DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Sílvia Oliveira e Prof. Doutor Guilherme W. d’Oliveira Martins (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 05-08-2020, acordam no seguinte:
1. Relatório
A..., LDA., com sede na ..., ..., ...-... ... e com o número de identificação de pessoa colectiva ..., (doravante abreviadamente designada por "Requerente”) veio, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral, tendo em vista a declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de IRC nº 2019..., relativa ao exercício de 2018 com o valor a pagar de € 173.333,07, incluindo o valor de € 1.356,96 de juros compensatórios.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 17-02-2020.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo, no prazo aplicável.
Em 06-07-2020, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 05-08-2020 (tendo em conta a suspensão de prazos determinada pelo artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 1-A/2929, de 19 de Março).
A Administração Tributária e Aduaneira apresentou Resposta em que defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente.
Por despacho de 01-10-2020, foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e é competente.
As Partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
O processo não enferma de nulidades.
2. Matéria de facto
2.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
A) A requerente é uma sociedade que tem por objecto e actividade a exploração de um restaurante;
B) Foi efectuada uma acção inspectiva à Requerente ao abrigo da ordem de serviço OI2019..., relativa ao exercício de 2018, da qual resultou uma correção meramente aritmética em sede de IRC no montante de € 171.976,11;
C) Nessa acção inspectiva foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral, em que se refere, além do mais o seguinte:
III. DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1. ELEMENTOS RECOLHIDOS
No seguimento das diligências efetuadas junto da sociedade A... LDA, doravante denominado sujeito passivo, no âmbito do Despacho nº OI2018..., constatou-se que este apresentava no final dos exercícios de 2017 e de 2018 saldos devedores elevados na rubrica de Caixa nos seguintes montantes:
• dezembro de 2017 (€ 278.802,09)
• dezembro de 2018 (€ 348.986,97)
De acordo com as notas de enquadramento do Código de Contas do SNC, a conta de caixa apenas deverá conter os meios líquidos de tesouraria, como sejam as notas de banco e moedas metálicas em curso legal, cheques recebidos e vale postais.
Assim esta rubrica apenas deverá registar movimentos de tesouraria de caráter residual, devendo todas as operações, sejam de recebimentos ou de pagamentos, materialmente relevantes, ser movimentadas por contas bancárias, por contrapartida das respetivas contas a receber e a pagar (de terceiros).
A caixa apenas deverá servir para efetuar pequenos pagamentos em dinheiro e eventualmente dar entrada dos cheques recebidos dos clientes, temporariamente antes de serem depositados em contas bancárias. O saldo de caixa não poderá conter cheques emitidos pela empresa e descontados no banco pelos seus fornecedores ou outras entidades.
No âmbito do despacho nº OI2018..., foi efetuada em 26/12/2018 a contagem do saldo de caixa do estabelecimento do sujeito passivo, tendo-se apurado a inexistência de qualquer valor, tendo sido referido que nesse dia fora efetuado o pagamento em numerário de faturas de diversos fornecedores no montante total de 3.605,00 €, conforme Auto de Declarações (anexo 1).
Tendo-se aguardado que o sujeito passivo procedesse à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22-IRC do ano de 2018 para análise do referido saldo, dando assim cumprimento à obrigação prevista no nº 1 do artigo 120º do Código do IRC, verificou-se que o prazo de entrega foi alargado, até ao dia 30 de junho de 2019, sem penalidades, por força do Despacho nº 217/2019-XXI do SEAF. Perante esta situação procedeu-se à ampliação do prazo do procedimento de inspeção por um período de três meses, nos termos da alínea e) do nº 3 do artigo 36º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA), tendo o sujeito passivo sido notificado da ampliação, nos termos do nº 4 do artigo 36º do mesmo diploma.
Em 28 de junho de 2019 foi o Despacho externo n.º OI2018... atribuído ao Inspetor Tributário B... por despacho do Diretor de Finanças de Faro da mesma data, da qual foi dado conhecimento ao sujeito passivo em 4 de julho de 2019 com a assinatura do despacho por parte do sócio-gerente C..., NIF... .
Por mail de 4 de julho de 2019 foram remetidos os balancetes de dezembro e de encerramento (anexo 2), assim como os extratos de conta, todos para o ano de 2018, 0 sujeito passivo veio a remeter o ficheiro SAF-T de faturação relativo ao mês de dezembro de 2018 por mail de 23 de julho de 2019.
Por proposta de 29 de julho de 2019 e face às correções previstas resultantes da análise aos elementos arquivados na contabilidade, SAF-T de faturação e demais elementos recolhidos, foi aberta a Ordem de Serviço Externa de âmbito parcial de IRC para o exercício de 2018 em 31 de julho de 2019, da qual o sujeito passivo teve conhecimento em 2 de agosto de 2019.
Foram verificados os registos contabilísticos referentes aos movimentos de caixa do mês de dezembro/2018, de modo a apurar o saldo contabilístico da conta III-Caixa no dia da contagem.
Tendo as receitas sido registadas pelo valor total mensal na conta III - Caixa, foram as mesmas listadas por dia, através do ficheiro SAF-T da faturação.
Como se retira do "Termo de declarações" a contagem de caixa foi efetuada pelas 10.00 horas do dia 26 de dezembro de 2018 e sendo a atividade do sujeito passivo de restaurante tipo tradicional, justifica-se que até ao momento da contagem não fosse emitida qualquer fatura até esse momento. Aquando da contagem verificaram estes serviços que não existia qualquer valor em caixa, declarando o gerente do sujeito passivo que fora utilizado para pagamento de diversas faturas de fornecedores no montante total de 3.605,00€, as quais se encontravam no local.
Em relação a todos os restantes lançamentos, foram analisados os respetivos documentos de suporte e verificadas as datas de pagamentos, depósito ou entradas na conta bancária (relativamente aos recebimentos por TPA). Após a recolha dos elementos necessários, procedeu-se à ordenação dos respetivos movimentos, apurando-se, à data de 26/12/2018, um saldo devedor da conta Caixa no montante de € 343.952,21.
a) No dia 26 de dezembro de 2018 até à hora da contagem o sujeito passivo não tinha emitido qualquer fatura.
Deste modo, ao comparar o valor da contagem do saldo de caixa com o valor existente na contabilidade, apura-se a diferença de:
Uma vez que aquele valor não se encontra em caixa à data da contagem, conclui-se que houve saídas de fluxos financeiros no mesmo montante de € 343.952,21, sem que exista qualquer documento de suporte.
III.2. CORREÇÕES A EFETUAR
III.2.1. Despesas não documentadas sujeitas a tributação autónoma
Importa ter sempre presente que apenas se conseguirá apresentar uma imagem verdadeira e apropriada da situação financeira e dos resultados das operações da empresa se se registarem na contabilidade todos os seus movimentos. É o que decorre da alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º do Código do IRC e do próprio Sistema de Normalização Contabilística.
As demonstrações financeiras, nomeadamente o Balanço, compreendem a conta a que de seguida nos vamos referir, a conta "Caixa".
No âmbito das normas contabilísticas, naquela conta devem encontrar-se registados os meios financeiros líquidos, que inclui, quer o dinheiro e depósitos bancários, quer todos os ativos ou passivos financeiros mensurados ao justo valor, cujas alterações sejam reconhecidas na demonstração de resultados. O ponto de partida seria a quantificação do dinheiro "em mãos", isto é, em poder da empresa, naquilo que poderia ser o cofre. Note-se que "Caixa" é o título de conta que evidencia o numerário no espaço direto da empresa.
Ainda no âmbito conceptual, importa considerar que os bens em "Caixa" formam uma espécie definida de elementos de natureza patrimonial, por isso mesmo, trata-se de bens materiais de natureza fungível. São representados por diversas naturezas de elementos ou meios patrimoniais específicos, tais como: dinheiro em poder da empresa ou entidade; dinheiro em trânsito; ordens de pagamento à vista; dinheiro representado por títulos que equivalem a moeda.
No âmbito da execução da contabilidade devem ser elaboradas folhas de caixa onde sejam registados os movimentos de entradas e saídas de valores do "Caixa".
Ainda com a execução da contabilidade, deve ser efetuada a comparação do saldo do "Caixa" com a sua composição efetiva.
Em relação ao valor apurado não existe qualquer documento de suporte que possibilite, por um lado, a comprovação da existência de eventuais gastos, e por outro, averiguar junto dos fornecedores ou prestadores se os respetivos rendimentos foram declarados para efeitos de tributação.
Trata-se assim, de movimentos contabilísticos não efetuados, com enquadramento nas despesas não documentadas, porque não é comprovada a existência efetiva do mesmo.
Nos termos do nº 1 do artigo 88º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC) "as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50%, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos do artigo 23.º-A".
Como esta despesa não documentada não correspondeu, no ano de 2018, a gastos contabilizados, logo não se propõe a correção nos termos do art.º 23º do CIRC, não se efetuando a correção ao quadro 7 da declaração modelo 22.
Deste modo, atendendo ao preceituado nos normativos acima expostos, deverá à luz do n.º 1, do art.º 88º do CIRC, o montante de € 343.952,21, ser tributado autonomamente à taxa de 50%, apurando-se o imposto em falta do montante de€ 171.976,11.
Nestes termos, a taxa a aplicar as despesas não documentadas, nos termos do artigo 88º do CIRC é de 50%.
Não tendo sido inscrito na declaração de rendimentos modelo 22 do exercício de 2018, entregue pelo s.p. em 08/05/2019, verifica-se uma infração ao artigo 88º do CIRC, propondo-se a correção descrita referida acima, referente a tributações autónomas de despesas não documentadas, no montante de € 171.976,11.
D) Na sequência da inspecção, a Administração Tributária emitiu a liquidação de IRC n.º 2019..., a liquidação de juros compensatórios n.º 2019... e a demonstração de acerto de contas n.º 2019... (documentos n.ºs 1, 2 e 3 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
E) Em 22-11-2019, a Requerente pagou as quantias liquidadas (documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
F) Na data de 26-12-2018, em que foi feito o controlo pela inspecção tributária, não existiam valores em numerário, sendo que nesse dia haviam sido pagos fornecedores em numerário no montante de € 3.605,00 e o saldo de caixa devedor era de € 343.952,21;
G) Em 31-12-2013, o saldo de caixa devedor era de € 146.052,61 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
H) Em 31-12-2014, o saldo de caixa devedor era de € 184.400,50 (documento n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
I) Em 31-12-2015, o saldo de caixa devedor era de € 201.808,16 (documento n.º 9 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
J) Em 31-12-2016, o saldo de caixa devedor era de € 245.717,16 (documento n.º 10 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
K) Em 31-12-2017, o saldo de caixa devedor era de € 278.802,09 (documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
L) Em 17-02-2020, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.
2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos provados baseiam-se no processo administrativo e nos documentos juntos pela Requerente.
Quanto aos saldos apresentados pela Requerente nos documentos n.ºs 7 a 10, os documentos não são impugnados, sendo, aliás, confirmado pela Administração Tributária que concluiu que «desde 2013, que o saldo devedor da conta Caixa se mostra elevado e sem adesão à realidade das disponibilidades financeiras na posse da sociedade» (artigo 46.º da Reposta).
Não se provou qual o destino que a Requerente deu às quantias em falta correspondentes ao saldo de caixa, nem foi apresentada qualquer prova sobre esse destino.
Não se provaram os seguintes factos alegados pela Requerente, por não ter sido apresentada qualquer prova sobre as matérias:
– não se provou que a existência do saldo de caixa referido se deva a erros ou irregularidades contabilísticas, designadamente «falta ou retardamento na contabilização de documentos relativos a gastos da sociedade e/ou a pagamentos de facturas de fornecedores que não foram contabilisticamente registados ou a pagamentos que aguardam a remessa do respectivo documento de quitação do credor», como afirmou a Requerente.
– não se provou que tenham sido «lançadas as facturas na sua recepção, mas não são lançados na conta Caixa os recibos relativos aos pagamentos dessas facturas (muitas vezes os recibos não são emitidos e outras, sendo-o, não chegam ao TOC), o que origina que a conta Caixa vá acumulando um saldo devedor que na realidade não existe».
3. Matéria de direito
A Administração Tributária apurou que o saldo da conta 11-Caixa da Requerente a
26-12-2018, era no montante de € 343.952,21 e que este valor não se encontrava em Caixa à data da contagem, nem foi apresentado qualquer documento que comprove qual o destino que foi dado à quantia referida.
Com base nesses factos, a Administração Tributária concluiu que houve saídas de fluxos financeiros no mesmo montante, sem que fosse apresentado qualquer documento de suporte, pelo que aplicou a esse valor a tributação autónoma prevista no n.º 1 do artigo 88.º do CIRC.
3.1. Posições das Partes
A Requerente defende o seguinte, em suma:
– o saldo da conta 11-Caixa já não tinha efectiva correspondência com disponibilidades financeiras existentes em anos anteriores a 2018, designadamente, até anteriores a 2013, ano em que o saldo inicial da conta 11-Caixa era já de € 111.386,12€ e o respectivo saldo final neste ano era de € 146.052,61 e que foi sendo majorado, ano após ano, numa proporção de cerca de quarenta a cinquenta mil euros em cada ano,
– e não existia em virtude de erros, omissões e irregularidades na sua contabilidade;
– o facto de não dispor, num determinado momento, das disponibilidades evidenciadas na conta 11-Caixa não constituí em si um facto para a incidência real do imposto (IRC) em sede de tributação autónoma com base na presunção de que o valor da divergência do saldo da conta 11-Caixa corresponde a despesas não documentadas;
– a aplicação da tributação autónoma em sede de IRC aqui em apreço está sujeita às normas próprias deste tributo, designadamente, no que respeita às regras relativas a especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, conforme decorre, para além do mais, dos artigos 8.º e 18.º do CIRC, já que tal tributação autónoma tem subjacente factos tributários instantâneos e de natureza financeira;
– na tributação autónoma em análise, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, sendo necessário, antes de mais, demonstrar a efectiva ocorrência das despesas (não documentadas), ónus este que recai sobre a A.T. nos termos do artigo 74º da LGT, estando esta obrigada, no âmbito da fundamentação formal do acto de liquidação, a demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais (de facto e de direito) de que depende o direito à liquidação;
– o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa e esgota-se no acto de realização de determinada despesa, a qual que carece de ser identificada;
– o legislador fiscal, no âmbito dos encargos fiscais dedutíveis (ou não), ao reportar-se aos gastos e perdas, distinguiu intencionalmente as despesas e, nomeadamente, as despesas não documentadas (vide artigos 23º e 23º-A e 88º do CIRC);
– a assunção contabilística de um custo não implica necessariamente a concretização da respectiva despesa, ou seja. o reconhecimento de um custo não determina a efectivação da correspondente despesa (pagamento);
– as despesas são todos os valores despendidos pelo sujeito passivo, ou seja, por definição, implicam sempre um desembolso financeiro ou um exfluxo de meios financeiros a favor de terceiro;
– uma despesa implica sempre a saída efectiva de fundos do sujeito passivo e, consequentemente, uma diminuição do seu património;
– tais despesas, em termos contabilísticos, teriam que afectar o resultado líquido do exercício, diminuindo-o, o que manifestamente não acontece no exercício de 2018;
– a A.T., uma vez que esta se limitou presumir que a inexistência do numerário na caixa social (em divergência com o saldo contabilístico da conta 11-Caixa) correspondia a uma despesa (ou despesas) não documentada ocorrida à data da na inspecção tributária realizada, ou seja, em 26-12-2018 e, por isso tributável no exercício de 2018;
– tal presunção não é legalmente aceite, desde logo, porque não tem qualquer suporte legal e, por outro lado, porque a divergência do saldo de Caixa pode dever-se a muitas outras circunstâncias que a justificam, nomeadamente erro e omissões nos lançamentos contabilísticos nessa conta como acima se deixou bem evidenciado e que em nada se prendem com despesas não documentadas;
– tais presunções apenas teriam cabimento legal no âmbito do procedimento com recurso a avaliação indirecta nos termos do artigo 87.º e seguintes da lei Geral Tributária;
– no regime de tributação autónoma o imposto incide sobre cada despesa efectuada, em si mesma considerada, sendo esta tributação autónoma apurada de forma independente do IRC. que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo;
– não é legítimo presumir, como fez a A.T. que a despesa ocorreu, no montante total em apreço, no próprio dia da verificação física feita pela inspecção quando se deslocou ao estabelecimento da aqui requerente em 26-12-2018;
– a caixa social não tinha os valores necessários à realização das alegadas despesas não documentadas o valor de € 343.952,21€ à data da realização do controlo de caixa feito pela inspecção tributária em 2018, nem sequer dessas disponibilidades dispunha pelo simples facto de se ter operado a mera transferência contabilística dos saldos da conta 11-Caixa sucessivamente, ano após ano, ou seja, de um exercício para o seguinte, até 2018;
– os elevados saldos da conta 11 – Caixa ao longo dos exercícios de 2013 a 2018 são fictícios. não tendo qualquer adesão à realidade das disponibilidades de numerário existentes na sociedade, não sendo por isso fidedignos;
– a evolução desses saldos ao longo dos vários exercícios indiciam que, a terem ocorrido despesas não documentadas (o que não se concede), uma parte significativa dessas despesas já teriam ocorrido em exercícios anteriores, sendo, aliás, óbvio, que as despesas a imputar a cada exercício seriam apenas as decorrentes do acréscimo do saldo da conta 11-Caixa em cada um desses mesmos exercícios;
– a A.T. não pode partir da premissa falsa e manifestamente inaceitável, da presunção da veracidade e rectidão e da contabilidade da aqui requerente;
– a presunção permite que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção;
– artigo 100.º, nº 1 do CPPT dispõe que “Sempre que da prova produzida resulte fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, deverá o acto impugnado ser anulado”;
– o montante de despesas não documentadas que é imputado à aqui requerente como tendo sido efectuadas no exercício da tributação, atento o seu elevado montante de
€ 343.952,21, a terem ocorrido, não o terão sido neste exercício e muito menos em momento imediatamente anterior ao da realização da inspeção que procedeu à contagem física da caixa social, mostrando-se, assim, violado o princípio da especialização e periodização dos exercícios.
No presente processo, a Administração Tributária defende a posição assumida no RIT o seguinte, dizendo, em suma:
– a Requerente não fez prova dos factos a alega, designadamente em que medida o saldo da conta 11-Caixa em 01.01.2018, não correspondia à realidade das existências em numerário ou outros meios monetários, ou identificar as anomalias e irregularidades praticadas na contabilidade que poderiam afectar o apuramento e controle do lucro tributável;
– o princípio do ónus da prova consubstancia-se no princípio de que quem alega um determinado facto constitutivo de um direito, tem a necessidade de prová-lo;
– a sujeição a tributação autónoma das «despesas não documentadas» não depende da sua prévia contabilização como «gastos» de modo a afectar negativamente o resultado do exercício;
– tal exigência se retira do n.º 1 do art.º 88.º, n.º 1 do CIRC, que contempla na base de incidência da tributação autónoma, as “despesas”, e não os “gastos”, ressalvando que se as despesas tiverem sido contabilizadas como gastos, a circunstância de estes não serem fiscalmente dedutíveis por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 23-A do mesmo Código, não afasta a tributação autónoma;
– desde 2013, que o saldo devedor da conta 11-Caixa se mostra elevado e sem adesão à realidade das disponibilidades financeiras na posse da sociedade;
– é que a AT cumpriu o ónus da prova dos pressupostos de aplicação do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, dentro dos limites que a sua actuação lhe permitiria, apoiando-se na (1) demonstração da divergência entre o saldo contabilístico da conta 11-Caixa e as existências reveladas pela contagem física; e (2) na solicitação de documentos justificativos da diferença apurada, mais não lhe podendo ser exigido;
– a própria Requerente confirma a divergência apurada e até apelidando o saldo contabilístico da conta 11-Caixa de fictício e inverosímil, em simultâneo, demite-se de explicar a sua origem e, embora aludindo a eventuais erros ou irregularidades contabilísticos, não os identifica nem concretiza;
– como a Requerente incumpriu a obrigação de contabilizar as «despesas não documentadas», é a verificação da falta de meios financeiros detectada pela contagem física que gera, por si mesma, o momento da ocorrência do facto tributário para efeitos do n.º 1 do art.º 88.º do CIRC, não existindo, pois, qualquer ilegalidade do acto de liquidação da tributação autónoma objecto do pedido de decisão arbitral;
– as características específicas das «despesas não documentadas» afastam-nas do princípio da especialização dos exercícios e periodização do lucro tributável, enunciado no n.º 1 do art.º 18.ºdo CIRC;
– este critério só é exequível quando se está perante «despesas não documentadas» relevadas contabilisticamente como tal, em conta apropriada de “gastos”, pois, o movimento financeiro que lhe dá origem ficará também reflectido nas contas de meios monetários;
– a verificação do facto gerador da tributação autónoma só ficou evidenciada na data da contagem física, consequentemente, só pode ser imputado ao exercício de 2018;
– sendo certo que já eram elevados os saldos devedores da conta 11-Caixa no final dos exercícios anteriores, a respeito dos quais a Requerente afirma que não representavam de modo fidedigno a realidade, de todo o modo figuram nos balanços aprovados pelos sócios e, além disso, não foram disponibilizados documentos validados pelo órgão de gestão que evidenciem os resultados de contagens físicas realizadas no final de cada exercício;
– afrontaria a própria natureza e finalidade de dissuasão/sancionatória adstrita à tributação autónoma das «despesas não documentadas» “premiar” fiscalmente os contribuintes que se eximem da obrigação básica de contabilização e/ou declaração daquele tipo de despesas;
– a regra do artigo 100.º, n.º 1, do CPPT não se aplica às despesas não documentadas;
– o critério de imputação daquelas despesas é meramente financeiro, estando ligado ao acto do dispêndio ou das saídas de meios financeiros o qual, todavia, fica prejudicado quando, como na situação em apreço, as «despesas não documentadas» não estão registadas como tal na contabilidade nem são facultados registos de entrada e saídas de meios monetários;
– se as despesas não estão documentadas então não é possível aferir sobre o destino, datas, locais e beneficiários dos meios financeiros não encontrados na esfera empresarial, logo é factual e juridicamente impossível aplicar-lhes o princípio da especialização.
3.2. Apreciação das questões
3.2.1. Questão da existência de «despesas»
O artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, na redacção da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que «as despesas não documentadas são tributadas autonomamente, à taxa de 50 %, sem prejuízo da sua não consideração como gastos nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º-A».
O conceito de «despesas» utilizado no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, não é definido neste Código e não coincide com o de «gastos», definido no artigo 23.º do CIRC (que inclui, designadamente, «perdas» e «ajustamentos» ), pelo que deverá ser atribuído àquela expressão o alcance que tem na linguagem comum, de saída de dinheiro do património de uma empresa.
O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, no acórdão de 07-07-2010, proferido no processo n.º 0204/10, que «tratar-se-á de encargos ou despesas suportadas pelo sujeito passivo que em termos contabilísticos afectam o resultado líquido do exercício, diminuindo-o»: a apreciação da existência ou não da devida documentação e da confidencialidade da despesa é feita tendo por objecto o acto através do qual o sujeito passivo suporta o encargo ou a despesa que é susceptível de afectar o resultado líquido do exercício, para efeitos de determinação da matéria tributável de IRC. Isto é, o encargo não estará devidamente documentado quando não houver a prova documental exigida por lei que demonstre que ele foi efectivamente suportado pelo sujeito passivo e a despesa será confidencial quando não for revelado quem recebeu a quantia em que se consubstancia a despesa.
No entanto, mais recentemente, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo não faz depender a tributação autónoma baseada em despesas não documentadas da sua relevância como gastos para determinação do lucro tributável, como pode ver-se pelo acórdão do STA de 31-03-2016, processo n.º 0505/15:
O art.º 81.º do CIRC, na redacção vigente à data da tributação definia as diversas taxas que seriam utilizadas para tributação dos tipos de despesas ali enunciadas, sem haver qualquer dispositivo legal que determinasse que essa tributação só ocorreria se estas despesas houvessem sido tidas como custos fiscais da empresa para a determinação do seu lucro tributável.
Admitindo-se que a finalidade da tributação autónoma apontada pela recorrente - reduzir a despesa fiscal evitando a fraude e evasão fiscais – seja um dos elementos considerados pelo legislador no estabelecimento desta regulamentação, essa finalidade não pode permitir, como aquela pretende que a interpretação do normativo em questão seja efectuada de molde a nele inserir um pressuposto legal sem qualquer assento no texto da lei, o que seria manifestamente desconforme com o disposto no art. 9.º do Código Civil.
As despesas em questão são tributadas apenas porque são efectuadas, havendo mesmo a cargo do contribuinte a obrigação de as tornar aparentes na sua declaração de rendimentos. Se todas ou parte delas poderiam ter sido consideradas como custos da empresa para efeitos da determinação do seu lucro tributável, aumentando a despesa fiscal com a consequente diminuição do lucro tributável, e a empresa por decisão consciente, ou esquecimento, não as considerou desse modo na sua declaração de rendimentos, nem por isso, elas perdem a sua natureza de despesas tributáveis em sede de tributação autónoma, que, por definição é uma tributação destacável da tributação em sede de IRC.
Na jurisprudência arbitral já havia sido defendido este entendimento, designadamente no voto de vencido proferido pelo Senhor Professor Doutor Manuel Pires no processo n.º 7/2011-T:
«(...) devem ser incluídas na tributação autónoma em causa não apenas as despesas não documentadas, contabilizadas como gastos, mas também aquelas com as mesmas características, isto é, não documentadas que, devendo ter sido reconhecidas na contabilidade, como gastos, embora fiscalmente não dedutíveis, não o foram e, portanto, não afectaram o resultado, não existindo razão excludente das vias que, embora não sejam ou possam não ser as mais evidentes, não deixam de implicar despesas não documentadas».
Assim, na linha desta jurisprudência, é de entender que as despesas não documentadas a que se refere o artigo 88.º, n.º 1, do CIRC reconduzem-se a saídas de meios financeiros do património da empresa sem um documento de suporte que permita apurar o seu destino ou o seu beneficiário.
No caso em apreço, constatou-se que a conta 11-Caixa tinha um saldo elevado, mas não existiam na empresa os meios financeiros correspondentes a esse saldo, não se apurando quais as razões da divergência.
Mas, em direito são admitidas presunções em matéria de prova, que permitem concluir, com fundamento num facto conhecido, pela existência de um facto desconhecido (artigo 349.º do Código Civil).
Como entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 06-10-2010, proferido no processo n.º 936/08.JAPRT:
«A verdade processual, na reconstituição possível, não é nem pode ser uma verdade ontológica. A verdade possível do passado, na base da avaliação e do julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidos. Estando em causa comportamentos humanos da mais diversa natureza, que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não pode haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos. Por isso, na análise e interpretação – interpretação para retirar conclusões – dos comportamentos humanos há feixes de apreciação que se formaram e sedimentaram ao longo dos tempos: são as regras da experiência da vida e das coisas que permitem e dão sentido constitutivo à regra que é verdadeiramente normativa e tipológica como meio de prova – as presunções naturais».
«A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente (id quod plerumque accidit) certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do id quod, e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção, e na medida desse valor está o rigor da presunção».
«A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre a base e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção».
«Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido».
«A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outros».
Sendo as presunções naturais um meio de prova admitido em direito, podem ser utilizadas no procedimento tributário, como decorre do artigo 72.º da LGT, e também no processo arbitral, por força do disposto no artigo 115.º, n.º 1, do CPPT aplicável aos processos arbitrais tributários por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.
À face da experiência comum, é de presumir os meios financeiros que estão contabilizados na conta 11-Caixa deviam estar no património da empresa, pois é essa existência que justifica a contabilização. Por outro lado, se esses meios financeiros não foram encontrados, justifica-se, à face da experiência comum, a presunção de que saíram dele, pois esta é a explicação normal para meios financeiros que deviam estar num património deixarem de estar.
A Requerente aventa que a diferença entre o saldo da conta 11-Caixa e a realidade dos meios financeiros existentes no património da empresa poderá dever-se a erros e irregularidades contabilísticas, mas não esboça sequer a respectiva prova, pelo que não há qualquer razão para afastar a presunção natural de aqueles meios financeiros existiam no património da empresa e foi-lhes dado destino desconhecido.
Por outro lado, os valores elevados das divergências mantidos e crescendo durante vários anos, atingindo mais de três centenas de milhar de euros, não são compatíveis, em termos de razoabilidade e normalidade, com meros erros ou irregularidades contabilísticas numa empresa que é «um de restaurante tipo tradicional», em que as entradas e saídas de meios financeiros serão tendencialmente de reduzido valor pecuniário, pelo que a atribuição da divergência em causa a erros e irregularidades não se afigura minimamente credível. De qualquer forma, o ónus da prova dos alegados erros e irregularidades recai sobre a Requerente, por força do disposto no artigo 74.º, n.º 1, da LGT, pelo que a falta de prova que permite concluir pela sua existência tinha de ser valorada no procedimento tributário e no presente processo contra a Requerente.
Por isso, há fundamento factual para a conclusão subjacente à liquidação impugnada de que se está perante «despesas não documentadas», para efeitos do artigo 88.º, n.º 1, do CIRC, consubstanciadas por saída de meios financeiros da empresa sem documentos de suporte que permitam concluir pelo destino que lhes foi dado.
Não tem aqui aplicação, quanto à existência do facto tributário gerador da tributação autónoma, o preceituado no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT, pois apenas é aplicável quando exista «fundada dúvida» e, neste caso, não se vislumbram razões que abalem a presunção de terem ocorrido despesas não documentadas a que conduzem as presunções referidas.
Há, assim, fundamento factual, para aplicação da tributação autónoma prevista no artigo 88.º, n.º 1, do CIRC.
3.2.2. Questão da imputação das despesas não documentadas ao período de 2018
A Requerente defende que, a concluir-se pela existência de despesas, elas não poderão ser imputadas todas ao período de 2018, apenas devendo sê-lo as que correspondem à diferença entre o saldo da conta 11-Caixa em 31-12-2017 e em 26-12-2018, data em que foi feita a conferência.
A Administração Tributária questiona, além do mais, que seja aplicável o princípio da especialização dos exercícios e defende que as despesas devem ser imputadas ao exercício em que foi detectada a divergência entre o saldo da conta 11-Caixa e a realidade.
Antes de mais, há que esclarecer que, embora o princípio da especialização dos exercícios se reporte especificamente à «periodização do lucro tributável», como decorre do artigo 18.º do CIRC, a aplicação das tributações autónomas também tem de ser efectuada relativamente ao período fiscal em que ocorreram.
Na verdade, por um lado, às tributações autónomas em sede de IRC aplicam-se todas as normas do CIRC que não sejam incompatíveis, pois elas incluem-se no IRC, como decorre do teor expresso da alínea a) do n.º 1 do artigo 23.º-A do CIRC. Assim, aplicam-se às tributações autónomas em IRC, por exemplo, as regras relativas à apresentação de declarações, autoliquidação, liquidação adicional e todas as outras que sejam necessárias para sua aplicação.
Assim, também quanto às tributações autónomas previstas no CIRC vigora o princípio da anualidade, que se enuncia no artigo 8.º do CIRC, em que se estabelece que «o IRC, salvo o disposto no n.º 10, é devido por cada período de tributação, que coincide com o ano civil, sem prejuízo das exceções previstas neste artigo».
Por isso, as tributações autónomas em IRC são, tal como o imposto que incide sobre o lucro tributável, apuradas na declaração periódica anual, a que se referem os artigos 117.º, n.º 1, alínea b), e 120.º do CIRC, e a respectiva liquidação reporta-se a cada período fiscal.
Aliás, foi mesmo este o entendimento adoptado na liquidação impugnada, em que, embora só se tenham liquidado adicionalmente tributações autónomas e os respectivos juros compensatórios, se faz referência ao período de 2018 e se diz que a Requerente fica notificada «da liquidação de IRC relativa ao período a que respeitam os rendimentos» (documento n.º 1).
De resto, o próprio artigo 88.º do CIRC, no seu n.º 14, revela expressamente a conexão das tributações autónomas com o período de tributação do rendimento em que em que ocorrem os factos que lhes estão subjacentes, ao estabelecer que «as taxas de tributação autónoma previstas no presente artigo são elevadas em 10 pontos percentuais quanto aos sujeitos passivos que apresentem prejuízo fiscal no período a que respeitem quaisquer dos factos tributários referidos nos números anteriores relacionados com o exercício de uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola não isenta de IRC».
Assim, com referência ao exercício de 2018, apenas poderão ser tributadas autonomamente despesas que tenham ocorrido nesse exercício.
No caso em apreço, a prova produzida não permite concluir que todas as despesas que estão subjacentes à falta de meios financeiros correspondentes aos saldos da conta 11-Caixa em 26-12-2018 tenham ocorrido neste ano de 2018 e, pelo contrário, os indícios que resultam do facto de aquela conta já apresentar saldos elevados desde 2013, aumentando todos os anos até 2018, apontam no sentido de a falta de meios financeiros ter ocorrido antes deste ano, relativamente ao saldo devedor que já se verificava no final de 2017.
Aliás, a própria Administração Tributária reconhece que «desde 2013, que o saldo devedor da conta Caixa se mostra elevado e sem adesão à realidade das disponibilidades financeiras na posse da sociedade» (artigo 46.º da Resposta), o que tem ínsito que a falta de posse das disponibilidades financeiras correspondentes ao saldo devedor da conta 11-Caixa já terá ocorrido.
Assim, é de considerar provado que o montante do agravamento do saldo devedor da conta 11-Caixa que se verificou no ano de 2018 (no montante de € 65.150.12, resultante da diferença entre o saldo devedor em 26-12-2018 no montante de € 343.952,21 e o de € 278.802,09, que se verificava em 31-12-2017) corresponde a despesas não documentadas ocorridas neste ano 2018, mas não se considera provado que aquele montante de € 278.802,09 corresponda a despesas não documentadas ocorridas em 2018.
De qualquer modo, pelo que se referiu, quanto a esta quantificação do facto tributário, estar-se-ia, pelo menos, perante uma fundada dúvida, que justificaria a anulação da liquidação na parte correspondente, por força do disposto no artigo 100.º, n.º 1, do CPPT.
Assim, a liquidação impugnada enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, ao imputar ao exercício de 2018 despesas não documentadas no valor de € 278.802,09, vício este que justifica a anulação da liquidação, na parte respectiva, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.
Pelo exposto, conclui-se que
– procede parcialmente o pedido de pronúncia arbitral quanto às despesas no montante de € 278.802,09 a que corresponde o montante de € 139.401,05 de tributação autónoma, à taxa de 50% prevista no n.º 1 do artigo 88.º do CIRC (procedência de 81,06%);
– improcede o pedido de pronúncia arbitral quanto às despesas não documentadas no montante de € 65.150,12, a que corresponde a tributação autónoma € 32.575,06 (improcedência de 18,94%).
3.3. Juros compensatórios
A liquidação de juros compensatórios tem como pressuposto a liquidação de IRC (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enferma do vício que afecta esta liquidação, justificando-se também a sua anulação, na parte correspondente à anulação da liquidação de IRC.
4. Reembolso de quantias pagas e juros indemnizatórios
Em 22-11-2019, a Requerente pagou a totalidade da liquidação e formula pedidos de restituição da quantia de € 173.33,07 (artigo 99.º do pedido de pronúncia arbitral) e de juros indemnizatórios.
No que concerne a juros indemnizatórios, de harmonia com o disposto na alínea b) do art. 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no art. 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».
Embora o art. 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».
O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do art. 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do art. 61.º, n.º 4 do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».
Assim, o n.º 5 do art. 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.
Na sequência da anulação parcial das liquidações de IRC e juros compensatórios, a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia de € 139.401,05, correspondente à percentagem em que as liquidações são consideradas ilegais, o que é efeito da própria anulação, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT.
O regime substantivo do direito a juros indemnizatórios é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:
Artigo 43.º
Pagamento indevido da prestação tributária
1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.
A ilegalidade das liquidações de IRC é imputável à Administração Tributária pois emitiu-as por sua iniciativa.
Por isso, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios sobre a quantia a reembolsar.
Os juros indemnizatórios são calculados com base na quantia de € 139.401,05 e devidos, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, 61.º, n.º 5, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril, à taxa legal supletiva, e contados desde a data do pagamento (22-11-2019) até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
5. Decisão
De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:
a) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral;
b) Anular parcialmente, na percentagem de 81,06%, a liquidação de IRC n.º 2019 ... e a liquidação de juros compensatórios n.º 2019...;
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de reembolso, quanto ao valor de
€ 139.401,05 relativo ao IRC indevidamente liquidado, bem como ao montante de juros compensatórios incidentes sobre a parte correspondente à liquidação de IRC anulada, e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a efectuar o respectivo pagamento à Requerente;
d) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto ao pedido de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los à Requerente nos termos indicados no ponto 4 deste acórdão;
e) Julgar improcedente o pedido de pronúncia arbitral quanto às partes restantes dos pedidos e absolver a Autoridade Tributária e Aduaneira desses pedidos, nas partes respectivas.
6. Valor do processo
De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 173.333,07.
7. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 3.672,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente na percentagem de 18,94% e a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira na percentagem de 81,06%.
Lisboa, 11-10-2020
Os Árbitros
(Jorge Lopes de Sousa)
(Sílvia Oliveira)
(Guilherme W. d’Oliveira Martins)