Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 316/2014-T
Data da decisão: 2014-10-20  IUC  
Valor do pedido: € 2.091,99
Tema: IUC - incidência subjetiva; presunção legal
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DECISÃO ARBITRAL

 

I.          RELATÓRIO

A, sociedade comercial com sede no …, …, …, titular do número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva ..., representada pelo seu liquidatário B, doravante designada por Requerente, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral em matéria tributária e pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2º nº 1 a) e 10º nº 1 a), ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, abreviadamente designado por RJAT), peticionando a anulação de 4 actos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC) referentes aos exercícios de 2009 a 2012, no montante de € 1887,00, e respectivos juros compensatórios, no valor de € 204,99.

Para fundamentar o seu pedido alega, em síntese:

 

a)      A Requerente era proprietária do veículo de matrícula ...-...-...;

b)      O veículo a que se alude em a) foi vendido pela Requerente em 30.06.2006;

c)      No mesmo acto, foi emitida e preenchida a competente declaração de venda do veículo;

d)     Em 23.03.2009 e 02.01.2012, a Requerente apresentou junto do IMTT pedido de apreensão do veículo em causa, em virtude do facto de a compradora do veículo não ter procedido ao registo da transferência de propriedade; 

e)      A Requerente foi notificada, na qualidade de sujeito passivo de IUC, das liquidações ora em crise;

f)       A Requerente reclamou graciosamente dos actos tributários de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios;

g)      A reclamação graciosa apresentada foi objecto de despacho de indeferimento;

h)      A Requerente não é sujeito passivo de IUC já que não era proprietária do veículo à data da ocorrência do facto gerador de imposto;

i)        Todas as liquidações impugnadas referem-se a veículo alienado em data anterior à da ocorrência do facto gerador de imposto;

j)        Nos termos do artigo 3º do CIUC, são sujeitos passivos de IUC os proprietários dos veículos;

k)      A presunção estabelecida no artigo 3º nº 1 do CIUC é uma presunção ilidível;

l)        Assim, sujeito passivo de IUC é o proprietário, ainda que não figure no registo automóvel, desde que seja feita prova bastante para ilidir a presunção legal proveniente do registo.

 

A Requerente juntou 5 documentos, não tendo arrolado testemunhas.

No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente optou por não designar árbitro, pelo que, nos termos do disposto no artigo 6º nº 2 a) do RJAT, foi designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, o signatário. tendo a nomeação sido aceite nos termos legalmente previstos.

O tribunal arbitral colectivo foi constituído em 11 de Junho de 2014.

Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 17º do RJAT, a Requerida apresentou resposta, alegando, em síntese, o seguinte:

a)      O artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção de propriedade, mas uma verdadeira ficção de propriedade – o legislador não diz que se presumem proprietários mas que se consideram proprietários;

b)      A falta de inscrição no registo das alterações de propriedade tem como consequência que a obrigação de pagamento do IUC recaia no proprietário inscrito, não podendo a AT liquidar o imposto com base em elementos que não constem do registo;

c)      O IUC é devido pelas pessoas que constam no registo como proprietárias dos veículos;

d)     A factura junta pela Requerente como prova da celebração do contrato de compra e venda não é apta a fazer tal prova.

 

A Requerida juntou cópia do processo administrativo, não tendo arrolado nenhuma testemunha.

A reunião a que alude o artigo 18º do RJAT, bem como a produção de alegações orais e escritas, foi dispensada, sem oposição das partes, atento o facto de, por um lado, não terem sido articuladas matérias susceptíveis de discussão na dita reunião e, por outro lado, o processo conter todos os elementos documentais necessários e suficientes para decidir de Direito.

 

II.          SANEAMENTO:

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente.

Não existem nulidades que invalidem o processado.

As partes têm personalidade e capacidade judiciária e são legitimas, não ocorrendo vícios de patrocínio.

Não existem nulidades, excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito e de que cumpra oficiosamente conhecer.

 

III.         QUESTÕES A DECIDIR:

As questões a decidir são as seguintes:

(i)                   determinar se a norma de incidência subjectiva prevista no artigo 3º nº 1 do CIUC prevê uma presunção ilidível ou, ao invés, uma ficção legal, insusceptível, por isso, de ser ilidida mediante prova em contrário;

(ii)                    determinar qual o valor jurídico do registo dos veículos automóveis;

(iii)                  determinar qual o valor probatório da factura junta pela Requerente.

 

 

IV)                 MATÉRIA DE FACTO:

 

a.                       FACTOS PROVADOS:

Com relevância para a decisão de mérito, foi provada a seguinte factualidade:

a)                 A Requerente foi notificada de 4 liquidações de IUC relativas aos exercícios de 2009 a 2012, no valor global de € 1887,00 e respectivos juros compensatórios, no montante total de € 204,99;  

b)                 A Requerente reclamou graciosamente dos actos tributários de liquidação de IUC e respectivos juros compensatórios;

c)                  A reclamação graciosa apresentada foi objecto de despacho de indeferimento;

d)                 Em 23.03.2009 e 02.01.2012, a Requerente apresentou junto do IMTT pedido de apreensão do veículo em causa, alegando para tanto que a compradora do veículo não havia procedido ao registo da transferência de propriedade;

e)                  A Requerente encontra-se inscrita, no registo automóvel, como proprietária do veículo em relação ao qual foram emitidas as liquidações em crise;

f)                  O veículo em causa pertence à categoria C, a que alude o artigo 4º do CUIC;

g)                 As liquidações ora em crise referem-se a veículo em relação ao qual, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda a terceiro, com o número, na data de emissão e valor constante do documento 2 junto com o requerimento inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.

 

 

b.                      FACTOS NÃO PROVADOS:

Com interesse para os autos não se provou mais nenhum facto.

 

 

c.                       FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se nas alegações efectuadas pela Requerida, não contrariadas pela Requerente, bem como na prova documental indicada em relação a cada um dos pontos, junta pela Requerente, cuja autenticidade e correspondência à realidade não foram questionadas pela Requerida.

 

V.        DIREITO:

a. Interpretação do artigo 3º nº 1 do CIUC:

Invoca a Requerente que, relativamente às liquidações de IUC em crise, não se encontram preenchidos os pressupostos de incidência subjectiva previstos no artigo 3º do CIUC, não sendo, por isso, sujeito passivo de IUC.

 

Para o efeito alega, em síntese, que o artigo 3º do CIUC estabelece uma presunção implícita de propriedade dos veículos a favor de quem os mesmos se encontrem registados, presunção essa que, por força da aplicação da regra geral prevista no artigo 73º da Lei Geral Tributária, é ilidível mediante prova em contrário.

 

Por seu turno, a Requerida defende que o artigo 3º do CIUC não estabelece qualquer presunção implícita, mas uma verdadeira ficção legal, inilidível, portanto, mediante prova em contrário.

 

Atenta a posição das partes, vejamos aquela que deverá ser, de acordo com as regras de hermenêutica jurídica consagradas, a interpretação do artigo 3º nº 1 do CIUC.

 

Dispõe o número 1 do artigo 3º do CIUC:

 

“São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.

 

 

Da simples leitura do número um do indicado preceito verifica-se, sem grandes dificuldades, que a pedra de toque está na expressão “considerando-se” utilizada pelo legislador.

 

Atenta a terminologia utilizada, deverá entender-se que o legislador pretendeu estabelecer uma presunção implícita ou uma verdadeira ficção legal?

 

Para a apreciação desta questão, importa, antes de mais, trazer aqui à colação alguns conceitos jurídicos e definições legais.

 

Assim,

 

Nos termos do disposto no artigo 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.

 

Relativamente às presunções legais, prescreve o número 2 do artigo 350º do mesmo Código que estas podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.

 

Já no que diz respeito, em concreto, às presunções de incidência tributária, estabelece o artigo 73º da Lei Geral Tributária que estas admitem sempre prova em contrário.

 

Para além de presunções, o legislador recorre também às chamadas “ficções legais”, as quais se traduzem “num processo jurídico que considera uma situação ou um facto como distinto da realidade para lhe atribuir consequências jurídicas”[1].

 

De acordo com a tese avançada pela Requerida, o facto de o artigo 3º nº 1 do CIUC estabelecer que se “consideram” como proprietários, ao invés de “presumem-se” como proprietários, revela que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, pretendeu expressamente determinar que as pessoas em nome das quais os veículos se encontram registados se consideram, sem admissibilidade de qualquer prova em contrário, proprietários dos mesmos.

 

Ainda de acordo com a Requerida, se o legislador pretendesse criar uma presunção e não uma ficção legal, teria escrito, como faz em diversos outros diplomas, que se presumem proprietários e não que se consideram proprietários.

 

Desde já poderemos adiantar não sufragar este tribunal do entendimento defendido pela Requerida.

 

Isto porque, pela análise dos elementos histórico e teleológico, para além, naturalmente, do elemento literal, de interpretação legislativa, chegaremos, inevitavelmente, à conclusão de que o legislador não pretendeu estabelecer qualquer ficção legal mas apenas e só uma presunção, ilidível mediante prova em contrário nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 73º da Lei Geral Tributária.

 

Senão vejamos:

 

Quanto ao elemento histórico, importa referir que o actual IUC teve a sua génese na criação, através do DL 599/72, de 30 de Dezembro, do imposto sobre veículos.

 

Este imposto sobre veículos, que se manteve em vigor até à criação do actual CIUC, consagrava expressamente que o imposto é devido pelos proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas em nome de quem os mesmos se encontram matriculados ou registados – vd. artigo 3º do Regulamento do Imposto sobre Veículos, anexo ao indicado DL 599/72, de 30 de Dezembro.

 

Aquando da aprovação do novo CIUC, o legislador substituiu a expressão “presumindo-se como tais” pela expressão “considerando-se como tais”, mas nem por isso se poderá defender que tal alteração signifique uma verdadeira substituição de uma presunção (ilidível) por uma ficção legal (inilidível).

 

É que, conforme nos ensina JORGE LOPES DE SOUSA[2], em matéria de incidência tributária, as presunções podem ser reveladas pela expressão “presume-se” ou por expressão semelhante. A título de exemplo, avança o autor que no artigo 40º nº 1 do CIRS  se utiliza a expressão “presume-se”, ao passo que no artigo 46º nº 2 do mesmo Código se faz uso da expressão “considera-se”, não havendo qualquer diferença entre uma e outra expressão, ambas significando, afinal, o mesmo: uma presunção legal.

 

O mesmo se passou com o CIUC em que, não obstante ter sido alterada, em relação à redacção original, a expressão “presume-se” pela expressão “considera-se”, nenhuma alteração de fundo se produziu, tendo as diferentes expressões exactamente o mesmo significado.

 

À mesmíssima conclusão chegamos pela análise do elemento teleológico.

 

De facto, importa ter presente a exposição de motivos da Proposta de Lei nº 118/X de 07/03/2007, subjacente à Lei nº 22-A/2007, de 29 de Junho.

 

Analisada esta exposição de motivos, verifica-se que o que se pretendeu foi empreender uma “reforma global e coerente dos impostos ligados à aquisição e propriedade dos veículos automóveis” a qual resulta da “necessidade imperiosa de trazer clareza e coerência a esta área do sistema fiscal e da necessidade, mais imperiosa ainda, de subordiná-la aos princípios e preocupações de ordem ambiental e energética que hoje em dia marcam a discussão da tributação automóvel”.

 

Continuando, explica a referida exposição de motivos que “os dois novos impostos que agora se criam, o imposto sobre veículos e o imposto único de circulação, constituem muito mais do que o prolongamento técnico das figuras criadas nos anos 70 e 80 que os antecederam, voltadas predominantemente para a angariação da receita, indiferentes ao custo social resultante da circulação automóvel. Constituem algo diferente, figuras já do século em que vivemos, com as quais se pretende, com certeza, angariar receita pública, mas angariá-la na medida do custo que cada indivíduo provoca à comunidade.

 

O que levou, inclusive, à consagração do principio da equivalência, inscrito no artigo 1º do CIUC, “deixando-se assim claro que o imposto, no seu conjunto, se subordina à ideia de que os contribuintes devem ser onerados na medida do custo que provocam ao ambiente e à rede viária, sendo esta a razão de ser desta figura tributária. É este princípio que dita a oneração dos veículos em função da respectiva propriedade e até ao momento do abate”.

 

O IUC, enquanto verdadeiro imposto ambiental, tem, pois, por sujeito passivo o poluidor, mais não passando, afinal, da consagração do principio do poluidor-pagador.

 

Por onde se verifica que o principio estruturante da reforma da tributação automóvel é justamente a incidência da tributação sobre o verdadeiro utilizador do veículo,  não se coadunando este principio com a leitura “cega” da letra da lei, que poderia levar, afinal, a tributar quem não fosse proprietário e, dessa forma, quem não fosse o sujeito causador do “custo ambiental e viário” provocado pelo veículo, a que alude o artigo 1º do CIUC.

 

De tudo quanto ficou exposto resulta que os elementos literal, histórico e teleológico de interpretação da lei conduzem necessariamente à conclusão de que a expressão “considerando-se” tem exactamente o mesmo sentido que a expressão “presumindo-se”, devendo, desta forma, entender-se que o artigo 3º nº 1 do CIUC consagra uma verdadeira presunção de propriedade e não qualquer ficção, sendo, por isso, tal presunção ilidível.

 

Nos termos do disposto no número 1 do artigo 3º do CIUC, sujeito passivo do imposto é, em principio, o proprietário, já que a lei presume que é este quem utiliza o bem. Mas se se provar que, afinal, não é o proprietário quem faz uso do veículo, mas um terceiro, então será este, fatalmente, o sujeito passivo do imposto.

 

É esta, salvo melhor, a interpretação que está em sintonia, por um lado, com o princípio enunciado no artigo 11º nº 3, da Lei Geral Tributária, de que, nos casos de dúvida sobre a interpretação das normas tributárias «deve atender-se à substância económica dos factos tributários» e, por outro lado, com o princípio da igualdade na repartição dos encargos públicos, que impõe que a tributação da generalidade dos contribuintes, sempre que possível, assente na realidade económica subjacente aos factos tributários[3].

 

Aliás, qualquer outra interpretação violaria, desde logo, o já falado princípio da equivalência consagrado no artigo 1º do CIUC, nos termos do qual se estabelece que o IUC procura “onerar os contribuintes na medida do custo ambiental e viário que estes provocam, em concretização de uma regra geral de igualdade tributária”.

 

 

b. O valor jurídico do registo automóvel:

 

Nos termos do disposto no número 1 do artigo 1º do DL 54/75, de 12 de Fevereiro, que instituiu o Registo da Propriedade Automóvel, “o registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”.

 

Por seu turno, prescreve o artigo 7º do Código do Registo Predial, legislação supletiva do registo de automóveis, que “o registo definitivo constituiu presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

 

Conforme é sabido, o registo de propriedade não tem natureza constitutiva, mas meramente declarativa, permitindo apenas a inscrição no registo presumir a existência do direito e a sua titularidade. Note-se, presumir, e não ficcionar, o que significa que a presunção resultante do registo pode ser ilidida mediante prova em contrário.

 

E isto é assim justamente porque, nos termos do disposto no artigo 408º do Código Civil, salvas as excepções previstas na lei, a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, não ficando a sua validade dependente da inscrição no registo.

 

No caso de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel, não prevendo a lei qualquer excepção para o mesmo, o contrato tem eficácia real, passando o adquirente a ser o seu proprietário, independentemente do registo.

 

Ora, da mesma forma que o adquirente passa a ser o proprietário independentemente do registo, também o titular inscrito deixa de ser o proprietário, pese embora ainda constar do registo como tal.

 

Note-se que, in casu, pese embora a falta de inscrição no registo, a transmissão efectuada é oponível à Requerida, apesar do disposto no número 1 do artigo 5º do Código do Registo Predial, que dispõe que os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros quando registados.

 

Isto porque a Requerida não é, para efeitos do disposto neste artigo, considerada terceiro para efeitos de registo.

 

A noção de terceiros para efeitos de registo está consagrada no número 4 do mesmo artigo 5º: terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, o que, manifestamente não é o caso dos autos.

 

No caso dos autos, a Requerente figura no registo como proprietária do veículo objecto das liquidações em crise, pese embora a Requerente alegue não ser, à data do facto gerador do imposto, a sua proprietária, por já ter o mesmo sido alienado.

 

Uma vez que a presunção resultante do registo é, como vimos, ilidível, vejamos se a factura junta pela Requerente é apta a ilidir tal presunção.

 

 

c. Do valor probatório da factura junta pela Requerente:

 

Com vista a provar que o veículo cujas liquidações estão em causa nos presentes autos foi alienado em data anterior ao nascimento do facto gerador do imposto, a Requerente juntou a respectiva factura de venda.

 

A este propósito, invocou a Requerida que “as facturas, por si só, não são aptas a comprovar a celebração de um contrato sinalagmático como é a compra e venda, pois aquele documento não revela por si só uma imprescindível e inequívoca declaração de vontade (i.e., a aceitação) por parte do pretenso adquirente” (cfr. artigo 71º da resposta).

 

Vejamos se assiste razão à Requerida quanto a esta invocada falta de valor probatório da factura junta pela Requerente.

 

Conforme resulta dos factos provados, o veículo em causa nos presentes autos pertence à categoria C, a que alude o artigo 4º do CUIC, pelo que o facto gerador do imposto ocorre na data da respectiva matrícula ou em cada um dos seus aniversários.

 

Decorre ainda dos factos provados que, na data da ocorrência do facto gerador do imposto, havia sido emitida pela Requerente uma factura de venda a terceiro.

 

A Requerida defende que a factura não é documento idóneo a comprovar a venda do veículo, não passando a mesma de um documento unilateralmente emitido pela Requerente, alegando que “não faltam casos de emissão de facturas referentes a transmissões de bens e/ou de prestações se serviços que nunca chegaram a concretizar-se” (cfr. artigo 72º da resposta).

 

É certo, como invoca a Requerida, que existem muitas situações em que as facturas não titulam qualquer negócio jurídico.

 

No caso dos autos, porém, nenhum elemento nos permite concluir que a factura junta não titule nenhum negócio, sendo certo que a sua falsidade não foi sequer arguida pela Requerida, que se limitou a invocar existirem várias situações dessas, sem concretamente referir que a situação dos autos se subsumia a tal.

 

Pelo que, à míngua de quaisquer elementos ou fundamentos que nos permitam concluir o contrário, teremos, naturalmente, de aceitar a veracidade do documento junto.

 

Tanto mais que, conforme é sabido, as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos da lei e os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita gozam de uma presunção de veracidade e de boa-fé, nos termos do disposto no artigo 75º da Lei Geral Tributária.

 

Presunção esta que, à semelhança das demais presunções analisadas nestes autos, são ilidíveis mediante prova em contrário, sendo certo que a Requerida não logrou ilidir esta presunção (nem em bom rigor tentou).

 

Cumpre aqui salientar que a Requerente invocou ainda que, à data da emissão da factura respeitante ao veículo em causa nos presentes autos, foi ainda emitida e preenchida declaração de compra e venda do indicado veículo, declaração essa alegadamente junta com o requerimento inicial sob o número 3.

 

Pese embora a Requerida não tenha posto em causa a veracidade deste documento, o certo é que, atenta a manifesta falta de qualidade da cópia junta, não pode o tribunal confirmar o teor do respectivo documento, designadamente para prova do alegado pela Requerida.

 

Com efeito, tratando-se, in casu, de prova que terá necessariamente de ser feita por documento, a ilegibilidade do mesmo tem como consequência a impossibilidade de prova do facto que com o mesmo se pretendia provar.

 

Razão pela qual não pode este tribunal, repete-se, pese embora a Requerida não tenha posto em causa este documento, dar como provada a emissão e preenchimento de declaração de compra e venda do veículo em causa.

 

Isto posto,

 

Assente a veracidade da factura junta pela Requerente, teremos de considerar, sem necessidade de quaisquer outras considerações, ser esta documento apto a provar a alienação do veículo em causa.

 

Com efeito, não prevendo a lei qualquer forma específica para a celebração de um contrato de compra e venda de um bem móvel, terá, necessariamente, de se aceitar como prova do dito contrato a factura emitida nos termos legais.

 

Por onde se verifica que, à data do facto gerador do imposto (data da matrícula ou de cada um dos seus aniversários) a Requerente havia alienado o veículo cujas liquidações foram impugnadas, pese embora a referida alienação não tenha sido objecto de inscrição no registo.

 

Assim, atento o facto de, conforme já exposto, a presunção resultante do registo ser ilidível mediante prova em contrário, prova essa que se considera suficiente com a apresentação da factura de venda do veículo, verifica-se que, relativamente a este veículo, a Requerente não é a sua proprietária, não sendo, por isso, sujeito passivo do IUC liquidado.

 

VI.                  DISPOSITIVO:

 

Em face do exposto, decide-se julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade dos 4 actos de liquidação do IUC relativos aos exercícios de 2009, 2010, 2011 e 2012, no valor de € 1887,00, bem como dos respectivos juros compensatórios, no montante global de € 204,99, com todas as consequências legais.

 

***

Fixa-se o valor do processo em € 2.091,99, nos termos do artigo 97º-A nº 1 a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

***

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612,00, por aplicação da Tabela I do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos do disposto nos artigos 12º nº 2 e 22º nº 4, ambos do RJAT, e artigo 4º nº 4, do citado Regulamento, a pagar pela Requerida, por ser a parte vencida.

 

***

Registe e notifique.

 

Lisboa, 20 de Outubro de 2014.

O Árbitro,

 

Alberto Amorim Pereira

 

***

Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131º do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do DL 10/2011, de 20/01.

A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia antiga.



[1] FRANCISCO RODRIGUES PARDAL, “O uso de presunções no direito tributário”, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 325-327, página 20.

[2] In “Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado”, Volume I, 6ª Edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, página 589.

[3] JORGE LOPES DE SOUSA, op. cit, pp. 590 e ss.