Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 947/2019-T
Data da decisão: 2020-09-28  IRC  
Valor do pedido: € 418.798,76
Tema: IRC- Benefício Fiscal-Fundo de Investimento Imobiliário não residente.
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SUMÁRIO:

O artigo 22.º, n.º 1, do EBF, ao circunscrever o regime de tributação constante do n.º 3 aos fundos e sociedades de investimento imobiliário que constituem e operem de acordo com a legislação nacional, estabelece um regime mais gravoso para as entidades equiparáveis que operem no território nacional, mas se tenham constituído segundo o direito de um outro Estado-Membro, sem que tenha sido apresentada qualquer justificação para esse tratamento discriminatório.

Segundo o disposto no artigo 65.º, n.º 3, do TFUE, os Estados-Membros podem estabelecer distinções em matéria fiscal entre sujeitos passivos que não se encontrem em idêntica situação em função do lugar da nacionalidade ou residência desde que não implique uma discriminação arbitrária ou uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos.

Para que uma regulamentação fiscal possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por razões imperiosas de interesse geral.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

Os Árbitros Fernanda Maçãs (na qualidade de Presidente), Prof Doutor Francisco Nicolau Domingos (na qualidade de Vogal) e Dr. Henrique Nogueira Nunes (na qualidade de Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Colectivo acordam no seguinte:

 

I. Relatório

1. A...– SUCURSAL EM PORTUGAL (anteriormente designada B...– SUCURSAL EM PORTUGAL), com o número de pessoa coletiva português ... e domicílio fiscal na ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa (“REQUERENTE” nos presentes Autos), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 3.º, n.º 1, e 10.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, pedir a declaração de ilegalidade e consequente anulação: (i) do ato de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) e de derramas relativo ao exercício de 2016, consubstanciado na Declaração Modelo 22 de IRC n.º..., de 31 de maio de 2017 (2017...) (cf. DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral); e, bem assim, (ii) da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa n.º ...2019..., que manteve aquele ato tributário na ordem jurídica (cf. DOC. 1 do pedido de pronúncia arbitral),  no valor total de colecta de € 418.798,76

O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e posteriormente notificado à Requerida.    

Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou como Árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

As Partes foram oportunamente e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 18 de Março de 2020.

 

2.A fundamentar o pedido alega  a Requerente que é a sucursal portuguesa de um Organismo de Investimento Coletivo Imobiliário (OIC), constituído em França, para o exercício da actividade de aquisição e gestão de património imobiliário, destinado ao arrendamento, e que se dedica ao investimento colectivo em património imobiliário, sendo a sua actividade sujeita à autorização do regulador competente, a Authorité des Marchés, sendo gerida por uma sociedade gestora de fundos de investimento – a C... .

É uma entidade comparável às sociedades de Investimento Imobiliária de capital variável heterogeridas ("SIICAV") constituídas em Portugal, nos termos previstos na Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, e que, para além de possuir identidade jurídica, partilha com as SIICAV o mesmo papel económico, competindo com estas pela angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado.

Neste contexto defende  a Requerente que não deveria ter apurado lucro tributável, IRC e derramas, de acordo com o regime geral previsto no IRC, mas sim de acordo com o regime especial consignado no disposto no Art.º 22.º do EBF, tudo em conformidade com o que decorre da interpretação literal do n.º 1 do Art.º 22. do EBF,  aplicável aos fundos de investimento e às sociedades de investimento "que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional", sendo igualmente aplicável a todas as entidades que foram constituídas e operem de acordo com a legislação de outro Estado Membro da UE, sob pena de violação do principio da não discriminação em função da nacionalidade, da liberdade de circulação de capitais e da liberdade de estabelecimento, (invocando para o efeito jurisprudência do TJUE, acórdãos proferidos nos processos C-107/94 (Asscher), C-118/96 (Safir), C-55/98 (Vestergaard),C-190/12 (Emerging Markets Series of DFA lnvestement Trust Company, C-338/11 a C-347 /11 (Santander Asse! Management SGIIC) e C-387/11 (Comissão/Bélgica).

Por fim, refere que o Art.º 63.º do TFUE proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados Membros e entre estes e países terceiros, considerando o TJUE que o disposto na alínea a) do n.º 1 do Art.º 65.º do TFUE deve ser objeto de interpretação restritiva, defendendo que, sendo equiparável às suas congéneres nacionais, quer quanto à sua natureza jurídica quer quanto à sua natureza económica, não existe qualquer justificação atendível para sustentar um tratamento menos favorável, ou seja, para não lhe ser aplicável o regime previsto no Art.º 22.º do EBF.

Nesta medida, a REQUERENTE considera, em suma, i) Que o regime especial consagrado no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais deve ser objeto de uma interpretação conforme com o direito da União Europeia e considerar-se aplicável, quer aos organismos de investimento coletivo nacionais, quer ainda aos organismos de investimento coletivo (e seus estabelecimentos estáveis) que, como a REQUERENTE, tenham sido constituídos noutros Estados-Membros e sejam jurídica e economicamente equiparáveis aos organismos nacionais; ou, se tal interpretação se considerar impossível; ii) Que o regime geral aplicável à tributação do lucro dos organismos de investimento coletivo (e seus estabelecimentos estáveis) que, como a REQUERENTE, tenham sido constituídos noutros Estados-Membros e sejam jurídica e economicamente equiparáveis aos organismos nacionais, é manifestamente contrário ao Direito da União Europeia e viola o disposto nos artigos 5.º e 55.º da Lei Geral Tributária (lei de valor reforçado) e nos artigos 13.º, n.º 2 e 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

 

3.Na resposta alega a Requerida, argumenta, em síntese, no sentido da improcedência do pedido, que  importa referir que o Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, cuja produção de efeitos operou a partir de 01.07.2015, procedeu à reforma do regime de tributação dos Organismos de Investimento Coletivo (OIC), alterando, a redacção do Art.º 22.º do EBF, aplicável aos rendimentos obtidos por fundos de investimento mobiliário e Imobiliário e sociedades de investimento mobiliário e Imobiliário, que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, conforme resulta do n.º 1 do Art. 22.º do EBF, e da Circular n.º 6/2015, na qual são efectuados esclarecimentos quanto à sua aplicação.

Estabeleceu o legislador que, para esses sujeitos passivos de IRC, uma exclusão na determinação do lucro tributável dos rendimentos de capitais, prediais e mais-valias referidos nos Art.º 5.º 8.º e 10.ºdo CIRS, (n.º 3 do n.º 22 do EBF) e uma isenção das derramas municipal e estadual, nos termos do n.º 6 da referida norma.

Resulta do n.º 1.º do Art.º 22.º do EBF que “1 – São tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional”.

Ou seja, o regime de tributação, consignado no Art.º 22.º do EBF, não é aplicável à Requerente - pessoa coletiva de direito francês -, por falta de enquadramento com o disposto no n. 1 do Art.º 22.º do EBF.

Não obstante a consagração da liberdade de circulação dos capitais e, consequentemente, a proibição de adopção de medidas restritivas da mesma, consagrada no Art.º 63.º e seguintes do TFUE,  a alínea a) do n. 1 do Art.º 65.º do TFUE, permite que os Estados-membros apliquem "(...) as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido", tendo em conta a sua soberania fiscal, desde que, verificado o n.º 3 da mencionada disposição legal.

Note-se que, ao contrário do que se verifica com o IVA, não existe no TFUE uma previsão quanto à harmonização de impostos sobre o rendimento ou tribulação directa, embora, numa tentativa de aproximação de legislações dos Estados-membros, a mesma encontre alguma expressão, nos Art.ºs 114. e 115.º do referido Tratado.

Alega ainda a entidade Requerida que, tal como aludido em sede de apreciação da reclamação graciosa, a entidade Requerida encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, não lhe competindo apreciar a desconformidade ou conformidade das normas internas com as do TFUE, nem apreciar da sua constitucionalidade.

Estando a Requerida vinculada ao princípio da legalidade, não pode desaplicar normas em função da sua inconstitucionalidade, uma vez que essa competência apenas é assacada aos tribunais, conforme se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/94, de 7 de Junho, nos Pareceres do Centro de Estudos Fiscais n.º 31/02 e n.º 91/08 do Centro de Estudos Fiscais e ainda na doutrina de Gomes Canotilho e Vital Moreira, (in Constituição da Republica Portuguesa Anotada, em anotação ao Art.º 266.º).

 

4. em 24 de Julho foi proferido despacho com o seguintes conteúdo:

1.Por requerimento de 17 de Julho, veio o SP insistir na inquirição da testemunha indicada para "reforçar a prova documental já existente sobre os factos alegados no artigo 6.º do pedido..."

Na resposta a Requerida defendeu que não se deveria verificar a produção de prova testemunhal, entre o mais, porque "os autos contêm toda a prova, inexistindo qualquer dissídio sério sobre os factos, mas apenas dos efeitos jurídicos que as partes extraem desses mesmos factos ".

Assim sendo, quer porque dos autos consta prova documental sobre os factos alegados pelo SP, quer porque não existe dissídio sobre os factos essenciais para a decisão da causa, até porque a questão é substancialmente de direito, indefere-se o requerimento de inquirição de prova testemunhal.

Pela mesma razão, se indefere o pedido de aproveitamento da prova produzida no processo n.º 256/2019-T.

2.Não havendo lugar a produção de prova constituenda, por um lado, e não tendo sido suscitada matéria de excepção, por outro, o Tribunal dispensa a realização da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que faz ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Vd. arts. 19.º, n.º 2 e 29.º, n.º 2 do RJAT.3. Notifiquem-se ambas as partes para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias a partir da notificação do presente despacho, sendo que se concede à Requerida a faculdade de, caso assim o entenda, juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pelo sujeito passivo.

4. Designa-se o dia 18 de Setembro de 2020 como prazo limite para a prolação da decisão arbitral, data que não tem em conta o período de suspensão do processo.(…)”

 

5.As partes produziram alegações reiterando, no essencial, o alegado nas peças anteriores. A Requerente considera, em suma, que – como concluíram os Tribunais Arbitrais constituídos no âmbito dos Processos n.º 194/2019-T CAAD e n.º 256/2019-T CAAD (em que se analisaram as autoliquidações da REQUERENTE relativas aos exercícios de 2015 e de 2017, respetivamente) – o ato tributário contestado é inválido porque resulta da aplicação do regime comum de tributação das sucursais portuguesas de sociedades estrangeiras e não, como devia, do regime aplicável aos fundos de investimento e às sociedades de investimento previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais.

Na verdade, (…) a não aplicação do regime previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais consubstancia uma discriminação injustificada, violadora: (i) das liberdades de circulação de capitais e de estabelecimentos consagradas no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”); e (ii) dos princípios da igualdade e da justiça tributária, consagrados na Lei Geral Tributária e na Constituição da República Portuguesa. A Requerida limitou-se a remeter para a argumentação da Resposta.

 

II. Saneador

 

O Tribunal Arbitral Colectivo é competente e foi regularmente constituído.

As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, ambos do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

Cumpre decidir.

 

III. Do Mérito

 

III.1. Matéria de Facto

1.1.        Factos Provados

a)            A REQUERENTE é a sucursal portuguesa da A... (anteriormente designada B...) – um organismo de investimento coletivo imobiliário aberto, constituído em França, sob a forma de Société Civile de Placement Immobilier (“SPCI”) para o exercício da atividade de aquisição e gestão de património imobiliário destinado ao arrendamento (cf. DOCS. 3, 4, 5 e 6 do pedido de pronúncia arbitral);

b)           Enquanto SPCI encontra-se sujeita: (i) ao regime previsto nos artigos 1832.º e seguintes do Código Civil Francês e ao regime dos investimentos de organismo coletivo, estabelecido nos artigos L214 e R.214 do Código Monetário e Financeiro Francês e no Regulamento Geral da Authorité des Marchés Financiers francesa (“AMF”); assim como – na medida em que desenvolve a sua atividade em Portugal – (ii) ao Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo consagrado na Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro (que transpõem para o direito interno de França e de Portugal, a Diretiva 2011/61/EU, de 8 de junho de 2011 (cf. cit. DOC. 5 do pedido de pronúncia arbitral);

c)            A Requerente dedica-se ao investimento coletivo em património imobiliário, através da contribuição de vários investidores, de acordo com a política de investimento definida pela respetiva sociedade gestora e em obediência a um princípio de repartição de riscos (cf. os cit. DOCS. 3 a 6 e os DOCS. 7 e 8 do pedido de pronúncia arbitral); Tem a sua atividade sujeita a autorização do regulador competente, a Authorité des Marchés Financiers (“AMF”), que lhe emitiu o “visto S.P.C.I. n.º 12-14”, de 24 de julho de 2012, assim como, na medida em que desenvolve atividade em Portugal, à supervisão da Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (“CMVM”) (cf. DOC. 9 do pedido de pronúncia arbitral); e é gerida por uma sociedade gestora de fundos de investimento – a C..., matriculada no Registo de Comércio e de Sociedades de Paris sob o n.º..., autorizada e sujeita à supervisão da referida AMF (cf. cit. DOCS. 3 a 9 do pedido de pronúncia arbitral);

d)           A REQUERENTE é uma entidade juridicamente equiparável às sociedades de investimento imobiliário de capital variável heterogeridas (“SIICAV”) constituídas em Portugal nos termos previstos na Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro, as quais:

e)           São organismos de investimento coletivo imobiliário que “[T]êm como fim o investimento coletivo de capitais obtidos junto de investidores, cujo funcionamento se encontra sujeito a um princípio de repartição de riscos e à prossecução do exclusivo interesse dos participantes” [cf. artigo 2.º, n.º 1, alínea aa) da Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro];

f)            Estão sujeitas a um regime de autorização pelo regulador – a COMISSÃO DO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS (“CMVM”) (cf. artigos 19.º e seguintes da Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro); e

g)            São heterogeridas por uma terceira entidade, sujeita a registo junto da mencionada CMVM (cf. artigos 11.º, n.º 3, 54.º e 69.º e seguintes da Lei n.º 16/2015, de 24 de fevereiro);

h)           Para além desta manifesta identidade jurídica (com origem no Direito da União Europeia) a REQUERENTE partilha com as SIICAV portuguesas o mesmo papel económico, concorrendo com elas pela angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus investidores o mesmo tipo de condições de mercado (cf. os cit. DOCS. 7 e 8 do pedido de pronúncia arbitral);

i)             No exercício de 2016, a REQUERENTE obteve em Portugal rendimentos relacionados com a sua atividade (quase exclusivamente rendimentos prediais) no valor global de € 2.982.549,72 (dois milhões novecentos e oitenta e dois mil quinhentos e quarenta e nove euros e setenta e dois cêntimos) e registou um resultado líquido positivo de € 1.515.757,13 (um milhão quinhentos e quinze mil setecentos e cinquenta e sete euros e treze cêntimos) (cf. campo 410 do quadro 11 e campo 701 do quadros 07 do cit. DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral);

j)             Em 27 de junho de 2018, a REQUERENTE apresentou a sua declaração modelo 22 de IRC relativa ao exercício de 2016 (a declaração n.º...) (cf. cit. DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral);

k)            Tratando-se de uma sucursal de um organismo de investimento coletivo estrangeiro, a REQUERENTE autoliquidou o lucro tributável, o IRC, a derrama estadual e a derrama municipal nos termos gerais aplicáveis à tributação dos sujeitos passivos não residentes com estabelecimento estável em Portugal, sujeitando dessa forma a imposto todos os rendimentos obtidos neste território, de acordo com o regime previsto nos artigos 4.º, n.ºs 2 a 5, 87.º e 87.º-A do Código do IRC e no artigo 18.º da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro (cf. cit. DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral);

l)             Em resultado dessa aplicação do regime geral, a REQUERENTE apurou: apurou: (i) matéria coletável não isenta no valor de € 1.934.994,88 (um milhão novecentos e trinta e quatro mil novecentos e noventa e quatro euros e oitenta e oito cêntimos); (ii) IRC (excluindo derrama) no montante de € 405.748,92 (quatrocentos e cinco mil setecentos e quarenta e oito euros e noventa e dois cêntimos); e (iii) derrama estadual no valor de € 13.049,84 (treze mil e quarenta e nove euros e oitenta e quatro cêntimos), o que perfaz uma coleta total de € 418.798,76 (quatrocentos e dezoito euros setecentos e noventa e oito euros e setenta e seis cêntimos) (cf. quadros 09 e 10 do cit. DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral);

m)          Se tivesse aplicado o regime especial previsto no artigo 22.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, relativo à tributação do lucro dos organismos de investimento coletivo que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional, a coleta total da REQUERENTE teria sido de € 0,00 (zero euros), uma vez que todos os rendimentos auferidos e todos os gastos incorridos no período compreendido entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2016 se encontrariam excluídos do cálculo do lucro tributável (cf. DOC. 10 do pedido de pronúncia arbitral);

n)           Em 30 de maio de 2019, a REQUERENTE apresentou uma Reclamação Graciosa contra a autoliquidação acima descrita, pedindo a respetiva anulação com todas as consequências legais (cf. DOC. 11 do pedido de pronúncia arbitral);

o)           Em 4 de outubro de 2019, a REQUERENTE foi notificada da decisão de indeferimento que foi proferida pelo Senhor DIRETOR DE FINANÇAS ADJUNTO da DIREÇÃO DE FINANÇAS DE LISBOA no âmbito do procedimento de Reclamação Graciosa, entretanto autuado com o n.º ...2019... (cf. cit. DOC. 1 do pedido de pronúncia arbitral);

p)           No dia 31 de dezembro de 2019, a REQUERENTE apresentou o pedido de constituição de tribunal arbitral e o pedido de pronúncia arbitral.

 

1.2. Factos não Provados

Não há factos relevantes para esta Decisão Arbitral que não se tenham provado.

 

1.3. Fundamentação da fixação da Matéria de Facto

A matéria de facto foi fixada por este Tribunal Arbitral Coletivo e a sua convicção ficou formada com base nas peças processuais e nos documentos juntos pelas Partes ao presente Processo Arbitral, sendo que a questão a decidir é essencialmente de direito.

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem o dever de se pronunciar sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de selecionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta o pedido formulado pelo autor, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 596.º e n.º 2 a 4 do artigo 607.º, ambos do Código Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e consignar se a considera provada ou não provada, conforme n.º 2 do artigo 123.º Código do Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), aplicável ex vi da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento das pessoas, conforme n.º 5 do artigo 607.º do CPC. Somente quando a força probatória de certos meios se encontrar pré-estabelecida na lei (e.g. força probatória plena dos documentos autênticos, conforme artigo 371.º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação. 

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas Partes e a prova documental junta aos Autos, consideraram-se provados, com relevo para esta Decisão Arbitral, os factos acima elencados.

 

III. 2. Matéria de Direito

 

Cumpre salientar, antes de mais, que, independentemente das competências ou não da Autoridade Tributária e Aduaneira para recusar a aplicação de normas com fundamento em inconstitucionalidade ou em violação do direito da União Europeia, é inquestionável que os Tribunais não têm qualquer dessas limitações.

Na verdade, por força do preceituado no artigo 204.º da CRP, «nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» e entre as normas constitucionais inclui-se a do artigo 8.º n.º 4, da CRP, que estabelece que «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

Feito este reparo, cumpre apreciar.

 

III.2.1. Quanto à desconformidade do artigo 22.º do EBF com o Direito da União  

No caso dos autos, ficou demonstrado que a Requerente é uma sucursal portuguesa de um organismo de investimento coletivo imobiliário aberto, constituído em França, sob a forma de Société Civile de Placement Immobilier, constituída ao abrigo do direito francês, para o exercício da actividade de aquisição e gestão de património imobiliário destinado ao arrendamento.

A Requerente desempenha o mesmo papel económico que as sociedades de investimento imobiliário de capital variável heterogeridas ("SIICAV"), constituídas em Portugal nos termos previstos na Lei n.º 16/2015, de 24 de Fevereiro, competindo com elas pela angariação de investimento da mesma natureza e oferecendo aos seus clientes o mesmo tipo de condições de mercado.

Resulta da matéria de facto dada como provada que as afirmações neste sentido feitas pela Requerente não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira e são corroboradas pelos documentos apresentados por aquela.

Examinando a fundamentação da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, conclui-se que o argumento da Autoridade Tributária e Aduaneira assenta no facto de  a Requerente, por ser pessoa colectiva de direito francês, não se enquadrar no n.º 1 do art.º 22.º do EBF. Por outro lado, alega a Requerida, em sede de apreciação da reclamação graciosa, que se encontra vinculada ao princípio da legalidade, não lhe competindo apreciar a desconformidade ou conformidade das normas internas com as do TFUE.

Ante o exposto, a questão essencial a decidir gira em torno da interpretação do artigo 22.º dos EBF à luz do artigo 63.º do TFUE.

Assim recortada a questão essencial a decidir verifica-se que a mesma foi analisada na Decisão arbitral de 19 de Setembro de 2019, tirada no Processo n.º 194/2019-T - em que era Requerente a mesma entidade e que incidia sobre o período de tributação de 2015 – e não há motivo para alterar o entendimento que aí foi sufragado, que passamos a seguir.

“O artigo 22.º do EBF estabelece um regime consideravelmente mais favorável que o regime geral de tributação em IRC, pois, nos termos do seu n.º 3, «para efeitos do apuramento do lucro tributável, não são considerados os rendimentos referidos nos artigos 5.º, 8.º e 10.º do Código do IRS, exceto quando tais rendimentos provenham de entidades com residência ou domicílio em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável constante de lista aprovada em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, os gastos ligados àqueles rendimentos ou previstos no artigo 23.º-A do Código do IRC, bem como os rendimentos, incluindo os descontos, e gastos relativos a comissões de gestão e outras comissões que revertam para as entidades referidas no n.º 1» e isenção de derramas estadual e municipal (n.º 6).

“O n.º 1 do artigo 22.º do EBF estabelece que «são tributados em IRC, nos termos previstos neste artigo, os fundos de investimento mobiliário, fundos de investimento imobiliário, sociedades de investimento mobiliário e sociedades de investimento imobiliário que se constituam e operem de acordo com a legislação nacional», pelo que exclui do âmbito do regime aí previsto as sociedades como a Requerente, que não foram constituídas de acordo com a legislação nacional, mesmo que operem de acordo com a legislação nacional, como sucede com a Requerente.

“A exigência cumulativa de os Organismos de Investimento Coletivo terem sido constituídos e actuarem de acordo com a legislação nacional não dá margem para uma interpretação no sentido sugerido pela Requerente de o regime referido ser aplicável «quer aos organismos de investimento coletivo nacionais, quer ainda aos organismos de investimento coletivo (e seus estabelecimentos estáveis) que, como a REQUERENTE, tenham sido constituídos noutros Estados-Membros e sejam jurídica e economicamente equiparáveis aos organismos nacionais».

Na verdade, os Organismos de Investimento Coletivo constituídos em outros Estados-Membros de acordo com a legislação que nele vigora, como é o caso da Requerente, não foram constituídos de acordo com a legislação nacional.

“Assim, não pode ser aceite o entendimento defendido pela Requerente em primeira linha.

“De harmonia com o disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático».

“A Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem decidido pacificamente no sentido da primazia do direito internacional convencional sobre o direito interno, como pode ver-se pelos acórdãos de 01-07-2015, proferido no processo n.º 0188/15, 17-06-2015, proferido no processo n.º 0187/15, e de 25-06-2015, proferido no processo n.º 0464/15, em que se entendeu que «nos termos do art. 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, em tudo que seja conflituante com este, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado", na esteira de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, página 261. (   )

“A Requerente defende que a norma do artigo 22.º, n.º 1, do EBF é incompatível com a «proibição de discriminações injustificadas materializada no tratado sobre o funcionamento da União Europeia - liberdade de circulação de capitais e liberdade de estabelecimento».

“O artigo 63.º n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelece a regra de que «são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros».

“O artigo 49.º do TFUE estabelece o princípio de que «são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro».

Como tem sido pacificamente entendido pela jurisprudência e é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do TFUE (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), a jurisprudência do TJUE tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, quando tem por objecto questões conexas com o Direito da União Europeia (neste sentido, podem ver-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 25-10-2000, processo n.º 25128, publicado em Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, p. 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, publicado em Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, p. 2593).

“Quando se suscita uma questão de interpretação e aplicação de Direito da União Europeia, os tribunais nacionais devem equacionar a colocação da questão da ao TJUE através de reenvio prejudicial.

“No entanto, quando a lei comunitária seja clara e quando já haja um precedente na jurisprudência do TJUE não é necessário proceder a essa consulta, como o TJUE concluiu no Acórdão de 06-10-1982, Caso Cilfit, Proc. 283/81.

“Até mesmo quando as questões em apreço não sejam estritamente idênticas (doutrina do acto aclarado) e quando a correcta aplicação do Direito da União Europeia seja tão óbvia que não deixe campo para qualquer dúvida razoável no que toca à forma de resolver a questão de Direito da União Europeia suscitada (doutrina do acto claro) (idem, n.º14).

“(…) Afigura-se que há jurisprudência do TJUE que esclarece a aplicação do artigo 63.º do TFUE.

“Refere-se no acórdão do TJUE de 10-04-2014, proferido no processo n.º C-190/12:

38           Importa recordar, antes de mais, que, embora a fiscalidade direta seja da competência dos Estados Membros, estes devem, todavia, exercer essa competência no respeito do direito da União (acórdão de 10 de maio de 2012, Santander Asset Management SGIIC e o., C 338/11 a C 347/11, n.º 14 e jurisprudência referida).            

39           A este respeito, resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que as medidas proibidas pelo artigo 63.º, n.º 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, incluem as que são de molde a dissuadir os não residentes de investirem num Estado Membro ou a dissuadir os residentes desse Estado Membro de investirem noutros Estados (acórdãos de 18 de dezembro de 2007, A, C-101/05, Colet., p. I-11531, n.º 40; de 10 de fevereiro de 2011, Haribo Lakritzen Hans Riegel e Österreichische Salinen, C-436/08 e C-437/08, Colet., p. I-305, n.º 50; e Santander Asset Management SGIIC e o., já referido, n.º 15).

40           No caso vertente, a isenção fiscal prevista pela legislação fiscal nacional em causa no processo principal era concedida unicamente aos fundos de investimento que exerciam a sua atividade em conformidade com a Lei sobre os fundos de investimento.

41           Resulta igualmente da decisão de reenvio que, nos termos da legislação nacional em causa no processo principal, os fundos de investimento só beneficiam da isenção na condição de a sua sede se situar em território polaco. Por conseguinte, os dividendos pagos a fundos de investimento não residentes não podiam beneficiar, apenas devido ao local de estabelecimento desses fundos, da isenção da retenção na fonte, mesmo que esses dividendos pudessem eventualmente ser objeto de uma redução da taxa de tributação ao abrigo de uma convenção preventiva da dupla tributação.

42           Ora, uma tal diferença de tratamento fiscal dos dividendos entre os fundos de investimento residentes e os fundos de investimento não residentes é suscetível de dissuadir, por um lado, os fundos de investimento estabelecidos num país terceiro de adquirirem participações em sociedades estabelecidas na Polónia e, por outro, os investidores que residem nesse Estado Membro de adquirirem participações em fundos de investimento não residentes (v., neste sentido, acórdão Santander Asset Management SGIIC e o., já referido, n.º 17).

43           Daqui resulta que uma legislação nacional como a que está em causa no processo principal é de molde a conduzir a uma restrição à livre circulação de capitais proibida, em princípio, pelo artigo 63.º TFUE.

 

“Afigura-se ser claro que à situação que se depara nestes autos se aplica, por paridade ou mesmo maioria de razão, esta jurisprudência do TJUE, pois, à face do artigo 22.º, n.º 1, do EBF, o benefício fiscal não se aplica à Requerente exclusivamente por a sua constituição não ter sido feita segundo a legislação nacional.

“Na verdade, as sociedades constituídas noutro Estado Membro serão tendencialmente não residentes em Portugal (como sucede no caso em apreço), pelo que este artigo 22.º, n.º 1, impondo-lhes um regime de tributação consideravelmente mais gravoso do que o aplicável às sociedades constituídas segundo a legislação nacional, tem potencialidade para «dissuadir os não residentes de investirem num Estado Membro», desde logo porque tem de enfrentar a concorrência das de sociedades que usufruem do benefício fiscal, ficam em melhores condições para comercialização os seus produtos de investimento.

“É certo que, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, «a alínea a) do n. 1 do Art.º 65.º do TFUE, permite que os Estados-membros apliquem "(...) as disposições pertinentes do seu direito fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar em que o seu capital é investido", tendo em conta a sua soberania fiscal, desde que, verificado o n.º 3 da mencionada disposição legal».

“Mas, como se refere no n.º 3 deste artigo 65.º, «as medidas e procedimentos a que se referem os n.ºs 1 e 2 não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e pagamentos, tal como definida no artigo 63.º».

“ Neste caso, está-se perante uma discriminação arbitrária, pois não se vislumbra qualquer fundamento para a fazer, como ressalta da decisão da reclamação graciosa e da posição assumida no presente processo pela Autoridade Tributária e Aduaneira, em que não é aventada qualquer justificação para a diferença de tratamento.

“Por outro lado, se é certo que, como diz a Autoridade Tributária e Aduaneira, «o tratamento fiscal diferenciado de residentes e não residentes não é discriminatório, desde que uns e outros se encontrem em situações diferentes (...)", também o é que no caso presente, actuando a Requerente segundo a legislação nacional, encontra-se, quanto à sua actividade geradora de tributação em IRC, em situação idêntica à das sociedades constituídas segundo o direito nacional.

“Como entendeu o Supremo Tribunal Administrativo no acórdão de 08-02-2017, proferido no processo n.º 0678/16, «para que uma regulamentação fiscal possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento diga respeito a situações não comparáveis objectivamente ou se justifique por razões imperiosas de interesse geral», se «aquela restrição, substanciada em maior tributação de entidade não residente, não pode ser neutralizada, em concreto, por via da Convenção celebrada entre os Estados para evitar a dupla tributação».

“Neste caso, não há qualquer norma da Convenção entre Portugal e a França para Evitar a Dupla Tributação e Estabelecer Regras de Assistência Administrativa Recíproca em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 105/71, de 26 de Março, que permita neutralizar a maior tributação da Requerente em relação às sociedades constituídas segundo a legislação nacional, o que, aliás, nem sequer é aventado pelas Partes.

“Pelo exposto, afigura-se ser claro e resulta de precedentes na jurisprudência europeia a interpretação dos artigos 63.º e 65.º do TFUE, pelo que não se justifica o reenvio prejudicial sobre esta questão.”.

Por tudo o quanto vai exposto, julga-se ilegal o artigo 22.º, n.º 1, do EBF, interpretado, como o fez a Requerida, limitando o regime nele previsto a sociedades constituídas segundo a legislação nacional, excluindo, sem mais, as sociedades constituídas segundo legislações de Estados Membros da União Europeia.

Assim, tem de se concluir que a autoliquidação e a decisão da reclamação graciosa que a confirmou, enfermam de vício de violação de lei, que justifica a sua anulação, de harmonia, com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

III.2.2.  Questões de conhecimento prejudicado

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com  fundamento em vício que assegura estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil o conhecimento das restantes questões colocadas, de harmonia com o disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º2, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

 

III.3. Restituição das quantias pagas e juros indemnizatórios          

A Requerente pagou imposto em excesso e pede a restituição do imposto pago indevidamente, acrescido de juros indemnizatórios.

No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

No caso em apreço, na sequência da ilegalidade da autoliquidação e da decisão de indeferimento da reclamação graciosa há lugar a reembolso da quantia indevidamente paga, como consequência da anulação parcial da liquidação, por força dos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.

O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

3. São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias:

 (...)

d) Em caso de decisão judicial transitada em julgado que declare ou julgue a inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma legislativa ou regulamentar em que se fundou a liquidação da prestação tributária e que determine a respetiva devolução.

Esta alínea d) foi aditada pela Lei n.º 9/2019, de 1 de Fevereiro, e, nos termos do seu artigo 3.º, «a redação da alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, introduzida pela presente lei, aplica-se também a decisões judiciais de inconstitucionalidade ou ilegalidade anteriores à sua entrada em vigor, sendo devidos juros relativos a prestações tributárias que tenham sido liquidadas após 1 de janeiro de 2011».

Neste caso, independentemente de a ilegalidade ser ou não imputável a Autoridade Tributária e Aduaneira, há direito da Requerente a juros indemnizatórios nos termos desta alínea d) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT.

Os juros indemnizatórios são devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 3, alínea d), e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, a contar da data do pagamento indevido até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

IV. Decisão

 

 Termos em que se acorda neste Tribunal Colectivo:

a)  Julgar procedente o pedido arbitral e anular o acto de autoliquidação de IRC e de derramas impugnado, referentes ao ano de 2016, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esse acto de liquidação;

b) Condenar a Administração Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

V. Valor do processo

 

O Tribunal Arbitral Colectivo, nos termos do n.º 2 do artigo 306.º do CPC, alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do CPPT e n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa o valor do processo em € 418.798,76.

 

VI. Custas

Nos termos do n.º 2 do artigo 12.º e do n.º 4 do artigo 22.º, ambos do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 6. 732,00 a cargo da Requerida nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

Notifique-se.

Registe-se.

 

Lisboa, 28 de Setembro de 2020

 

Os Árbitros,

 

Fernanda Maçãs (presidente)

Prof. Doutor Francisco Nicolau Domingos (árbitro vogal)

Dr. Henrique Nogueira Nunes (árbitro vogal)