Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 653/2019-T
Data da decisão: 2020-11-20  IRC  
Valor do pedido: € 2.088.973,40
Tema: IRC – Dedução de perdas por imparidade; reinvestimento de mais-valias.
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SUMÁRIO:

 

I - O artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC, ao estabelecer que os preços de venda a considerar, não sendo possível atender aos constantes de elementos oficiais ou aos últimos que tenham sido praticados pelo sujeito passivo, são os que sejam considerados idóneos e de controlo inequívoco está a reportar-se a requisitos de carácter alternativo;

II -           Sendo o reinvestimento das mais-valias, a que se referia o artigo 48.º do Código do IRC, um facto tributário de natureza instantânea, o regime jurídico aplicável é o vigente à data em que esse facto tenha ocorrido.

 

DECISÃO ARBITRAL (consultar versão completa no PDF)

Os Árbitros Carlos Alberto Fernandes Cadilha (na qualidade de Árbitro Presidente), Cristiana Maria Leitão Campos, (na qualidade de Árbitro Vogal) e Carla Castelo Trindade (na qualidade de Árbitro Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por “CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral colectivo, constituído em 20 de Dezembro de 2019, decidem no seguinte:

 

1. RELATÓRIO

1. A...- SGPS, S.A. (adiante designada apenas por “Requerente”), Pessoa Colectiva n.º ..., com sede na Rua ..., ...-... ..., Braga, apresentou um pedido de constituição de Tribunal Arbitral, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º e seguintes, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, adiante designado apenas por “RJAT”), em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida” ou “AT”), com vista à pronúncia deste Tribunal relativamente à:

             Declaração de ilegalidade e consequente anulação do Despacho proferido pelo Chefe de Divisão de Serviço Central, ao abrigo de Subdelegação de competências, que indeferiu o pedido de Reclamação Graciosa deduzido contra o acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018 ... e as liquidações de juros compensatórios n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., todas respeitantes a 2014;

             Declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2018 ... e das liquidações de juros compensatórios n.º 2018 ... e n.º 2018 ..., todas respeitantes a 2014;

             Declaração de ilegalidade e consequente anulação do acto de liquidação adicional de IRC n.º 2019 ... e das liquidações de juros compensatórios n.º 2019 ... e n.º 2019 ..., todas respeitantes a 2015;

             Condenação da AT à indemnização da Requerente pela prestação indevida de garantia.

 

2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 1 de Outubro de 2019 pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.

 

3. A Requerente não exerceu o direito à designação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) e do artigo 11.º, n.º 1, alínea a), ambos do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 20 de Novembro de 2019, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º, do Código Deontológico do CAAD.

 

4. Em conformidade com o disposto no artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo ficou constituído em 20 de Dezembro de 2019.

 

                5. A Requerente, enquanto sociedade dominante do grupo G..., veio sustentar a procedência do seu pedido, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

                No desenvolvimento da sua actividade de compra e venda de imóveis a sociedade B..., S.A. (sociedade dominada que integrava o perímetro do grupo, daqui em diante designada por “C...”) adquiriu diversos imóveis entre 1990 e 2001, bem como em 2008, que registou numa conta de inventários pelo custo de aquisição. Tendo em conta a crise financeira que se instalou a nível mundial no último trimestre de 2008 e que se repercutiu no mercado imobiliário, a C... contratou um serviço especializado para avaliar o valor de mercado dos seus imóveis. Uma vez que aquela avaliação determinou uma desvalorização muito significativa do valor dos imóveis registados no seu inventário, a C... registou perdas por imparidade de forma a adequar o valor contabilístico dos imóveis ao seu real valor de mercado. Posteriormente, a Requerente foi alvo de procedimentos inspectivos que culminaram na emissão, pela AT, de liquidações adicionais de IRC por referência aos anos de 2014 e 2015, tendo sido efectuadas correcções à matéria colectável em virtude da não consideração fiscal das imparidades que a C... havia registado.

                A Requerente entende que as referidas liquidações adicionais de IRC são ilegais na medida em que a AT negou a relevância fiscal das perdas por imparidade em virtude da “suposta, insusceptibilidade de controlo absoluto dos pressupostos e dos elementos de comparabilidade usados pelo perito avaliador independente” e do não cumprimento das datas exigidas para aquelas avaliações. A AT estaria assim a efectuar uma errónea interpretação e aplicação do artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC, ao exigir que o preço de venda utilizado pelo sujeito passivo correspondesse a um “preço corrente de mercado” idóneo e de controlo inequívoco, sendo que aquele preceito legal apenas exigia o preenchimento de um daqueles pressupostos.

                Nestes termos, ao não contestar a idoneidade da entidade avaliadora nem o resultado da avaliação, isto é, os valores por esta alcançados, não poderia a AT afastar a idoneidade do preço corrente de mercado pelo facto de o mesmo não ser de controlo inequívoco. O que seria agravado pelo facto de a AT não ter alegado, em sede inspectiva, a existência de erros na avaliação e de ter reconhecido não ter competência para, ela própria, proceder a avaliações daquela natureza. Assim sendo, ao ter a entidade avaliadora agido de forma independente e imparcial, não existiriam razões para não se considerar preenchidos os requisitos exigidos nos termos do artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC.

                Por outro lado, a AT teria negado a relevância fiscal das imparidades por considerar que os preços de venda utilizados pela Requerente não se reportavam ao termo do período de tributação tal como era exigido por aquele preceito legal. A este respeito, a Requerente entende que o facto de os relatórios de avaliação dos imóveis não se reportarem a 31 de Dezembro dos respectivos períodos de tributação não coloca em causa a idoneidade das avaliações efectuadas. Isto em virtude de a variação do valor dos imóveis ser menos volátil no tempo, sendo que a Requerente havia juntado em sede inspectiva uma adenda ao relatório de avaliação que demonstrava a inexistência de alterações relevantes quanto aos preços de venda nele indicados. O que seria ainda reforçado pelas novas avaliações que a Requerente apresentou no exercício do seu direito de audição no âmbito dos procedimentos de inspecção tributária e que tiveram por referência o termo daqueles períodos de tributação, nas quais se teria demonstrado, uma vez mais, que “os preços de venda estimados dos imóveis em causa não apresentam uma variação significativa face às avaliações elaboradas”.

                Ainda a respeito desta temática, referiu a Requerente que a venda efectuada em 2016 pela C... de alguns dos imóveis subjacentes às perdas por imparidade, com a consequente reversão e sujeição a tributação dos montantes a que se reportavam aquelas perdas, implicava que a actuação da AT seria ilegal porquanto negava a relevância fiscal das imparidades registadas nos períodos de 2014 e 2015, sujeitando os respectivos montantes a tributação, ao mesmo tempo que tributava novamente esses montantes aquando da sua reversão no período de tributação de 2016. No entender da Requerente, a AT estaria a tributar duas vezes o mesmo valor.

                Em suma, os actos de liquidação seriam ilegais por negarem a relevância fiscal das imparidades, encontrando-se ainda em violação dos princípios da justiça, da proporcionalidade, da boa fé e da segurança e confiança legítima. Isto na medida em que a C... havia confiado, legitimamente e actuando de boa fé, que a avaliação aos seus imóveis solicitada a perito independente e imparcial satisfaria a exigência prevista no artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC, para se concluir que estaria em causa um “preço de mercado idóneo”, sendo ainda desproporcionada a interpretação sufragada pela AT ao fazer sempre depender a idoneidade do preço corrente no mercado da possibilidade do seu controlo inequívoco.

                Por último, entende a Requerente que a liquidação adicional de IRC emitida em 2015 é ilegal na medida em que negou à D..., S.A. (sociedade dominada que integrava o perímetro do grupo, adiante designada apenas por “D...”) a aplicação do regime de reinvestimento em propriedades de investimento quanto à mais valia apurada em 2013. Apesar de a reforma do Código do IRC operada em 2014 ter eliminado a possibilidade de reinvestimento das mais valias apuradas naquele tipo de activos, considera a Requerente que aquela alteração legislativa não era aplicável às mais-valias em questão, uma vez que a referida lei havia estabelecido a sua vigência para os períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários ocorridos em ou após 1 de Janeiro de 2014. Deste modo, e seguindo o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo, considera a Requerente que a interpretação efectuada pela AT é inconstitucional e proibida nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por “CRP”), na medida em que propugna uma aplicação retroactiva da lei nova quanto a um facto tributário de verificação instantânea, isto é, que ocorreu inteiramente na vigência da lei antiga. Assim, seria aplicável o artigo 48.º, do Código do IRC à data dos factos e não a versão resultante da reforma do IRC de 2014, pelo que seria fiscalmente admissível o reinvestimento em propriedades de investimento, em 2014, do valor da mais valia apurada em 2013, ainda que a lei na data do reinvestimento já não admitisse que o mesmo fosse efectuado nesse tipo de activos.

                A Requerente terminou o seu pedido arbitral solicitando a produção de prova testemunhal, em concreto, a inquirição de I..., directora do departamento de contabilidade e consolidação do grupo.

 

                6. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta na qual impugnou os argumentos sustentados pela Requerente, tendo concluído pela improcedência da presente acção e consequente absolvição de todos os pedidos.

Atenta a natureza da matéria controvertida, a Requerida não requereu a produção de quaisquer provas, tendo apenas procedido à junção aos autos do respectivo processo administrativo. Referiu ainda que no caso não deveria ser consentida prova testemunhal pelo facto de as questões decidendas apenas convocavam matéria de Direito e por a prova dos factos se bastar com os documentos juntos aos autos.

 

7. A Requerida sustentou a sua resposta, sumariamente, com base nos seguintes argumentos:

Quanto às perdas por imparidade registadas pela C..., começou por afirmar que a idoneidade da entidade avaliadora não permite, sem mais, firmar a idoneidade da avaliação que, no caso em análise, não se poderia ter por verificada. Isto pelo facto de a análise ter em conta um número diminuto de imóveis com a mesma natureza dos imóveis avaliados, sendo que os imóveis de referência, para além de não estarem devidamente identificados e de se desconhecer a sua exacta localização, teriam áreas díspares e bastante diferentes dos imóveis avaliados. Por outro lado, o perito avaliador ter-se-ia bastado com a consulta dos imóveis na internet, efectuando uma análise pelo método Discounted Cash-Flows sem referir como teria estimado os custos de construção, tendo a Requerente optado por não utilizar os valores obtidos por aquele método sempre que estes fossem superiores aos valores apurados por “método de mercado”, aumentando por essa via as imparidades declaradas e reduzindo, ainda mais, o resultado tributável.

Já no que respeita à data de referência das avaliações efectuadas, entendeu a Requerida que o artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC, exige que as avaliações se reportem ao final do período de tributação, o que não se poderia considerar verificado. Quanto ano de 2014 a avaliação apenas teria sido efectuada em Abril de 2015, reportando-se ao mercado no momento em que foi realizada sem efectuar qualquer referência ao termo do período de 2014. Quanto ao ano de 2015 a avaliação teria sido bastante anterior ao final do período de tributação, pelo que seria impossível determinar o valor de mercado quanto a uma data futura relativamente à qual as condições em que os terrenos avaliados se situam poderiam ser já diferentes, designadamente no que respeitava à capacidade construtiva da área em questão. Tudo isto seria agravado por estar em causa um mercado com variações significativas de preços, como se evidenciava pelo facto de a Requerente sustentar uma variação de mais de 4 milhões de euros num espaço temporal de apenas 6 anos. Assim, não se poderiam considerar cumpridos os requisitos legais para sustentar os preços de mercado que estiverem subjacentes ao reconhecimento das perdas por imparidade tal qual havia sustentado a Requerente.

Por fim, no que respeita ao reinvestimento de mais-valias na esfera da D... seria necessário atender ao quadro legal vigente à data do reinvestimento e não ao quadro legal vigente à data da realização da mais-valia. Esta interpretação seria ainda sustentada pelo facto de o próprio legislador, por via da Portaria n.º 271/2014, ter alterado os modelos de declaração por forma a permitir a menção de reinvestimentos que passaram a estar prevista no Código do IRC em virtude da reforma operada em 2014, ainda que o reinvestimento nesse tipo de activos não estivesse previsto à data da realização das mais-valias. Desta forma, não seria legalmente admissível o reinvestimento em propriedades de investimento no período de 2014 porquanto a lei aplicável à data do reinvestimento não previa tal possibilidade, sendo assim improcedente o pedido formulado pela Requerente.

 

8. Em 12 de Fevereiro de 2020, mediante requerimento, veio a Requerente esclarecer que mantinha interesse na produção de prova testemunhal, invocando a sua pertinência para a prova dos factos dos quais decorria a necessidade de ser solicitada a avaliação externa dos activos imóveis da C..., bem como quanto aos factos relacionados com a condução pela E..., Lda. (daqui em diante designada por “E...”) daquela avaliação.

Na mesma data, mediante outro requerimento, veio a Requerente solicitar, nos termos do artigo 598.º, n.º 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, a junção ao rol de testemunhas do perito avaliador imobiliário F... .

 

9. Por despacho proferido em 12 de Fevereiro de 2020, foi admitido o aditamento ao rol de testemunhas apresentado pela Requerente, tendo-se conferido à Autoridade Tributária a faculdade de, querendo, alterar ou aditar o rol de testemunhas, nos termos do artigo 598.º, n.º 2, segunda parte, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Nesse despacho foram ainda as partes notificadas de que o Tribunal agendou a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, para o dia 11 de Março de 2020.

 

10. Por despacho proferido em 10 de Março de 2020, a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, foi adiada para data a designar, tendo sido posteriormente proferido despacho arbitral, em 3 de Junho de 2020, no qual se agendou a referida reunião para o dia 13 de Julho de 2020.

 

11. Em 20 de Junho de 2020, por estar o processo dependente da realização de diligência presencial, e em função da necessária tramitação processual subsequente, foi proferido despacho arbitral no qual se procedeu, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, à prorrogação do prazo para a prolação da decisão arbitral por dois meses.

12. Em 1 de Julho de 2020, por impossibilidade de comparência da testemunha arrolada para a data que havia sido agendada, foi proferido despacho arbitral no qual se adiou para o dia 8 de Setembro a reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT. O agendamento da reunião para essa data e a tramitação subsequente do processo inviabilizaram a prolação da decisão dentro do prazo que se encontrava fixado, tendo-se procedido à prorrogação por dois meses do prazo para prolação da decisão.

 

13. Em 17 de Agosto de 2020, por impossibilidade superveniente de comparência de um dos árbitros que compõem o colectivo, foi adiada a reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, para o dia 28 de Setembro.

 

14. Em 28 de Setembro de 2020 procedeu-se à reunião a que se refere o artigo 18.º, do RJAT, na qual foram inquiridas ambas as testemunhas. Nos termos do artigo 21.º, n.º 2, do RJAT, determinou-se ainda a prorrogação por dois meses do prazo referido no n.º 1 daquele preceito, a contar do respectivo término, bem como a comunicação de tal circunstância ao Conselho Deontológico do CAAD, por força do artigo 11.º, n.º 3, do Código Deontológico, em virtude do período de férias judiciais, da tramitação processual subsequente definida e da grave e notória situação pandémica verificada desde Março de 2020. Por último, foi fixado o dia 20 de Dezembro de 2020 enquanto data limite para prolação da decisão arbitral.

 

II. SANEAMENTO

 

                15. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 4.º, e 5.º, todos do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e estão regularmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, ambos do RJAT, e dos artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Tendo em conta o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do RJAT, ainda que os pedidos de declaração de ilegalidade respeitem a actos de liquidação adicional de IRC diferentes, a cumulação de pedidos é admissível na medida em que a sua procedência depende essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.

Não foram alegadas pelas partes, nem existem quaisquer excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer.

 

III. DO MÉRITO

 

III.1. MATÉRIA DE FACTO

III.1.1. Factos provados

 

16. Analisada a prova produzida no âmbito do presente Processo Arbitral, com relevo para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente é, desde 2008, a sociedade dominante do grupo de sociedades tributado ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades;

b)           Com referência aos exercícios de 2014 e 2015, integravam o perímetro do grupo a sociedade B..., S.A. e a sociedade D..., S.A.;

c)            A C... tem como actividade principal a compra e venda de bens imobiliários;

d)           No âmbito desta actividade, regista, para efeitos contabilísticos, os imóveis adquiridos na rúbrica de inventários, adoptando enquanto critério de mensuração no reconhecimento ou na escrituração inicial o custo de aquisição;

e)           Entre 1990 e 2001 a C... adquiriu um conjunto de imóveis, com o valor global de € 4.932.562,05, que se reproduz no seguinte quadro:

 

f)            O valor do VPT global desses imóveis é de € 113.927,07;

g)            A C... adquiriu, em Março de 2008, um terreno para construção, sito na Avenida ..., actualmente registado sob o artigo n.º ... da freguesia União de Freguesias de ... e ..., em Matosinhos, que foi registado na rubrica de inventários pelo valor total de € 10.876.911,00 (dos quais € 10.400.000,00 correspondentes ao valor do terreno e € 476.911 correspondentes aos encargos suportados com a sua aquisição);

h)           A C... contratou um serviço de avaliação de mercado dos seus imóveis à empresa E..., registada na lista de peritos da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (cfr. Documento 28);

i)             No que respeita ao imóvel, terreno para construção, sito na Avenida ..., adquirido em 2008, actualmente registado sob o artigo n.º ..., o valor da avaliação foi de € 5.499.000,00 (cfr. Documento 8);

j)             O imóvel, terreno para construção, sito na Avenida ..., adquirido em 2008, apresentava em 2014 um VPT, decorrente de avaliação efectuada pela AT nos termos do Código do IMI, de € 6.273.270,00;

k)            Em 2014 a C... registou quanto àquele imóvel uma imparidade no valor de € 4.603.641,00, a qual foi considerada para efeitos fiscais;

l)             Para o cálculo e registo daquela imparidade a C... utilizou o VPT fixado pela AT e não o valar da avaliação da E...;

m)          No que respeita aos imóveis adquiridos pela C... entre 1990 e 2001, a E... apurou um valor de mercado conjunto de € 1.830.100,00 (cfr. Documento 9);

n)           Em 2015 a C... contabilizou uma perda por imparidade em inventários no montante de € 3.102.462,05, cujos cálculos se reproduzem no seguinte quadro:

 

o)           Em Outubro de 2016, os imóveis incluídos no grupo I foram alienados, por um valor significativamente inferior ao valor contabilístico pelo qual estavam registados;

p)           Em razão desta venda, a perda por imparidade relativa aos imóveis incluídos no Grupo I que havia sido registada em 2015 foi totalmente revertida, tendo o montante de € 2.634.088,67 contribuído para o apuramento do lucro tributável do período de tributação de 2016;

q)           A C... foi alvo de procedimentos inspectivos internos aos exercícios fiscais de 2014 e 2015, tendo sido devidamente notificada dos projectos de relatório (cfr. Documentos 13 e 14);

r)            No âmbito desses procedimentos de inspecção a C... exerceu o seu direito de audição (cfr. Documentos 15 e 16);

s)            A C... foi devidamente notificada dos relatórios finais dos procedimentos de inspecção tributária referentes aos exercícios de 2014 e 2015 (cfr. Documentos 17 e 18);

t)            A D..., S.A., tem enquanto actividade principal a compra e venda de bens imóveis, conjuntamente com o seu arrendamento, tendo como âmbito da sua actuação a construção ou aquisição de bens imóveis, oferecendo serviços “chave na mão” ao cliente;

u)           Em 2013, a D... apurou mais-valias no valor de € 745.212,48, tendo declarado para efeitos fiscais que pretendia reinvestir o respectivo valor da realização e acrescido 50 % daquele valor ao campo 740 da sua declaração de rendimentos Modelo 22;

v)            Em 2014 foi parcialmente efectuado reinvestimento do valor de realização daquela mais-valia em propriedades de investimento;

w)          Na sequência de um procedimento inspectivo interno de âmbito parcial a D... foi devidamente notificada, em Dezembro de 2018, do projecto de relatório de inspecção tributária, referente ao período de tributação de 2015, no qual se propôs uma correcção à matéria colectável no montante de € 428.497,18 (cfr. Documento 19);

x)            Posteriormente a D... procedeu à entrega de uma declaração de substituição na qual procedeu à regularização voluntária do montante de € 100.630,27 correspondente à proporção do reinvestimento que não foi efectivamente concretizada;

y)            A D... foi devidamente notificada do projecto de relatório de inspecção tributária tendo exercido o seu direito de audição (cfr. Documento 21);

z)            A D... foi devidamente notificada do relatório final de inspecção no qual a AT manteve inalterada a sua posição (cfr. Documento 22);

aa)         A Requerente, enquanto sociedade dominante do Grupo G..., veio a ser objecto de dois procedimentos de inspecção interna, um atinente a 2014 e outro respeitante a 2015, mediante os quais a AT pretendeu reflectir no resultado fiscal do Grupo as correcções efectuadas em procedimentos inspectivos realizados às sociedades dominadas;

bb)         Em Setembro de 2018, a Requerente foi notificada do projecto de relatório de inspecção e do relatório final de inspecção, ambos respeitantes ao período de 2014 (cfr. Documentos 23 e 24);

cc)          A Requerente foi posteriormente notificada da demonstração da liquidação adicional de IRC de 2014 do Grupo G... que traduziu a correcção efectuada à matéria colectável da C... naquele exercício, assim como da demonstração das liquidações de juros compensatórios e da demonstração de acerto de contas, nos termos da qual se apurou o valor a pagar de € 1.234.504,24 (cfr. Documentos 2, 3 e 25);

dd)         Em Dezembro de 2018 a Requerente foi citada para o processo de execução fiscal destinado à cobrança coerciva daquele valor, tendo constituído para a sua suspensão garantia sob a forma de hipoteca voluntária no montante de € 1.560.259,85, que foi aceite pela AT (cfr. Documento 26);

ee)         Em Abril de 2019, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação adicional referente ao período de 2014, tendo exercido o seu direito de audição quanto ao projecto de indeferimento que lhe foi devidamente comunicado (cfr. Documentos 7 e 27);

ff)           Em 26 de Junho de 2019 foi proferido despacho de indeferimento do pedido de reclamação graciosa que a Requerente havia apresentado quanto ao período de 2014 (cfr. Documento 1);

gg)         A Requerente foi devidamente notificada do projecto de relatório de inspecção bem como do relatório final de inspecção respeitantes ao exercício de 2015;

hh)         Em Agosto de 2019, a Requerente foi notificada da demonstração da liquidação adicional de IRC de 2015 que reflectiu as correcções efectuadas à matéria colectável da C... e da D..., assim como da demonstração das liquidações de juros compensatórios e da demonstração de acerto de contas, nos termos da qual se apurou o valor de € 854.469,16 a pagar até 5 de Setembro de 2019 (cfr. Documentos 4, 5 e 6).

 

III.1.2. Factos não provados

 

17. Com relevo para a decisão da causa, não existem factos que devam considerar-se como não provados.

 

III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

18. Ao Tribunal incumbe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada, não tendo de se pronunciar sobre todos os elementos da matéria de facto alegados pelas partes, tal como decorre da aplicação conjugada do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante designado por “CPPT”) e do artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante designado por “CPC”), aplicáveis por força do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.

 Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é determinada tendo em conta as várias soluções plausíveis das questões de direito para o objecto do litígio, conforme decorre da aplicação conjugada dos artigos 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.2. MATÉRIA DE DIREITO

III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados

 

                19. Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT, que o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do acto impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.

                Não tendo sido alegado nenhum vício conducente à nulidade, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público.

                Assim sendo, começar-se-á pela apreciação da legalidade do registo de perdas por imparidade em imóveis, registados contabilisticamente enquanto inventários, por referência aos preços de venda correntes no mercado no termo dos períodos de tributação de 2014 e 2015 apreciando-se, de seguida, a legalidade do reinvestimento efectuado em 2015 em propriedades de investimento, do valor apurado a título de mais-valias realizadas em 2013.

 

III.2.2. Registo de perdas por imparidade por referência aos preços de venda correntes no mercado no termo do período de tributação

 

                20. A C..., sociedade dominada que integrava o perímetro fiscal da Requerente, procedeu nos exercícios fiscais de 2014 e 2015 ao registo de perdas por imparidade quanto aos imóveis já prontamente identificados e que se encontravam registados numa rúbrica de inventários. O reconhecimento destas perdas terá sido efectuado em cumprimento do princípio contabilístico da prudência por forma a garantir que o valor contabilístico daqueles imóveis espelhava o seu real valor e, consequentemente, a efectiva realidade patrimonial da sociedade.

                De modo a que seja possível aferir se os pressupostos de que depende a relevância fiscal das perdas por imparidade em inventários se encontravam ou não verificados, cumpre efectuar um breve enquadramento do regime jurídico que à data conformava aquele registo.

                De acordo com o artigo 28.º, do Código do IRC, na redacção conferida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que republicou aquele código, dispunha-se, ao que importa, que:

                “1. São dedutíveis no apuramento do lucro tributável as perdas por imparidade em inventários, reconhecidas no mesmo período de tributação ou em períodos de tributação anteriores, até ao limite da diferença entre o custo de aquisição ou de produção dos inventários e o respetivo valor realizável líquido referido à data do balanço, quando este for inferior àquele.

                2. Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por valor realizável líquido o preço de venda estimado no decurso normal da actividade do sujeito passivo nos termos do n.º 4 do artigo 26.º, deduzido dos custos necessários de acabamento e venda.”.

                Por seu turno, estabelecia o artigo 26.º, n.º 4, daquele código que:

                “4. Consideram-se preços de venda os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo ou ainda os que, no termo do período de tributação, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco.”

                Nestes termos, tendo em conta que os imóveis haviam sido registados na rúbrica de inventários pelo custo de aquisição, caberia determinar o seu valor realizável líquido correspondente ao preço de venda estimado no decurso normal da actividade da C... nos termos do n.º 4 do artigo 26.º, do Código do IRC. Na inexistência de preços de venda constantes de elementos oficiais e de transacções que reflectissem os últimos preços de venda que em condições normais tivessem sido praticados pelo sujeito passivo, caberia garantir à C... que os preços de venda utilizados no apuramento de uma eventual imparidade correspondessem àqueles que, no termo do período de tributação, fossem correntes no mercado, desde que fossem considerados idóneos ou de controlo inequívoco.

                Neste sentido, a C... solicitou uma avaliação independente à empresa E... por forma a determinar o preço corrente de mercado dos imóveis registados enquanto inventários. Tendo em conta que essa empresa se encontrava sujeita à supervisão da CMVM, estando os seus peritos avaliadores de imóveis obrigados ao cumprimento de requisitos de idoneidade, qualificação e experiência profissional, entendeu a C... que aquela avaliação seria suficiente para garantir a idoneidade dos preços correntes de mercado e, consequentemente, dos preços de venda utilizados para o cálculo de eventuais imparidades. Idoneidade essa que, no entender da Requerente, a AT não teria logrado afastar, uma vez que esta não teria colocado em causa a idoneidade da empresa que procedeu à avaliação, nem teria contestado os valores obtidos em resultado das avaliações efectuadas. Desta forma, entendeu a Requerente que a AT interpretou e aplicou erroneamente o artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC, ao exigir a verificação cumulativa dos requisitos previstos na parte final daquele preceito legal, os quais são, porém, estabelecidos de forma alternativa. Dito de outro modo, entendeu a Requerente que não poderia a AT afirmar que não colocava em causa os valores alcançados com as avaliações e, simultaneamente, afastar a sua idoneidade por não conhecer todos os elementos de comparabilidade utilizados, o que obstaria a um controlo inequívoco dos preços obtidos.

                Pelo contrário, referiu a AT na sua resposta e nas alegações finais que o reconhecimento da empresa E... enquanto entidade avaliadora certificada pela CMVM não atestava a idoneidade das avaliações efectuadas, até porque aquele reconhecimento limitava-se a atestar a conformidade formal entre a candidatura de quem pretende ser perito e a lei, não estabelecendo dessa forma apertados crivos para o reconhecimento enquanto perito avaliador de imóveis. Por outro lado, não bastaria que a empresa E... constasse da lista de peritos reconhecida pela CMVM, sendo também necessário que dela constasse o perito que procedeu à avaliação, o que não teria sido possível confirmar por parte da AT em virtude de a identidade do perito não constar das fichas de avaliação dos imóveis.

Caberia então sindicar as avaliações efectuadas de forma a verificar o cumprimento dos requisitos exigidos nos termos do artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC. A este respeito, concluiu a AT na resposta ao pedido de pronúncia arbitral e nas alegações finais que as fichas de avaliação não permitiam conhecer os imóveis que serviram de amostragem para a avaliação, desconhecendo se a sua exacta localização, pelo que os mesmos poderiam nem existir. Mas caso existissem efectivamente, não se poderia conhecer o seu valor de mercado, sendo em todo o caso forçoso concluir-se que os imóveis não eram comparáveis entre si e, consequentemente, não eram equiparáveis ao imóvel avaliado, dado que teriam áreas díspares e bastante diferentes. Pelo contrário, o perito avaliador ter-se-ia bastado com uma amostragem retirada de sites de imobiliárias, não constando dessa amostragem um conjunto de elementos que permitisse à AT controlar a avaliação efectuada. Por outro lado, o perito teria feito uma análise pelo método Discounted Cash-Flows sem referir como teria estimado os custos de construção, o que seria agravado pelo facto de esse mesmo perito afirmar desconhecer a volumetria de construção que seria consentida caso viesse a ser autorizada a construção num dos imóveis avaliados.

Tudo isto seriam factores, no entendimento da AT, que afastavam a verificação dos requisitos de que depende a relevância fiscal das imparidades registadas na contabilidade, visto que os referidos elementos não permitiam justificar a idoneidade das avaliações nem o seu controlo inequívoco.

                Quanto a esta questão cumpre começar por referir que, de facto, a certificação da empresa E... e dos peritos que a integram na lista aprovada pela CMVM não permite, por si só, garantir a idoneidade das avaliações que estes efectuem.

                A este respeito cumpre salientar que, antes da entrada em vigor da lei n.º 153/2015, de 14 de Setembro, apenas era necessário que a empresa avaliadora estivesse inscrita na CMVM – a qual teria peritos avaliadores independentes em regime de prestação de serviços –, mas a partir da sua entrada em vigor, em 13 de Novembro de 2015, passou a ser igualmente necessária a inscrição do perito avaliador de imóveis. Para além do estabelecimento dos requisitos de qualificação e experiência profissional a ser tomados em consideração para que alguém possa exercer funções de perito avaliador de imóveis, estabelece-se ainda no artigo 20.º daquela lei e no anexo a ele referente um conjunto de elementos que consistem nos requisitos de conteúdo e estrutura que os relatórios de avaliação devem cumprir. Um desses elementos consiste na “Indicação de eventuais transações ou propostas efetivas de aquisição utilizadas na avaliação, relativas a imóveis de idênticas características” sendo que, na sua inexistência, é prática comum e aceite pela CMVM que a prospecção de mercado seja baseada em dados fornecidos por empresas de mediação imobiliária, considerando imóveis semelhantes para efeitos de cálculo do valor por m2.

                Ainda que o cumprimento dos requisitos estabelecidos pela referida lei não fosse exigível no caso ora em juízo, visto que aquela regula o exercício da actividade dos peritos avaliadores de imóveis que prestem serviços a entidades do sistema financeiro nacional, nem por isso deixa a mesma de ser um factor a considerar para a verificação de um preço corrente no mercado idóneo ou de controlo inequívoco.

                A AT parece afastar a idoneidade das avaliações efectuadas em virtude da insuficiência dos elementos delas constantes. Tal como referiu no âmbito do relatório de inspecção tributária referente ao exercício de 2014, reforçando as mesmas considerações no relatório que teve por base o exercício de 2015, “a impossibilidade de comprovar valores de custo e de venda (usados no cálculo efetuado nos termos do método adotado) como sendo os correntes no mercado, bem como de verificar a relevância para o caso concreto, dos imóveis utilizados como comparativos, faz com que não se possa considerar que se obteve, na avaliação efetuada, um preço de mercado que seja idóneo ou de controlo inequívoco, já que dos elementos considerados na concretização daquela não resulta de forma segura e verificável que se chegou a um preço de mercado adequado e passível de ser corroborado”.

                Apesar de referir que a sindicabilidade do valor da perda por imparidade se encontra comprometida por “falta de suporte documental relativo a dados e informações concernentes aos pressupostos e cálculos da avaliação”, o que justificaria o afastamento de um preço de mercado adequado e passível de ser corroborado, a verdade é que a AT acaba por afirmar que não contesta os valores alcançados nas fichas de avaliação, afastando a idoneidade dos preços correntes de mercado definidos pelo perito avaliador por não lhe ser possível sindicar e controlar os elementos constantes das avaliações de forma inequívoca. É neste sentido que a AT se expressa na resposta ao exercício do direito de audição da C... quanto ao exercício de 2014, ao referir que “À AT não cabe executar avaliações do preço de mercado dos bens, cabe-lhe aferir se estão cumpridos os requisitos fiscais para a dedutibilidade deste encargo e não a discussão do seu valor. Como resulta, amplamente, tanto do projeto de correções como desta análise ao direito de audição, não se discute o valor a que se chegou, nem a competência de quem realizou a avaliação. O que se discute é o cumprimento dos pressupostos previstos na lei fiscal para a dedutibilidade da perda por imparidade.” (destaque nosso).

                Ora, tendo ficado assente que os vícios invocados não são imputados à idoneidade do perito avaliador de imóveis nem ao valor por este alcançado nas fichas de avaliação, cumpre então analisar os pressupostos legais de que depende a relevância fiscal das perdas por imparidade de forma a determinar se os mesmos foram, ou não, cumpridos.

                A este respeito, revela-se uma vez mais impressivo transcrever o entendimento sufragado pela AT em resposta ao exercício do direito de audição quanto ao relatório de inspecção tributária referente ao exercício de 2014 e que é sufragado em termos idênticos no relatório que tem subjacente o exercício de 2015. Referiu a AT que “(…) este n.º 4 do artigo 26.º limita os preços de venda a utilizar a grandezas que sejam passíveis de serem controladas por parte da Autoridade Tributária (AT) de forma simples e objectiva.

Veja-se a própria ordem por que é construído este n.º 4 do artigo 26.º, dando primazia aos preços de venda que constam de elementos oficiais, depois aos últimos que em condições normais tenham sido praticados pelo sujeito passivo, surgindo, como recurso último, os que, no fim do período de tributação, forem correntes no mercado mas que, para poderem servir, têm de ser considerados idóneos ou de controlo inequívoco.

A limitação de amplitude da perda por imparidade ao recurso a preços de venda determinados de forma inequivocamente controlável, imposto pelo CIRC nos termos do parágrafo anterior, visa, na nossa opinião, atingir dois objectivos. Um deles, o de diminuir tanto quanto possível qualquer subjectividade, inerente às políticas de provisões seguidas pelos órgãos de gestão das sociedades, que assentam sobre critérios de probabilidade e, como tal integram uma certa margem de discricionariedade. O outro, um objetivo de natureza prática em relação à atividade da AT, pois esta não pode conhecer os contornos concretos de toda a empresa e do seu meio envolvente, não tendo a capacidade para aferir casuisticamente dos fenómenos próprios da economia de mercado que podem levar ao reconhecimento de perdas por imparidade, pelo que o critério fiscal para a sua aceitação na determinação do lucro tributável tem, necessariamente, de ser estreito e passível de um controlo claro.” (destaque nosso).

                Ainda que a AT mencione em alternatividade os requisitos de “idoneidade” e “controlo inequívoco” dos preços alcançados, a verdade é que a interpretação que sufraga do artigo 26.º, n.º 4, do Código do IRC, estabelece claramente uma necessidade de controlo inequívoco dos preços correntes no mercado, mais numa posição de cumulatividade do que de alternatividade em face do carácter idóneo daqueles preços. Interpretação esta que é reforçada ao referir que “(…) na norma do n.º 4 do artigo 26.º do CIRC, que estabelece que os preços de venda a considerar (na falta dos constantes de elementos oficiais ou dos últimos praticados pelo sujeito passivo) são os que sejam considerado idóneos e de controlo inequívoco. (…) O significado primordial da palavra idóneo é “que é apropriado para alguma coisa”, e é este que a norma busca, um preço de venda corrente no mercado no final do período de tributação, que seja considerado apropriado, adequado” (destaque nosso).

                Ora, não contestando a AT os valores alcançados pelo perito nas fichas de avaliação, e tendo em conta que a AT justificou o não preenchimento dos requisitos de que depende a relevância fiscal das imparidades com base na impossibilidade de comprovação dos valores de custo e de venda utilizados nos métodos de cálculo bem como na impossibilidade de verificação da relevância para o caso concreto dos imóveis utilizados como comparativos, será forçoso concluir-se que a AT não considera adequados os preços correntes no mercado alcançados pelo perito avaliador e utilizados pela C..., no sentido de serem idóneos, porquanto não conseguiu aferir, de forma inequívoca, os elementos e pressupostos utilizados naquelas avaliações, exigindo à C... que ateste e assegure aquele controlo quanto a uma avaliação feita por perito imparcial e independente. Posição que se afigura inaceitável, porquanto baseada numa interpretação que não tem correspondência com a letra da lei.

                Na interpretação da lei fiscal estabelece o artigo 11.º, da Lei Geral Tributária (daqui em diante “LGT”) que o intérprete deve socorrer-se das regras gerais de interpretação constantes do artigo 9.º, do Código Civil que, no termos do seu n.º 3 determina que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Nestes termos, não é admissível a interpretação propugnada pela AT de limitar os requisitos constantes da parte final do artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC, em termos tais que se exija do sujeito passivo um controlo inequívoco dos preços correntes no mercado, independentemente de este já ter acautelado a sua idoneidade.

               

                21. Quanto a esta temática cumpre ainda analisar a utilização pela C... do VPT ao invés do valor de mercado constante da ficha de avaliação para reconhecimento da imparidade do terreno para construção sito na Avenida ..., adquirido em Março de 2008. Por um lado, a utilização do VPT enquanto valor de referência foi justificada pela Requerente com base na resposta a um pedido de esclarecimento emitida pela Direcção de Serviços de IRC, na qual se havia afirmado que “o VPT do imóvel fixado à data do termo do período de tributação consistirá um elemento importante de referência comparativamente a outros valores de avaliação do imóvel apurados por outros avaliadores independentes”. Por outro lado, a utilização daquele valor ter-se-á devido a uma postura de prudência e boa fé da C... ao considerar, com base naquele esclarecimento e com base na disposição específica anti-abuso constante do artigo 64.º, do Código do IRC, que “o legislador eleva o VPT a um valor mínimo de referência para efeitos fiscais” no que respeita ao valor de mercado dos bens imóveis. Referiu ainda a Requerente no seu pedido arbitral que a C... havia solicitado em sede inspectiva e em sede de procedimento de reclamação graciosa que, na eventualidade de a AT negar a utilização do VPT enquanto referencial para o registo das imparidades, fosse aceite o valor de mercado alcançado pela E... que seria, inclusive, mais favorável às suas pretensões do que o valor do VPT que aquela havia utilizado por prudência.

                Pelo contrário, a AT sustentou em sede inspectiva que o VPT é “determinado de acordo com um conjunto de regras de avaliação definidas no CIMI, que seguem uma lógica própria que visa definir o valor tributável em sede de IMI”. Enquanto este valor se caracterizava pela estabilidade “o valor comercial dos bens imóveis, o seu valor de mercado ou preço de venda, é determinado pelo próprio mercado, distinguindo-se pela sua constante variação, respondendo a fatores vários, seja de conjuntura económica global ou local, seja de flutuações na procura, seja de alterações políticas, por exemplo, relacionadas com ordenamento do território, seja a movimentos especulativos, entre outros. O valor de mercado reage constantemente a todo um conjunto de fatores, tendo um mecanismo de formação bem diverso do da formação do VPT que, como se disse, segue as regras determinadas no CIMI”. Nestes termos, “VPT e preço de venda estimado no decurso normal da atividade são realidades diferentes, formados através de percursos de cálculo distintos, assumindo, necessariamente, valores diferentes. Desta forma, carece de suporte na lei, em concreto no CIRC, a consideração do VPT do imóvel como referencial para apuramento do lucro tributável sujeito a IRC”.

                De facto, a mencionada norma anti-abuso específica que terá levado a C... a reconhecer o VPT ao invés do valor alcançado na ficha de avaliação não tem aplicação ao caso concreto, já que aquela se encontra direccionada a combater práticas abusivas no âmbito da alienação de bens imobiliários, não logrando aplicação no que respeita ao reconhecimento de imparidades em que se visa fazer corresponder o valor contabilístico dos bens ao seu valor real e efectivo, no qual o legislador atendeu expressamente ao preço corrente no mercado enquanto preço de venda sem estabelecer qualquer limite quanto a esse valor. Desta forma, tendo-se já concluído que não assiste razão à AT quanto ao suposto não cumprimento dos requisitos do artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC, terá igualmente de se concluir que deveria a AT ter aceitado a utilização do valor de mercado constante da ficha de avaliação ao invés do VPT na fixação da perda por imparidade referente terreno para construção sito na Avenida ..., adquirido em Março de 2008.

               

                22. No que respeita ao preenchimento dos pressupostos de aplicação do artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC, cumpre ainda analisar o argumento avançado pela AT na sua resposta ao pedido arbitral de que o perito teria feito uma análise pelo método Discounted Cash-Flows sem referir como teria estimado os custos de construção, sendo que “quando a avaliação pelo método DCF se cifrava em valores acima dos apurados por “métodos de mercado”, a Requerente “optou” pelo mais baixo (sem explicar o motivo), aumentando assim as imparidades declaradas e reduzindo, ainda mais, o resultado tributável”.

                Quanto à primeira questão, verifica-se que os custos de construção utilizados pelo perito no método Discounted Cash-Flows correspondiam aos preços de construção correntes que vigoravam nos anos de 2014 e 2015. Aqueles preços são fixados anualmente pela Comissão Nacional de Avaliação de Prédios Urbanos, que consiste numa comissão que determina o valor médio de construção, por metro quadrado, para efeitos de cálculo do IMI e que corresponde a um valor médio de construção a nível nacional que, na prática, pode apresentar variações, dependendo da localização do imóvel. Assim, verifica-se possível discernir a forma pela qual o perito terá estimado os referidos custos de construção.

                Quanto à segunda questão, referiu a AT no âmbito do relatório de inspecção tributária que concretizou as correcções ao exercício de 2015 da C... que “O método de mercado estima o valor dos imóveis em €358.000, enquanto que pelo método DCF, que leva em conta a urbanização dos solos prevista para o local com base em plantas que a C... forneceu ao avaliador o valor estimado para os mesmo imóveis é de €1.246.000. No cômputo da perda por imparidade, a C... recorreu ao valor de avaliação mais baixo (€358.000)”. A este respeito cumpre apenas referir que não se revela censurável a conduta da C... que, ao abrigo do princípio da prudência, reconheceu contabilisticamente o valor de mercado mais baixo visto que o valor mais elevado teria atendido a uma eventual urbanização dos solos. Conforme se expressou nas fichas de avaliação, o valor de mercado fixado poderá alterar em função da alteração dos pressupostos em que assentou a sua determinação, pelo que na eventualidade desses pressupostos se modificarem caberia corrigir os valores fixados por via de novas avaliações. Quer isto dizer que na eventualidade de os pressupostos em que assentou a avaliação pelo método de mercado utilizado pela C... se alterarem, caberia a esta proceder a uma nova avaliação de forma a determinar o valor de mercado e, em função disso, proceder eventualmente a uma reversão da imparidade registada, assim garantindo o real valor dos imóveis e, consequentemente, a real situação económica da sociedade ao momento da avaliação.

 

                23. Por último, quanto ao não preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicabilidade da parte final do artigo 26.º, n.º 4, do Código de IRC, referiu a AT que para além de não conter os elementos que permitissem corroborar os preços de mercado fixados pelo avaliador independente, sempre teria de se considerar por não verificado o requisito temporal estabelecido naquele preceito legal, designadamente a referência aos preços de mercado no termo do período de tributação. Isto na medida em que, quanto ao ano de 2014, a avaliação teria sido efectuada em Abril de 2015, perspectivando o mercado nessa data sem fazer qualquer referência ao final de 2014. Quanto ao ano de 2015 a situação seria ainda mais evidente, dado que as avaliações teriam sido efectuadas em Abril e Maio de 2015, “pelo que seria impossível determinar qual o valor de mercado com referência a uma data futura”. A falta de referência ao termo do período de tributação seria agravada pelo facto de algumas fichas de avaliação mencionarem que os pressupostos que lhes estiveram subjacentes poderiam alterar em função da modificação do PDM que poderia habilitar para construção os terrenos alvo de avaliação, o que teria impacto no valor dos imóveis. Assim, atendendo ao facto de o mercado imobiliário ser um mercado com variações significativas de preços e ao facto de a C... não ter cumprido a exigência legal de reporte das avaliações ao termo do período de avaliação, restaria negar a relevância fiscal das perdas por imparidade.

                A este respeito referiu a Requerente que a C... apresentou, no âmbito das inspecções de que foi alvo, uma adenda ao relatório de avaliação da E... na qual se certificou que inexistiram alterações relevantes quanto ao valor de avaliação e preço de venda estimado constante das fichas no período compreendido entre 31 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2015. A inexistência de alterações relevantes que afectassem o valor de mercado estabelecido nas fichas de avaliação seria ainda reforçada pelas novas avaliações efectuadas em Dezembro de 2017, pelo perito avaliador H..., devidamente certificado pela CMVM, e que tiveram por referência o valor de mercado dos imóveis para o período de 31 de Dezembro de 2014 a 31 de Dezembro de 2015. No âmbito destas novas avaliações teria concluído o perito avaliador que os preços de venda estimados dos imóveis em questão não apresentavam uma variação significativa face às avaliações elaboradas pela E..., de tal forma que não poderia deixar de se considerar que os preços estabelecidos nas fichas de avaliação se reportavam ao final do período de tributação de 2014 e 2015, para efeitos contabilísticos e fiscais.

                Efectivamente, ainda que a lei exija que os preços correntes de mercado se reportem ao termo do período de tributação, não se poderá interpretar esse requisito de forma rígida e sob uma perspectiva estritamente formal cabendo, pelo contrário, atender ao princípio da materialidade subjacente para aferir do cumprimento daquele requisito.

                De facto, ainda que as referidas avaliações não se reportassem ao termo dos respectivos períodos de tributação, certo é que a C... supriu essa insuficiência por via da apresentação em sede inspectiva de uma adenda da própria entidade que inicialmente efectuou a avaliação na qual se refere a inexistência de alterações relevantes quanto aos preços de venda estimados para os exercícios de 2014 e 2015. Sendo certo que essa adenda é reforçada por via da avaliação efectuada pelo perito avaliador independente H... que certificou a correspondência dos resultados contidos nas fichas de avaliação feitas inicialmente pela E... com o termo do período de tributação, ao entender em idêntico sentido que não se teriam verificado alterações significativas aos valores alcançados quanto aos exercícios de 2014 e 2015. Deste modo, e atendendo à substância material dos factos, será forçoso concluir se que os preços de venda fixados eram idóneos e se reportavam ao termo dos respectivos períodos de tributação, uma vez que a não correspondência exacta a esse período temporal teria sido suprida por via da apresentação pela C... de elementos que certificaram a validade e idoneidade dos preços fixados à data do termo daquele período. E esta conclusão foi corroborada pelo depoimento da testemunha F... que, na qualidade de perito avaliador imobiliário, certificou o procedimento realizado nas avaliações pedidas pela C... .

                Assim sendo, não assiste razão à AT na medida em que nega a relevância fiscal das imparidades com base num argumento meramente formal de não correspondência das fichas de avaliação que estabeleceram os preços correntes no mercado ao termo do período de tributação, desconsiderando que a Requerente apresentou elementos suficientes para justificar a validade daquelas avaliações no termo dos exercícios de 2014 e 2015.

 

III.2.3. Regime fiscal aplicável ao reinvestimento das mais-valias realizadas em 2013

 

                24. No seu pedido de pronúncia arbitral peticionou ainda a Requerente que fosse declarada a ilegalidade da liquidação adicional de IRC quanto ao exercício de 2015 em virtude das correcções operadas pela AT na esfera da D... que negaram a aplicação do regime de reinvestimento do montante das mais-valias realizadas em 2013, em propriedades de investimento. Em concreto, pediu a Requerente a declaração de ilegalidade daquela liquidação no montante de € 327.866,91, correspondente à diferença entre a totalidade da correcção pretendida pela AT no valor de € 428.497,18 e o montante de € 100.630,27 já regularizado voluntariamente pela D... e que correspondia à proporção do reinvestimento que não havia sido concretizado.

                Referiu a este respeito a AT que em virtude das alterações efectuadas pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que republicou o Código do IRC, o reinvestimento de mais-valias em propriedades de investimento deixou de ser relevante para a determinação do lucro tributável, dado que o artigo 48.º daquele código deixou de prever tal possibilidade. Desta forma, o reinvestimento teria de atender ao quadro legal vigente à data em que é efectuado e não àquele que se encontrava vigente na data da realização da mais-valia. Solução essa que teria sido, também, “a leitura do próprio legislador, que com a Portaria nº 271/2014 alterou os modelos de declaração, passando a permitir a menção de reinvestimentos consentidos com a Lei nº 2/2014 (ainda que não previstos à data da mais-valia), e inibindo referências a reinvestimentos que estavam consentidos à data da mais-valia mas que foram afastados com a reforma de 2014”. Neste sentido, entendeu a AT que “serão de admitir como relevantes os reinvestimentos feitos em bens elencados no artigo 48º após 2014, ainda que a mais-valia tenha sido realizada em data em que esse reinvestimento não estava estatuído como elegível para efeitos fiscais (por exemplo, consente-se o reinvestimento em bens do activo intangível, ainda que a mais-valia seja anterior à previsão legal do reinvestimento”.

                Pelo contrário, entendeu a Requerente que o facto tributário gerador de imposto se reporta ao momento da realização das mais-valias, isto é, “o facto tributário que as origina e conforma nasce e esgota-se no preciso momento (autónomo e completo) da alienação e coetânea realização das mais-valias, sendo, por isso, um facto tributário instantâneo, e não um facto tributário complexo de formação sucessiva ao longo do ano” mencionando, para o efeito, a posição do Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 4 de Dezembro de 2013, proferido no âmbito do processo n.º 01582/13. E este entendimento não seria afectado pelo facto de “as mais-valias e as menos-valias alcançadas durante o mesmo ano s[erem] declaradas num único momento, na declaração anual de IRC, e que ambas concorrem para o apuramento do saldo final que vai servir para determinar e quantificar o rendimento sujeito a tributação em IRC”. Em suma, “a operação de agregação entre as mais-valias e as menos-valias não tem a virtualidade de alterar ou transmutar a natureza dos factos tributários subjacentes”, tal como teria expresso o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 31072012 que, apesar de respeitar às tributações autónomas, seria susceptível de aplicação no caso em questão.

                Ao dispor o artigo 14.º, da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que a mesma apenas se aplicaria aos períodos tributários iniciados ou aos factos tributários ocorridos em ou após 1 de Janeiro de 2014, a posição da AT de aplicação daquela Lei a um facto tributário instantâneo que se verificou antes da sua entrada em vigor consistiria numa “intolerável aplicação retroactiva das normas fiscais, proibida nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa”. Por último, referiu a Requerente no âmbito das suas alegações finais que “não compreende o argumento plasmado na resposta da AT no sentido de que a Portaria 271/2014, de 23 de Dezembro, que aprovou os novos formulários da IES, desde logo na medida em que o Quadro 9 do Anexo A daqueles formulários continua a permitir a referência ao reinvestimento em propriedades de investimento, como também, e muito mais relevante ainda, de uma portaria e muito menos de simples formulários não pode resultar qualquer conclusão no sentido da determinação da aplicação no tempo de disposição legal, sob pena de manifesta violação do princípio da legalidade e da hierarquia das fontes”.

                A este respeito cumpre começar por referir que, nos termos do artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, pelo que se deverá ter em consideração o entendimento uniforme do Supremo Tribunal Administrativo no que respeita à aplicação da lei no tempo relativamente a mais e menos-valias realizadas.

                No âmbito do acórdão de 4 de Dezembro de 2013, proferido no âmbito do processo n.º 01582/13, citado pela Requerente no seu pedido arbitral, referiu o Supremo Tribunal Administrativo que “O facto tributário que dá origem ao imposto esgota-se na realização da mais-valia” de modo que “A aplicação da nova lei a factos tributários de natureza instantânea, já completamente formados, anteriores à sua data de entrada em vigor (…) é, consequentemente, uma aplicação retroativa da lei. A aplicação da nova lei a este facto ocorrido anteriormente à sua aprovação envolve, pois, uma retroatividade autêntica.”. Posição essa que é igualmente sufragada por aquele tribunal, por exemplo, no acórdão proferido em 17 de Fevereiro de 2016, no âmbito do processo n.º 0668/15 ou no acórdão proferido em 7 de Junho de 2017, no âmbito do processo n.º 01471/14, no qual se referiu que “As alterações introduzidas ao regime tributário das mais-valias (…) apenas podem aplicar-se aos factos tributários ocorridos em data posterior à da sua entrada em vigor”.

                Ora, tendo em conta que o artigo 14.º, da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabeleceu que a aquela lei apenas se aplicaria aos períodos tributários iniciados ou aos factos tributários ocorridos em ou após 1 de Janeiro de 2014, e tendo em conta que as mais-valias realizadas pela D... consistem num facto tributário de verificação instantânea, será forçoso concluir-se que o regime jurídico aplicável ao reinvestimento das mais-valias realizadas em 2013 era aquele vigente nessa data.

                Em suma, tendo em conta que o facto tributário que gerou o imposto se verificou em 2013, e tendo em conta que a lei aplicável às mais-valias realizadas é aquela que vigorava no momento da sua verificação, não seria admissível negar à Requerente o reinvestimento efectuado em 2014 do valor de realização em propriedades de investimento, uma vez que o artigo 48.º, do Código do IRC, vigente em 2013, permitia expressamente tal possibilidade. Entendimento contrário consistiria numa aplicação retroactiva da lei fiscal proibida nos termos do artigo 103.º, n.º 3, da CRP, pelo que a liquidação adicional de IRC que operou as referidas correcções à matéria tributável da D... se afigura ilegal.

               

III.4. JUROS COMPENSATÓRIOS

 

                25. Peticionou ainda a Requerente a declaração de ilegalidade das liquidações efectuadas a título de juros compensatórios por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e, consequentemente, por vício de violação de lei, em virtude de a AT ter emitido aquelas liquidações em violação do disposto no artigo 35.º, da LGT, e do artigo 74.º, do CCPT. Isto na medida em que o imposto não seria devido e na medida em que a AT não teria logrado provar o nexo de causalidade e o juízo de censura sobre a conduta das sociedades dominadas pela Requerente, que consistem em pressupostos de aplicação do regime dos juros compensatórios.

                A este respeito referiu a Requerida na sua resposta que no caso de o Tribunal Arbitral decidisse pela improcedência do pedido seriam de manter os juros compensatórios, já que “foi retardada a liquidação de imposto, por facto imputável ao sujeito passivo (que tinha a obrigação de autoliquidação), assim se cumprindo as condições do artigo 35º da LGT”.

                A este respeito, ao que importa no presente caso, dispõe o artigo 35.º, da LGT que:

“1 - São devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária.

2 - São também devidos juros compensatórios quando o sujeito passivo, por facto a si imputável, tenha recebido reembolso superior ao devido.

(…)

6 - Para efeitos do presente artigo, considera-se haver sempre retardamento da liquidação quando as declarações de imposto forem apresentadas fora dos prazos legais.”.

                Conforme se depreende da leitura do referido preceito legal, a liquidação de juros compensatórios está intrinsecamente dependente da imputabilidade ao sujeito passivo do retardamento da liquidação ou da entrega de imposto, imputabilidade essa que não se pode ter por verificada na medida em que se julga procedente o pedido arbitral formulado pela Requerente que determina, consequentemente, a ilegalidade das liquidações adicionais de IRC emitidas pela AT quanto aos exercícios de 2014 e 2015 já prontamente identificadas. Em suma, não se pode imputar qualquer comportamento censurável à Requerente que tenha retardado o montante de imposto a pagar na medida em que os montantes de imposto liquidados pela AT não se afiguram devidos.

 

III.5. INDEMNIZAÇÃO POR PRESTAÇÃO DE GARANTIA INDEVIDA

 

                26. Ao ter constituído para a suspensão do processo de execução fiscal garantia, no montante de € 1.560.259,85, sob a forma de hipoteca voluntária, que foi aceite pela AT em 21 de Janeiro de 2019, veio a Requerente, no presente pedido arbitral, suscitar a “condenação da AT à indemnização da Requerente pela prestação indevida de garantia nos termos do artigo 53.º da LGT”.

                A este respeito da indemnização por prestação de garantia indevida estabelece o artigo 171.º, do CPPT que:

“1 - A indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda.

2 - A indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência.”.

                Deste modo, vislumbra-se que o processo de impugnação judicial abrange, de forma inequívoca, a possibilidade de peticionar a condenação no pagamento de garantia indevida sendo, à partida, o meio processual adequado para formular tal pedido. Isto na medida em que o direito à indemnização por garantia indevida se encontra numa relação de prejudicialidade com a decisão da legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.

                Assim sendo, tendo em conta que o processo arbitral consiste num meio de resolução de litígios alternativo à impugnação judicial, através do qual se afere a legalidade dos actos tributários subjacentes à divida exequenda, será forçoso concluir-se que o processo arbitral é o meio processual adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida sempre que o sujeito passivo a ele recorre em alternativa à impugnação judicial. De resto, esta é uma posição assumida em diversas decisões arbitrais, nomeadamente na decisão arbitral proferida em 2 de Janeiro de 2017, no âmbito do processo n.º 220/2016-T, ou na decisão arbitral proferida em 28 de Junho de 2017, proferida no âmbito do processo n.º 508/2016 -T.

                Fixada que está a competência deste Tribunal Arbitral para conhecer do pedido, cumpre então aferir se se encontram preenchidos os pressupostos de que depende aquela indemnização.

                Estabelece a este respeito o artigo 53.º, da LGT, que:

“1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”.

                Ainda que não se encontre verificado o prazo de 3 anos referido no n.º 1, a verdade é que o caso ora em apreço se subsume ao n.º 2 do artigo 53.º, da LGT.

                Quanto a este preceito pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão de 21 de Novembro de 2007, proferido no âmbito do processo n.º 633/07, no sentido de que “o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal atuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua atuação, não teria sido necessária prestar”.

                Tendo-se já concluído pela existência de erro imputável aos serviços nas liquidações adicionais de IRC, julga-se procedente o pedido formulado pela Requerente de condenação da AT ao pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida.

                Não se encontrando feita a prova dos prejuízos sofridos com a prestação de garantia, a indemnização será fixada em execução de sentença.

 

V. DECISÃO

 

Termos em que se decide:

 

                a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela Requerente e, em consequência, anular os actos tributários impugnados nos autos;

                b) Condenar a Autoridade Tributária ao pagamento à Requerente de indemnização por prestação de garantia indevida a liquidar em execução de sentença;

                c) Condenar a Autoridade Tributária nas custas do processo, no valor de € 27.234,00.

 

V. VALOR DO PROCESSO

               

                Atendendo ao disposto no artigo 32.º do CPTA e no artigo 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixando-se ao processo o valor de € 2.088.973,4.  

 

VI. CUSTAS

 

Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de 27.234,00, a cargo da Autoridade Tributária, conforme ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de Novembro de 2020.

 

Os Árbitros

 

Carlos Alberto Fernandes Cadilha

Cristiana Maria Leitão Campos

Carla Castelo Trindade