SUMÁRIO:
De acordo com o princípio da tipicidade das leis fiscais, ínsito no princípio da legalidade tributária, e à luz de uma análise da substância material das funções concretamente desenvolvidas, a atividade de observador de árbitros de futebol não é abrangida pelo código CAE 1323 “Desportistas” – da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, aplicando-se-lhe, por conseguinte, o coeficiente 0,35 previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea c) do CIRS, na redação vigente à data dos factos.
DECISÃO ARBITRAL
O árbitro Professor Doutor Jónatas Machado, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para constituir o presente Tribunal Arbitral, profere a seguinte decisão:
1 RELATÓRIO
1. A..., (doravante Requerente ou SP) portador do cartão de cidadão n.º..., contribuinte fiscal n.º..., residente na ..., lote..., ...-..., Satão, veio, em 27.01.2020, requerer a constituição de tribunal arbitral, com pedido de declaração de ilegalidade de ato de liquidação de imposto, n.° 2019..., referente ao ano de 2018, nos termos dos artigos 2.º e 10.º do DL n.° 10/2011, de 20 de Janeiro, na redação conferida pela Lei n.º 119/2019, de 18 de setembro, emanado pela Autoridade Tributária e Aduaneira - Serviço de Finanças de ..., sita na Rua ..., n.°..., ...-..., ... (doravante Requerida ou AT).
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD, em 28.01.2020.
3. Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 2, alínea a), 6.º, n.º 1 e 11.º, n.º 1 do RJAT, o Conselho Deontológico deste Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) nomeou como árbitro singular o Professor Doutor Jónatas Machado, em 16.03.2020.
4. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, à qual não opuseram recusa, nos termos conjugados dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas b) e c) e 8.º do RJAT e 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Por força do preceituado na alínea c) do n.º 1 e do n.º 8 do artigo 11.º do RJAT, conforme comunicação do Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 06.07.2020.
6.A AT, tendo para o efeito sido devidamente notificada, ao abrigo do disposto no artigo 17.º do RJAT, apresentou a sua resposta, em 09.09.2020, onde, a título de questão prévia, contestou o valor atribuído ao processo, excecionou a incompetência absoluta do Tribunal e, por impugnação, sustentou a improcedência da pretensão da Requerente,
7. Por não ter sido requerida pelas partes e ser considerada desnecessária, o Tribunal dispensou a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, concedendo um prazo para alegações finais, através de despacho proferido em 10.09.2020, tendo o SP apresentado as suas em 23.09.2020 e a AT em 02.10.2020.
1.1 Descrição dos factos
8. A parte Requerente é formador/observador de árbitros de futebol, pertencente aos quadros da Associação de Futebol de ... e da Federação Portuguesa de Futebol, estando inscrito na Autoridade Tributária com o código CAE 93192 (“Outras atividades desportivas”).
9. Por ocasião da entrega anual da sua declaração modelo 3 do IRS, a Requerente declarou os rendimentos que aufere na sua atividade de observador de árbitros, tendo os mesmos sido declarados no campo 404, do quadro 4, do anexo B, na declaração entregue em 2019, referente aos rendimentos auferidos em 2018, de que resultaria, nos termos da liquidação n.º 2019... o direito a receber da Requerida um reembolso no valor de €1.924,41.
10. A Requerente foi notificada pela Requerida para corrigir a sua declaração de IRS, de modo a que os referidos rendimentos fossem declarados no campo 403.
11. A Requerente pronunciou-se em sede de audiência prévia dos interessados, uma vez que não podia concordar com tal decisão, tendo a Requerida mantido a decisão, por entender que os rendimentos da Requerente, decorrentes da sua atividade de observador de árbitros de futebol, deveriam ser declarados no campo 403.
12. Em confluência com o sucedido, a declaração de IRS do SP, do ano de 2018, entregue em 2019, foi oficiosamente corrigida pela Requerida, tendo originado o ato de liquidação n.° 2019..., que se pretende impugnar.
13. A declaração, no campo 403, dos rendimentos auferidos no exercício da atividade de observador de árbitros de futebol implicou que a esses rendimentos fosse aplicado um coeficiente tributário de 0,75, devendo liquidar à Requerente o valor de €870, 24, alegando assim um prejuízo no valor de no valor de €2.794,65,
1.2 Argumentos das partes
14. Os argumentos trazidos aos autos centram-se no significado e alcance dos conceitos “Outras atividades desportivas”, a que correspondente o CAE 93192 e “Desportistas”, com o CAE, 1323 do ANEXO I do CIRS.
15. A Requerente sustenta a ilegalidade da liquidação n.° 2019... com argumentos que a seguir se sintetizam:
a) A atividade de observador de árbitros de futebol não se encontra prevista especificamente na tabela do 151.º do CIRS, porquanto o código 1323 (“Desportistas”), não lhe é enquadrável;
b) O princípio da tipicidade específica, como vertente do princípio da legalidade, próprio do Direito Fiscal, exige a enumeração taxativa dos factos ou realidades tributárias;
c) A atividade de observador de árbitros de futebol, plasmada na prestação de serviços de "outras atividades desportivas", com o código CAE 93192, tal como a Requerente emite os seus recibos, não encontra previsão típica e expressa na tabela anexa ao artigo 151.º do CIRS;
d) Não encontrando previsão típica e expressa nesta tabela, em Direito Fiscal não se admite interpretações extensivas que permitam o enquadramento de outras atividades, concretamente "outras atividades desportivas", não podendo a Requerida, ir mais além;
e) Partindo do elemento literal, o resultado da interpretação é de que o coeficiente 0,75 é aplicável, apenas, a rendimento das atividades profissionais constantes da tabela a que se refere o artigo 151.º do CIRS;
f) Sendo a letra da lei o limite máximo da tarefa interpretativa, não é possível concluir que outros rendimentos além desse devem merecer o mesmo tratamento, sobretudo quando o próprio legislador criou, em paralelo a essa categoria específica de rendimento, uma categoria residual constante da alínea c) do n.º 1, do artigo 31.º do CIRS - onde se incluem os restantes rendimentos da categoria B não previstos nas alíneas anteriores;
15.1. Com base nestes argumentos, pretende a Requerente que seja declarada ilegal a liquidação de imposto feita pela Requerida, referente aos rendimentos por ela obtidos no ano de 2018 e declarados no ano de 2019, no seu anexo B, auferidos na qualidade de observador de árbitros de futebol e, em consequência, que seja a Requerida condenada a aplicar o coeficiente de 0,35 aos rendimentos auferidos na qualidade de observador de árbitros e a aceitar que esses rendimentos sejam declarados no campo 404, do anexo B da declaração de IRS, devendo, em consequência, devolver o imposto pago pelo Requerente, bem como o imposto que seria reembolsado Requerente, acrescido de juros de mora, devendo recair sobre ela as custas do processo.
16.. A AT questiona o valor do pedido, exceciona a incompetência absoluta do Tribunal e sustenta a manutenção do ato impugnado com base nos seguintes fundamentos:
Valor do pedido
a) O valor do pedido deve ser fixado em € 870,24, como consta da liquidação, e não o valor de € 2 794,65, tal como propugnado pela Requerente, na medida em que é isso que resulta do artigo 97.º-A do CPPT;
Incompetência do Tribunal Arbitral
b) O pedido em apreço pretende uma decisão arbitral que determine que os rendimentos da atividade de observador de árbitros, mencionados na declaração modelo 3 de IRS, no anexo B, quadro 4 A, sejam inscritos no campo 404, estando em causa o enquadramento dos rendimentos da atividade de árbitro da categoria B no campo 403 e não no 404;
c) O ato objeto do litígio não aplica um conjunto de fatores, objetivos ou subjetivos, que conduzam à liquidação do correspondente tributo, localizando-se, antes, a “montante” da fixação da matéria tributável, não podendo ser qualificado como um ato de fixação da matéria tributável que dá origem à liquidação de tributo, para efeitos da alínea b), do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT;
d) O meio próprio para impugnar estes atos, que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação e que também não são atos de fixação da matéria tributável ou da matéria coletável, não é a impugnação judicial, mas sim a ação administrativa especial (alínea p), do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e artigo 37.º e seguintes do CPTA);
Manutenção do ato impugnado
e) A atividade de árbitro de futebol e observador árbitros de futebol consubstancia uma prestação de serviços especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, sob o código “1323 – Desportistas”;
f) O código “1323 – Desportistas” é abrangente e engloba, para além de atletas, todos os agentes desportivos envolvidos em atividades desportivas;
g) Atendendo a que os rendimentos da Requerente provêm de uma atividade especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, tais rendimentos enquadram-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS;
h) Consequentemente são inscritos no campo 403 do quadro 4 A da declaração de rendimentos – modelo 3, e a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação do coeficiente de 0,75, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS;
i) Neste sentido, a AT pronunciou-se na Informação Vinculativa proferida no processo n.º 920/2018, com despacho concordante da Subdiretora Geral do IR, de 02.05.2018;
16.1. Escorando-se nestes argumentos, pretende a Requerida que seja ser alterado o valor do pedido arbitral para € 870,23, ser julgada procedente a exceção invocada, absolvendo-se a entidade requerida do pedido, ou, caso assim não se entenda, ser julgado improcedente o presente pedido de pronuncia arbitral, por não provado, mantendo-se na ordem jurídica o ato tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a entidade requerida do pedido.
1.3. Saneamento
17. O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, nos termos n.º 1 do artigo 10.º do RJAT e as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e mostram-se devidamente representadas.
18. Com base nos argumentos adiante expostos, entende este Tribunal que o valor do pedido é de € 2 794,65, tal como propugnado pela Requerente – e não o de € 870,24, que consta da liquidação, como sustenta a Requerida – na medida em que aquele valor reflete com rigor a utilidade económica do pedido, para efeitos do artigo 10.º, n.º2, alínea e), do RJAT, pois que não abrange apenas o valor de € 870,24 que o Requerente deixaria de pagar, no caso de procedência da ação, mas também o do reembolso a que haveria lugar, no montante de € 1 924,41, no caso de anulação da liquidação e subsequente reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade.
19. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), de acordo com os fundamentos infra.
20. O processo não padece de nulidades podendo prosseguir-se para a decisão sobre o mérito da causa.
2 FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Factos dados como provados
21. Com base nos documentos trazidos aos autos são dados como provados os seguintes factos relevantes para a decisão do caso sub judice:
a) A Requerente é observador de árbitros de futebol, pertencente aos quadros da Associação de Futebol de ... e da Federação Portuguesa de Futebol; (Documento 1)
b) Na declaração modelo 3 do IRS, entregue em 2019, a Requerente declarou os rendimentos auferidos em 2018 na sua atividade de observador de árbitros no campo 404, do quadro 4, do anexo B; (Documento 6)
c) Nos termos da correspondente liquidação n.º 2019..., relativamente ao ano de 2018, a mesma teria o direito ao reembolso de €1.924,41; (Documento 6)
d) A Requerente foi notificada pela Requerida para corrigir a sua declaração de IRS, respeitante a 2018 de modo a que os referidos rendimentos que aufere como observador de árbitros fossem declarados no campo 403; (Documento 2)
e) A Requerente pronunciou-se em sede de audiência prévia dos interessados, uma vez que não podia concordar com tal decisão; (Documento 3)
f) A Requerida manteve a decisão, corrigindo a matéria tributável pela inclusão do rendimento de €19 352,09 no campo 403 do quadro 4A do anexo B da Declaração de Rendimentos – e não no 404 – e procedendo à liquidação do imposto em conformidade. (Documentos 4, 5 e 6)
22. Em confluência com o sucedido, a declaração de IRS do Requerente, do ano de 2018, entregue em 2019, foi oficiosamente corrigida pela Requerida (Documentos n.ºs 4 e 5), dendo originado a nota de liquidação n.° 2019..., que se pretende impugnar.
23. A declaração dos rendimentos de observador desportivo de futebol no campo 403 implicou que a esses rendimentos fosse aplicado um coeficiente tributário de 0,75, devendo liquidar à Requerida o valor de €870, 24, alegando assim um prejuízo no valor de €2.794,65,
2.2 Factos não provados
24. Com relevo para a decisão sobre o mérito não existem factos alegados que devam considerar-se como não provados.
2.3 Motivação
25. Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada (cf. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
26. Os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis das questões objeto do litígio (v. 596.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
27. Assim, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
2.4 Questões decidendas
2.4.1. Questão prévia sobre o valor do pedido
28. A Requerida suscita uma questão prévia respeitante ao valor do pedido, sustentando que o mesmo deve ser fixado em € 870,24, como consta da liquidação n.° 2019..., e não em € 2 794,65, tal como propugnado pela Requerente – ao preencher o critério da utilidade económica do pedido, do artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT –, valor este que inclui, não apenas o montante que a Requerente deixaria de pagar no caso de procedência da ação, mas também, como foi alegado e demonstrado, o reembolso a que nessa hipótese haveria de ter direito, no montante de € 1 924,41, tal como constava da declaração inicial n.º n.º 2019... .
29. Na arbitragem tributária, o valor do pedido é relevante para efeitos de determinação da composição do tribunal arbitral, que pode ser singular ou coletivo, nos termos do artigo 5.º do RJAT, e de fixação de custas, ou seja, da taxa de arbitragem. Nos termos do artigo 12.º, n.º 1, do RJAT, “[p]ela constituição de tribunal arbitral é devida taxa de arbitragem, cujo valor, fórmula de cálculo, base de incidência objetiva e montantes mínimo e máximo são definidos nos termos de Regulamento de Custas a aprovar, para o efeito, pelo Centro de Arbitragem Administrativa”.
30 O artigo 3.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento de Custas da Arbitragem Tributária (RCAT) dispõe que a taxa de arbitragem é fixada em função do valor da causa, estabelecendo o n.º 2, que o valor da causa é fixado de acordo com artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), sendo que este artigo dispõe, no seu n.º 1, alínea a), que o valor atendível, para efeitos de custas ou outros previstos na lei, para as ações que decorram nos tribunais tributários, é, quando seja impugnada a liquidação, o da “importância cuja anulação se pretende”. Esta remissão do artigo 3.º do RCAT para o artigo 97.º-A do CPPT deve ser vista como uma concretização do artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT, que elenca o direito subsidiariamente aplicável.
31. A expressão “importância cuja anulação se pretende” não tem que corresponder literal e necessariamente ao valor constante da liquidação, podendo antes abranger, além deste, como sucede no caso concreto, o valor respeitante ao imposto em causa que já tenha sido pago e se considere passível de reembolso no caso de procedência da ação. Assim é, desde logo, porque esse reembolso só terá lugar se a anulação se reportar, nos seus efeitos, também ao montante que já tenha sido pago por conta do imposto, por via da reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, nos termos previstos no artigo 100.º da LGT. Esta interpretação é a que melhor se adequa à referência feita na alínea e) do n.º 2 do artigo 10.º, do RJAT, à “indicação do valor da utilidade económica do pedido”, como um dos requisitos do pedido de constituição do tribunal arbitral a apresentar pela Requerente , referência essa que pode ser legitimamente interpretada como “uma definição (ainda que apenas ligeiramente) mais detalhada do conceito do valor do pedido constante do artigo 5.º” do RJAT .
32. Por conseguinte, e por forma a não esvaziar de sentido o disposto nos artigos 5.º e 10.º do RJAT, que associam o valor do pedido à respetiva utilidade económica, entende este Tribunal que o valor do pedido é de € 2 794,65, tal como propugnado pela Requerente – e não o de € 870,24, que consta da liquidação, como sustenta a Requerida – na medida em que aquele valor reflete com rigor a utilidade económica relevante para efeitos do artigo 10.º, n.º2, alínea e), do RJAT, na medida em que não abrange apenas o valor de € 870,24 que o Requerente deixaria de pagar, no caso de procedência da ação, mas também o do reembolso a que haveria lugar, no caso de anulação da liquidação, no montante de € 1 924,41.
2.4.2. Exceção de incompetência
33. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído (artigos 5.º, n.º 2, 6.º, n.º 1, e 11.º do RJAT), e é materialmente competente (artigos 2.º, n.º 1, alínea a) do RJAT), devendo ser julgada improcedente a exceção invocada pela AT, na medida em que em causa está a legalidade da liquidação impugnada, já que a questão da qualificação e enquadramento fiscal de um determinado rendimento, em sede de liquidação, diz respeito à correta interpretação e aplicação da lei. No caso concreto, a aplicação e interpretação do artigo 31.º do CIRS subjacente ao ato de liquidação de imposto, n.° 2019... consubstancia uma questão de legalidade de liquidação.
2.4.3. Enquadramento fiscal da atividade de observador de árbitros
34. Tendo sido julgada improcedente a exceção de incompetência invocada pela AT e determinado o valor da causa, a questão material decidenda prende-se com saber se o conceito de “Desportistas”, com o CAE, 1323 do ANEXO I do CIRS, Tabela de atividades do artigo 151.º, do mesmo diploma deve ser interpretado e aplicado de forma a abarcar a atividade de observador/formador de árbitros de futebol.
35. À altura dos factos em causa, o artigo 31.º do CIRS, com a epígrafe “Regime simplificado”, na redação dada pela Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro - Lei do Orçamento do Estado para 2014, previa coeficientes para a obtenção do rendimento tributável quando a determinação dos rendimentos empresariais e profissionais, da categoria B, é feita com base na aplicação das regras decorrentes do regime simplificado. Aí se dispunha :
“1 - No âmbito do regime simplificado, a determinação do rendimento tributável obtém-se através da aplicação dos seguintes coeficientes:
…
b) 0,75 aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º;
c) 0,35 aos rendimentos de prestações de serviços não previstos nas alíneas anteriores;”
36. O artigo 151.º do CIRS dispõe que “As atividades exercidas pelos sujeitos passivos do IRS são classificadas, para efeitos deste imposto, de acordo com a Classificação das Atividades Económicas Portuguesas por Ramos de Atividade (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de atividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças”.
37. A Classificação das Atividades Económicas do INE, na sua secção R, respeitante a atividades artísticas, de espetáculos e recreativas, inclui o CAE 93192, correspondente a “Outras Atividades Desportivas, N.E.”. Aí se diz expressamente que o mesmo “[c]compreende as atividades de: produtores e promotores de acontecimentos desportivos com ou sem instalações; promoção de eventos desportivos; atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes; estábulos, canis e garagens, relacionados com a atividade desportiva; apoio à pesca e caça recreativas e desportivas; e dos guias de montanha. Inclui a gestão de zonas de caça e pesca.”
38. Como consta do elenco dos factos dados como provados, o Requerente desenvolve a atividade de observador de árbitros de futebol, estando inscrito na Autoridade Tributária com o código CAE 93192 (“Outras atividades desportivas”), tendo declarado os rendimentos que aufere nessa atividade no campo 404, do quadro 4A, do anexo B, na declaração entregue em 2019, respeitante aos rendimentos auferidos em 2018.
39. Todavia, o Anexo I do CIRS, contém a Tabela de atividades do artigo 151.º, onde se encontra o conceito de “Desportistas” com o CAE 1323 . Nos termos do artigo 31.º, n. º1, alíneas b) e c), às atividades profissionais especificamente previstas na tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, aplica-se o coeficiente 0,75, ao passo que às não especificamente previstas se aplica o coeficiente 0,35. No caso presente, está em causa saber se a atividade profissional de observador de árbitros se deve considerar especificamente prevista na tabela de atividades onde é utilizado o conceito de “Desportistas”.
40. A AT sustentou que o código “1323 – Desportistas” é abrangente e engloba, para além de atletas, todos os agentes desportivos envolvidos em atividades desportivas, pelo que os rendimentos do Requerente provenientes de serviços de arbitragem se devem considerar previstos na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, devendo ser inscritos no campo 403 do quadro 4 A da declaração de rendimentos – modelo 3 e enquadrados na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS, (“Rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º”), sendo-lhes aplicável o correspondente coeficiente de 0,75.
41. A jurisprudência arbitral do CAAD tem-se pronunciado várias vezes sobre a aplicação da tabela do artigo 151.º do CIRS, ainda que não necessariamente em questões idênticas à do presente processo. No Processo n.º 196/2017-T, convocou-se o princípio da tipicidade específica, ínsito no princípio da legalidade tributária, que vigora no direito fiscal. Nos Processos n.º 07/2016-T e n.º 251/2017-T, salientou-se a relevância do elemento literal como limite máximo da tarefa interpretativa. No Processo n.º 372/2017-T, sublinhou-se o facto de o artigo 31.º do CIRC exigir uma previsão específica na tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS. Trata-se de elementos de inegável relevância hermenêutica e metódica que não poderão deixar de ser considerados na decisão do caso concreto.
42. Igualmente digna de consideração é a jurisprudência do CAAD que tem versado o enquadramento fiscal das atividades de personal trainer, de árbitro de futebol ou futsal, a favor da sua subsunção, ora na alínea b) , ora na alínea c) , do n.º 1 do artigo 31.º do CIRS. No primeiro sentido aduzem-se geralmente argumentos relacionados com a natureza da atividade desenvolvida pelos árbitros destas modalidades, ativamente envolvidos, do ponto de vista físico e psicológico, na competição. No segundo, salienta-se a importância do princípio da tipicidade específica do direito fiscal e dos inerentes rigor conceitual e segurança jurídica. No entanto, importa salientar que em nenhum dos referidos processos é tratado o caso específico da atividade de observador de árbitros.
43. Esta atividade, embora possa ser inequivocamente enquadrada no conceito de “outras atividades desportivas”, com o número 93192 do Código das Atividades Económicas Instituto Nacional de Estatística, dificilmente se deixará subsumir ao conceito de “Desportista”, da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, Anexo I. Se a atividade da arbitragem desportiva nas modalidades de futesal e futebol tem sido por alguma jurisprudência reconduzida a esse conceito para efeitos fiscais – mesmo reconhecendo que o árbitro não é um “praticante desportivo” no sentido estrito em que este conceito é utilizado na legislação desportiva – a mesma conclusão não valerá necessariamente para a observação e avaliação de árbitros.
44. Mesmo que se entenda – como sucedeu nas decisões arbitrais nos Processos n.º 421/2019-T, n.º 750/2019-T, n.º 863/2019-T e n.º 886/2019-T – que a arbitragem desportiva assume uma importância decisiva na realização de competições desportivas oficiais e que os árbitros de futsal ou futebol participam ativamente na realização das competições desportivas, estando presentes no recinto de jogo, interagindo ativamente com os atletas em competição, acompanhando de perto todas as incidências do jogo e garantindo, quase em tempo real, a interpretação e aplicação das normas desportivas, com os desejáveis níveis de rigor e uniformidade impostos pelas federações desportivas nacionais e internacionais, o mesmo não se poderá dizer dos observadores de árbitros, já que estes realizam uma atividade essencialmente técnica e administrativa de avaliação da prestação dos árbitros, no quadro da estrutura, organização e funcionamento da disciplina e arbitragem nas federações desportivas .
45. Ainda que, ao menos para uma orientação jurisprudencial, os árbitros de futebol e de futesal possam ser razoavelmente considerados desportistas, de acordo com a doutrina da primazia da substância sobre a forma (um pouco à semelhança da qualificação de um maestro de orquestra como “artista”) , haja em vista terem, além do mais, que preencher apertados requisitos médicos de aptidão física e psicológica análogos aos exigidos para o acesso à prática desportiva e poderem obter registo de alto rendimento – e pese embora a existência de uma douta argumentação jurisprudencial em sentido contrário – a verdade é que esses argumentos substantivos perdem boa parte do vigor que possam reclamar quando se esteja, como é o caso, diante de observadores e avaliadores de árbitros.
46. Em face das considerações aduzidas, a recondução da atividade de observador de árbitro ao conceito “Desportistas”, com o CAE, 1323, da Tabela de atividades do Artigo 151.º do CIRS, afigura-se de difícil compatibilização com o princípio da tipicidade específica ínsito nos princípios da legalidade tributária e da segurança jurídica e proteção da confiança dos cidadãos, que concretizam o princípio constitucionalmente estruturante do Estrado de direito, Tratar-se-ia, certamente, de uma operação conceitual, hermenêutica e metódica demasiado forçada e arrevesada, cuja fundamentação dificilmente se deixaria plausibilizar.
47. Mesmo a orientação seguida na Informação Vinculativa proferida no Processo n.º 920/2018, com despacho concordante da Subdiretora Geral do IR, de 02.05.2018, respeitante ao tema da “Declaração de rendimentos provenientes da atividade de árbitro de futsal”, ao sustentar que o Código CAE, 1323 – “Desportistas” é abrangente, englobando, “para além dos atletas, todos os agentes desportivos participantes nas atividades desportivas”, dificilmente poderá ser entendida como incluindo necessariamente alguém que, fora do campo de jogo, se limita, num registo técnico-administrativo, a observar e avaliar a prestação dos árbitros. Isto, sob pena de então ter que incluir neste mesmo conceito quem designa os árbitros ou quem escolhe quem os designa, e assim sucessivamente.
48. Nos termos do artigo 11.º, n. 1º, da LGT, “[a] determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.” Remete-se aqui para os princípios e regras de hermenêutica e metódica jurídica geralmente aceites. O n.º 2 do artigo do mesmo artigo dispõe que “[s]empre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei.” Por seu lado, o n.º 3, diz que “[p]ersistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.”
49. Como se demonstrou acima, a legislação desportiva distingue o “praticante desportivo” do “árbitro”, embora uns e outros, em modalidades como o futebol ou o futesal, sejam essenciais à realização da competição, participem ativamente dentro do campo e sejam mesmo equiparados pela lei para alguns efeitos (v.g. certificação médica de aptidão física e psicológica; registo de alto rendimento). Alguma jurisprudência tem sustentado a existência de um fundamento material para que, ao menos nas modalidades referidas, praticantes e árbitros se reconduzam ao conceito de “Desportista” para efeitos da Tabela do artigo 151.º do CIRS.
50. No entanto, ainda que se aceite esses critérios e argumentos, entende o presente Tribunal que os mesmos são insuscetíveis de aplicação à atividade de observador de árbitros não podendo esta ser abrangida pelo código CAE 1323 “Desportistas” – da Tabela de atividades do artigo 151.º do CIRS, pelo que se lhe aplica, ao invés, o código CAE 93192 (Outras atividades desportivas) e o coeficiente 0,35 previsto no artigo 31.º, n.º 1, alínea c) do CIRS, na redação vigente à data dos factos.
51. Por conseguinte, deve considerar-se procedente a pretensão da Requerente, no sentido da anulação da liquidação de imposto n.° 2019... e do valor a pagar de €870, 24, havendo por isso, nos termos do artigo 100.º da LGT, lugar à imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, o que resulta, in casu, no direito ao reembolso, do valor € 1 924,41, nos termos da liquidação n.º n.º 2019..., onde o coeficiente de 0,35 foi aplicado.
52. Nos termos do nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 1 a 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), são devidos juros indemnizatórios no caso de erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido – traduzido no caso na errónea aplicação do artigo 31.º, n.º1, do CIRS por aplicação do coeficiente 0,75, e não do 0,35 – devendo os mesmos ser pagos à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre a quantia paga, desde o dia em que foi paga a liquidação mencionada supra e até o integral reembolso do montante de € 1 924,41.
3 DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Manter o valor do pedido fixado pela Requerente;
b) Julgar improcedente a exceção de incompetência invocada pela Requerida;
c) Julgar procedente o presente pedido de pronuncia arbitral, anulando, com fundamento em ilegalidade, o ato de liquidação de imposto, n.º 2019..., devendo ser efetuado o reembolso de € 1 924,41, nos termos da liquidação inicial de n.º 2019....
d) Condenar a Requerida, nos termos do artigo 43.º, n.º 1 da LGT e 61.º, n.ºs 2 e 5 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), no pagamento dos juros indemnizatórios, à taxa resultante do n.º 4 do artigo 43.º da LGT, calculados sobre as quantias indevidamente pagas, desde o dia em que foram pagas até ao integral reembolso das mesmas.
4 VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em €2.794,65, nos termos do artigo 306.º, n.º 1 do CPC e do 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, interpretados em conformidade com o artigo 10.º, n.º 2, alínea e), do RJAT.
5 CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 612.00 €, a cargo da Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e do artigo 4.º, n.º 4, do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I anexa ao mesmo
Notifique-se.
Lisboa, 12 de outubro de 2020
O Árbitro
Jónatas E. M. Machado