DECISÃO ARBITRAL
Carla Almeida Cruz, árbitro das listas do CAAD, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral singular, constituído em 18-03-2020, elabora nos seguintes termos a decisão arbitral no processo identificado.
1. RELATÓRIO
A..., contribuinte fiscal com o número..., com domicílio na Rua ..., nº..., ..., em Lisboa (doravante “Requerente), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
O pedido de pronúncia arbitral tem por objeto a liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), respeitante à aquisição da nua propriedade do prédio urbano inscrito na matriz predial sob o artigo ... da freguesia de ... concelho do Funchal, no valor de € 25.500,00 e a correspondente liquidação de juros compensatórios, no valor de € 13.307,51, dos quais resulta um montante total a pagar de € 38.807, 51.
A Requerente peticiona que seja declarada a caducidade e a consequente anulação dos atos de liquidação de IMT e de juros compensatórios, defendendo em síntese que:
i) A liquidação de IMT que ora se impugna, resulta da transmissão onerosa do direito de propriedade do Imóvel, ocorrida em 24-07-2006 - data em que foi celebrado o contrato de doação da nua propriedade do imóvel - e não a partir de 01-02-2016, data do trânsito em julgado da sentença proferida em 15-12-2015 no âmbito do processo nº .../15...T...FNC que declarou nulo, por simulação (relativa) o contrato de doação, como foi entendido pelo Serviço de Finanças do Funchal ... da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira;
ii) Sendo o IMT um imposto de obrigação única, o prazo de caducidade conta-se a partir da data em que o facto tributário ocorreu, isto é, desde o dia 24-07- 2006 — cf. n.º 4 do artigo 45.º da Lei Geral Tributária (“LGT”) aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 35.º do Código do IMT.
iii) Não se verificam, in casu, qualquer uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 35.º do Código do IMT, nem nenhuma das prevista no artigo 45.º e artigo 46.º da LGT, susceptíveis de aumentar, prolongar, interromper ou suspender o prazo de caducidade do direito à liquidação.
iv) O prazo de caducidade do direito à liquidação, contado desde a data da transmissão do imóvel em causa, ocorrida em 24-07-2006, é de oito anos e decorreu de forma contínua, pelo que caducou em 24-07-2014.
v) A liquidação do IMT e correspondente liquidação de juros compensatórios, foi efetuada já depois de ter terminado o prazo de caducidade do direito à respetiva liquidação, pelo que, ao proceder à liquidação em 30-09- 2019, a Requerida incorreu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, nomeadamente por violação do disposto no artigo 35.º do Código de IMT, estando, em consequência, a liquidação que ora se impugna ferida de ilegalidade, ilegalidade esta que inquina a liquidação de imposto sub judice e respetivos juros, tornando-as anuláveis nos termos do artigo 163.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), aplicável ex vi da alínea d) do artigo 2.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”).
Mais peticiona a Requerente, que caso não se entenda declarar a caducidade do direito à liquidação do IMT, seja declarada a ilegalidade da liquidação de juros compensatórios por ausência de suporte legal, peticionando ainda a título subsidiário, que seja declarada a ilegalidade da liquidação de juros compensatórios por os mesmos terem sido calculados com manifesto erro sobre os pressupostos de facto e de direito.
A Requerente peticiona também a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento das custas e encargos.
É Requerida nestes autos a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (“Requerida” ou “AT”).
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 31-12-2019 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) também em 31-12-2019.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 1 e do artigo 11.º, n.º 1, alínea b) do RJAT, o Conselho Deontológico designou como árbitro do Tribunal Arbitral com árbitro singular a signatária, que manifestou a aceitação do encargo, no prazo legal.
Em 17-02-2020 as partes foram notificadas desta designação e não manifestaram intenção de recusar a designação do árbitro, nos termos previstos nas normas do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e nas normas dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, e em conformidade com a disciplina constante do artigo 11.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 18-03-2020.
Em 22-06-2020, a Requerente requereu a ampliação do pedido, no sentido da inclusão do pedido de condenação da Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
Em 22-06-2020, a Requerida foi notificada do requerimento de ampliação do pedido apresentado pela Requerente.
Em 26-06-2020, a Requerida, apresentou Resposta, na qual reconheceu e não se opôs à ampliação do pedido formulado pela Requerente e onde invocou em sede de exceção, a incompetência material do Tribunal Arbitral, considerando que o Tribunal Arbitral não tem competência material para conhecer o pedido de pronúncia arbitral, por ser o Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, através da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da RAM (abreviadamente AT-RAM) que é o sujeito activo de IMT e tem competência tributária para liquidar o IMT em causa, tendo nessa sequência peticionando a sua absolvição da instância.
A Requerida na sua Resposta argumentou ainda que não é competente para representar o Governo Regional da Madeira ou a AT-RAM, tendo nesta sequência requerido a dispensa da junção do processo administrativo (doravante, “PA”), alegando que o mesmo não está na sua posse.
Por despacho de 03-07-2020, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas, e a notificação da Requerente para, em sede de alegações, exercer o contraditório quanto à matéria da exceção invocada pela AT na sua Resposta.
Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados, tendo a Requerente também nesta sede se pronunciado quanto à matéria da exceção invocada pela AT, pugnando pela sua improcedência.
2. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído.
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades.
3. DA EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ARBITRAL
Cumpre apreciar, antes de mais, a exceção da incompetência do Tribunal Arbitral, que é conhecimento prioritário e oficioso, e cujo conhecimento precede o de qualquer outra matéria, nos termos do disposto na norma do artigo 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e do artigo 578º do Código de Processo Civil (CPC), por aplicação subsidiária do artigo 29º do RJAT.
A procedência desta exceção constituirá um obstáculo ao conhecimento do mérito.
3.1. Factos relevantes para conhecer da exceção
3.1.1. Factos provados
Com relevância para a decisão da matéria da exceção, consideram-se provados os seguintes factos:
A) Em 30-09-2019, foi emitida pelo Serviço de Finanças do Funchal ... da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, a liquidação oficiosa de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) respeitante à aquisição de ½ da nua propriedade do prédio urbano, sito em ..., inscrito na matriz predial sob o n.º... da freguesia de ... do concelho do Funchal, no montante total de € 38.807,51, sendo que a quantia de €25.500,00 respeita a Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, e a quantia de €13.307,51 a juros compensatórios [cf. documento n.º 1, junto à PI ];
B) Em 02-10-2019, a Requerente foi notificada da liquidação oficiosa do IMT identificada no antecedente facto provado A), através do ofício ... de 30-09-2019 da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, para no prazo de 30 dias, efectuar o pagamento da quantia total de € 38.807,51, mediante guias de pagamento a solicitar no Serviço de Finanças de Funchal ..., sob pena de não o fazendo ser instaurado procedimento executivo nos termos do artigo 38º n.º3 do CIMT e 88º e 162º do CPPT [cf. documento n.º 1, junto à P.I.];
C) Em 02-10-2019, a Requerente através do ofício identificado no antecedente facto provado B), foi também notificada de que do ato da liquidação do IMT, poderia reclamar no prazo de 120 dias, nos termos do artigo 70º do CPPT ou impugnar no prazo de três meses, nos termos do artigo 102º CPPT [cf. documento n.º 1, junto à P.I.];
D) Em 31-12-2019, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
3.1.2 Factos não provados
Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
3.1.3 - Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, concretamente os documentos juntos pela Requerente - a Autoridade Tributária e Aduaneira não juntou aos autos o processo administrativo - cuja correspondência à realidade não é contestada pela AT.
3.2. Posição das partes
A Autoridade Tributária e Aduaneira, suscitou na sua resposta, a exceção da incompetência material deste Tribunal Arbitral, sustentando para o efeito e em síntese que:
i. O que está em causa é um imposto liquidado não pela Autoridade Tributária e Aduaneira, mas sim pelo Serviço de Finanças de Funchal ... da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira.
ii. Na Região Autónoma Madeira, e quanto aos impostos nela cobrados ou gerados, tem capacidade tributária (titularidade do crédito de imposto) e competência tributária, traduzida no lançamento, liquidação e cobrança dos impostos, a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da RAM (AT-RAM).
iii. No caso em apreço, é o Governo Regional da Região Autónoma da Madeira, através da AT-RAM que é o sujeito activo da relação jurídica e tributária na liquidação do imposto (IMT) e tem competência tributária para liquidar o IMT em questão;
iv. Para que o Tribunal Arbitral possua competência para decidir alguma das matérias previstas no art.º 2º do RJAT é necessária uma Portaria de vinculação prévia, conforme resulta do art.º 4º daquele regime, e a única Portaria de vinculação existente é a Portaria nº112-A/2011, de 22 de março, que apenas vincula a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
v. A AT-RAM enquanto administração tributária regional, quanto aos impostos nela cobrados e/ou gerados, tem capacidade e competências tributárias próprias, pelo que não se encontra vinculada através da Portaria 112-A/2011, de 22 de março.
vi. A AT não praticou o ato de liquidação de IMT objecto do presente pedido de pronúncia, nem é o sujeito activo da relação jurídica e tributária na liquidação do imposto em causa nos autos e também não é competente para representar o Governo Regional da Madeira ou a AT-RAM, uma vez que o RJAT não vincula a AT-RAM, e a AT-RAM não faz parte da AT.
A Requerente respondeu nas suas alegações à matéria da exceção da incompetência, argumentando, em síntese, que:
a) O IMT não é receita própria da Região Autónoma Madeira (RAM), não cabendo a esta entidade a sua gestão e administração.
b) Apesar de terem sido os órgãos periféricos locais da RAM, nomeadamente o Serviço de Finanças do Funchal-..., a proceder à liquidação e cobrança do IMT no caso sub judice, tal liquidação e cobrança não é realizada no âmbito de competências tributárias própria da AT-RAM ou da RAM, uma vez que essas competências só existem para os impostos que sejam receitas próprias da RAM, e o IMT não é um desses impostos.
3.3. Apreciação da questão da incompetência
Cumpre apreciar e decidir a exceção invocada.
A competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD é delimitada em primeiro lugar, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º1, os critérios de competência material, estabelecendo o seguinte:
Artigo 2º - Competência dos tribunais arbitrais e direito aplicável
1 - A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões:
a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.
Por outro lado, devido ao carácter voluntário das partes de acesso à jurisdição arbitral, e uma vez que a arbitragem tributária deve ser um direito potestativo dos contribuintes em conformidade com o estatuído no n.º3 do artigo 124.º da Lei n.º3-B/2010 de 28 de abril (Orçamento de Estado para 2010), o RJAT prevê no seu n.º1 do artigo 4.º que a vinculação da administração tributária dependa de Portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e justiça, que estabelecerá, designadamente, o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos.
Essa vinculação veio a materializar-se através da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março, que no que ao caso interessa, estabelece o seguinte:
Artigo 1.º - Vinculação ao CAAD
Pela presente portaria vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no CAAD — Centro de Arbitragem Administrativa os seguintes serviços do Ministério das Finanças e da Administração Pública:
a) A Direcção -Geral dos Impostos (DGCI); e
b) A Direcção-Geral das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo (DGAIEC).
Artigo 2.º- Objecto da vinculação
Os serviços e organismos referidos no artigo anterior vinculam-se à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração lhes esteja cometida referidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com exceção das seguintes:
a) Pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário;
b) Pretensões relativas a actos de determinação da matéria colectável e actos de determinação da matéria tributável, ambos por métodos indirectos, incluindo a decisão do procedimento de revisão;
c) Pretensões relativas a direitos aduaneiros sobre a importação e demais impostos indirectos que incidam sobre mercadorias sujeitas a direitos de importação; e
d) Pretensões relativas à classificação pautal, origem e valor aduaneiro das mercadorias e a contingentes pautais, ou cuja resolução dependa de análise laboratorial ou de diligências a efectuar por outro Estado membro no âmbito da cooperação administrativa em matéria aduaneira.
Por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, as referências que se fazem à DGCI e à DGAIEC no artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, consideram-se feitas à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Resulta das normas atrás indicadas, que a competência dos Tribunais Arbitrais que funcionam no CAAD apenas abrange actos dos tipos referidos no artigo 2.º do RJAT «que tenham por objecto a apreciação das pretensões relativas a impostos cuja administração (...) esteja cometida» à Autoridade Tributária e Aduaneira.
Deste modo, o elemento decisivo para definir o âmbito da vinculação e da competência do Tribunal Arbitral é a entidade a quem é cometida a administração do imposto: caso se conclua que a administração do imposto cuja ilegalidade a Requerente pretende ver declarada é cometida à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) estar-se-á perante uma pretensão que se insere nas competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, caso contrário, o Tribunal Arbitral não terá competência material para conhecer do pedido de pronúncia arbitral.
Analisemos então no caso em concreto, qual a entidade a quem está cometida a administração do imposto em causa.
O imposto a que se reporta a liquidação impugnada, é o Imposto Municipal sobre Transmissões (IMT), que foi objeto de liquidação oficiosa pelo Serviço de Finanças do Funchal ... da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira.
Conforme resulta do disposto no artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de dezembro, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), é um serviço da administração directa do Estado dotado de autonomia administrativa.
Nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea a), do mencionado Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15 de Dezembro, cabe à AT assegurar a liquidação e cobrança, de entre outros, dos impostos sobre o património.
Porém, a competência para efetuar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o património, não é exclusiva da AT, havendo no caso em apreço, que analisar a quem está concretamente atribuída a competência para a liquidação do imposto cuja ilegalidade a Requerente pretende ver declarada, concretamente, se é à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) ou se é à Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT- RAM). Este é o elemento decisivo que cumpre apurar para definir o âmbito da vinculação e da competência do Tribunal Arbitral.
A alínea i) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), assim como o artigo 107.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto e pela Lei nº 12/2000, de 21 de Junho, atribuem à referida Região Autónoma poder tributário próprio, consistindo o mesmo, designadamente, no direito de dispor de todas as receitas fiscais cobradas no seu território, independentemente da sua natureza e da sua categoria específica.
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira prevê também, no seu artigo 108.º, que constituem receitas da Região, entre outras aí elencadas, “todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados ou gerados no seu território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo” (alínea b), bem como “outros impostos que devam pertencer-lhe, nos termos do presente Estatuto e da lei, nomeadamente em função do lugar da ocorrência do facto gerador da obrigação do imposto” (alínea d).
O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, no seu artigo 140.º disciplina também as competências administrativas regionais, aí se prevendo, que a Região Autónoma da Madeira tem capacidade para ser sujeito ativo dos impostos nela cobrados, quer de âmbito regional quer de âmbito nacional (n.º 1, alínea a), e que essa capacidade compreende, entre outros, “o poder de o Governo Regional criar os serviços fiscais competentes para o lançamento, liquidação e cobrança dos impostos de que é sujeito activo” (n.º 2, alínea a).
A Lei das Finanças das Regiões Autónomas, aprovada pela Lei Orgânica nº 2/2013, de 2 de setembro na sua versão atual, prevê de igual modo, no seu artigo 56º, que “os órgãos regionais têm competências tributárias de natureza normativa e administrativa (n.º 1).
A Lei das Finanças das Regiões Autónomas prevê ainda, no seu artigo 61º-1, alínea a), que “as competências administrativas regionais, em matéria fiscal, a exercer pelos Governos e administrações regionais respetivas, compreendem (…) a capacidade fiscal de as regiões autónomas serem sujeitos ativos dos impostos nelas cobrados, quer de âmbito regional, quer de âmbito nacional”, sendo que conforme estatuído no nº 2 da mesma norma, a “capacidade de as regiões autónomas serem sujeitos ativos dos impostos nelas cobrados compreende a) o poder de os Governos Regionais criarem os serviços fiscais competentes para o lançamento, liquidação e cobrança dos impostos de âmbito regional, b) o poder de regulamentarem as matérias a que se refere a alínea anterior, sem prejuízo das garantias dos contribuintes, de âmbito nacional; e c) o poder de as regiões autónomas utilizarem os serviços fiscais do Estado nelas sediados, mediante o pagamento de uma compensação, acordada entre o Estado e as regiões autónomas, relativa ao serviço por aquele prestado, em sua representação legal.
Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro, as competências administrativas regionais, em matéria fiscal, eram exercidas na região pelos serviços fiscais do Estado nelas sediados (artigo 61º-2, alínea c) da Lei das Finanças das Regiões Autónomas).
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de janeiro, foram transferidas para a Região Autónoma da Madeira as atribuições e competências fiscais que no âmbito da Direção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e de todos os serviços dela dependentes vinham sendo exercidas no território da Região, pelo Governo da República (artigo 1.º, n.º 1).
Nos termos do disposto no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 18/2005, “compete ao Governo Regional da Região Autónoma da Madeira exercer a plenitude das competências previstas na Constituição e na lei em relação às receitas fiscais próprias, praticando todos os actos necessários à sua administração e gestão”.
O Decreto-Lei n.º 18/2005 veio determinar a extinção da Direção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e dos serviços locais dela dependentes (artigo 1.º, n.º 3), prevendo a criação, por decreto regulamentar regional, de um “organismo com vista à prossecução na Região Autónoma da Madeira das atribuições e competências cometidas à Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira […]” (artigo 2.º).
Através do Decreto Regulamentar Regional n.º 29-A/2005/M, de 31 de agosto, foi aprovada a orgânica da Direção Regional dos Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (DRAF), posteriormente alterada pelo Decreto Legislativo Regional n.º 28/2006/M, de 19 de julho, o que, em obediência ao Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de janeiro, veio permitir que o Governo Regional da Madeira passasse a exercer a plenitude das competências previstas nas alíneas i) e j) do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa.
A orgânica da DRAF foi alterada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 2/2013/M, de 1 de fevereiro.
Conforme é afirmado no artigo 1.º, n.º 1, deste Decreto Regulamentar Regional, a DRAF “é o serviço central da administração direta da Região Autónoma da Madeira […], que tem por missão assegurar e administrar os impostos sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o consumo, sobre o património e de outros tributos legalmente previstos, bem como executar as políticas e as orientações fiscais definidas pelo Governo Regional da Madeira, em matéria tributária a exercer no âmbito da Região Autónoma da Madeira, de acordo com os artigos 140.º e 141.º da Lei n.º 130/99, de 1 de agosto, nomeadamente a liquidação e a cobrança dos impostos que constituem receita da Região”.
No artigo 2.º, n.º 3, alínea a), do Decreto Regulamentar Regional n.º 2/2013/M, de 1 de fevereiro, prevê-se que incumbe em especial à DRAF e relativamente às receitas fiscais próprias “assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas da Região ou de pessoas coletivas de direito público”.
O Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de agosto, procedeu a nova alteração à orgânica da Direção Regional dos Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, agora com a designação de Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM), a qual foi definida no Decreto Regulamentar Regional n.º 3/2015/M, de 28 de maio.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de agosto, a “AT-RAM é um serviço executivo da Secretaria Regional das Finanças e da Administração Pública que tem por missão assegurar e administrar os impostos sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o consumo, sobre o património e outros tributos legalmente previstos, bem como executar as políticas e as orientações fiscais definidas pelo Governo Regional da Madeira, em matéria tributária a exercer no âmbito da Região Autónoma da Madeira, de acordo com os artigos 140.º e 141.º da Lei n.º 130/99, de 1 de agosto, nomeadamente a liquidação e a cobrança dos impostos que constituem receita da Região”.
O artigo 3.º, n.º 3, alínea a) do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de agosto, prevê que incumbe em especial à AT-RAM e relativamente às receitas fiscais próprias da Região Autónoma da Madeira “assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas da Região ou de pessoas coletivas de direito público”.
Decorre do enunciado, e em síntese, que:
i. A Região Autónoma da Madeira dispõe de poder tributário próprio (cf. artigo 227.º, n.º 1, alínea i) da CRP e artigo 107.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira).
ii. O IMT, cuja legalidade da liquidação se encontra aqui a ser apreciada, na medida em que foi cobrado e gerado no território da Região Autónoma da Madeira, constitui receita da Região (cf. artigo 108º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira).
iii. A Região Autónoma da Madeira tem capacidade para ser sujeito ativo dos impostos nela cobrados, quer de âmbito regional quer de âmbito nacional e essa capacidade compreende, entre outros, o poder de o Governo Regional criar os serviços fiscais competentes para o lançamento, liquidação e cobrança dos impostos de que é sujeito activo (cf. artigo 140º-1, alínea a) do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e artigo 61º-1, alínea a), e n.º 2, alínea a) da Lei das Finanças das Regiões Autónomas).
iv. A AT-RAM tem por missão assegurar e administrar, de entre outros, os impostos sobre o património, nomeadamente a liquidação e a cobrança dos impostos que constituem receita da Região Autónoma da Madeira, incumbindo-lhe em especial e relativamente às receitas fiscais próprias da Região Autónoma da Madeira assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o património (cf. artigo 2.º, n.º 1 e artigo 3.º, n.º 3, alínea a), ambos do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de Agosto).
Em face do exposto, forçoso é concluir que a entidade a quem é cometida a administração do imposto (IMT) cuja ilegalidade a Requerente pretende aqui ver declarada, é a AT-RAM.
A AT-RAM não está enunciada na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, entre os serviços vinculados à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.
Com efeito, o Governo Regional da Madeira não se confunde com o Governo da República, e apenas este emitiu a portaria de vinculação à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD – a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março – a qual não vincula, nem poderia vincular, a AT-RAM.
Assim sendo, cabendo a administração do imposto em causa, incluindo a sua liquidação, à AT-RAM e não à AT, e não se encontrando a AT-RAM vinculada à jurisdição do CAAD, nem sendo representada pela AT, conclui-se que está fora da competência deste tribunal a apreciação do litígio sub judice, por força da norma do artigo 4.º, n.º 1, do RJAT – falta de vinculação.
Consequentemente, julga-se procedente a exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral suscitada pela Requerida.
A infracção das regras de competência em razão da matéria, é de conhecimento oficioso e determina a incompetência absoluta do tribunal e a absolvição da Requerida da instância (cf. artigo 16º do CPPT e artigo 99º, n.º 1 e 278º, n.º 1, a) do CPC), aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
3.4. Questões de conhecimento prejudicado
Procedendo a exceção da incompetência suscitada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, impõe-se a sua absolvição da instância, pelo que fica prejudicado o conhecimento do mérito e das demais questões suscitadas neste processo (art. 608º, n.º 2 do CPC).
4. DECISÃO
Nos termos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar procedente a invocada exceção de incompetência material do Tribunal Arbitral;
b) Declarar-se materialmente incompetente para conhecer do mérito da causa e, consequentemente, absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira da instância;
c) Condenar a Requerente no pagamento das custas do processo.
5. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 38.807,51 (trinta e oito mil, oitocentos e sete euros e cinquenta e um cêntimos), nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e do artigo 306.º, n.º 2, do CPC, aplicáveis ex-vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
6. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.836,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de Outubro de 2020
O Árbitro
(Carla Almeida Cruz)