Sumário
O art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto esta norma impede aquela de calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro da UE sem ter em conta a depreciação dos mesmos, permitindo que o imposto aplicado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.
Decisão Arbitral
I – Relatório
1. A..., residente da Rua ..., n.º..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, para apreciar a ilegalidade do acto de liquidação do ISV (Imposto Sobre Veículos) resultante da não aplicação da redução prevista no art. 11.º do CISV à componente ambiental, e condenar a Autoridade Tributária (AT) a restituir a quantia de € 8.022,00, acrescida de juros indemnizatórios calculados à taxa legal em vigor à data do pagamento, desde a data do pagamento do imposto até à efectiva restituição.
2. O Requente alega ter importado da Holanda um veículo ligeiro de passageiros, de marca..., destinado ao uso particular, que foi matriculado pela primeira vez naquele país em 28.06.2011 e havia percorrido, à data da importação, 57.463 Km.
3. O Requerente procedeu à declaração aduaneira do referido veículo, tendo a AT liquidado o ISV pelo valor de € 14.302,22, imposto esse que foi pago integralmente.
4. Deste valor, € 9.473,74, corresponderam à componente cilindrada e € 11.460,10, à componente ambiental.
5. Sendo que, relativamente à componente cilindrada, aquele valor foi deduzido pela quantia correspondente a 70% do seu montante, ou seja, € 6.631,62, por força da redução resultante do número de anos de uso do veículo.
6. O Requerente considera que a liquidação efectuada do ISV está ferida de um vício de ilegalidade, no que diz respeito ao cálculo da componente ambiental ou CO2, porque, no seu entender, a norma jurídica que esteve na base daquela liquidação – art. 11º do CISV – viola o art. 110º. do TFUE (Tratado de Funcionamento da União Europeia).
7. Recorda, em seu favor, os termos do próprio Tribunal de Justiça da UE quando afirmou que De a cobrança, por um Estado‑Membro, de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro Estado‑Membro é contrária ao artigo 110.° TFUE, quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional – tal como resulta da jurisprudência do TJUE (cf. ac. de 16.06.2016, Comissão/Portugal, proc. C-200/15, n.º 25)
8. Ora, acontece que a redução do montante residual de imposto aplicada nos termos do CISV apenas incide sobre a componente da cilindrada, ignorando a componente ambiental,
9. O que permite à AT cobrar um imposto sobre os veículos importados, com base num valor superior ao valor real do veículo, o que gera uma discriminação fiscal proibida por aquela norma do TFUE.
10. Pretende, por isso, o Requerente que a redução de 70% aplicada à componente cilindrada seja também aplicada à componente ambiental, o que implica uma descida do ISV a pagar, no caso em questão, em 8.022,00 € (70% de 11.460,10).
11. Em 18.02.2020, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à AT, em 26.02.2020.
12. Em conformidade com os artigos 5.º/3 a), 6.º/2 a) e 11.º/1 a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou o árbitro do tribunal arbitral singular que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
13. As partes, notificadas dessa designação em 6.07.2020, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º/1 a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD, sendo o tribunal arbitral singular constituído em 5.08.2020.
14. Em 30.08.2020, a Requerida apresentou resposta, na qual se defende por impugnação e pugna pela improcedência do pedido e consequente absolvição, e juntou o processo administrativo.
15. Em síntese, a AT refere que quando a lei vigente não aplica a redução à componente ambiental do ISV prossegue as obrigações constitucionais e europeias de protecção do ambiente (previstas nos art.s 66.º CRP e 191.º TFUE).
16. Refere ainda, em abono do critério acolhido no art. 11.º do CISV, o princípio da equivalência, que procura onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária.
17. Afirma, por isso, que os critérios de redução aplicáveis à componente cilindrada não são aplicáveis à componente ambiental, por se tratar de questões distintas, sendo que, neste caso, se justificaria uma interpretação do art. 110.º TFUE à luz do art. 191.º da mesma convenção.
18. Insiste ainda que aquela componente ambiental constituirá uma prestação exigida pelo Estado enquanto compensação pelos efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente, que deve ser exigida tanto em relação a veículos usados como novos, por razões de coerência e justiça, já que o potencial poluidor do automóvel não diminui com a sua idade.
19. Refere também a AT que a não aplicação da redução à componente ambiental não afecta a importação de veículos na medida em que esta tem crescido, ao contrário da comercialização de veículos novos, o que demonstrará a inexistência de protecção.
20. Defende ainda a Requerida que uma eventual aplicação dos níveis de redução previstos para a componente cilindrada à componente ambiental redundaria numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício que incentivaria os consumidores a utilizarem veículos mais poluentes, a qual seria inconstitucional por constituir um benefício fiscal.
21. Insiste ainda a AT no sentido de que a interpretação pretendida pelo Requerente constituirá uma inconstitucionalidade ao violar o princípio da legalidade (art. 266.º CRP) - na medida em que não se cumpriria o disposto numa lei válida e vigente – da justiça tributária, da igualdade e da segurança jurídica.
22. E conclui referindo que, tendo o Requerente recorrido à arbitragem tributária para impugnar a liquidação, a AT se encontra coarctada no seu direito de reacção face aos limitados meios de recurso perante a prolação de uma decisão arbitral desfavorável, o que, a acontecer, configurará uma violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
23. Pronuncia-se ainda, a AT, relativamente ao pedido de juros moratórios, lembrando que o direito a estes, consagrado no artigo 43.º da Lei Geral Tributária, pressupõe que se apure a existência de erro imputável aos serviços (de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido), o que se lhe afigura impossível de conferir, na medida em que os ditos serviços, no caso, se limitaram a aplicar a lei.
II. Saneamento
24. O tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objecto do processo (cf. art.s 2.º/1 a) e 5.º do RJAT).
25. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no art. 10.º/1 a) do RJAT.
26. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. art.s 4.º e 10.º/2 do RJAT e art. 1.º da Portaria 112-A/2011, de 22.03).
27. Não há nulidades ou matéria de excepção para conhecer, passando-se, por isso, para a análise do mérito da causa.
III. Matéria de facto
Factos provados
28. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes:
A) O Requente importou da Holanda um veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., destinado ao uso particular, que foi matriculado pela primeira vez naquele país em 28.06.2011 e havia percorrido, à data da importação, 57.463 Km, conforme consta da Declaração Aduaneira de Veículos n.º 2020..., datada de 07.02.2020, da Alfândega de Braga,
B) Tratando-se de um veículo com uma idade entre 8 e 9 anos, foi-lhe aplicada a percentagem de redução correspondente, de 70%, conforme resulta da tabela D prevista no artigo 11.º/1 do CISV.
C) O cálculo do ISV foi efectuado atendendo à componente cilindrada e à componente ambiental, nos termos do artigo 7.º do CISV, tendo, igualmente, sido deduzida a percentagem de redução correspondente, nos termos do disposto na tabela referida anteriormente, prevista para os veículos usados, em função do número de anos de uso do veículo.
D) A aplicação do referido art. 11.º/1 do CISV contempla a redução de 70% da componente relativa à cilindrada, mas não prevê qualquer redução em relação à componente ambiental.
E) A liquidação do imposto, foi efectuada em 05.02.2020, sendo fixado o valor de € 14.302,22, imposto esse que foi pago integralmente pelo Requerente.
F) Este valor (de € 14.302,22) resulta do somatório de € 9.473,74 (correspondente à componente cilindrada) com o valor de € 11.460,10 (relativos à componente ambiental), sendo subtraídos € 6.631,62 (valor que corresponde a 70% da primeira parcela).
Factos não provados
29. Não há factos relevantes para esta decisão arbitral que não se tenham provado.
30. O tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada ou não provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo remetido pela AT.
III. Matéria de Direito
31. O presente pedido de pronúncia arbitral fundamenta-se na ilegalidade da norma do artigo 11.º do CISV, relevante na liquidação ora impugnada, por violação do disposto no artigo 110.º do TFUE.
32. A questão que se coloca é saber se a liquidação de ISV relativa à viatura usada identificada nos autos padece ou não de ilegalidade parcial, devendo, em caso afirmativo, ordenar-se a anulação parcial daquele actos tributário (conforme pretende o Requerente) ou se, pelo contrário, como defende a Requerida, deverão aqueles actos de liquidação de ISV ser integralmente mantidos na ordem jurídica, por não enfermarem de qualquer ilegalidade.
33. De facto, a aplicação do referido art. 11.º do CISV aos veículos portadores de matrículas de Estados membros da UE tem em vista contemplar, no cálculo do imposto devido, a desvalorização comercial média dos veículos usados no mercado nacional, prevendo uma redução percentual pelo número de anos de uso do veículo – mas apenas na componente cilindrada, deixando de lado a componente ambiental.
34. Defende a Requerente que a aplicação da referida norma leva a que seja cobrado aos veículos importados (a lei refere também o termo admitidos) de outros Estados membros da UE um imposto superior àquele que subsiste nos veículos idênticos transaccionados no mercado nacional, por não aplicar a redução à componente ambiental.
35. Tal circunstância configura uma discriminação fiscal proibida pelo art. 110.º TFUE.
36. A AT defende os termos da lei vigente explicando que, tratando-se de um encargo cobrado enquanto custo resultante do impacto ambiental, não deve ser entendido como contrária ao artigo 110.º do TFUE, devendo este ser lido em conjunto com as normas europeias e constitucionais que impõem esse desiderato.
37. As taxas a aplicar para efeito de cálculo do ISV não incidem sobre o valor do automóvel mas têm por base a cilindrada do motor (componente cilindrada) e a quantidade de CO2 emitida por quilómetro (componente ambiental) – sendo que foram estruturadas em taxa normal, taxa intermediária e taxa reduzida e taxa para veículos usados, nos termos do disposto nos artigos 7.º a 11.º do Código do ISV.
38. Para o cálculo do ISV devido por veículos usados portadores de matrículas atribuídas por outros Estados membros da UE, dispõe o artigo 11.º/1 e 2 do CISV o imposto […] é objecto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com excepção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional.
39. Esta matéria (da aplicação do ISV aos veículos importados de outros Estados membros) vem sendo objecto de um prolongado atrito entre as instituições europeias e o Estado Português, no tocante à legalidade do regime nacional (que vem sendo objecto de sucessivas modificações).
40. No seguimento de algumas decisões desfavoráveis ao entendimento oficial nacional, o ac. de 22.02.2001 (Gomes Valente, proc.º C-393/98) do Tribunal de Justiça afirmou que o montante máximo do imposto aplicável aos veículos usados importados é determinado pelo do imposto residual incorporado no valor dos veículos usados similares já matriculados no território nacional (n.º 24).
41. O legislador vem, todavia, introduzindo pequenos ajustamentos no regime, sem cuidar de o adequar às exigências resultantes do TFUE, o que deu origem a novas reacções por parte da Comissão Europeia e do TJUE.
42. A argumentação da AT em defesa do regime nacional é, quando muito, temerária.
43. De facto, o argumento de que o art. 110.º deve ser lido em conjunto (a intenção parece ser no sentido de que deve ser afastado) com as disposições relativas à protecção do ambiente não tem cabimento.
44. Não é explicado – nem se percebe como poderia ser – porque há-de a defesa do ambiente justificar quaisquer discriminações. De facto, a preocupação ambiental pode ser entendida diversamente pelos diferentes Estados-membros, conduzindo a regimes mais ou menos exigentes, inclusivamente em termos fiscais, mas esses regimes hão-de respeitar o princípio da igualdade e não discriminação.
45. A leitura do art. 191.º TFUE (e bem assim das regras constitucionais relativas ao ambiente) não impõe qualquer adequação do princípio da neutralidade fiscal, pela simples razão que não existe qualquer conflito entre elas.
46. A invocação do princípio da equivalência merece a mesma apreciação: pode o legislador entender deve onerar os contribuintes na medida dos custos que estes provocam nos domínios do ambiente, infra-estruturas viárias e sinistralidade rodoviária – tal como refere a Requerida -, mas isso não lhe permite taxar de forma agravada os veículos usados importados.
47. O argumento acessório de que compensação pelos efeitos nefastos que o veículo automóvel causa ao ambiente só perde coerência quando vê acrescentado que essa compensação deve ser exigida tanto em relação a veículos usados como novos. Isto porque, por um lado, é indiscutível que quanto mais antigo for um veículo, menor será a sua capacidade de poluir, na estrita medida em que se aproxima do limite da sua vida útil. E, por outro lado, não sendo essa compensação exigida na transacção de veículos nacionais usados, bem se vê que consubstancia uma clara discriminação fiscal.
48. O TJUE pronunciou-se expressamente sobre a matéria, no ac. de 7.03.2011 (Tatu, proc. C-402/09), explicando que a aplicação de uma taxa relativa à poluição aplicada aos veículos automóveis aquando da sua matrícula em território nacional apenas é admissível na medida em que, quando aplicável a veículos usados importados de outro Estado membro, não excede o montante residual da taxa incorporada no valor dos veículos usados já matriculados no território nacional (n.os 43 e 47).
49. O argumento de que o regime em causa não prejudica a importação de veículos usados também não colhe. Seja ou não real, sempre será irrelevante: o que o art. 110.º do TFUE exige é a neutralidade fiscal (enquanto expressão de um princípio de não discriminação) a qual pode, em cada caso, contribuir mais ou menos para o funcionamento do mercado interno, mas nem por isso varia o seu grau de exigência.
50. Veja-se, neste aspecto, o mesmo ac. de 7.03.2010 do TJUE, quando decide, declarando que [o] artigo 110.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a que um Estado Membro crie um imposto sobre a poluição que incide sobre os veículos automóveis no momento da sua primeira matrícula nesse Estado Membro, se esta medida fiscal for estruturada de tal maneira que desencoraje a colocação em circulação, no referido Estado Membro, de veículos usados adquiridos noutros Estados Membros, sem, por outro lado, desencorajar a compra de veículos usados da mesma idade e com o mesmo desgaste no mercado nacional. No mesmo sentido V. decisões de 8.04.2011, nos casos Obreja et Darmi (Proc.os C-136/10 e C-178/10), Ijac (Proc.º C-336/10), Sfichi et Ilaş (Proc.osC-29/11 e C-30/11), de 13.07.2011, Druţu (Proc.º C-438/10) e de 3.02.2014, Câmpean et Ciocoiu (Proc.º C‑97/13 et C‑214/13).
51. A liberdade argumentativa da AT assume mesmo algum excesso quando pretende que uma eventual aplicação dos níveis de redução previstos para a componente cilindrada à componente ambiental redundaria numa subversão da tributação da componente ambiental, resultando na atribuição de um benefício.
52. Se, do que se trata, é sempre e apenas da neutralidade fiscal, desta não pode, por definição, resultar a atribuição de qualquer benefício. Pretender o contrário será mais do que discutível.
53. A realidade é que, ao contrário do que pretende a Requerida, se o montante do imposto de registo que incide sobre os veículos usados importados excede o montante residual deste incorporado no valor dos veículos usados similares já registados no mercado nacional, tal arrisca se a favorecer a venda de veículos usados nacionais e a desencorajar assim a importação de veículos usados similares (ac. 19.12.2013, X, Proc.º C 437/12, n. 31)
54. De facto, o montante do imposto cobrado no momento da matrícula de um veículo automóvel é incorporado no valor desse veículo. Quando um veículo matriculado com pagamento de um imposto num Estado Membro é, posteriormente, vendido nesse Estado Membro como veículo usado, o seu valor comercial compreende o montante residual desse imposto. Se o montante do imposto que, na data da sua matrícula, incide sobre um veículo usado importado do mesmo tipo, com as mesmas características e o mesmo desgaste exceder o referido montante residual, há violação do artigo 110.o TFUE (ac. 9.12.2016, Budișan, Proc. C 586/14, n. 38).
55. A AT prossegue a sua argumentação invocando toda uma série de inconstitucionalidades. Mas nenhuma colhe.
56. Sobre o problema de qualquer inconstitucionalidade sempre se recordarão, em geral os termos do art. 8º/4 da CRP: as disposições dos tratados que regem a UE e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectiva competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.
57. É, portanto, a própria constituição que reconhece que a aplicação do direito da UE se faz nos termos definidos pela própria UE. E a propósito, os Estados membros convieram que, em conformidade com a jurisprudência constante do TJUE, os tratados e o direito adoptado pela União com base nos tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência (Declaração 17 anexa ao TFUE).
58. Pena é que a AT persista numa perspectiva nacionalista, ignorando que o princípio de legalidade não se esgota no ordenamento interno. Pelo contrário, este princípio impõe a devida ponderação do direito da UE que é directamente aplicável na ordem interna, nos termos constitucionais.
59. O último argumento da Requerida refere que, sendo-lhe desfavorável a decisão, terá meios de reacção muito limitados o que configurará uma violação dos princípios do Estado de Direito e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
60. Não pode deixar de se estranhar que a AT, que beneficia dos maiores privilégios legais em matéria jurisdicional, venha invocar o direito a uma tutela efectiva, sendo que, mais uma vez, o regime não é mais favorável para o Requerente.
61. Nestes termos, entende este tribunal arbitral que o art. 11.º do Código do ISV está em desconformidade com o disposto no art. 110.º do TFUE porquanto aquela norma não pode, em conformidade com o que esta dispõe, calcular o imposto sobre veículos usados oriundos de outro Estado membro sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de forma a que o imposto calculado ultrapasse o montante de ISV contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado membro de importação, ou seja, dos veículos usados nacionais.
62. A par do pedido de declaração da ilegalidade parcial das liquidações de ISV identificadas no processo, o Requerente peticiona ainda juros indemnizatórios.
63. No que diz respeito ao pagamento de juros indemnizatórios, de acordo com o disposto no art, 24.º/5 do RJAT é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, daqui resultando que uma decisão arbitral não se limita à apreciação da legalidade do acto tributário.
64. De igual modo, de acordo com o disposto no artigo 24.º/1 b) do RJAT, deverá ser entendido que o pedido de juros indemnizatórios é uma pretensão relativa a actos tributários (v.g. de liquidação), que visa explicitar/concretizar o conteúdo do dever de restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito.
65. Nos processos arbitrais tributários pode haver lugar ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos art. 43.º/1 e 2, e 100.º da LGT, quando se determine que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
66. O direito a juros indemnizatórios depende, assim, da verificação de um erro imputável aos serviços da Requerida, do qual tenha resultado um pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
67. Na sequência da declaração de ilegalidade parcial dos actos de liquidação de ISV identificados, na medida do peticionado pelo Requerente, e nos termos do disposto no art. 24.º/1 b) do RJAT (em conformidade com o que aí se estabelece), a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, pelo que terá de haver lugar ao reembolso parcial do montante pago pelo Requerente, relativo ao ISV na parte em que a liquidação se deve considerar anulada, como forma de se alcançar a reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade já assinalada.
68. Tratando-se de matéria na qual o Estado português vem sendo sucessivamente condenado – facto esse que é do pleno conhecimento dos serviços – e bem assim, porque se têm repetido decisões no sentido de impor à AT a correcção da situação em apreço – decisões essas que os serviços insistem em ignorar, mantendo uma visão da legalidade que nem no plano formal alcança sustentação, consideram-se preenchidos os requisitos do direito a juros indemnizatórios, aos quais o Requerente terá direito, à taxa legal, calculados sobre a quantia de ISV paga indevidamente, os quais serão contados de acordo com o disposto no art. 61.º/3 do CPPT, ou seja, desde a data do pagamento do imposto indevido até à data da emissão da respectiva nota de crédito.
IV. Decisão
Em face do supra exposto, decide-se
1. Julgar procedente o pedido de anulação parcial das liquidações de ISV identificadas no pedido arbitral, determinando-se a sua anulação parcial e ordenando-se o reembolso ao Requerente da quantia paga em excesso, no montante de 8.022,00 €;
2. Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculados nos termos legais, em conformidade com o peticionado;
3. Condenar a Requerida no pagamento integral das custas do presente processo.
V. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em 8.022,00 € (oito mil e vinte e dois euros) nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º/1 a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º/2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VI. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de 918 € (novecentos e dezoito euros), a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º/2, e 22.º/4, do RJAT, e artigo 4.º/5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 30 de Outubro de 2020
O Árbitro
Rui M. Marrana
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.