibilizados pela Requerente e em posse da AT), que foram coligidos e analisados durante a ação inspetiva, permitiram concluir que não se estava diante lançamentos resultantes de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, visto não refletir a contabilidade da Requerente a existência de qualquer empréstimo aos sócios. Compreende-se que não seria óbvia outra conclusão que pudesse ser retirada dos documentos de suporte dos lançamentos feitos na conta 27, já que a AT não encontrou suporte documental que evidenciasse diretamente a existência de pagamentos por mútuos, prestação de trabalho ou exercício de encargos sociais (RIT, III2). Por esta via, mesmo que admita, a final, não ser essa a única conclusão possível ou mesmo a mais acertada, sempre estaria justificada a presunção de que os lançamentos em causa foram feitos a título de adiantamento de lucros. 

 

37. Uma vez demonstrada a existência de fundamento razoável para a ativação da presunção, nos termos do artigo 6.º, n.º4, do CIRS, resta sublinhar que se trata apenas e só de uma mera presunção, importando saber se a Requerente consegue persuadir este tribunal de que os elementos que aduz no procedimento e no processo lhe permitem ilidir a presunção, tal como o previsto no artigo 6.º, n.º 5, do CIRS, nomeadamente chamando a atenção para a possibilidade e plausibilidade de uma interpretação alternativa à que é adotada pela AT relativamente aos factos considerados provados nos autos. A Requerente alega que, não tendo a veracidade da sua contabilidade sido colocada em causa, deverá considerar-se, de acordo com o n.º 1 do artigo 75.º da LGT, que a mesma espelha a realidade dos factos, gozando da presunção de veracidade legalmente prevista.

 

38. Como consta dos autos, grande parte dos movimentos a débito indicia tratar-se da restituição de quantias à sócia-gerente, porquanto a mesma, nessa qualidade, injetava por vezes dinheiro na empresa, e que as quantias contabilizadas na “278 – Outros Devedores e Credores” foram sendo parcelarmente devolvidas à Requerente nos anos seguintes e até ao ano de 2018. Em relação à conta #2784000003 – B..., o saldo devedor foi decrescendo até ao ano de 2018 para 118.946,39€, sendo que ao longo dos anos de 2016 e 2017 praticamente todos os movimentos foram a débito, contêm a descrição “TRF B...” e representam transferências do sócio para a sociedade. Em relação à conta #2784000006 – Dra. C..., o saldo devedor, foi decrescendo até ao ano de 2018, terminando com 35.998,58€, sendo que, nos anos de 2015, 2016 e 2017, diversos movimentos a débito, com a descrição “TRF C...” que representam transferências da sócia-gerente para a sociedade. As referidas devoluções foram efetuadas antes do procedimento inspetivo, corroborando a inexistência de qualquer intuito de obter qualquer vantagem patrimonial na esfera dos sócios ou da Requerente.  A ata  n.º 26 da reunião havida a 30.03.2016, atesta que nela se deliberou sobre a afetação dos resultados do  exercício, tendo sido decidido, por unanimidade, que ao resultado transitado de 2014, devedor de 472.737,12€, fosse acrescido o resultado apurado em 2015, credor  de 539.529,37€, originando, deste modo, um saldo credor de 66.792,25€,a distribuir como reservas legais, no montante de 8.536,45€, e reservas livres, de 58.250,00€”, não tendo sido deliberada a distribuição de lucros/adiantamento por conta de lucros.

 

39. Não obstante, a AT sustenta, no procedimento e no processo, que embora seja verdade que os saldos devedores foram decrescendo, nos termos expostos, não está comprovado que as saídas monetárias registadas nas contas dos sócios tiveram como objetivo o pagamento de dívidas da sociedade aos sócios, não tendo sido apresentado qualquer documento adicional que comprovasse a veracidade dos saldos devedores iniciais que justificassem a transferência de tais montantes.

 

40. Contudo, se é certo que os lançamentos a favor dos sócios não provam, só por si, a existência de um mútuo anterior, devidamente formalizado, em que os sócios surjam apenas como mutuantes/credores, também o é que esses lançamentos corroboram, quando analisados num contexto mais vasto, um conjunto de sucessivos mútuos entre a sociedade e os sócios, permutando entre si a qualidade de mutuantes/credores e mutuários/devedores, no contexto de uma relação – informal, indesejável e censurável – de promiscuidade financeira e patrimonial entre a sociedade e os sócios. Essa interpretação seria ulteriormente corroborada pelas transferências sucessivas dos sócios a favor da sociedade, ao longo dos anos 2015, 2016, 2017 e 2018, com redução significativa do saldo devedor da conta 27, e descartaria, em abono da verdade material, qualquer obtenção ou intuito de obtenção de vantagem ou benefício patrimonial na esfera dos sócios ou da Requerente. Neste mesmo sentido militaria a mencionada deliberação da assembleia geral da Requerente, a 30.06.2016, a favor da constituição de reservas legais e reservas livres. No seu conjunto, estes dados sugerem a presença de uma prolongada interação de proximidade e reciprocidade financeira que não corresponde à intenção de proceder a uma unilateral distribuição oculta de lucros. Uma decisão sobre a ilisão da presunção do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, pressupõe uma análise completa e contextual de todos os elementos fácticos e circunstanciais relevantes.

 

41. Independentemente de se poder censurar a conduta da Requerente em matéria de registos e práticas contabilísticas, incompatíveis com a rigorosa e transparente separação que deve existir entre o património da sociedade e o dos sócios – conduta essa que acaba por conduzir a AT a recorrer à presunção do artigo 6.º, n.º4, do CIRS – os elementos factuais aduzidos pela Requerente sugerem, com preponderância probatória, a existência de uma prática recorrente, por parte da sociedade e dos sócios, de se apoiarem mutuamente sempre que uma ou outros necessitassem de um adiantamento de liquidez (cash advance), permitindo que, nos termos do artigo 100.º/1 do CPPT, este tribunal alimente uma dúvida fundada sobre a ocorrência, mesmo que presumida, de um efetivo adiantamento de lucros a favor dos sócios, sendo este o facto tributário e a manifestação de capacidade contributiva de que dependeria a aplicação da taxa liberatória de 28%  por retenção na fonte a título definitivo.

 

42. Mesmo que se alegue que a AT errou na apreciação dos factos subjacentes ao segundo elemento da presunção sub judice, a verdade é que esse suposto erro, além de estar longe de ser evidente em virtude do carácter pouco claro da base probatória relevante, sempre deveria ser tido como induzido pela promiscuidade patrimonial excessiva e opaca entre a Requerente e os sócios e, por isso, não imputável aos serviços da AT.

 

43. Este último aspeto é particularmente relevante no âmbito do pedido de pagamento de juros indemnizatórios, formulado pela Requerente, cumprindo salientar que o artigo 43.º, n.º 1, da LGT, dispõe que “[s]ão devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.” Ora, em face dos elementos factuais e circunstanciais anteriormente considerados, não julga o presente Tribunal Arbitral que a AT tenha sequer errado ao mobilizar a presunção constante do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS.

 

44. Fatores como a) os lançamentos a favor dos sócios efetuados na conta 27, b) a inexistência de documentação suscetível de provar diretamente a presença de mútuos, prestações de trabalho ou exercício de cargos sociais que pudessem justificar aqueles lançamentos, e, bem assim, c) o caráter errático, confuso e duvidoso dos elementos que poderiam provar a existência de uma relação jurídica e economicamente indesejável de promiscuidade financeira e patrimonial entre os sócios e a sociedade, à margem das regras contabilísticas geralmente aceites – associados ao dever, que impende sobre a AT, de prevenir a erosão da base tributária e assegurar a aplicação dos princípios da legalidade e igualdade tributárias – tornavam a ativação da presunção do artigo 6.º, n.º 4, do CIRS, a conduta mais lógica, adequada e prudente, sem prejuízo de poder admitir, como remotamente possível, a ilisão da mesma, ainda que numa segunda apreciação de todos os factos e circunstâncias, diante de uma instância de natureza jurisdicional, como efetivamente se verificou. Assim, procede o pedido quanto à anulação do ato tributário n.º 2020..., mas não procede no tocante aos juros indemnizatórios.     

 

3             DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

1)            Declarar a ilegalidade do ato tributário n.º 2020..., por violação de lei, e proceder à sua anulação, determinando o reembolso do imposto indevidamente pago;

2)            Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios, à luz do artigo 43.º, da LGT, por não se verificarem os referidos pressupostos. 

 

4             VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em 38.254,68 €, nos termos do artigo 306.º, n.º 1, do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.

 

5             CUSTAS

 

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 1 836.00 € a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de novembro de 2020

 

O Árbitro

Jónatas E. M. Machado