Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 935/2019-T
Data da decisão: 2020-10-20  IRC  
Valor do pedido: € 403.359,40
Tema: IRC/2003 – Retenção na fonte. Acordos de Dupla Tributação.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros José Poças Falcão (árbitro-presidente), Fernando Araújo e Ricardo Marques Candeias (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I. Relatório

 

A..., SA, pessoa coletiva n.º..., com sede no ..., em ..., ..., (doravante “Requerente”), notificada da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2006... (DF Lisboa), na parte em que manteve na ordem jurídica a liquidação n.º ... referente a retenções na fonte de IRC de 2003, no montante total de € 43.359,4, a qual tem a sua origem nas correções promovidas pela inspeção tributária ao abrigo da ordem de serviço n.º OI2005... da então DSPIT, veio nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art. 2.º, e na alínea a) do n.º 1 do art. 10.º, in fine, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, RJAT) requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, designado nos termos da alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e da alínea a) do n.º 3 do art. 5.º do RJAT.

 

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 31 de dezembro de 2019, pelo Senhor Presidente do CAAD, e automaticamente notificado à Requerida.

 

As partes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do art. 6.º e na alínea b) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral coletivo, no dia 17 de fevereiro de 2020, tendo estes comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram devidamente notificadas dessa designação no dia 17 de fevereiro de 2020, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do art. 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos arts. 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 18 de março de 2020.

 

A fundamentar o presente pedido, a Requerente vem aos autos afirmar, em síntese, o seguinte: 

 

1.            A Requerente exerce a sua atividade na área do comércio por grosso de combustíveis líquidos e lubrificantes, tendo contratado, no exercício de 2003, diversos serviços a entidades não residentes em território português.

2.            A Requerente foi alvo de uma ação de inspeção tributária de âmbito geral ao exercício de 2003.

3.            Em resultado da referida ação, os serviços de inspeção vieram alegar a falta de retenção na fonte de IRC sobre pagamentos de serviços efetuados a entidades não residentes, invocando que o SP não detinha, até ao termo do prazo respetivo, os meios de prova que o dispensavam de efetuar a retenção na fonte de IRC, pelo que ficou o contribuinte, enquanto substituto tributário, obrigado a entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos da lei, face ao disposto no n.º 4 do artigo 90.º do Código do IRC.

4.            A Administração Tributária emitiu a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios no valor total de € 2.057.984,20.

5.            A 6 de fevereiro de 2006, a ora Requerente apresentou junto da Direção de Finanças de Lisboa (“DFL”) reclamação graciosa da liquidação de IRC, invocando a inexigibilidade do imposto liquidado, por força da aplicação de Acordos de Dupla Tributação (“ADT”) celebrados por Portugal.

6.            Notificada da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa, a Requerente deduziu recurso hierárquico, tendo juntado os certificados de residência fiscal emitidos pelas autoridades fiscais dos países dos beneficiários dos rendimentos.

7.            No decurso do procedimento, a Requerente foi notificada para apresentar novos elementos de prova para efeitos de comprovação dos requisitos de dispensa de retenção na fonte de IRC, o que fez.

8.            No dia 12 de maio de 2011, a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento parcial do recurso hierárquico, nos termos da qual a Administração Tributária anulou a liquidação de IRC de 2003 pelo montante de € 1.333.465,25

9.            A Administração Tributária confirmou a decisão de indeferimento em relação às demais entidades – correspondendo a imposto que ascende a € 588.911,28 – por entender que os documentos apresentados pela Requerente não estão de acordo com o disposto no Despacho n.º 11701/03, mencionado na Circular n.º 12/03 da Direção de Serviços dos Benefícios Fiscais.

10.          Para o SP, não sendo controvertida a natureza dos rendimentos – porque a Administração Tributária qualificou tais rendimentos como sendo de serviços – e tendo sido feita prova da residência dos beneficiários dos rendimentos, Portugal não dispõe de competência ou soberania territorial para sujeitar tais rendimentos a tributação.

11.          Para prova do alegado, a Requerente juntou cópia dos seguintes documentos: i)  Certificado de residência fiscal emitido pelas Autoridades Fiscais Espanholas que atesta a residência fiscal da B... SA, NIF..., no exercício de 2003, para efeitos do ADT celebrado entre Portugal e Espanha; e ii) Certificado de residência fiscal emitido pelas Autoridades Fiscais Espanholas que atesta a residência fiscal da C... SL, NIF..., no exercício de 2003, para efeitos do ADT celebrado entre Portugal e Espanha.

12.          Em face do exposto, o Requerente vem peticionar que a presente ação arbitral seja julgada procedente, por provada, com a consequente anulação parcial da liquidação, no valor total de € 403.359,40, anulação do ato tributário de liquidação adicional de IRC, bem como a anulação proporcional da liquidação dos juros compensatórios, a condenação da Administração Tributária ao pagamento de uma indemnização à Requerente por prestação de garantia indevida no âmbito do processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva do acto tributário objeto dos presentes autos, e ainda o pagamento das custas de arbitragem, na proporção do respetivo decaimento.

 

Na Resposta, a Requerida respondeu, por impugnação, sustentando que o presente pedido deve ser julgado improcedente, com os seguintes fundamentos e conclusões:

 

1.            Nos presentes autos discute-se se a Requerente relativamente a rendimentos pagos em 2003 à B... SA e à C..., SL fez a prova legalmente exigida para efeitos do disposto no art. 9.º do CIRC e da CDT entre Portugal e Espanha, demonstrando os requisitos de que depende a pretendida isenção de retenção na fonte.

2.            A Lei n. 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Orçamento de Estado para 2008) deu nova redação aos então artigos 90.º e 90.º-A do CIRC (atuais artigos 97.º e 98.º) e estabeleceu no n. 4 do seu Art. 48.º a aplicação retroactiva do regime constante daquelas normas, das quais resultou que a comprovação do preenchimento dos requisitos necessários para a dispensa total ou parcial de retenção, pode ser efectuada pelo substituto tributário, posteriormente, através dos formulários de modelo aprovado, devidamente certificados pelas autoridades competentes do Estado de residência.

3.            Através do Despacho do Ministro das Finanças e da Administração Pública n. 4743- A/2008, de 8 de Fevereiro, publicado no Diário da República - II Série, n. 37, de 21 de Fevereiro de 28, foram aprovados novos modelos de formulários destinados a permitir a aplicação dos benefícios previstos nas Convenções celebradas por Portugal para evitar a dupla tributação internacional.

4.            Em face da redacção dada pela Lei n. 67-A/2007, de 31 de Dezembro, aos então artigos 9.º e 9.-A do CIRC, a AT está legalmente obrigada a aceitar a prova da verificação dos pressupostos das entidades beneficiárias de rendimentos obtidos em Portugal, para efeitos de dispensa total ou parcial de retenção de imposto na fonte, mesmo quando ela é efectuada posteriormente, o que, na situação em apreço, sucedeu relativamente a algumas entidades.

5.            Contudo, a prova alegadamente efetuada pela ora Requerente, relativa às entidades B... SA e C... SL, não preenche os requisitos legalmente exigidos para que sejam acionadas as normas convencionais

6.            As normas do CIRC não violam a Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento, celebrada entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha, ou os Tratados Europeus, e muito menos a CRP, pois não é aquela Convenção que regulamenta o procedimento a observar na comprovação dos pressupostos legais da sua aplicação e dos quais depende a exclusão da incidência de IRC.

7.            São, isso sim, as autoridades competentes de cada Estado quem determina as modalidades de aplicação da dita Convenção, estabelecendo os requisitos necessários para o efeito

8.            Os documentos que a Requerente junta não só não correspondem a qualquer pedido formulado, quer pela B... SA quer pela C... SL, e muito menos se encontram, aqueles, assinados por estas entidades, ou por quem as represente.

9.            O que aqueles documentos comprovam é tão só a residência fiscal em Espanha daquelas entidades, o que claramente é insuficiente para os efeitos pretendidos.

 

A 7 de julho de 2020 foi proferido despacho arbitral determinando a dispensa da reunião prevista no art. 18.º, do RJAT, bem como estabelecidos os termos subsequentes, e respetivos prazos, tudo de acordo com o disposto nos arts. 29.º, do RJAT, 91.º, 5, e 91.º-A, ambos do CPTA, nomeadamente para as partes apresentarem alegações escritas no prazo de 20 dias, estabelecendo-se que a decisão final seria proferida, previsivelmente, até ao 15 de outubro de 2020.

 

O Requerente e a Requerida apresentaram alegações, respetivamente a 20 de julho de 2020 e a 22 de setembro de 2020, reiterando os argumentos apresentados nas anteriores peças processuais.

 

O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas (vd. arts. 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e arts. 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades.

 

Não havendo, assim, qualquer obstáculo à apreciação da causa, cumpre proferir:

 

II. Decisão

 

A) Matéria de facto

 

A.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

 

a)            A Requerente exerce a sua atividade na área do comércio por grosso de combustíveis líquidos e lubrificantes, tendo contratado, no exercício de 2003, diversos serviços a entidades não residentes em território português.

b)           A Requerente foi alvo de uma ação de inspeção tributária, de âmbito geral, ao exercício de 2003, ao abrigo da ordem de serviço nº OI2005...da então DSPIT.

c)            Da referida inspeção resultaram correções aritméticas em sede de IRC, por falta de retenção na fonte sobre os pagamentos de serviços efetuados no ano de 2003 a entidades não residentes fiscais em Portugal.

d)           Os serviços de inspeção concluíram que “por não se ter comprovado que, para os rendimentos pagos ou colocados à disposição dos não residentes identificados nos anexos anteriormente referidos, detinha, no termo do prazo estabelecido para a entrega do imposto, os meios de prova que o dispensavam de efetuar a retenção na fonte de IRC, ficou o contribuinte, enquanto substituto tributário, obrigado a entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos da lei, face ao disposto no n.º 4 do artigo 90.º do Código do IRC”.

e)           A Administração Tributária emitiu a liquidação adicional de IRC e juros compensatórios n.º 2005..., no valor total de € 2.057.984,20, cujo prazo de pagamento voluntário terminava a 9 de novembro de 2005.

f)            A Requerente não efetuou o pagamento.

g)            O Serviço de Finanças de ... ... instaurou o processo de execução fiscal n.º ...2005... para cobrança coerciva.

h)           A 27 de fevereiro de 2006, a Requerente efetuou um pagamento por conta no valor de € 439.397,01, correspondente ao valor da liquidação cuja legalidade não pretendia contestar.

i)             A Requerente prestou a garantia bancária n.º ... do Banco D..., no valor de € 2.663.000,00.

j)             A 06 de fevereiro de 2006, a Requerente apresentou junto da Direção de Finanças de Lisboa reclamação graciosa da liquidação de IRC, a que foi atribuído o n.º ...2006... (DF Lisboa).

k)            A 20 de janeiro de 2009, a Requerente foi notificada da decisão de indeferimento da reclamação.

l)             A 20 de fevereiro de 2009, a Requerente deduziu recurso hierárquico do indeferimento da reclamação graciosa, a que foi atribuído o n.º ... (DSIRC), tendo juntado os certificados de residência fiscal emitidos pelas autoridades fiscais dos países dos beneficiários dos rendimentos.

m)          A 09 de dezembro de 2010, a Requerente apresentou cópia certificada dos certificados de residência fiscal dos prestadores de serviços, relativos ao exercício de 2003: (i) E...; (ii)F..., (iii) G...; (iv) H..., (v)  B... SA e (vi) C..., SL;

n)           Os documentos mencionados foram emitidos pelas autoridades fiscais dos Estados da residência dos beneficiários dos rendimentos pagos pela Requerente.

o)           A 27 de janeiro de 2011 a Requerente foi notificada do Ofício n.º..., de 26.01.2011, da Direção de Serviços do IRC: “Relativamente aos certificados de residência fiscal enviados por V. Exa para efeitos de apreciação do recurso hierárquico (...) verificou-se que os mesmos não são suficientes para à data dos factos fazer a prova ao abrigo de Convenção para evitar a dupla tributação, face ao disposto no Despacho n.º 11701/03, publicado no Diário da República n.º 178 (2.ª série) de 17.06.03, que instituiu a apresentação do formulário Modelo 12-RFI. Assim, caso os pagamentos dos rendimentos em questão, efetuados às entidades não residentes em Portugal, tenham ocorrido após 01.08.03 deve a prova da residência dessas entidades ser efetuada através do formulário referenciado ou em alternativa através do modelo 24-RFI atualmente em vigor. Se os pagamentos dos mesmos rendimentos tiverem ocorrido antes da data de 01.08.03, o que terá se ser provado, não é necessário a entrega de novos formulários”

p)           Em resposta, a Requerente apresentou a 15 de março de 2011, as Declarações Modelo 21-RFI relativas às entidades: (i) E...; (ii) F..., (iii) G...; e (iv) H... .

q)           A 12 de maio de 2011 a Requerente foi notificada da decisão final de indeferimento parcial do recurso hierárquico, nos termos da qual a Administração Tributária anulou a liquidação no montante de €1.333.465,25, correspondente aos serviços prestados pelas entidades E...;F...,G...; eH... .

r)            A Administração Tributária confirmou a decisão de indeferimento em relação às demais entidades – e cujo imposto ascende a € 588.911,28 – por entender que os documentos apresentados pela Requerente não estavam de acordo com o disposto no Despacho n.º 11701/03.

s)            Da decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico, a Requerente apresentou impugnação judicial na qual contestou a legalidade do ato tributário, na parte respeitante aos serviços prestados pelas entidades B... SA e C... SL, cujo imposto liquidado adicionalmente ascende a € 403.359,40.

t)            A 20 de dezembro de 2019, a Requerente apresentou pedido de desistência da instância judicial junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra e submeteu a sua pretensão à arbitragem tributária, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro.

 

A.2. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a apreciação da causa que não se tenham provado.

 

A.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto

 

O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os pontos da matéria de facto que foi apresentada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. art. 123.º, n.º 2, do CPPT, e art. 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi art. 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao atual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, analisadas criticamente, e à luz das regras em matéria de ónus da prova, as posições assumidas pelas partes, as provas documentais apresentadas e o processo administrativo instrutor, consideram-se provados e não provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Relevou, designadamente, para a convicção do Tribunal a análise da cópia do processo administrativo junta pela AT nos termos do artigo 17.º do RJAT, e o relatório dos Serviços de Inspeção Tributária, e seu inerente valor probatório no entendimento sufragado, inter alia, no Acórdão do CAAD proferido no processo nº 167/2019-T e Jurisprudência nele citada “(...) o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas (...)”.

 

B. Matéria de direito

 

A questão controvertida resume-se a saber se a Requerente cumpriu, ou não, com os requisitos de que depende a isenção de retenção na fonte relativamente a rendimentos pagos em 2003 à B... SA e à C... SL, e, em particular, se fez a prova suficiente para efeitos do disposto no CIRC e na CDT entre Portugal e Espanha.

Não está em causa se se verificam, ou não, os pressupostos legais de dispensa de retenção na fonte de IRC, estatuídos no CIRC, relativamente aos rendimentos pagos pela Requerente às entidades de direito espanhol, com sede e direcção efectiva em Espanha, sem estabelecimento estável localizado em Portugal.

O que está em causa é apenas a prova, ou a tempestividade da prova, da verificação de um desses pressupostos legais de dispensa de retenção na fonte.

Entre Portugal e Espanha foi celebrada, em 26 de Outubro de 1993, a Convenção para Evitar a Dupla Tributação e Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento (doravante, CDT Portugal-Espanha, ou apenas CDT), a qual foi aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 6/95, de 29 de Junho de 1994, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 14/95, de 28 de Janeiro (Diário da República n.º 24, 1.ª Série - A, de 28 de Janeiro de 1995).

O art. 4º da CDT estabelece que:

“1 - Para efeitos desta Convenção, a expressão «residente de um Estado Contratante» significa qualquer pessoa que, por virtude da legislação desse Estado, está aí sujeita a imposto, devido ao seu domicílio, à sua residência, ao local de direcção ou a qualquer outro critério de natureza similar. Todavia, esta expressão não inclui qualquer pessoa que está sujeita a imposto nesse Estado apenas relativamente ao rendimento de fontes localizadas nesse Estado.

[…]

3- Quando, por virtude do disposto no nº 1, uma pessoa, que não seja uma pessoa singular, for residente de ambos os Estados Contratantes, será considerada residente do Estado em que estiver situada a sua direcção efectiva.”

Decorre desta norma que a certificação da residência, para efeito do accionamento da Convenção, terá de ser feita pelas autoridades do Estado Contratante no qual a beneficiária dos rendimentos se considera residente, no qual possui o seu “estabelecimento estável” (art. 5º da CDT).

Mas não é na Convenção que vamos encontrar a regulamentação e os procedimentos a adoptar para a comprovação dos pressupostos legais da sua aplicação; decorre da própria Convenção que são as autoridades competentes dos Estados Contratantes que determinam as modalidades de aplicação da Convenção, e estabelecem os requisitos que devem ser comprovados por eles.

Já o reconhecia o acórdão do TCAS de 17 de Dezembro de 2009, proferido no processo n.º 0320/09: “As convenções em causa, elas próprias, não regulam todos os aspectos para que veio contemplar a não retenção na fonte dos rendimentos distribuídos entre a sociedade nacional e as entidades não residentes, desta forma carecendo de uma intervenção legislativa do legislador do Estado outorgante para colmatar as faltas e insuficiências das convenções; como seja a propósito do que entende por domicílio fiscal e o momento em que este e outros requisitos necessários à aplicação das convenções, devem ser apresentados”.

É neste contexto que surge a previsão normativa constante do artigo 90º do CIRC, na versão que vigorava em 2003 e dispunha sobre todas as formas de “dispensa de retenção na fonte”; artigo a que veio a suceder, a partir de 1 de Janeiro de 2006 (Decreto-Lei nº 211/2005, de 7 de Dezembro), uma divisão entre o art. 90º, respeitante à “dispensa de retenção na fonte sobre rendimentos auferidos por residentes”, e o art. 90º-A, especificamente dedicado à “dispensa total ou parcial de retenção na fonte sobre rendimentos auferidos por entidades não residentes”: uma divisão que se mantém nos actuais arts. 97º e 98º do CIRC, que correspondem respectivamente àqueles arts. 90º e 90º-A.

Na versão em vigor em 2003, o art. 90º do CIRC continha um embrião das exigências probatórias que versões subsequentes conteriam, mas afigura-se evidente que, para que a CDT se aplicasse, havia já que provar a não-residência em Portugal, e a residência em Espanha.

Como se afirma no acórdão do STA de 21 de Janeiro de 2009, proferido no processo n.º 0810/08 – ainda que por referência a uma versão posterior e mais explícita da norma do CIRC sobre dispensa de retenção na fonte, “a apresentação no prazo aí cominado da prova da não residência configura um pressuposto essencial para a aplicação das aludidas Convenções, só então se podendo afirmar que o Estado português abdica do seu poder de tributação e, nessa medida, dispensa a retenção na fonte do IRC devido por parte da entidade que, em princípio, estava obrigada e efetuá-la”.

Mas antes de prosseguirmos na indagação sobre a natureza e essencialidade dos meios probatórios legalmente estabelecidos para a verificação dos pressupostos legais conducentes à dispensa total ou parcial de retenção na fonte de IRC, vejamos a evolução do quadro legal.

Como referimos já, em 2003 a matéria da dispensa de retenção na fonte constava do art. 90º do CIRC, que estabelecia no seu nº 2:

“Não existe ainda obrigação de efectuar a retenção na fonte de IRC, no todo ou em parte, consoante os casos, relativamente aos rendimentos referidos no n.º 1 do artigo 88.º, quando os sujeitos passivos beneficiem de isenção total ou parcial ou, por força de uma convenção destinada a eliminar a dupla tributação celebrada por Portugal, a competência para a tributação dos rendimentos auferidos por um residente do outro Estado contratante não seja atribuída ao Estado da fonte ou o seja apenas de forma limitada” (sublinhado nosso).

Esta referência às convenções destinadas a eliminar a dupla tributação tinha acabado de ser introduzida pela Lei nº 32-B /2002 de 30 de Dezembro, e não existia na anterior redacção do artigo, resultante do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho – e voltará a desaparecer do art. 90º, 2, com a introdução, já referida, de um art. 90º-A especificamente dedicado às entidades não-residentes .

Quanto às exigências probatórias em vigor em 2003, elas eram sumariamente enumeradas nos n.os 3 a 5 do art. 90º, sublinhando nós aquelas que especificamente relevavam para não-residentes:

“3 - Nas situações referidas no número anterior, os beneficiários dos rendimentos devem fazer prova perante a entidade que se encontra obrigada a efectuar a retenção na fonte, da verificação dos pressupostos legais de que depende a isenção ou dos que resultem de convenção destinada a eliminar a dupla tributação, consistindo neste último caso, na apresentação de um formulário de modelo a aprovar por despacho do Ministro das Finanças certificado pelas autoridades competentes do respectivo Estado de residência”.

“4 - Quando não seja efectuada a prova até ao termo do prazo estabelecido para a entrega do imposto, fica o substituto tributário obrigado a entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos da lei”.

“5 - O sujeito passivo não residente, quando não tenha efectuado a prova no prazo referido no número anterior, pode requerer à Direcção-Geral dos Impostos o reconhecimento dos benefícios resultantes de convenção destinada a eliminar a dupla tributação e solicitar o reembolso do imposto retido na fonte, no prazo de dois anos a contar da data da verificação do facto gerador do imposto, mediante apresentação de formulário de modelo a aprovar por despacho do Ministro das Finanças” .

As versões imediatamente posteriores adensam e explicitam as referências a requisitos probatórios, como provas de residência fiscal, ou de existência de estabelecimento estável, entre outras, culminando, a partir de 2006, na “emancipação” de uma norma exclusivamente dedicada à “dispensa total ou parcial de retenção na fonte sobre rendimentos auferidos por entidades não residentes”, o já referido art. 90º-A, precursor do actual art. 98º do CIRC.

Na sua versão original (do Decreto-Lei nº 211/2005, de 7 de Dezembro), o art. 90º-A continuará a remeter os elementos probatórios para formulários “de modelo a aprovar por despacho do Ministro das Finanças certificado pelas autoridades competentes do respectivo Estado de residência”, formulários de validade temporária e a serem certificados, ou formulários “de modelo aprovado pelo Ministro das Finanças e eventualmente […] outros elementos comprovativos que forem solicitados pelos serviços competentes da DGCI” para reembolso de imposto indevidamente, ou excessivamente, retido.

Como consta da matéria de facto provada nos presentes autos, para efeitos de dispensa da obrigação de efectuar a retenção na fonte, a Requerente apresentou nos serviços os formulários Mod. 21-RFI devidamente certificados pelas autoridades fiscais dos Estados de residência de algumas das entidades beneficiárias dos rendimentos, nomeadamente os relativos a E...;F..., G...; e H..., o que levou à anulação da liquidação de IRC relativa a estas entidades.

Quanto à B... SA e à C..., SL, a Requerente apenas entregou certificados de residência emitidos pelas autoridades legais competentes de Espanha, comprovativos de que em 2003 as entidades aí eram residentes, na acepção constante da respectiva CDT, estando pois, nesse período de referência, sujeitas a imposto incidente sob o rendimento de pessoas colectivas em Espanha, sem possibilidade de isenção.

Não tendo a Requerente apresentado os formulários que a AT entende exigíveis, impõe-se apurar se a apresentação desses formulários se considera um requisito essencial para a verificação dos pressupostos para a aplicação da CDT, ou se, pelo contrário, a sua verificação pode ser efectuada por qualquer outro meio de prova.

Sucede que várias decisões jurisprudenciais já se pronunciaram sobre esta questão, e todas no sentido de entenderem que as referidas formalidades – especificamente os formulários – são dispensáveis, sempre que haja outros meios de prova capazes de atestarem a materialidade de que depende a aplicação da CDT, sob pena de, no entendimento oposto, a CDT ficar refém de imposições do direito interno de um dos Estados contratantes.

1- Acórdão do STA de 22 de Junho de 2011 (processo n.º 0283/11):

“I - Face à nova redacção dada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12 (OE/2008), aos então art.ºs 90.º e 90.º-A do CIRC, a prova da residência dos beneficiários de rendimentos auferidos em Portugal, para efeitos de dispensa de retenção na fonte, em conformidade com o disposto nos actuais art.ºs 97.º e 98.º do CIRC, pode ser efectuada a posteriori.

II - Se à data da ocorrência dos factos tributários, não existia no direito interno norma que impusesse a observância das formalidades que viriam a ser exigidas pela AF através do Despacho n.º 11701/2003, de 28/5, da Ministra de Estado e das Finanças, publicado no DR, II Série, n.º 138, de 17/6/2003, não se podia impor aos interessados a obrigatoriedade de utilização, nesse momento, de tais formulários.

III - Estes formulários não constituem requisitos “ad substantiam”, sendo a prova de residência um mero requisito “ad probationem”, já que a certificação de residência é um acto de mero reconhecimento dos pressupostos dos benefícios previstos nas convenções, limitando-se a AF à confirmação desses pressupostos, sendo que, na verdade, o que releva é a efectiva verificação dos respectivos pressupostos, pelo que não devem aqueles formulários constituir o único meio de prova necessário para certificar a sua residência.

IV - Assim, ainda que não correspondendo ao modelo oficial actual, atestando os certificados de residência apresentados a residência, e mostrando-se certificados pela autoridade fiscal respectiva, devem os mesmos ser aceites pela AF como prova efectiva da residência dessas entidades” (sublinhados nossos)

2- Acórdão do STA de 14 de Dezembro de 2016 (processo n.º 0141/14):

“I - Existindo convenção destinada a evitar a dupla tributação há, para efeitos de conhecer da dispensa de efectuar a retenção na fonte de IRC, que atender apenas aos pressupostos materiais convencionados.

II - As normas convencionais vinculam os Estados contratantes não podendo ser alteradas pela lei interna de um deles, dada a primazia do direito convencional sobre a lei interna.

III - Ainda que seja da competência de cada um dos estados contratantes regular as normas procedimentais para efeitos da aplicação da convenção não pode aproveitar-se tal facto para em norma procedimental alterar os pressupostos materiais de aplicação da convenção sob pena de violação das normas convencionadas e do disposto no n.º 1 do artigo 1.º da LGT.

IV - Resulta da interpretação dos artigos 103.º da CRP e 90.º do CIRC que os formulários exigidos como prova da dispensa da retenção na fonte de IRC dos rendimentos auferidos por entidades não residentes são meros documentos ad probationem pelo que podem ser apresentados “a posteriori” dentro dos prazos legalmente fixados podendo ser substituídos nos termos do artigo 364.º, n.º 2 do Código Civil” (sublinhados nossos)

3- Acórdão arbitral proferido no processo n.º 715/2014-T:

“a apresentação do formulário Mod. 21-RFI é uma mera formalidade ad probationem e não ad substantiam, pelo que a prova da residência noutro Estado poderá ser efectuada por qualquer outro meio idóneo que não única e exclusivamente o sobredito formulário […] não se encontrar a verificação dos pressupostos para a aplicação da Convenção para Evitar a Dupla Tributação exclusivamente dependente da apresentação do formulário Mod. 21-RFI, podendo a prova desses pressupostos ser feita por qualquer outro meio” (sublinhados nossos)

4- Acórdão arbitral proferido no processo n.º 221/2017-T:

“entende-se que decorre da prevalência das normas de convenções internacionais sobre as normas de direito interno (artigo 8.º, n.º 3, da CRP), bem como do princípio de que os elementos fundamentais da tributação dependem de lei formal (artigo 103.º, n.º 2, da CRP), que a aplicação do regime que resulta da CDT […] quando estavam provados os pressupostos materiais da sua aplicação, não pode ser afastada com fundamento na falta de apresentação do MOD. 21-RFI, exigida por um despacho do Ministro das Finanças publicado na II Série, do Diário da República” (sublinhados nossos)

5- Acórdão arbitral proferido no processo n.º 605/2019-T:

“Assente que está a possibilidade de a prova da verificação dos aludidos pressupostos legais ser efetuada por qualquer meio idóneo, e não apenas através da apresentação do formulário MOD. 21-RFI […] as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras têm, em princípio, valor probatório idêntico às prestadas pelas autoridades portuguesas, como se infere do n.º 4 do artigo 76.º da LGT; pelo que, não havendo qualquer razão para duvidar da informação prestada, ela deve ser considerada como meio de prova”.

A própria doutrina apoia essas tomadas de posição jurisprudenciais. Veja-se, por todos, Rui Duarte Morais:

“Na realidade, a imposição unilateral por um Estado de condições, mesmo que de índole burocrática, que limitem os direitos que para os contribuintes resultam, directamente, de um texto normativo de direito internacional sempre resultaria inconstitucional. O direito interno revogaria, ao menos na prática, parte do disposto pelo direito internacional convencional.”

Temos, assim, apoio doutrinal e jurisprudencial para concluir que a apresentação dos formulários MOD. 21-RFI não é a única via para comprovação do preenchimento dos requisitos de que depende a aplicação da CDT – nem poderia sê-lo sem violação da hierarquia normativa que coloca a CDT acima de quaisquer fontes legais ou regulamentares de direito interno, e especificamente do Despacho nº 11701/03, publicado no Diário da República n.º 178 (2.ª série) de 17 de Junho de 2003, que instituiu a apresentação do formulário Modelo 12-RFI.

Aliás, a prevalência da materialidade dos pressupostos sobre a observância de formalismos mais não é do que um corolário do princípio da prevalência da substância sobre a forma, lapidarmente consagrado no acórdão “Barlis”, de 15 de Setembro de 2016, proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE)

A não-essencialidade dos formalismos impostos por legislação interna não decorre somente da posição hierárquica superior da CDT face à legislação e à regulamentação nacionais: resulta também, subtilmente, do próprio regime legal.

Com efeito, simultaneamente com a separação entre as normas aplicáveis a residentes e a não-residentes em matéria de dispensa de retenção na fonte, foi introduzida a possibilidade de o substituto tributário sanar os efeitos da não-produção tempestiva de prova através da entrega posterior de comprovativos da verificação dos pressupostos para aquela dispensa (art. 90º, 4 e art. 90º-A, 6, actuais arts. 97º, 4 e 98º, 6 do CIRC) – uma possibilidade que, excepcionalmente, o legislador assumiu como tendo um alcance retroactivo: “O afastamento da responsabilidade prevista no n.º 4 do artigo 90.º e no n.º 6 do artigo 90.º-A do Código do IRC, na redacção que lhes foi dada pela presente lei, é aplicável às situações anteriores à entrada em vigor da mesma, independentemente de já ter sido efectuada a liquidação do imposto, excepto quando tenha havido lugar ao pagamento do imposto e não esteja pendente reclamação, recurso hierárquico ou impugnação” - art. 48º, 4 da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro.

Em primeiro lugar, isso significa que, por força da lei, um tal regime se aplica retroactivamente a 2003.

Em segundo lugar, isso significa também que – por admissão expressa na letra da lei – a falta de preenchimento dos formalismos impostos nos arts. 90º e 90º-A (os actuais 97º e 98º) acarreta responsabilidade contra-ordenacional, mas não impede a comprovação por outros meios, e fora dos prazos inicialmente estabelecidos!

Só assim faz sentido o disposto no art. 90º, 4 – número aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro:

“4 - Sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional, a responsabilidade estabelecida no número anterior pode ser afastada sempre que o substituto tributário comprove a verificação dos pressupostos para a dispensa total ou parcial de retenção.”

E só assim faz sentido o estabelecido, para os não-residentes, no art. 90º-A, 6– número igualmente aditado pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de Dezembro:

“6 - Sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional, a responsabilidade estabelecida no número anterior pode ser afastada sempre que o substituto tributário comprove com o documento a que se refere o n.º 2 do presente artigo e os n.os 3 e seguintes do artigo 14.º, consoante o caso, a verificação dos pressupostos para a dispensa total ou parcial de retenção.”

Em ambos os casos começa-se pela ressalva “Sem prejuízo da responsabilidade contra-ordenacional”, o que só pode significar que a preterição de uma formalidade “ad probationem” pode originar essa responsabilidade contra-ordenacional, mas não impede (como impediria uma formalidade “ad substantiam”) a comprovação da materialidade relevante para a aplicação do regime convencional – e isto posteriormente, e sem qualquer prazo (“sempre que […] comprove”).

Significa isto, na prática, que, pese embora o substituto tributário não tenha feito a prova da verificação dos pressupostos previstos na CDT no prazo legalmente fixado, nem por isso fica obrigado a entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido nos termos da lei, atento o facto de ter feito esta prova posteriormente. Apenas incorrerá em responsabilidade contra-ordenacional.

Estabeleceu o Acórdão do STA de 24 de Fevereiro de 2010 (processo n.º 0732/09) que “Como resulta destas disposições, embora a não apresentação do formulário referido na alínea a) do n.º 2, pelos beneficiários dos rendimentos, até ao termo do prazo estabelecido para entrega do imposto gere as obrigações de o substituto tributário efectuar a retenção de IRC e, quando não a tiver efectuado, entregar a totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido, admite-se, no n.º 6, que esta responsabilidade seja afastada sempre que o substituto tributário comprove com o documento referido no n.º 2 a verificação dos pressupostos para dispensa de retenção”.

Esta remissão para o regime legal deve ser complementada pelo acórdão do STA de 21 de Janeiro de 2009 (processo n.º 0810/08), que estabelece que, tendo sido juntos aos autos certificados de residência fiscal emitidos pelas autoridades fiscais dos respectivos países relativos às sociedades beneficiárias dos rendimentos pagos, se encontrava consequentemente afastado o dever de entrega da totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido – o que por si só fazia desaparecer da ordem jurídica o pressuposto de responsabilidade jurídico-tributária que conferia legalidade à liquidação adicional impugnada, e pelo acórdão de 21 de Outubro de 2009 (processo nº 0518/09) que determinou que, tendo resultado provado que a impugnante juntou aos autos certificados de residência fiscal emitidos pelas autoridades fiscais dos países das sociedades beneficiárias dos rendimentos, se encontram reunidos os requisitos previstos nos citados incisos normativos para afastar a responsabilidade do substituto tributário pela falta de entrega da totalidade do imposto que deveria ter sido deduzido.

E os exemplos de jurisprudência no mesmo sentido poderia, uma vez mais, multiplicar-se.

A comprovação relevante para efeitos da CDT pode, pois, ocorrer em vários momentos, pode ser promovida por várias vias – ainda que uma dessas vias, a privilegiada pela lei interna, seja protegida por uma reacção contra-ordenacional, embora não possa converter-se em via única ou “essencial” por respeito à proeminência da própria CDT, que é hierarquicamente superior e não determina nenhuma via exclusiva de comprovação dos seus próprios pressupostos de aplicação.

Por outro lado, não esqueçamos que, embora por remissão legal, os formalismos preteridos, e com os quais se procura obstaculizar à plena aplicação da CDT, constam de um Despacho, como outros constam de Circulares, Ofícios-Circulados, e equiparados. E quanto a isso dispomos de abundante jurisprudência arbitral, toda no mesmo sentido.

Para dar um exemplo, recorramos ao acórdão arbitral proferido no processo n.º 532/2019-T, que se reporta à doutrina veiculada pelo Ofício-Circulado n.º 20.022, de 19 de Maio de 2000, segundo o qual a efectivação do crédito de imposto por dupla tributação internacional deve ter como suporte “documento comprovativo do montante do rendimento, da sua natureza e do pagamento do imposto, o qual deverá ser emitido ou autenticado pelas Autoridades Fiscais do respectivo Estado de onde são originários os rendimentos”.

E o acórdão argumenta:

“Relativamente ao referido entendimento, diga-se, desde logo, que a AT é livre de consagrar, de forma genérica, a aceitação de determinado tipo de documentação como idónea a demonstrar certos pressupostos de normas tributárias constitutivas de direitos dos contribuintes, devendo, até, mesmo proceder dessa forma, em homenagem aos princípios da certeza e segurança jurídica, da igualdade e da eficácia e simplicidade de procedimentos.

Não haverá, assim, qualquer óbice de natureza legal – antes pelo contrário – a que a AT, como acontece no referido Ofício-Circulado, se auto-vincule a aceitar determinado tipo de documentação para determinados efeitos.

Pelo contrário, todavia, não se deverá aceitar que a AT, como acontece no caso, de forma genérica ou na aplicação de instruções internas da índole das referidas, vede aos contribuintes a utilização de meios de prova que a lei admite e não defere à AT a faculdade de restringir, com o argumento de haver formas “mais seguras”, ou “inequívocas” de demonstrar os factos em crise.

Ou seja, e em suma, se à AT é lícito definir que determinados meios de prova serão, por si, considerados aptos à demonstração de determinados factos, assim transmitindo aos contribuintes a segurança de que, munidos do mesmos, a AT não levantará quaisquer objecções ao teor dos mesmos, já não será legítimo àquela Autoridade, de forma abstracta e a priori, crismar – directamente ou por exclusão – outros meios de prova como inidóneos, nos casos em que tal não resulte da lei, nem esta lhe confira a faculdade de o fazer.

Deste modo, confrontada, como acontece no caso, com documentação ou outros meios de prova, legalmente admissíveis mas que não correspondem ao que se encontra previamente por si definido como apto às finalidades de prova pretendidas, não poderá a AT demitir-se de analisar criticamente tal prova, e fundar devidamente as dúvidas que, em concreto, a mesma lhe suscita, e limitar-se, simplesmente, a recusá-la por não corresponder àquela que genericamente foi reputada como idónea para os fins em causa.”

Além disso, se deveras se sustentasse que as formalidades enumeradas num despacho constituem elementos “ad substantiam” de um tributo, estaríamos porventura a incorrer numa inconstitucionalidade, dado que, nos termos do art. 103º, 2 da CRP, os elementos fundamentais da tributação dependem de lei formal.

Fica por determinar se os certificados de residência juntos pela Requerente constituem meios idóneos a tal comprovação; ou seja, se ao apresentar aqueles certificados de residência, emitidos pelas autoridades fiscais de Espanha, a Requerente logrou demonstrar os pressupostos para a dispensa de retenção na fonte de IRC, suportando o ónus da prova que sobre ela recai como substituta tributária pela entrega do imposto (art. 74º, 1 da LGT), e satisfazendo a lógica subjacente à CDT.

Comecemos por sublinhar que não foi colocada em causa a veracidade daqueles certificados de residência emitidos pelas autoridades fiscais espanholas – o que permite que elas sejam aceites como meios de prova, nos termos do art. 76º, 1 e 4 da LGT (“1 - As informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei. […] 4 - São abrangidas pelo n.º 1 as informações prestadas pelas administrações tributárias estrangeiras ao abrigo de convenções internacionais de assistência mútua a que o Estado Português esteja vinculado, sem prejuízo da prova em contrário do sujeito passivo ou interessado.”).

Assim sendo, impõe-se concluir que os referidos certificados comprovam a materialidade da qual a CDT faz decorrer todas as consequências legais para efeitos de se evitar a dupla tributação – e especificamente, com relevância para o caso, a dispensa total ou parcial de retenção na fonte sobre rendimentos auferidos por entidades não residentes.

Não percamos de vista que se trata aqui, na essência, de uma questão de hierarquia de normas, a ser resolvida, sem hesitações ou equívocos, a favor da CDT. Como se estabelecia, por exemplo, no acórdão do STA de 8 de Julho de 2009 (processo nº 0382/09): “A supremacia das normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas sobre o direito interno nacional, que resulta do art. 8.º, n.º 2, da CRP, impõe que se dê prioridade ao artigo 4.º, n.º 1 da Convenção entre a República Portuguesa e a República Federal da Alemanha para evitar a Dupla Tributação em matéria de Impostos sobre o rendimento e sobre o Capital (Lei n.º 12/82, de 3 de Junho) na determinação dos residentes em território nacional e em território alemão.”.

Acompanhamos aqui o entendimento plasmado na decisão do processo n.º 605/2019-T, que tem evidentes paralelos com o presente processo, para sustentar o entendimento de que, com a apresentação dos referidos certificados de residência, e apesar de os mesmos não obedecerem ao formalismo legalmente previsto, a Requerente comprovou que a B... SA e a C..., SL eram residentes em Espanha no ano de 2003 e que por isso estavam sujeitas, aí, a imposto pelos rendimentos que lhes foram pagos pela Requerente.

Por outro lado, se a Requerida entendeu, e entende, que os documentos apresentados pela Requerente, apesar de atestarem a residência fiscal das mencionadas entidades, não confirmam a materialidade de que depende a aplicação, ao caso, da CDT, deveria então ter diligenciado, junto das autoridades fiscais espanholas, pela obtenção da informação alegadamente em falta, não só atendendo ao princípio da colaboração com o contribuinte, mas também em cumprimento do princípio do inquisitório, especificamente no que se refere à verificação dos pressupostos da tributação (artigos 58.º e 59.º, 1, da LGT).

Havendo essa reserva por parte da Requerida, ela deveria ter procedido a um pedido de troca de informações com a administração fiscal espanhola, nos termos do disposto no artigo 26.º da CDT Portugal-Espanha, para aquilatar se as referidas entidades, para além de serem residentes em Espanha no ano de 2003, preenchiam os demais pressupostos de que depende a activação do preceituado na CDT.

Como se estabelece no acórdão do STA de 21 de Janeiro de 2009 (processo nº 0810/08), o mecanismo de troca de informações previsto nas CDTs é «aplicável no caso de resultarem dúvidas quanto aos certificados apresentados pelo contribuinte». Reforça-o um acórdão do TCAS de 8 de Fevereiro de 2018 (processo n.º 46/10.0BELRS), ao estabelecer que “Havendo dúvidas sobre os elementos declarados para efeitos da aplicação da CDT, a AT sempre as poderia ter dissipado através de mecanismo próprio, o de troca de informações previsto no art. 26.º da CDT, não sendo razoável exigências de prova excessivas e desproporcionais quando não existem razões concretas justificativas dessa mesma exigência”.

Rematemos este ponto com a opinião de Rui Duarte Morais:

“só devem ser liquidados impostos quando estejam preenchidas as respectivas hipóteses legais, devendo a administração fiscal abster-se de proceder a liquidações quando esteja em condições de verificar que tal não acontece. Antes de proceder a uma qualquer liquidação adicional, a administração fiscal tem o dever de se informar da realidade da situação, na medida em que tal esteja, razoavelmente, ao seu alcance. Ora, nestas situações, a nossa administração fiscal tem o poder-dever de se informar, junto da administração fiscal do país de residência do beneficiário do pagamento, se este, à data, aproveitava de isenção ou de redução de retenção na fonte. É que, quer o sistema comunitário quer as convenções prevêem mecanismos de troca de informação entre as administrações dos Estados, os quais não visam apenas proteger os seus interesses fazendários mas, também, assegurar a efectivação dos direitos que para os neles residentes resultam dos textos convencionais. Estamos perante o chamado efeito “escudo” (shield), amplamente reconhecido. […] Sendo que ao sujeito passivo assiste o direito de solicitar que seja a administração a obter tal informação junto da sua congénere do outro Estado, o que, por regra, não poderá ser recusado, atento o princípio da investigação (da procura da verdade material) que preside ao procedimento e ao processo tributários” .

Com efeito, admitir-se-á que, sobrevindo uma dúvida quanto à aplicação da CDT, será mais fácil às autoridades resolvê-la recorrendo aos meios predispostos na própria convenção (consultas, procedimentos amigáveis, trocas de informações – arts. 25º e 26º da CDT Portugal-Espanha) , do que remeter essa tarefa para os sujeitos passivos da relação tributária.

Conclui-se que a aplicação do regime que resulta da CDT Portugal – Espanha quando estavam provados os pressupostos materiais da sua aplicação, não pode ser afastada com fundamento na falta de apresentação do MOD. 21-RFI, exigida por um despacho do Ministro das Finanças.

 

CONCLUSÃO

 

A liquidação adicional agora impugnada, referente ao ano de 2003, padece de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado na errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 90º do Código do IRC, na redacção em vigor à data, e do disposto na CDT Portugal-Espanha, pelo que deve ser anulada, nessa mesma parte.

A decisão de indeferimento parcial do recurso hierárquico, na medida em que manteve a controvertida liquidação adicional, na parte agora declarada ilegal, padece de igual vício invalidante, o que determina a sua anulação.

Igualmente ficam, ipso facto, anulados os juros compensatórios na parte correspondente, e extinto o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva do acto tributário ora anulado.

Nestes termos, procede o pedido de anulação parcial da liquidação adicional de IRC n.º 2005..., no valor de € 403.359,40, com todas as consequências legais.

A Requerente prestou a garantia bancária n.º ... do Banco D..., no valor de € 2.663.000,00.

Tendo prestado garantia no âmbito dos respectivos processos de execução fiscal para cobrança das quantias liquidadas pelos actos que são objecto do presente processo, a Requerente invoca que deve, por isso, ser indemnizada nos termos e para os efeitos do artigo 53.º da LGT.

O processo arbitral é meio adequado para o reconhecimento do direito a indemnização por garantia indevidamente prestada, pois é aplicável subsidiariamente o artigo 171.º do CPPT, por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea c), do RJAT.

O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:

“1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.

2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.

3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.

4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efectuou.”

No caso em apreço, os erros que afectam as liquidações são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que as correcções que efectuou foram da sua iniciativa.

Nestes termos, a Requerente tem direito a ser indemnizada pelos prejuízos derivados da garantia prestada para suspender a execução fiscal instaurada para cobrança da quantia liquidada.

Neste contexto, tendo-se concluído pela existência de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo e verificando-se os demais pressupostos previstos nos artigos 171.º do CPPT e 53.º da LGT, deverá a AT ser condenada no pagamento dos referidos custos inerentes à prestação da garantia.

 

III. Decisão

 

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:

 

a)            Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado pela Requerente;

b)           Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar à Requerente indemnização por garantia indevida, tendo por referência os custos suportados para a prestação da garantia e a liquidar em execução de julgado e

c)            Condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do processo.

 

IV. Valor do processo

 

Fixa-se o valor do processo em €403.359,40, nos termos do disposto no artº 32.º do CPTA e no artº 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no art. 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do art 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).

 

V. Custas

Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 6.732,00, a pagar pela Autoridade Tributária, Requerida, conforme o disposto nos art.s 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e art. 4.º, n.º 5, do RCPAT.

 

Notifique-se.

Lisboa, 20 de Outubro de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

(Fernando Araújo)

 

O Árbitro Vogal

(Ricardo Marques Candeias)