Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 852/2019-T
Data da decisão: 2020-11-04  IVA  
Valor do pedido: € 288.717,63
Tema: IVA contratos de locação financeira; alienação/abate por destruição de bens locados; Cálculo do pro rata; Direito à dedução; Ofício-Circulado n.º 30108.
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SUMÁRIO:

 

I.             O IVA a liquidar deve incidir sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fracção que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras;

II.            O entendimento da AT de tributar toda a renda, como determina o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º, do CIVA, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização não tem apoio directo nos textos legais, uma vez que o legislador não fez uso  da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção;

III.          A jurisprudência do TJUE, no denominado Caso Banco Mais, não pode colher no sentido invocado pela AT, porquanto,  analisado o mesmo conclui-se que parte de uma premissa não está correcta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista;

IV.          Não se nos afigura que o normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) represente uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Directiva.

 

DECISÃO ARBITRAL

I – Relatório

 

1. No dia 12.12.2019, a Requerente, A..., S.A. (doravante simplesmente A... ou REQUERENTE), titular do número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa –...Secção e de identificação de pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua .., ...-... Lisboa, requereu ao CAAD a constituição de tribunal arbitral, nos termos do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira, com vista à anulação parcial das autoliquidações de Imposto consubstanciadas nas declarações periódicas de IVA respeitantes aos períodos de 2011/04, 2011/05, 2011/06.

 

A Requerente peticiona, ainda, a restituição da quantia de € 288.717,63 referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de 2011/04, 2011/05 e 2011/06, até à data da restituição.

 

2. A Requerente havia apresentado, a 13 de Julho de 2011, impugnação judicial contra os actos tributários ora objecto do presente processo.

        À data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro encontrava-se aquele processo, que corria os seus termos na Unidade Orgânica 1, do Tribunal Tributário de Lisboa, sob o número de processo .../11...BELRS, a aguardar decisão em primeira instância.

 

        O artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, veio determinar no seu n.º 1 que “os sujeitos passivos podem, até 31 de Dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respectivas competências, as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de Dezembro de 2016, com dispensa de pagamento de custas processuais”.

 

       A Requerente apresentou junto do Tribunal Tributário de Lisboa, ao abrigo do disposto no referido artigo 11.º, requerimento com vista à a extinção do processo de impugnação judicial por o ir cometer ao Tribunal Arbitral, constituído sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa, tendo sido proferida sentença homologatória, datada de 11.12.2019, da desistência da instância para esse propósito.

 

Nos termos do n.º 2 do referido preceito legal, a pretensão aqui submetida à arbitragem coincide com o pedido e a causa de pedir do processo de impugnação judicial.

 

3.O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira.

Nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1, do art. 6.º, do RJAT, por decisão do Senhor Presidente do Conselho Deontológico, devidamente comunicada às partes nos prazos legalmente aplicáveis, foram designados árbitros os signatários da presente decisão, que comunicaram ao Conselho Deontológico e ao Centro de Arbitragem Administrativa a aceitação do encargo no prazo regularmente aplicável.

      O Tribunal Arbitral foi constituído em 5.03.2020.

 

4. Como fundamento da sua pretensão alegou a Requerente, no essencial, que:

a.            A Requerente que é, para efeitos de IVA, um sujeito passivo misto (realiza operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem direito a dedução), deduziu, nas declarações periódicas relativas aos três períodos do exercício de 2011 aqui em causa(referentes aos meses de Abril,  Maio, Junho e Julho de 2011), o IVA com base no cálculo do pro rata provisório, correspondente ao pro rata definitivo para o exercício de 2010.

 

b.            Nestas declarações periódicas de IVA, a Requerente, na determinação do cálculo do pro rata, excluiu as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.

 

c.            Fê-lo, seguindo o critério da Requerida vertido no ofício circulado n.º 30108, de 30/01/2009, sancionado pelo Director Geral, reduzindo assim o seu pro rata de 68% (valor definitivo para 2010), para 24% (valor definitivo para 2010).

 

d.            Consequentemente, a Requerente viu o montante a deduzir diminuir de € 446.199,97 para € 157.482,34.

 

e.            A Requerente considera que a referida exclusão é ilegal face aos artigos 19.º, n.º 1 e  23.º do Código do Imposto sobre o Valor  Acrescentado aos artigos 173.º e 174.º da  Directiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de Novembro de 2006.

 

f.             A Requerente pagou o valor das autoliquidações objecto do processo.

 

4. A ATA – Administração Tributária e Aduaneira, chamada a pronunciar-se, veio apresentar a sua resposta, o que faz, remetendo a sua argumentação para a contestação oportunamente deduzida em sede de impugnação judicial n.º .../11... BELRS, que correu termos no Tribunal Tributário de Lisboa, 1.ª Unidade Orgânica.

 

        Por sua vez, na contestação apresentada pela Fazenda Pública no referido processo de impugnação judicial n.º .../11...BELRS, consta o seguinte:

“Sobre a matéria controvertida, sustenta a informação da Divisão de Justiça Contenciosa da Direcção de Finanças de Lisboa no sentido de negar provimento à pretensão formulada pela impugnante, pelo que acompanhamos a posição vertida na referida informação, constante de fls. (…) do PAT (…) e assumimo-la como contestação, pugnando pela manutenção do acto tributário impugnado.”

 

    Na mencionada informação refere-se, no essencial, que:

 

a.            Tendo em conta os normativos do art. 23.º do CIVA e a Directiva do IVA, é entendimento da AT que  a percentagem de dedução através do método do pro rata não deve integrar a amortização financeira  incluída nas rendas de leasing e ALD Financeiro bem como a alienação ou indemnização dos bens abatidos, pelo facto  de tais montantes não integrarem o volume de negócios do Banco A... uma vez que considera que aqueles valores não constituem proveitos da entidade locadora, mas apenas  o reembolso do capital investido.

 

b.            No entendimento da AT, apenas os juros componente da renda estão em conexão com os custos comuns utilizados pois, ao constituirem a remuneração do serviço prestado, têm por objectivo a cobertura dos custos suportados a montante.

 

c.            Embora de acordo com o art. 16.º, nº. 2, al. h) do Código do IVA, o valor tributável das operações subjacentes a um contrato de locação financeira (rendas), seja composto por capital mais juros, a parcela correspondente à amortização de capital (amortização financeira) não tem a natureza de proveito prendendo-se a sua sujeição a IVA “simplesmente com o facto de ser a única via que o Estado tem para recuperar o valor do IVA que a impugnante deduziu aquando da aquisição dos bens, segundo as regras da afectação real.”

 

d.            Concluindo  que as pretensões da  Requerente são improcedentes devendo manter-se na ordem jurídica os actos de autoliquidação impugnados.

 

5. Por despacho de 30 de Julho de 2020, atendendo a que dos autos consta prova documental sobre os factos alegados pelo SP, quer por não existir dissídio sobre os factos essenciais para a decisão da causa, quer por a questão se apresentar substancialmente de direito, foi indeferido o requerimento de inquirição de prova testemunhal apresentado pela Requerente.

Não havendo lugar a produção de prova constituenda, por um lado, e não tendo sido suscitada matéria de excepção, por outro, foi, ainda, dispensada a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste (arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2, do RJAT).

 

6. As partes apresentaram alegações escritas.

A Requerente, para além de ter reafirmado o já exposto em sede de petição inicial, alegou ainda, em síntese, que:

 

a.            A Requerente não desconhece, naturalmente, quer a decisão proferida pelo TJUE no âmbito do Processo C-183/13 – (conhecido pelo «Caso Banco Mais») quer as decisões nacionais que têm vindo a ser proferidas no seguimento do acórdão do TJUE, sucede, todavia, que, com o devido respeito, sustentando que aquela decisão do TJUE assenta numa premissa factual manifestamente errada – a de que a legislação nacional (no caso o nosso código do iva) transpôs ipsis verbis para o nosso ordenamento jurídico o que a directiva previa sobre a matéria da dedutibilidade do iva pelos sujeitos passivos.

 

b.            Julga a Requerente que o entendimento sufragado nas decisões judiciais proferidas com base em tal aresto do TJUE – e que, com o devido respeito, assumindo por certa tal premissa, não se deram ao trabalho de, mesmo após ter a questão sido suscitada, analisar com a diligência devida se a mesma estava efectivamente, ou não, correcta – padecem, naturalmente, do mesmo equívoco.

 

c.            Da mera leitura das disposições legais nacionais aplicáveis (maxime do artigo 23.º do CIVA) se pode (e deve) constatar que (ao contrário do que o TJUE veio a dar como certo, apenas e só com base no que o Representante do Estado Português alegou no processo) as mesmas não correspondem à mera transposição ipsis verbis da Directiva do IVA, não estando, assim, prevista na nossa legislação nacional a possibilidade – conferida pela Directiva, como veio o TJUE a esclarecer, e que, naturalmente, já não se questiona – de a AT poder mitigar o pro rata.

 

d.            Embora se admita hoje que, de iure constituendo, ao abrigo da Directiva do IVA, os Estados-Membros possam optar por não só impor o uso de um determinado método de dedução do IVA relativo aos designados custos comuns para os sujeitos passivos mistos, como possam, inclusive, no caso da aplicação do método do pro rata, impor que determinadas verbas sejam, ou não, consideradas no numerador / denominador da fórmula de cálculo da percentagem de dedução, a verdade é que, de iure constituto, tal possibilidade não foi – de todo – a seguida pelo Estado Português que, repita-se, embora se admita hoje – por força da decisão do TJUE no «Caso Banco Mais» que a Directiva confere essa margem aos Estados-membros, o legislador nacional entendeu, porém, consagrar no nosso ordenamento jurídico (ou seja no CIVA) apenas a possibilidade de a AT impor o uso de um determinado método (afectação real ou pro rata). Sempre com o fundamento de combater as “distorções significativas na tributação”.

 

e.            Uma interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA permitem à AT (à margem do processo legislativo estabelecido na CRP) através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstracto, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA (excluindo, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização) é material e formalmente inconstitucional por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2, da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República [165.º, n.º 1, alínea i) da CRP], o que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

 

f.             E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, pelo que uma interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA lhe confere, à AT, tal possibilidade, também é violadora do princípio da legalidade da actuação da AT (artigos 266.º, n.º 2, da CRP).

 

A Requerida, nas suas alegações escritas, sustentou, em resumo, o seguinte:

a.            No caso concreto, estamos perante operações de locação financeira mobiliária, e pretende aferir-se a legalidade, face às normas de direito comunitário ou de direito interno, da exclusão do cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação que corresponde à amortização financeira, apenas considerando o montante de juros e outros encargos facturados.

b.            Deve ser excluída do cálculo da percentagem de dedução a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.

c.            É apenas o  valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.

d.            Os  inputs em que incorre a Requerente, com vista à disponibilização dos veículos ao locatário,  para além da aquisição do veículo, poucos ou nenhuns serão, pois parece-nos evidente as restantes despesas, que ganham peso durante a vigência do contrato, situam-se ao nível do financiamento e da gestão, decorrentes das vicissitudes do contrato, como seja despesas com advogados, fornecedores externos, solicitadores, tratamento de multas, de coimas, infracções, tratamento do imposto único de circulação, ou decorrentes da gestão corrente da actividade – água, luz, condomínio, software, sistema de alarmes, etc.

e.            Acresce a isto o facto de que num contrato de locação financeira, por mais que a Requerente alegue que corre por sua conta todos os custos inerentes ao mesmo, o locador fica liberto daquilo que são as obrigações regra do proprietário no regime geral da locação pois não corre por conta dele o risco do perecimento do bem, sendo a obrigação de segurar o bem do locatário, nem  corre por conta dele, locador, mas sim por conta do locatário, a obrigação de realizar reparações, mesmo que necessárias ou urgentes sendo ainda ao locatário que compete defender a integridade do bem e o respectivo gozo.

f.             Por sua vez, as despesas de transporte, seguro, montagem, instalação e reparação do bem, assim como as necessárias à sua eventual devolução ao locador ficam a cargo do locatário, salvo estipulação em contrário, como assim também o risco de perda e deterioração do bem, tudo conforme os artigos 10.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º do DL n.º 149/95.

g.            Por outro lado, em algum momento da p.i. a Requerente invocou que os gastos de disponibilização com veículos são significativos e que constituem sobretudo o grosso dos gastos incorridos no âmbito dos contratos de leasing e de ALD, por contraposição aos gastos de gestão de financiamento dos contratos.

h.            A questão que se coloca, pois, é a de saber se o procedimento adoptado pela Administração Tributária está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23.º CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175.º da Diretiva IVA.

i.             A resposta é afirmativa. Veja-se o caso do Acórdão “Banco Mais” e o acórdão do STA, processo n.º 052/19.0BALSB onde se pode ler que “a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços»”.»

j.             Nem diga a Requerente, que, no concerne à forma de determinação do critério de imputação especial, existe uma clara violação do princípio da legalidade, da neutralidade e da reserva de lei.

k.            É que se a AT veio a reproduzir o aludido critério através do Ofício-Circulado n.º 30.108, fê-lo apenas a pedido e de acordo com as instruções do legislador, que expressamente determinou que a AT podia vir impor condições especiais, conforme os n.sº 3 e 2 do art.º 23.º.

l.             No limite, a AT podê-lo-ia até fazer casuisticamente, sujeito passivo a sujeito passivo, aplicando o critério que entendesse mais consentâneo à situação em concreto, que respeitasse a neutralidade do imposto.

m.          A bem da estabilidade tributária e do princípio da colaboração/informação, optou por divulgar o critério através de uma instrução administrativa.

 

7. O tribunal é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído nos termos do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas.

O processo não padece de vícios que o invalidem.

 

8. Cumpre solucionar as seguintes questões:

1) Ilegalidade das autoliquidações objecto do presente processo.

 

2) Inconstitucionalidade dos   n.º 2 e  3, do artigo 23.º, do Código do IVA, por violação dos princípios da separação dos poderes (artigos 2.º e 111.º da CRP), do artigo 112.º, n.º 5, da CRP, do princípio da legalidade tributária (103.º, n.º 2 da CRP) e da reserva de lei da Assembleia da República [165.º, n.º 1, alínea i) da CRP] em  caso de   interpretação segundo a qual o n.º 2 e o nº  3, do artigo 23.º, do Código do IVA, permitem à AT através de circular interna definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, com carácter geral e abstracto, através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA.

 

3)Direito da Requerente à restituição do imposto e a juros indemnizatórios.

 

II – A matéria de facto relevante

 

9. Consideram-se provados os seguintes factos:

1.            No dia 26 de Maio de 2011, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Abril de 2011 tendo procedido ao pagamento da totalidade do valor resultante daquela liquidação (€162.723,03) em 9 de Junho de 2011.

2.            No dia 7 de Junho de 2011, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Maio de 201, tendo procedido ao pagamento da totalidade do valor resultante daquela liquidação (€348.062,70) em 8 de Julho de 2011.

3.            No dia 06 de Julho de 2011, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Junho de 2011, tendo procedido ao pagamento da totalidade do valor resultante daquela liquidação (€818.556,59) em 10 de Agosto de 2011.

4.            Para efeitos de IVA, a Requerente está enquadrada no regime normal, com periodicidade mensal, desenvolvendo operações sujeitas – nas quais se incluem as relativas à Locação Financeira mobiliária [Leasing e Aluguer de Longa Duração Financeiro (doravante ALD Financeiro)] – e operações isentas – designadamente a concessão de financiamentos de crédito para a aquisição de imóveis e automóveis e crédito ao consumo (vulgos contratos de crédito).

5.            O ofício circulado n.º 30108, de 30/01/2009, do Senhor Director Geral dos Impostos, tem o seguinte teor:

“Para conhecimento dos Serviços e de outros interessados, e tendo em vista divulgar a correcta interpretação a dar ao artigo 23º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a actividade de Leasing ou de ALD, comunica-se que, por meu despacho de 2009.01.30, proferido na informação nº 106, de 19 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, foi determinado o seguinte:

1. O ofício circulado nº 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.

2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou prorata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do prorata conduza a distorções significativas na tributação (nº 3 artº 23º).

3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o n.º 2 do artigo 23.º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.

4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.

5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.

6. Face à anterior redacção do artigo 23º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas.

No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do nº 4 do artigo 23º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um prorata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.

7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.

8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do prorata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.

9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.” .

6.            A posição vertida no ofício circulado n.º 30108, de 30/01/2009, havia sido adoptada  pelos Serviços de Inspecção da Requerida em sede de inspecção junto da Requerente relativamente factos tributários de IVA anteriores aos que estão em causa no presente processo.

7.            A Requerente deduziu, nas declarações periódicas relativas aos três períodos do exercício de 2011 aqui em causa, o IVA com base no cálculo do pro rata provisório, correspondente ao pro rata definitivo para o exercício de 2010.

8.            Nessas mesmas declarações a Requerente, na determinação do cálculo do pro rata excluiu as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.

9.            Em consequência desta exclusão o pro rata definitivo da requerente para o ano de 2010 foi de 24%, donde resultou o valor a deduzir de € 40.146,61 para o mês de Abril de 2011, € 65.698,60 para o mês de Maio e € 51.637,14 para o mês de junho.

10.          O pro rata correto é de 68% caso se considere, quer no numerador quer no denominador, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados donde resultará o valor a deduzir de € 113.748,73 para o mês de Abril de 2011, € 186.146,03 para o mês de Maio e € 146.305,22 para o mês de Junho.

 

Com interesse para a decisão da causa inexistem factos não provados

 

10. A convicção do Tribunal quanto à decisão da matéria de facto alicerçou-se nos documentos constantes do processo, que não foram objeto de impugnação por nenhuma das partes, sendo ainda de observar que dos articulados apresentados emerge concordância das partes relativamente à matéria de facto, cingindo-se o desacordo à matéria de direito.

 

-III- 1-O Direito aplicável

 

§1. Quanto à ilegalidade das autoliquidações objecto do presente processo

 

    O direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, devendo garantir a sua principal característica – a neutralidade.

Consubstancia-se como o elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado” , assentando no método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtractivo indirecto ou ainda método das facturas. Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º, da Directiva IVA (DIVA), “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço bem o serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.”  

               O mecanismo do exercício do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante, não o reflectindo assim como custo operacional da sua actividade, retirando, desta forma, o efeito cumulativo ou de cascata, propiciando, tal como referimos, a neutralidade económica do imposto.

As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excepcionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.

Decorre dos artigos 168.º e 169.º da Directiva IVA que o sujeito passivo apenas pode deduzir o imposto suportado na medida em que os bens e serviços sejam utilizados para efeitos das próprias operações tributadas, ou isentas que concedam tal direito. Por sua vez, o imposto suportado em inputs destinados à realização de operações não sujeitas não é susceptível de vir a ser deduzido, salvaguardando-se, contudo, as operações localizadas no estrangeiro (não sujeitas no território nacional), mas que seriam tributáveis concedendo direito a dedução se localizadas no território nacional.

De acordo com o disposto no artigo 168.º da Directiva IVA, transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, o sujeito passivo pode deduzir no Estado-membro em que se encontra estabelecido o IVA suportado nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como nas operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, “Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…) ”.

Conforme o estatuído no artigo 179.º da Directiva IVA, “[o] sujeito passivo efectua a dedução subtraindo do montante total do imposto devido relativamente ao período de tributação o montante do IVA em relação ao qual, durante o mesmo período, surgiu e é exercido o direito à dedução por força do disposto no artigo 178.º

(…).”

Em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o direito à dedução não pode ser limitado e pode ser exercido imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante.

Assim, só são permitidas derrogações à regra fundamental do direito à dedução integral do IVA nos casos expressamente previstos pela Directiva, conforme o TJUE salientou, nomeadamente, nos Casos Ampafrance e Sanofi  e na jurisprudência aí citada .

Ora, a este propósito, a Directiva IVA prevê duas excepções. A primeira visa a legislação existente: a cláusula de standstill do artigo 176.º da Directiva IVA . A segunda excepção, prevista no artigo 177.º da Directiva IVA, visa a nova legislação .

Importará ainda mencionar a cláusula geral constante do artigo 395.º, n.º 1, da Directiva, que permite introduzir medidas especiais derrogatórias para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais .

                Em conformidade com o previsto na Directiva IVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos. Igualmente de acordo com o estatuído na Directiva IVA, o legislador nacional vem determinar algumas situações excepcionais de exclusão do direito à dedução em função do tipo de despesas em causa.

                As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução .

De acordo com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA, para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA suportado os sujeitos passivos mistos, como é caso, isto é, aqueles que em simultâneo praticam operações que conferem direito à dedução de IVA e operações que não conferem tal direito e utilizam bens e serviços em ambas as operações, podem optar pela aplicação do designado método do pro rata ou pelo método da afectação real .

Assim, o n.º 1 do artigo 173.º Directiva IVA vem determinar que:

“No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações (…)”

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo”. Por sua vez, estatui o n.º 1 do citado artigo 174.º (a que correspondia o artigo 19.°, n.º 1, da Sexta Directiva) que “O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes: - no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações que conferem direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º; - no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não conferem esse direito à dedução.”

Por um lado, a Directiva permite aferir sobre aquela proporção em função do método de percentagem de dedução ou pro rata  , tendo por referência o peso do volume de negócios referente às operações que conferem direito a dedução em relação à globalidade das operações.

Por outro lado, de acordo com o n.º 2 daquele preceito, determina-se que os Estados membros podem autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se possuir contabilidades distintas para cada um desses sectores, obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores, autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas, e estabelecer que não se tome em consideração o imposto sobre o valor acrescentado que não pode ser deduzido pelo su- jeito passivo, quando o montante respectivo for insignificante.

O pro rata de dedução conforme refere a epígrafe do capítulo 2 da Directiva IVA poderá, em síntese, ser aferida em função do método da percentagem de dedução, o denominado pro rata (que poderá ser geral ou sectorizado), determinado em função do volume de negócios e o regime alternativo, denominado entre nós  por afectação real, que terá por base a utilização efectiva dos inputs.

Concluindo pela primazia na aplicação do método da afectação real, Xavier de Basto e Odete Oliveira referem que ”(…) a leitura correta destas normas obriga a considerar esses procedimentos previstos na diretiva por ordem crescente de “finura” em termos de resultado a obter, constituindo a regra do pro rata, portanto, segundo esta leitura, a que conduz ao resultado menos rigoroso – e por isso ela é a regra aplicável sempre que não seja possível outro procedimento com resultado mais adequado.”  Como adequadamente notam os autores  , a Directiva IVA “ (…) deixa aos Estados membros a possibilidade de aceitar ou mesmo impor os procedimentos mais rigorosos, reservando o pro rata como sistema residual e supletivo”.

O artigo 23.º do CIVA vem, nomeadamente. determinar o seguinte :

“1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.”

Se atentarmos ao parágrafo 6.º do ponto 98 relativo às conclusões do Relatório do Grupo de Trabalho que entre nós se debruçou sobre esta questão, é-nos referido que a condição de sujeito passivo misto em sede de IVA, abrangida pelo disposto no artigo 23.º do CIVA, não resulta propriamente do exercício simultâneo de operações que conferem o direito à dedução e de operações que não conferem esse direito, mas sim, da utilização “mista” dos seus inputs, isto é, pela afectação simultânea dos inputs em que foi suportado IVA aos dois tipos de operações .

Neste sentido, o TJUE, em reiterada jurisprudência, tem entendido que, antes do mais, para efeitos do exercício do direito à dedução, deverá atender-se ao tipo de operações praticadas pelo sujeito passivo em que os bens ou serviços são utilizados. Se tais bens e serviços são afectos exclusivamente à prática de operações que permitem a dedução do imposto, apresentando uma relação directa e imediata com essas operações e incorporando-se, em princípio, no custo das mesmas, o respectivo IVA pode ser deduzido integralmente. Diversamente, caso os bens ou serviços adquiridos sejam afectos exclusivamente à prossecução de operações que não possibilitam a dedução do IVA suportado, tendo uma relação directa e imediata com essas operações e incorporando-se, em princípio, no custo das mesmas, então o respectivo imposto não pode ser objecto de dedução.

Assim, tal como a Administração Fiscal esclarece, a aplicação do método do pro rata restringe-se à determinação do imposto dedutível relativo aos bens e/ou serviços de utilização mista, isto é, aos bens e serviços utilizados conjuntamente em actividades que conferem o direito à dedução e em actividades que não conferem esse direito .

Por outro lado, caso os bens ou serviços se encontrem exclusivamente afectos a operações sujeitas a imposto mas isentas sem direito à dedução ou a operações que, embora abrangidas pelo conceito de actividade económica, estejam fora das regras de incidência do imposto ou de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica, o IVA suportado não pode ser objecto de dedução.

Caso se constate não ser possível estabelecer um nexo objectivo entre a operação a montante e a operação a jusante “(…) por respeitar a bens e serviços que são ou serão usados tanto em operações do primeiro como do segundo tipo, esse qualificar-se-á como “residual” e será então objeto de “repartição”(apportionment)(…)”.

O método de percentagem de dedução (pro rata), poderá ser afastado por aplicação, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo 23.º, do método de afectação real, que consistirá na possibilidade de deduzir a totalidade do imposto suportado na aquisição de bens e serviços destinados a actividades que dêem lugar à dedução, mas impedindo, ao mesmo tempo, a dedução do imposto suportado em operações que não conferem esse direito.

Não se pode falar de um método de repartição mais apropriado para a dedução de inputs mistos, até porque tal deverá assentar numa análise casuística. No entanto, qualquer que seja o método de custos seguido, a aplicação prática da afectação real pressupõe a existência de uma relação entre as aquisições de bens e serviços efectuadas pelo sujeito passivo e as operações activas correspondentes.

No Caso Securenta  o TJUE foi chamado pronunciar-se sobre o critério de repartição adequado quando os inputs são simultaneamente afectos a uma actividade económica e a uma actividade não económica, tendo salientado que “a Sexta Diretiva não contêm qualquer disposição relativa aos métodos ou aos critérios que os Estados Membros devem utilizar na separação dos montantes de imposto a montante relativos à actividade económica dos relativos à actividade não económica.”   No entanto, alerta que os Estados membros no exercício desse poder devem assegurar os objectivos prosseguidos pela Directiva, não podendo contrariar o princípio da neutralidade fiscal.

A Autoridade Tributária entendeu sempre a aplicação prioritária do pro rata em detrimento da afectação real, contudo, esta posição foi invertida na sequência da alteração introduzida no artigo 23.º do CIVA. Efectivamente, pro rata e afectação real são agora percepcionados pela Administração Fiscal, no âmbito do exercício de uma actividade económica, num plano de igualdade, de utilização facultativa, ambos norteados pelo magnum princípio da neutralidade económica do imposto e da tradução da objectiva afectação de cada input.

 

O método de percentagem de dedução (pro rata) e as operações de locação financeira

 

Como vimos, no contexto da separação ex post, em conformidade com o método da percentagem de dedução ou pro rata, previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 23.º do CIVA, toma-se como referência, no seu numerador, o montante anual das operações que conferem direito a dedução, ponderado em função da totalidade das operações que se insiram no conceito de actividade económica.

A consideração, no denominador da fracção, de operações que se insiram no âmbito do conceito de actividade económica, constitui uma evidente clarificação ocorrida por via da alteração legislativa incutida ao artigo 23.º do CIVA por parte da Lei do Orçamento do Estado para 2008,  conduzindo, necessariamente, à alteração das orientações administrativas da AT e das posições entretanto assumidos pelos tribunais nacionais.

Na determinação da percentagem de dedução por esta via, deverá salvaguardar-se o facto de que apenas as operações inseridas no âmbito da actividade económica, conforme é delimitada pela Directiva IVA e pela jurisprudência divulgada pelo TJUE, é que poderão influenciar o direito à dedução, por esta via, dos sujeitos passivos mistos.

A aplicação do método do pro rata suscita algumas questões fundamentais, tais como as que por ora nos ocupam.

No presente Processo está precisamente em causa aferir se na determinação do pro rata  devem ou não ser  consideradas, quer no numerador quer no denominador, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.

Vejamos.

De acordo com o entendimento da AT não deverá ser incluído no numerador e no denominador da fracção a componente de amortização de capital nas rendas dos contratos de locação financeira mobiliária (e, bem assim o valor de alienação/indemnização/abate de bens locados), mas apenas a componente de juros.

Assim, no Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, veio a AT estabelecer, designadamente, o seguinte: “Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD”.

No tocante à amortização financeira, tem defendido a AT que “a componente financeira correspondente à amortização do financiamento subjacente à aquisição do bem locado”, não sendo uma contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, “não tem a natureza de proveito e não pode, por isso, integrar o volume de negócios” (cfr. Relatório de Inspecção relativo ao ano de 2008, junto como documento n.º 9).

No mesmo sentido, no respeitante à alienação/indemnização de bens abatidos por destruição, a AT defende que “o valor da indemnização não constitui proveito do locador” nem “integra[m] o volume de negócios” (Cfr. Relatório de Inspecção relativo ao ano de 2008, junto como documento n.º 9).

Isto é, de acordo com o entendimento veiculado pela AT, nenhuma das situações supra referidas se consubstancia como um verdadeiro proveito, não podendo, por isso, integrar o volume de negócios e, consequentemente, fazer parte do cálculo do pro rata.

Neste contexto, a AT invoca, para efeitos de determinação do conceito de volume de negócios a que alude o n.º 1 do artigo 174.º da Directiva IVA, o conceito de volume de negócios definido pelo Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro – relativo ao controlo das concentrações de empresas –, aplicável às instituições financeiras, segundo tem alegado a AT, por força da Comunicação constante do Jornal Oficial das Comunidades n.º C 66 de 02.03.1998.

Nestes termos, a AT conclui que o capital (correspondente à amortização financeira da operação) não constitui a remuneração de um qualquer serviço prestado, i.e., não consubstancia um proveito que possa influenciar o resultado do exercício e, assim sendo, não é passível de integrar o volume de negócios para efeitos de determinação da percentagem de dedução (i.e., para apuramento do pro rata).

Neste contexto, na Informação n.º 1763, da Direcção de Serviços de IVA, de 8 de Setembro de 2008 e no citado Ofício Circulado n.º 30108, conclui-se que apenas os juros e outros encargos é que constituem remuneração pelo serviço prestado, pelo que apenas estes podem ser considerados para efeitos do cálculo do pro rata, pelo que, do numerador, deverão ser excluídos os montantes correspondentes ao capital das rendas dos contratos de locação financeira e ao capital da alienação/indemnização de bens abatidos por destruição.

Ora, como bem salientam os Professores Doutores José Guilherme Xavier de Basto e António Martins , deve ser sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, que se deve liquidar IVA, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fracção que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.

Com efeito, o entendimento da AT de tributar toda a renda, como determina o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º, do CIVA, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização não tem apoio directo nos textos legais. Não se encontra prevista na legislação nacional a possibilidade de a AT poder alterar / modelar a componente do pro rata, não tendo o legislador nacional feito uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção. As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, no nosso ordenamento jurídico, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afectação real (n.º 3, alínea b) do artigo 23.º do CIVA), ou, quando resultam do facto de o sujeito passivo ter optado por este método, da imposição de o abandonar (parte final do n.º 2 do mesmo artigo). É certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afectação real, a Administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas tais condições não podem consistir em alterações ao pro rata de dedução nos termos ora pretendidos pela AT.

De facto, as regras acolhidas na Directiva do IVA, não obstante a margem concedida aos Estados membros no âmbito do exercício do direito à dedução de bens e serviços de utilização mista, não atribuem à AT poderes para alterar o modo de cálculo da percentagem de dedução do IVA autorizada para os bens de utilização mista, ou seja, relativamente aos custos comuns que não puderam ser atribuídos por critérios objectivos aos dois grupos de operações, tributadas e isentas, do sujeito passivo.

Na realidade, a acolher-se o entendimento da AT, existiria manifestamente uma contradição entre o algoritmo de cálculo da percentagem de dedução e o princípio base que orienta esse cálculo, que é, como temos estado a analisar, o da dedução parcial em proporção do montante das operações que conferem direito à dedução.

Adite-se ainda que a jurisprudência do TJUE no denominado Caso Banco Mais, não poderá colher no sentido invocado pela AT.

Com efeito, neste Caso o TJUE considerou que a Sexta Directiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou um critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daqueloutro método. 131.º Ora, analisado o Acórdão do TJUE proferido no Caso Banco Mais, conclui-se que parte de uma premissa que não está correcta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.

De facto, não se nos afigura que o normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) represente uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Directiva.

No mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal Arbitral nas suas decisões proferidas nos Processos Arbitrais números 309/2017-T, 311/2017-T 312/2017-T, 335/2018-T, 339/2018-T, 498/2018-T, e 581/2018-T14, a cujas conclusões aderimos.

Termos em que se conclui que o disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, não confere a possibilidade à AT de, no âmbito da aplicação do método do pro rata a um sujeito passivo que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, apenas considerar os juros na fracção do pro rata de dedução, pelo que a imposição de utilização do “coeficiente de imputação específico” indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade ao qual a AT se encontra subordinada em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT), devidamente explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, procedendo, assim, o pedido de pronúncia arbitral.

 

Atento o exposto, fica desta forma prejudicada a análise das questões de inconstitucionalidade suscitadas pela Requerente. 

 

§2. Quanto ao pedido de reembolso acrescido de juros.

 

A Requerente vem pedir o reembolso da quantia paga ao abrigo dos actos de autoliquidação em crise nos autos, acrescido de juros legais.

No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos de autoliquidação, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro nos autos que a ilegalidade dos actos de autoliquidação de imposto impugnados é directamente imputável à Requerida.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado pelo artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas. (sublinhado nosso).

O erro das autoliquidações é imputável à AT, nos termos previstos no n.º 2 deste artigo, pois foram seguidas pela Requerente as orientações administrativas emitidas pela Requerida, constante do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009.

Consequentemente a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.

Os juros indemnizatórios deverão ser pagos à Requerente desde data em que efectuou o respectivo pagamento do imposto em causa nos autos até ao integral reembolso do montante indevidamente pago, à taxa legal, nos termos que vierem a ser fixados em sede de execução de sentença.

 

-IV- Decisão

 

Termos em que decide o Tribunal arbitral julgar totalmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, decretando-se, com fundamento em ilegalidade, a anulação parcial dos actos tributários impugnados, nos seguintes termos:

a)            A autoliquidação do período a liquidação do imposto do período 2011/04 é anulada parcialmente no valor de €73.602,12, permanecendo na ordem jurídica o acto tributário no que respeita ao valor de € 40.146,61.

b)           A autoliquidação do período a liquidação do imposto do período 2011/05 é anulada parcialmente no valor de €120.447,43, permanecendo na ordem jurídica o acto tributário no que respeita ao valor de € 65.698,60

c)            A autoliquidação do período a liquidação do imposto do período 2011/06 é anulada parcialmente no valor de 94.668,08, permanecendo na ordem jurídica o acto tributário no que respeita ao valor de € 51,637,14.

d)           Condenação da Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago e respetivos juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos que vierem a ser fixados em sede de execução de sentença. 

 

Valor da acção: € 288.717,63 (duzentos e oitenta e oito mil, setecentos e dezassete euros e sessenta e três cêntimos) nos termos do disposto no art. 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Custas pela Requerida no valor de 5.202,00 € (cinco mil duzentos e dois euros), nos termos do n.º 4 do art. 22.º do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 4   Novembro de 2020

 

Os Árbitros

 

Fernanda Maçãs (presidente)

Marcolino Pisão Pedreiro

Clotilde Celorico Palma