SUMÁRIO:
A norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.
DECISÃO ARBITRAL
Acordam os Árbitros Carlos Alberto Cadilha (Árbitro Presidente), Clotilde Celorico Palma e Filipa Barros, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral na seguinte decisão arbitral:
I – Relatório
A... S.A., anteriormente designado B... S.A. titular do número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa – 2ª Secção e de identificação de pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ... n.º..., ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, em conjugação com o disposto na alínea a) do artigo 99.º e n.º 1 do artigo 102.º, todos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante “CPPT”) para apreciar a legalidade dos actos tributários consubstanciados na decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa apresentada e, bem assim, sobre os actos de liquidação de IVA n.ºs ... e de juros compensatórios n.º ..., de 28/11/2009, referentes ao período 2005-12, requerendo ainda a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
A Requerente fundamenta o pedido nos seguintes termos:
a) A Requerente é uma instituição de crédito que realiza operações financeiras enquadráveis na norma de isenção do artigo 9.º, n.º 27, do Código do IVA, como é o caso da concessão de créditos, e operações que conferem o direito à dedução, como seja, a locação financeira mobiliária e o aluguer de longa duração financeiro, (doravante ALD).
b) No âmbito da sua actividade, a Requerente celebra contratos de aquisição de viaturas com entidades terceiras procedendo ao pagamento integral e a pronto das mesmas, acrescido de IVA, entregando-as para uso e fruição ao abrigo e segundo os termos e condições dos aludidos contratos de leasing ou de ALD ao respectivo locatário, seu cliente.
c) Como contrapartida pela prestação de serviços realizada, o Locatário fica obrigado a pagar à Requerente uma retribuição que assumia a forma de renda, acrescida de IVA, nos termos legais.
d) Por conseguinte, a Requerente celebra contratos de mútuo com os seus clientes, convencionando a reserva de propriedade até à liquidação integral do crédito, pelo que, a aquisição de bens e serviços necessários para o efeito da locação financeira consubstanciam serviços de utilização mista.
e) No entanto, a Administração Tributária (doravante AT) desconsiderou, no cálculo de percentagem de dedução relativa ao ano de 2005, tanto os valores relativos à transmissão de viaturas adquiridas no âmbito da concessão de crédito com reserva de propriedade, como os valores respeitantes às amortizações financeiras no âmbito dos contratos de locação financeira e ALD.
f) Entende a AT que a compra de viaturas e a sua alienação a clientes com reserva propriedade corresponde a uma operação de financiamento pela qual a instituição bancária aufere como contrapartida o pagamento de juros, sendo que o IVA incorrido com a aquisição é recuperado no momento da alienação, pelo que, a inclusão do montante do crédito concedido na percentagem de dedução de IVA determinaria um aumento artificial do coeficiente de imputação.
g) Do mesmo modo, no entender da AT, a locação financeira traduz-se em substância na concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída pelos juros, correspondendo a amortização do capital ao reembolso da quantia em dívida que não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução para efeitos de IVA.
h) A Requerente, baseando-se na jurisprudência maioritária do CAAD, sustenta que os custos gerais efectuados em vista à disponibilização de veículos, enquanto operações tributáveis, são parte dos elementos constitutivos do preço dessas operações e originam um direito à dedução.
i) E, no que se refere à locação financeira, as rendas dos contratos são integramente sujeitas a IVA, quer na parte correspondente à amortização financeira ou do capital, quer na parte correspondente aos encargos financeiros como são os juros.
j) Adicionalmente, defende a Requerente que o entendimento sufragado pelo TJUE no “Caso Banco Mais” não tem aplicação concreta aos presentes autos pois, o artigo 23.º, n.º 2 do Código do IVA não constitui uma mera transposição do artigo 17.º n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva, o que significa que, a AT não se encontra habilitada para moldar as componentes da fração do pro rata de dedução de forma a obrigar uma entidade como a Requerente a incluir apenas a parte das rendas pagas pelos seus clientes no âmbito dos contratos de locação financeira, que corresponde a juros, expurgando, sem mais, o montante da amortização do capital.
k) O mesmo entendimento deverá ser aplicado no que diz respeito às rendas dos contratos securatizados, pois a operação de securitização segundo a qual foram cedidos os montantes correspondentes aos créditos de locação financeira pela Requerente, não descaracteriza a relação existente entre esta última e os seus clientes, tratando-se de uma simples antecipação do recebimento das rendas (receitas) provenientes dos contratos de locação financeira, e não da cedência da posição contratual da Requerente assumida no âmbito desses contratos. Por conseguinte, a Requerente continuou a receber mensalmente as referidas rendas cobrando o respectivo IVA.
l) Nestes termos, o acto tributário de autoliquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao assentarem na possibilidade de alteração dos componentes do cálculo pro rata violam o disposto no artigo 23.º do Código do IVA e o princípio da neutralidade fiscal.
A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
a) Entende que a questão em apreço já foi objecto de um amplo escrutínio pela jurisprudência nacional e estrangeira, sendo que, ao contrário do defendido pela Requerente, a solução maioritariamente adotada, tem sido a de seguir a posição constante do Oficio-Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009.
b) A atestar o alegado, a Requerida traz à colação o recente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA), proferido no âmbito do processo n.º 485/17, de 15 de Novembro de 2017, que concentra e consolida na sua fundamentação os aspectos mais pertinentes e complexos em torno destas operações financeiras e do seu tratamento fiscal em sede de IVA, tanto a nível nacional como no âmbito do direito europeu.
c) Na decisão tomada por parte deste Tribunal, não só foi defendido que a imposição de um coeficiente de dedução próprio para estas operações financeiras por parte da administração fiscal é legítima à luz do direito interno e europeu, como igualmente é legítima a imposição da exclusão da componente da amortização financeira das rendas pagas nos contratos de locação financeira do denominador da fração de apuramento da percentagem de dedução.
d) Com efeito, entende a AT que a inclusão do montante de IVA suportado na transmissão de viaturas relacionadas com a actividade de concessão de crédito no cômputo do coeficiente de imputação específico obtido pela aplicação do método da afetação real iria aumentar injustificadamente a percentagem de dedução, contendendo com o princípio da neutralidade do imposto. Daí resultando que quanto maior fosse o crédito concedido, maior seria a dedução de IVA que resultaria da aplicação do coeficiente de imputação específico. E, desse modo, não se mostra possível nem adequado o método do pro rata definido no artigo 23.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código do IVA, havendo de aplicar-se o disposto no n.º 3 desse artigo 23.º do CIVA, em conjugação com o entendimento constante do Oficio-Circulado n.º 30103.
e) Por outro lado, a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto cuja contraprestação se concretiza nas rendas auferidas pela entidade locadora, que se compõem de juros e amortização financeira ou do capital. E em relação a esses serviços de utilização mista, o critério de dedução à luz do disposto no n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA apenas poderá reflectir o montante dos proveitos provenientes da sua actividade tributada (juros) sob pena de se subverter o princípio da neutralidade do imposto.
f) Acresce que o acórdão do TJUE, no Caso Banco Mais, veio a considerar, no que respeita às operações de locação financeira, que o facto de se ter utilizado como critério a parte do volume de negócios gerada pelas operações que conferiam direito à dedução, sem excluir desse volume de negócios a parte das rendas recebidas que compensavam o custo de aquisição dos veículos, tinha tido por efeito falsear o cálculo do pro rata de dedução.
g) Vindo assim a concluir o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva (a que corresponde o actual artigo 173.º, n.º 2, da Directiva 2006/112 CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir, no numerador e denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.
h) Por conseguinte, segundo a AT quer a jurisprudência do TJUE quer jurisprudência do STA consolidam o entendimento de que as instruções vertidas no Oficio-Circulado n.º 30108 não enfermam de qualquer ilegalidade, não se podendo dar como provado, em consonância com a decisão do TJUE, que a aplicação de um outro método que não o previsto na instrução, não provoca distorções significativas na tributação, ónus que incumbe ao sujeito passivo.
i) Em consequência, na eventualidade do Tribunal arbitral decidir em linha com o STA, sempre concluirá que para atender à pretensão da Requerente, se mostraria necessária uma ampliação/alteração da matéria de facto, exigindo-se que demonstrasse, comparando, que a inclusão das operações de leasing e ALD na percentagem de dedução geral a que se refere o n.º 4 do art.º 23.º do CIVA, não provoca distorções significativas na cobrança do IVA.
j) Seguindo a mesma linha de argumentação, entende a AT que nas operações securitizadas os montantes das rendas relativas aos contratos não podem ser considerados para efeitos do cálculo da percentagem de dedução na medida em que os valores cedidos não constituem qualquer proveito para efeitos do apuramento do resultado contabilístico.
k) Conclui pela improcedência do pedido de pronúncia arbitral.
Por despacho arbitral de 15 de Setembro de 2020, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinou-se a apresentação de alegações escritas.
Em alegações, a Requerente suscitou inovatoriamente a ilegalidade dos actos tributários impugnados por respeitarem a um período de tributação anterior à emissão do ofício circulado n.º 30108 e a inconstitucionalidade formal e material dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA. A Autoridade Tributária manteve a sua anterior posição.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do Tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal arbitral colectivo foi constituído em 13 de Março de 2020.
O Tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Matéria de facto
Relativamente à matéria de facto, importa, antes de mais, salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e distinguir a matéria provada da não provada, tudo conforme o artigo 123.º, n.º 2, do CPPT e o artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. artigo 511.º, n.º 1, do anterior CPC, correspondente ao artigo 596.º do atual CPC).
Assim, atendendo às posições assumidas pelas partes nos respectivos articulados e à prova documental junta aos autos, consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:
A) A Requerente foi constituída por escritura pública outorgada em Dezembro de 1996, na com a denominação social de B..., S.A., tendo então assumido como objecto social, nos termos legalmente permitidos às Instituições Financeiras de Crédito, a “realização de operações bancárias financeiras e prestação de serviços conexos” designadamente a concessão de crédito ao consumo e a locação financeira – (cfr. registo permanente com o seguinte número de acesso:...);
B) Em 1 de Janeiro de 2007, a Requerente integrou as sucursais em Portugal do C..., S.A. e do D..., S.A.;
C) Para efeitos do IRC, a Requerente encontra-se colectada para o exercício de “outra intermediação monetária”, com o CAE 64190, estando sujeito a IRC, por força do artigo 2.º do Código do IRC;
D) Para efeitos de IVA, a Requerente está enquadrada no regime normal com periodicidade mensal, sendo um sujeito passivo misto, na medida em que na sua actividade realiza operações de locação financeira mobiliária (Leasing e ADL), que são tributáveis e conferem o direito à dedução do imposto, e operações de financiamento e concessão de crédito para aquisição de imóveis, automóveis e ao consumo, que são isentas do imposto, sem direito à dedução do IVA;
E) Por força dos contratos de Leasing, a Requerente, a solicitação e indicação do Locatário, adquiria determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento integral e a pronto do mesmo, acrescido de IVA, entregando-o de imediato ao Locatário, para uso e fruição, ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato (cfr. cópia de contrato de Leasing junto com o PPA, como doc. n.º 11);
F) Como contrapartida pela referida prestação de serviços, o Locatário ficava obrigado a pagar à Requerente uma retribuição a qual assumia a forma de renda – (cfr. cláusula n.º 2, alínea d), das condições particulares do contrato de Leasing, junto ao PPA como doc. n.º 11).
G) Para a determinação da renda cobrada ao Locatário eram considerados, designadamente, os seguintes factores: o preço de aquisição do bem (veículo), os encargos e a margem de lucro.
H) Nos termos do Contrato de Leasing, o Locatário podia, no final do contrato e se assim o pretendesse, adquirir o bem ao Locador mediante o pagamento do valor residual, (cfr. cláusula n.º 2, alínea e), das condições particulares do contrato de Leasing junto ao PPA como doc. n.º 11).
I) Em relação aos contratos de ALD Financeiro, a Requerente adquiria determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento imediato do mesmo, cedendo-o, ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato, ao Locatário, para uso e fruição que abrangesse “a maior parte da vida útil do bem” (cfr. cópia de contrato de ALD Financeiro junto com o PPA, como doc. n.º 12).
J) Como contrapartida pela prestação de serviços realizada, o Locatário ficava obrigado a pagar à Requerente uma retribuição a qual assumia a forma de renda (cfr. cópia do contrato de ALD Financeiro, junto no PPA, como doc. n.º 12);
K) Para a determinação da renda a Requerente considerava, designadamente, os seguintes factores: o preço de aquisição do bem (veículo), os demais encargos e a margem de lucro;
L) Tal como no contrato de Leasing, também nos contratos de ALD Financeiro, o Locatário tinha a possibilidade de, no final do contrato, adquirir o bem ao Locador, mediante o pagamento de um montante adicional – correspondendo este, em média, a uma renda do valor do contrato – (cfr. documento de promessa de compra e venda anexo ao contrato de ALD junto no PPA, como doc. n.º 12);
M) Nos contratos de ALD efectivamente cumpridos, foi transferida a propriedade, por força da cláusula de opção pela compra do bem e mediante o pagamento do valor residual;
N) Nas situações em que não houve transmissão da propriedade – quer porque os contratos de Leasing ou de ALD Financeiro foram resolvidos por incumprimento do Locatário quer porque este, no final do contrato, não accionou a opção de compra constante dos mesmos –, os veículos foram vendidos pela Requerente a diversas entidades leiloeiras;
O) Ao valor das vendas relativas aos referidos contratos acresce IVA à taxa legal, (cfr. cópia da factura junta com o PPA, como doc. n.º 13);
P) Nos casos em que os contratos foram resolvidos por ocorrência de perda total do bem, o locatário fica obrigado, nos termos do contrato de locação financeira, a pagar o capital em dívida (cfr. condições gerais dos contratos de Leasing juntos com o PPA, como doc. n.º 11);
Q) Nos casos referidos no ponto P) supra a Requerente emite uma factura pelo montante em dívida ao qual acresce, nos termos legais, o respectivo IVA (cfr. cópia da factura junta com o PPA, como doc. n.º 14);
R) A Requerente líquida IVA nas operações de Leasing e ALD, sobre o valor total da renda (cfr. cópia das facturas/recibo juntas com o PPA, como docs. n.º 15 e 16);
S) No caso das operações não sujeitas, como a concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário, a Requerente não liquidou IVA, sujeitando as referidas operações, nos termos da lei em vigor, a Imposto do Selo (cfr. cópia das facturas/recibo juntas com o PPA, como docs. n.º 17 e 18).
T) No ano de 2005 estavam em vigor dois contratos de securitização: um celebrado entre a Requerente e a E... e outro celebrado entre a Requerente e a F... (cfr. cópia do contrato junto com o PPA como doc. n.º 19).
U) Nos termos dos aludidos contratos, a Requerente cedeu às mencionadas empresas (E... e F...), determinados créditos provenientes dos contratos de locação financeira mobiliária em troca de outro montante;
V) Com a celebração dos contratos de securitização a Requerente não cedeu a posição que detinha de locador nos referidos contratos – mantendo-se como parte destes contratos –, mas apenas um determinado montante (correspondente às rendas vincendas desses contratos);
W) Por força dos contratos de locação financeira que a Requerente celebrou com os seus clientes, manteve-se proprietário do bem locado, continuando a cobrar rendas pela locação, acrescidas de IVA, entregando, conjuntamente com as respectivas declarações, o IVA cobrado ao Estado, e, procedendo por força dos contratos de securitização ao pagamento do crédito à entidade a quem foram cedidos os créditos;
X) Sendo a Requerente um sujeito passivo misto para efeitos de IVA, tem vindo a autonomizar na respectiva contabilidade, com a excepção dos custos comuns, os custos e proveitos associados a actividade sujeita e os custos e proveitos associados à actividade isenta;
Y) Assim, no ano 2005, nas operações sujeitas, a Requerente liquidou IVA nos respectivos outputs (operações activas por si realizadas), acrescendo ao montante cobrado a título de contraprestação pelo serviço prestado o respectivo IVA (cfr. cópia das facturas juntas com o PPA como docs. n.º 15 e 16);
Z) A Requerente deduziu os correspondentes inputs (aquisições de bens e serviços) relacionados com os custos incorridos nas operações sujeitas;
AA) Quanto às operações não sujeitas ou isentas (como é o caso do crédito) a Requerente não liquidou o IVA nos respectivos outputs, tendo liquidado Imposto do Selo sobre a componente dos juros;
BB) A Requerente não deduziu o IVA dos inputs relacionados com os custos necessários para as operações não sujeitas, aplicando, assim o método da afectação real (cfr. Anexo 1 ao Relatório de Inspecção Tributária (doravante RIT), junto com o PPA);
CC) No que concerne aos custos suportados na aquisição de bens e serviços indistintamente utilizados a jusante em operações sujeitas com ou sem direito a dedução, os designados custos comuns, a Requerente deduziu, em virtude das operações sujeitas, com base no método do pro rata.
DD) Na fórmula do cálculo do pro rata, a Requerente considerou no numerador da fracção (operações com direito à dedução), o montante correspondentes à base tributável constante das declarações periódicas de IVA, incluindo, designadamente, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira, as rendas relativas a contratos de locação financeira mobiliária securitizados e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados (cfr. Anexos 1 e 2 ao RIT), juntos com o PPA);
EE) No denominador (operações com direito à dedução e operações isentas) a Requerente adicionou ao montante determinado para o numerador, o valor correspondente às operações isentas sem direito à dedução (cfr. Anexos 1 e 2 ao RIT, juntos com o PPA);
FF) Na determinação do montante relativo às operações com direito a dedução, no valor total de €215.009.581,89, a Requerente inclui, designadamente, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira (no montante de € 110.838.426,12), as rendas relativas a contratos de locação financeira mobiliária securitizados (no montante de €51.838.076,45) e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados (no montante de €27.117.219,54);
GG) No exercício de 2005, o IVA suportado pela Requerente nos gastos comuns foi de €1.461.875,11;
HH) No exercício de 2005, a Requerente apurou uma percentagem de dedução de 84%, tendo refletido tal montante de dedução na declaração periódica de IVA referente ao mês de dezembro do respectivo exercício, (cfr. declaração apresentada e junta ao PPA como doc. n.º 20);
II) Entre Agosto e Outubro de 2006, a Requerente foi objecto de uma acção de inspecção externa de âmbito parcial (IVA), realizada pela Divisão de Inspecção a Bancos e Outras Instituições de Crédito, a qual culminou com a elaboração do Relatório Final de Inspecção Tributária, notificado através do ofício n.º..., de 17.11.2009 – (cfr. RIT junto com o PPA, como doc. n.º 3, o qual se dá para os devidos efeitos legais, por integralmente reproduzido);
JJ) Em função das correcções realizadas, a Requerente foi notificada das seguintes liquidações adicionais:
i) Liquidação Adicional n.º..., referente a IVA em falta no período 0512, no montante de €716.318,80 (cfr. cópia da liquidação adicional junta com o PPA como doc. n.º 4);
ii) Liquidação adicional n.º..., referente a juros compensatórios pelo imposto em falta no período de 05.12, no montante de €107.938,45 (cfr. cópia da liquidação adicional junta com o PPA como doc. n.º 5);
KK) Inconformada com as supra referidas liquidações, em 28.05.2010 a Requerente deduziu reclamação graciosa contra as mesmas;
LL) Por ofício n.º..., datado de 03.12.2010, proveniente da Direcção de Finanças de Lisboa (Divisão da Justiça Administrativa), foi a Requerente notificada do projecto de decisão da reclamação graciosa, nos termos do qual era expressa a intenção de indeferir a reclamação (cfr. documento n.º 7 junto com o PPA que, para os devidos efeitos legais, se dá por integralmente reproduzido);
MM) Notificada para o efeito, a Requerente optou por não exercer o direito de audição que lhe assistia daquele projecto de decisão de indeferimento;
NN) Em consequência, o projecto de decisão converteu-se em definitivo, tendo a Requerente sido notificada do mesmo, pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária, no dia 18.04.2011, através do ofício n.º..., (cfr. documento n.º 8 junto com o PPA, que se dá por integralmente reproduzido);
OO) De acordo com o RIT, entendeu a AT com relevância para os autos e, em síntese, o seguinte:
“Da análise efectuada ao detalhe dos membros da fracção foi possível constatar que o banco considerou como operações tributadas, entre outras, as seguintes:
i) A amortização financeira incluída nas rendas referentes aos contratos de locação financeira, reflectida a crédito nas contas 226011-“Contratos de Locação Financeira” e 22602 – “contratos celebrados”;
ii) As rendas relativas a contratos de locação financeira mobiliária que foram objecto de securitização, registadas nas contas 5899485 – “E...” E 5899486 – “F...”;
iii) O valor da alienação/abate por destruição de bens locados, relevado a crédito na conta de regularização 589926 – “OP.P/ALIENAÇÃO/ABATEN”;
(...)
Refere o n.º 1 do 23.º do CIVA que “Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectue transmissões de bens e prestações de serviços parte dos quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dêem lugar à dedução”.
Esta proporção é calculada nos termos do n.º 4 do art.º 23 do CIVA que refere que “A percentagem de dedução referida no n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.º e n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo incluindo as operações isentas ou fora do campo do imposto, designadamente, as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.
Esta regra geral, conhecida por método de percentagem de dedução (pro rata) poderá ser afastada pela adopção do chamado método de afectação real que se encontra previsto nos n.ºs 2 e 3 do art.º 23.º do CIVA e que permite a dedução integral do imposto suportado na aquisição de bens e serviços destinados a operações tributadas ou isentas com direito a dedução, ficando tal direito vedado quando os bens ou serviços sejam utilizados em operações que não conferem esse direito.
No entanto, mesmo nos casos em que se aplica o método de afetação real, haverá IVA suportado em bens e serviços utilizados quer em operações que dão direito a dedução quer em operações sem direito a dedução, pelo que se impõe a sua repartição e consequente apuramento da parcela dedutível, não podendo por isso deixar de ser aplicado ao imposto contido nessas aquisições um pro rata ou percentagem de dedução que deverá reflectir a medida efectiva em que aqueles bens e serviços são usados para a realização das operações com direito a dedução e das isentas sem aquele direito. Para esse efeito como já se referiu o sujeito passivo utilizou o pro rata relativo ao volume de negócios previsto no n.º 4 do art.º 23.º.
O Código do IVA assegura a transposição da Directiva 77/388/CEE, de 17 de Maio de 1977, comummente identificada por “Sexta Directiva do IVA” referente ao sistema comum do IVA a vigorar nos estados membros da Comunidade Europeia, facto, aliás referenciado no preâmbulo do CIVA ao reconhecer-se que a adesão à Comunidade implica a “adopção do sistema comum do IVA, regulado por várias directivas do Conselho das Comunidades Europeias entre as quais assume especial relevo a chamadas “Sexta Directiva”.
Assim, o art.º 23.º do CIVA corresponde a duas normas comunitárias, o art.º 17.º, n.º 5 e art.º 19.º da Sexta Directiva que têm de ser tomados em conta na interpretação das regras nacionais, sobre a matéria do direito à dedução do imposto suportado em bens de utilização indistinta em operações com e sem direito a dedução.
Com efeito, o n.º 5 do art.º 17º daquele normativo dispõe “No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução, previstas nos n º 2 e 3, como para operações sem direito à dedução, a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações”.
Este pro rata é determinado nos termos do artigo 19.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo (...)”
Já o art.º 19.º da Directiva, no seu n.º 1, fixa as regras para a determinação da percentagem de dedução: “o prorata de dedução, previsto no n.º 5, primeiro parágrafo, do artigo 17.º, resultará de uma fração que inclui:
- no numerador, o montante total do volume de negócios anual, liquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações que conferem direito à dedução nos termos dos n º 2 e 3 do artigo 17 º;
- no denominador, o montante total do volume de negócios anual, liquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não conferem direito à dedução.(...)”
(...)
O conceito de volume de negócios, no caso das instituições de crédito e de outras instituições financeiras, inserto na alínea a) do n.º 3 do art.º 5 do Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro, corresponde à soma das seguintes rubricas de proveitos, deduzidos, se for o caso disso, o imposto sobre o valor acrescentado e outros impostos directamente aplicáveis aos referidos proveitos:
• juros e proveitos equiparados;
• receitas de títulos;
• comissões recebidas;
• lucro líquido proveniente de operações financeiras;
• outros proveitos de exploração.
(...)
Em face dos normativos nacionais e comunitários, importa aferir se as operações, como sejam a amortização financeira contida nas rendas facturadas ao locatário não securitizadas, as rendas dos contratos de locação financeira securitizados, bem como o valor de alienação/indeminização dos bens destruídos, que influenciara a percentagem de dedução apurada pelo sujeito passivo, integram o seu volume de negócios.
Amortização Financeira
Não obstante nos termos do estabelecido na alínea h) do n.º 2 do art. 16.º do CIVA, o valor tributável para as operações resultantes de um contrato de locação finaneira ser o valor da renda recebida ou a receber do locatário, o certo é que esta é composta por capital mais juros, e isto porque a actividade do locador se restringe a uma actividade financeira, servindo de intermediário entre o fornecedor e locatário na transacção do bem, adquirindo-o ao primeiro e cedendo o seu uso ao segundo, pelo que no leasing financeiro o interesse do locatário reside essencialmente no financiamento que este proporciona.
Logo, a componente financeira correspondente à amortização do financiamento subjacente à aquisição do bem locado, e não constituindo, por consequência, contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, não tem a natureza de proveito e não pode, por isso, integrar o volume de negócios, o que equivale a dizer que não pode influenciar o pro rata ou percentagem de dedução.
A não ser assim, permitia-se um aumento artificial da percentagem de repartição dos custos comuns, que conduziria a um direito à dedução ilegítimo, ficando prejudicada a neutralidade que se pretende na mecânica do IVA.
(...)
Rendas de contratos securitizados
Nas operações de securitização denominadas “E...” e F...”, o Banco, no âmbito do seu mandato de gestão dos créditos cedidos, factura as rendas ao locatário e liquida o IVA que entrega nos cofres do Estado. Neste processo, o cedente é unicamente substituto da entidade a quem foram cedidos os créditos, não se constituindo qualquer valor dessas rendas proveito para efeitos de apuramento do seu resultado contabilístico.
(...)
Alienação/indemnização de bens abatidos por destruição
Em termos escriturais quando ocorre o abate do bem locado por destruição do seu valor contabilístico, reflectido na conta do activo 226 –“Operações de locação financeira mobiliária”, e que corresponde ao somatório do capital vincendo e valor residual é anulado por contrapartida de uma conta de regularização na qual, em simultâneo, é reflectido o valor da indemnização devido pela seguradora.
Do exposto decorre que, o valor da indemnização não constitui proveito do locador. A existir corresponderá tão somente à diferença, se positiva, entre o valor da indemnização e o valor devido pelo locatário.”
(...)
PP) A informação que serve de base ao despacho de indeferimento de reclamação graciosa baseia-se no entendimento vertido no Ofício-Circulado n.º 30108, de 2009.01.30 da Área de Gestão Tributária do IVA, assim como na Informação n.º ..., Direcção de Serviços de IVA, datada de 08.09.2008, (Cfr. cópia do Ofício-Circulado, junto como doc. n.º 22 com o PPA o qual se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais);
QQ) A Requerente foi alvo da instauração de processos executivos, tendo procedido, no dia 29.10.2010, ao pagamento das quantias liquidadas pela AT – (Cfr. cópia dos comprovativos dos mencionados pagamentos juntos com o PPA como docs. n.ºs 9 e 10);
RR) No dia 23.12.2019 a Requerente apresentou pedido de constituição do presente Tribunal arbitral – (Cfr. requerimento electrónico submetido no CAAD).
III- DO DIREITO
A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que realiza operações de financiamento e concessão de crédito, que se encontram isentas de IVA e não permitem o direito à dedução de imposto, e operações de locação financeira, que estão sujeitas e não isentas de IVA e conferem direito à dedução, sendo assim caracterizada para esse efeito como um sujeito passivo misto.
No caso das operações de locação financeira a contraprestação concretiza-se nas rendas que o locatário se obriga a pagar pela cedência dos bens locados e que integram uma parte correspondente a juros e outra a amortização financeira ou do capital.
A questão que vem colocada é a de saber se, na aplicação do método pro rata de dedução de imposto suportado nos bens e serviços de utilização mista, devem ser considerados no numerador e no denominador da fracção de cálculo o valor total da renda e não apenas a parte correspondente aos juros que constitui o proveito ou rendimento do locador.
A questão foi analisada pelo TJUE em reenvio prejudicial suscitado, em caso similar, pelo Supremo Tribunal Administrativo em que se concluiu que o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva (a que corresponde o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado Membro obrigue um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos (acórdão de 10 de julho de 2014, Processo n.º C-183/13).
A Requerente sustenta, todavia, que a exclusão da componente da amortização do capital no cálculo do pro rata não encontra suporte na letra e no espírito do artigo 23.º, n.º 1, alínea b), e n.º 4 do Código do IVA, nem nas disposições dos artigos 173.º a 175.º da Directiva IVA, o que equivale a dizer que as referidas normas de direito europeu não foram objecto de transposição para o direito interno português, e, especificamente, não foram transpostas através do artigo 23.º do CIVA, pelo que cabe aferir se a Autoridade Tributária dispõe da possibilidade, no âmbito da aplicação do método do pro rata a um sujeito passivo que exerce actividades de locação financeira, de considerar apenas os juros para efeitos do cálculo de dedução.
É esta a questão que cabe dilucidar.
O direito à dedução do imposto, disciplinado nos artigos 167.º a 192.º da Directiva IVA e, no direito interno, nos artigos 19.º a 25.º do Código do IVA, consiste essencialmente no direito de um sujeito passivo deduzir ao imposto incidente sobre uma certa operação tributável o imposto em que tenha incorrido na aquisição de bens ou serviços que se destinem à realização dessa operação.
Segundo a regra geral constante do artigo 168.º da Directiva, o IVA incorrido nas aquisições feitas por um sujeito passivo é dedutível na integralidade sempre que os bens ou serviços sejam utilizados “para os fins das suas operações tributadas”. Esse corresponde a um método de dedução de imputação directa, havendo de estabelecer-se para esse efeito um nexo directo entre uma dada operação activa e uma dada operação passiva.
Não sendo possível estabelecer esse nexo directo, como sucede quando as despesas com aquisições de bens ou serviços respeitam simultaneamente a operações tributadas e operações isentas de imposto – caso em que estaremos perante custos mistos ou custos promíscuos – o direito à dedução encontra-se limitado nos termos do artigo 173.º da Directiva.
Esse preceito consagra em primeira linha o método pro rata, pelo qual relativamente a bens e serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações e, por conseguinte, apenas em relação a operações que originam o direito à dedução.
Entende-se neste contexto que o método pro rata assenta na presunção de que os custos mistos são utilizados nas operações que conferem direito à dedução na razão directa do valor que essas operações representam face ao volume total de negócios da empresa. É essa a regra de cálculo que se encontra vertida no artigo 174.º da Directiva: “o pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes – (a) no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.o e 169.o; (b) no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.
A presunção baseada na percentagem do valor das operações com direito a dedução em relação ao volume total de negócios é, todavia, afastada pelo critério da afectação real consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva, que permite que os estados membros autorizem ou imponham que a dedução do IVA seja efectuada com base, não no volume de negócios, mas na efectiva utilização dos bens ou serviços.
A norma dispõe nestes termos:
2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:
(…)
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;
(…).
Haverá assim de concluir-se que a Directiva IVA contempla três distintos métodos de cálculo da dedução. O método regra de imputação directa, que é aplicável aos custos directos, ou seja, aos custos associados a operações que conferem direito à dedução, e, relativamente aos custos mistos, que estão indistintamente associados a operações que conferem ou não conferem o direito de dedução, o método pro rata e, a título de excepção, o método de afectação real.
Não pode deixar de reconhecer-se, por outro lado, que a Directiva, através do referido artigo 173.º, n.º 2, alínea c), confere aos estados alguma margem de liberdade de conformação quanto à definição do critério de afectação real.
No direito interno, relativamente ao método de dedução aplicável a bens de utilização mista, releva o artigo 23.° do Código do IVA, que, na parte que mais interessa considerar, é do seguinte teor:
«1. Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que deem lugar a dedução.
2. Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direção Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação.
3. A administração fiscal pode obrigar o contribuinte a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.° 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4. A percentagem de dedução específica referida no n.° 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.° e n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do âmbito do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento.
[...].
Parece não haver dúvidas que o artigo 23.º, n.º 1, alínea b), consagra o método pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afectação real em função da efectiva utilização dos bens. Para esta última hipótese, esse n.º 2 prevê igualmente que a Administração possa impor condições especiais ao método de afectação real – quando o sujeito passivo tenha optado por esse método de dedução – e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. E nos termos da alínea b) do n.º 3, a Administração pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afectação real quando a aplicação do método pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.
Por outro lado, o coeficiente específico de dedução que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros foi somente introduzido pelo Ofício Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a Administração Fiscal, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afectação real.
Segundo os pontos 8 e 9 do Ofício Circulado, a afectação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades; (b) se não for possível aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.
Como é salientado pela Requerente, a jurisprudência do CAAD, inaugurada pelo o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 309/2017, e seguida por diversas outras decisões arbitrais, aponta no sentido da ilegalidade dos actos tributários que aplicam o critério específico de dedução adoptado pelo ofício-circulado n.º 30103, por violação do disposto no artigo 23.º, n.º 2 e 3, alínea b), do Código do IVA, com base essencialmente nos seguintes considerandos.
Embora a norma de direito europeu admita que, na aplicação do método de afectação real, seja apenas considerada uma parte dos bens de uso misto utilizados, e não a sua totalidade, o certo é que na transposição efectuada pelo legislador nacional apenas se prevê a “afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”.
Ora, é claro que que não é com base no valor parcial da renda (correspondente aos juros) que é possível determinar, com objectividade, as despesas comuns que estão afectas à actividade de locação financeira que conferem o direito à dedução.
Sendo assim, haverá de concluir-se que o poder concedido à Administração Fiscal pelo artigo 23.º, n.º 3, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução. Tanto mais que, como determina o artigo 16.º, n.º 1, alínea h), o valor tributável nas operações resultantes de um contrato de locação financeira é o valor da renda recebida ou a receber do locatário, e na fórmula legalmente prevista para calcular a percentagem de dedução deve intervir o valor de negócios total (artigo 23.º, n.º 4).
Admite-se, assim, que o Código do IVA efectuou a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva para o direito interno mas não permite sustentar a aplicação de um coeficiente de imputação específico que tenha por base a dedução do montante anual correspondente aos juros associados à actividade de locação financeira.
No entanto, este entendimento não tem sido seguido pelo Supremo Tribunal Administrativo.
No acórdão de 4 de Março de 2015, no âmbito do Processo n.º 1017/12, em que foi formulado o pedido de reenvio prejudicial que originou a pronúncia pelo TJUE no caso Banco Mais, o STA conclui do seguinte modo: “o Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-183/13 esclareceu que, se houver elementos que permitam concluir que as operações que conferem direito à dedução de imposto representam uma parte mais que proporcional dos custos comuns originados pelos bens e serviços de utilização mista – como aconteceria se a utilização desses bens e serviços de utilização mista fosse sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos de locação financeira (actividade que não confere direito à dedução do Imposto sobre o valor acrescentado) a significar que «esses custos comuns» se reportavam essencialmente às operações bancárias isentas, - é possível calcular o pro rata da forma excluindo do numerador e do denominador a parte das rendas que corresponde à amortização financeira.
Essa orientação foi depois seguida nos Acórdãos da Secção de 4 de Março de 2015 (Processo n.º 081/13), 3 de Junho de 2015 (Processo n.º 0970/13), 17 de Junho de 2015 (Processo n.º 01874/13), 27 de Janeiro de 2016 (Processo n.º 0331/14) e 15 de Novembro de 2017 (Processo n.º 0485/17) e confirmada no recente acórdão para uniformização de jurisprudência de 4 de Março de 2020 (Processo n.º 7/19), fundado na contradição existente, quanto à mesma questão fundamental de direito, entre decisão arbitral (decisão recorrida) e o citado acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017 (acórdão fundamento).
Para assim concluir, o acórdão de uniformização de jurisprudência, na parte que mais interessa considerar, refere o seguinte.
Como já se esclareceu no acórdão proferido por este STA a 3 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 0970/13, ao interpretar as normas supra referidas o TJUE tomou em consideração que “na interpretação de uma disposição de direito da União, importa ter em conta não apenas os respectivos termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (acórdão SGAE, C-306/05, EU:C:2006:764, n. 34). E que no caso em apreço, o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado-Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados-Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24)”.
Neste contexto, não só se verifica que o artigo 19.º n.º 1 da Sexta Directiva (intitulado “Cálculo do pro rata de dedução”) remete unicamente para o pro rata previsto no artigo 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, desta Directiva, como se verifica que, “embora o segundo parágrafo do artigo 17.º, n.º 5, da Sexta Directiva preveja que essa regra de cálculo se aplica a todos os bens e serviços de utilização mista adquiridos por um sujeito passivo, o terceiro parágrafo desse artigo 17.º, n.º 5, que também inclui a disposição que figura na alínea c), começa com a conjunção adversativa «todavia», que implica a existência de derrogações à referida regra (acórdão Royal Bank of Scotland, EU:C:2008:750, n.º 23). - parágrafos 25 e 26.
Ora, nesta perspectiva a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços»”.
Como tal, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação, o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.
Importa, por outro lado, ter presente que o método específico de imputação do pro rata, implicando que apenas possa ser deduzida, no âmbito dos contratos de locação financeira, a parte das rendas pagas pelos clientes que corresponde aos juros, na linha o acórdão Banco Mais, apenas opera quando a utilização dos bens e serviços comuns seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. E nesse sentido o STA em diversos casos, como sucedeu no acórdão de uniformização de jurisprudência, tem vindo a devolver o processo aos tribunais de instância para efeito de ampliação da matéria de facto em vista a apurar se a utilização de bens e serviços mistos “é sobretudo determinada” pelas operações de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira, ou, o invés, pela disponibilização dos veículos.
A questão, todavia, não se coloca no presente processo.
De facto, a Requerente enuncia como questão essencial a decidir a de saber se através do artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, do Código do IVA ocorreu a transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva. E não alegou quaisquer factos que permitam ao tribunal apurar, em sede de matéria de facto, se os custos gerais são preponderantemente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou pela alienação dos bens locados.
Ora, a questão de direito que vem colocada obteve já resposta do acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, em termos a que o tribunal arbitral não pode deixar de aderir, ao consignar que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA efectuou a transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva.
Assim sendo, na linha da jurisprudência do STA, há que reconhecer que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA procedeu à transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, pelo que os actos de liquidação impugnados não enfermam da ilegalidade que lhes é imputada.
Ilegalidade dos actos tributários impugnados por respeitarem a um período de tributação anterior ao ofício-circulado n.º 30108
Em alegações, a Requerente invoca inovatoriamente a ilegalidade dos actos tributários impugnados por respeitarem a um período de tributação anterior ao ofício-circulado n.º 30108, considerando assim verificar-se a violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal.
A este propósito, cabe referir que o presente pedido arbitral foi deduzido ao abrigo do regime de migração de processos previsto no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, pelo qual os sujeitos passivos poderiam, até 31 de dezembro de 2019, submeter aos tribunais arbitrais tributários, dentro das respetivas competências, as pretensões que tenham formulado em processos de impugnação judicial que se encontrem pendentes de decisão em primeira instância nos tribunais tributários, e que nestes tenham dado entrada até 31 de dezembro de 2016 (n.º 1).
Resulta ainda do n.º 2 desse artigo que “as pretensões a submeter aos tribunais arbitrais devem coincidir com o pedido e a causa de pedir do processo a extinguir, apenas se admitindo a redução do pedido”.
Ora, a impugnação judicial deduzida no Tribunal Tributário de Lisboa contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e os actos de liquidação adicional de IVA – que constitui o documento n.º 1 junto ao pedido arbitral - não contém qualquer referência à falada violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal, pelo que a invocação desse novo fundamento representa uma ampliação da causa de pedir que não é admitida nos processos de impugnação judicial cometidos aos tribunais arbitrais.
Não é possível conhecer, por conseguinte, do novo vício de ilegalidade aduzido nas alegações.
Questão de inconstitucionalidade
Em alegações, a Requerente suscita ainda a inconstitucionalidade das normas dos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA, na interpretação segundo a qual permitem à Autoridade Tributária, à margem do processo legislativo, restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes, por violação do princípio da separação dos poderes, da reserva de lei da Assembleia da República, do princípio da tipicidade e dos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
Ainda que, à luz do que dispõe o artigo 72.º, n.º 2, da LTC, nada obste que a Requerente suscite questão de constitucionalidade nas alegações, o ponto é que o tribunal, para decidir a questão de direito que vinha colocada no pedido arbitral, não adoptou a interpretação normativa que se reputa como sendo inconstitucional.
Com efeito, no pedido arbitral a Requerente coloca como única questão de direito a dirimir a não transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva. A esse respeito, alega que não é verdade que a disposição constante do n.º 2 do art.º 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) reproduza em substância, a regra da determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, acrescentando que o legislador nacional não usou da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir.
Certo é que a Requerente igualmente refere que a Autoridade Tributária não se encontraria habilitada a aplicar ou a impor a aplicação de um coeficiente de dedução diverso do método pro rata. Mas uma tal consideração, em todo o contexto em que se desenvolve a peça processual, é feita na perspectiva de que não chegou a ocorrer a transposição para o direito interno da referida disposição da Directiva.
Ora, o tribunal, abordando a questão que constituía o objecto do pedido, limita-se a reconhecer, adoptando a orientação do acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA procedeu à transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, assim afastando a ilegalidade que era imputada aos actos de liquidação impugnados. E não formulou a interpretação normativa a que a Requerente imputa, nas suas alegações, os vícios de constitucionalidade.
Não tendo o tribunal adoptado uma tal interpretação normativa, é claro que não tem de conhecer da suposta violação de princípios constitucionais.
Juros indemnizatórios
Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral e não conhecer da violação do princípio da não retroactividade da lei fiscal e da questão de constitucionalidade normativa invocados em alegações.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 824.257,25, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 11.628,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 12 de Outubro de 2020,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
A Árbitro vogal
Filipa Barros
A Árbitro vogal
Clotilde Celorico Palma (vencida nos termos da declaração de voto em anexo)
Voto de Vencida
1. Matéria de direito em apreciação
Está em causa aferir se a norma constante do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.
Salvo o devido respeito não poderemos concordar com as conclusões da presente decisão, pese o facto de o STA ter proferido jurisprudência uniformizadora neste contexto no seu Acórdão para uniformização de jurisprudência de 4 de Março de 2020 (Processo n.º 7/19), fundado na contradição existente, quanto à mesma questão fundamental de direito, entre decisão arbitral (decisão recorrida) e o Acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017 (Processo n.º 0485/17 - acórdão fundamento).
2. A jurisprudência uniformizadora
Como é sabido, no nosso ordenamento jurídico a jurisprudência não é fonte imediata de direito, contudo, importa reconhecer a sua enorme relevância na medida em que o trabalho desenvolvido na aplicação do direito, e materializado na jurisprudência, consubstancia uma fonte de conhecimento do direito.
A jurisprudência uniformizada é admissível no âmbito do Contencioso Tributário (artigos 148.º e 152.º do CPTA e artigos 284.º e 289.º do CPPT), em ordem a evitar ou a resolver decisões contraditórias sobre a mesma questão jurídica.
Destarte, importa assinalar que os acórdãos de uniformização de jurisprudência, embora não tenham a força obrigatória geral que era atribuída aos assentos pelo revogado artigo 2.º do Código Civil, têm um valor reforçado que deriva não apenas do facto de emanarem do Pleno das Secções do Supremo Tribunal, como ainda de o seu não acatamento pelos tribunais hierarquicamente inferiores constituir motivo para a admissibilidade especial de recurso, nos termos do artigo 629º, n.º 2, alínea c), do CPC. Há, portanto, que reconhecer à jurisprudência uniformizada um valor persuasivo ou um valor legal específico, embora não possa ser considerada uma fonte de direito.
A jurisprudência constante ou uniforme incrementa confiança no sistema jurídico, na medida em que em que o sentido das decisões dos tribunais se torna previsível e expectável, podendo os tribunais limitar-se a reproduzir ou a seguir as decisões proferidas por outros tribunais na apreciação de casos semelhantes. Embora, naturalmente, não possamos deixar de reconhecer, num plano doutrinário, que existam alguns mecanismos vantajosos destinados a salvaguardar a expectativa das partes no proferimento de uma decisão baseada na jurisprudência uniforme ou uniformizada, há que sublinhar que os tribunais, na apreciação de qualquer caso concreto, são livres de alterar a jurisprudência firmada ou seguida até então.
Com efeito, não obstante a jurisprudência uniformizada vise evitar que se verifiquem decisões contraditórias, com prejuízo para a interpretação e aplicação uniforme do direito e dos princípios da confiança e da igualdade, razão pela qual o sistema admite que existam mecanismos que permitam uniformizar a jurisprudência, num Estado de direito tais mecanismos não podem ter um valor absoluto.
De facto, nos sistemas de Direito de inspiração romano-germânico o princípio que vigora neste domínio é o de que as decisões dos tribunais não constituem precedente vinculativo na apreciação de casos idênticos. Esta não vinculatividade permite que o juiz de uma acção possa decidir diferentemente do que foi decidido antes numa outra causa ou do que foi decidido, quanto a casos semelhantes, por outros juízes.
Importa neste contexto salientar que os interessados que recorrem a juízo não podem contar com a aplicação da lei nos termos definidos pela jurisprudência uniformizada, uma vez que, se o tribunal a tal se tivesse obrigado, ao arrepio da Constituição, estar-se-ia perante um limite à liberdade de decisão do tribunal, que, nos termos do estatuído no artigo 203.º da Constituição, apenas está sujeito à lei.
Isto é, a jurisprudência uniformizada não se configura como regra obrigatória, mas apenas, atendendo ao seu escopo, como um caminho tendencialmente predominante de acordo com o qual os tribunais entendem dever-se aplicar a lei, suprindo, inclusive, eventuais lacunas desta última, ou seja, a jurisprudência não cria o direito, interpreta-o.
Doutrinariamente, entende-se que os tribunais só devem divergir da jurisprudência uniformizada quando haja razões para crer que se encontra ultrapassada em função da evolução doutrinária ou jurisprudencial provocada pelas dinâmicas sociais, económicas e sociológicas, ou caso existam fortes fundamentos para crer que não representa, ou já não consubstancia, a melhor hermenêutica jurídica e não traduz a melhor e mais adequada aplicação do direito.
No tocante ao caso sub judice, a nossa discordância com jurisprudência uniformizada assenta na convicção de que não consubstancia a melhor solução legal, sendo que, em nosso entendimento, atentos os elementos gerais de interpretação da lei, a melhor solução jurídica, salvo o devido respeito, não é a advogada na presente decisão.
Vejamos.
3. Regras em causa
a) Do direito à dedução
O direito à dedução é um elemento essencial do funcionamento do imposto, devendo garantir a sua principal característica – a neutralidade.
Consubstancia-se como o elemento essencial do funcionamento do imposto, a “trave-mestra do sistema do imposto sobre o valor acrescentado”, assentando no método da dedução do imposto, método do crédito de imposto, método subtractivo indirecto ou ainda método das facturas. Como determina o 2.º parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º, da Directiva IVA (DIVA), “Em cada operação, o IVA, calculado sobre o preço bem o serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido directamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.”
O mecanismo do exercício do direito à dedução permite ao sujeito passivo expurgar do seu encargo o IVA suportado a montante, não o reflectindo assim como custo operacional da sua actividade, retirando, desta forma, o efeito cumulativo ou de cascata, propiciando, tal como referimos, a neutralidade económica do imposto.
As situações expressas de exclusão do direito à dedução são excepcionais e reportam-se a casos específicos enunciados pelo legislador nacional em termos taxativos, de acordo com o estatuído na DIVA, em função do tipo de despesas em causa.
Decorre dos artigos 168.º e 169.º da Directiva IVA que o sujeito passivo apenas pode deduzir o imposto suportado na medida em que os bens e serviços sejam utilizados para efeitos das próprias operações tributadas, ou isentas que concedam tal direito. Por sua vez, o imposto suportado em inputs destinados à realização de operações não sujeitas não é susceptível de vir a ser deduzido, salvaguardando-se, contudo, as operações localizadas no estrangeiro (não sujeitas no território nacional), mas que seriam tributáveis concedendo direito a dedução se localizadas no território nacional.
De acordo com o disposto no artigo 168.º da Directiva IVA, transposto, em parte, pelo artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do CIVA, o sujeito passivo pode deduzir no Estado-membro em que se encontra estabelecido o IVA suportado nas transmissões de bens e prestações de serviços, assim como nas operações assimiladas nas aquisições intracomunitárias de bens e nas importações ali localizadas, “Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas (…) ”.
Conforme o estatuído no artigo 179.º da Directiva IVA, “[o] sujeito passivo efectua a dedução subtraindo do montante total do imposto devido relativamente ao período de tributação o montante do IVA em relação ao qual, durante o mesmo período, surgiu e é exercido o direito à dedução por força do disposto no artigo 178.º
(…).”
Em conformidade com a jurisprudência do TJUE, o direito à dedução não pode ser limitado e pode ser exercido imediatamente em relação à totalidade dos impostos que incidiram sobre as operações efectuadas a montante.
Assim, só são permitidas derrogações à regra fundamental do direito à dedução integral do IVA nos casos expressamente previstos pela Directiva, conforme o TJUE salientou, nomeadamente, nos Casos Ampafrance e Sanofi e na jurisprudência aí citada.
Ora, a este propósito, a Directiva IVA prevê duas excepções. A primeira visa a legislação existente: a cláusula de standstill do artigo 176.º da Directiva IVA. A segunda excepção, prevista no artigo 177.º da Directiva IVA, visa a nova legislação.
Importará ainda mencionar a cláusula geral constante do artigo 395.º, n.º 1, da Directiva, que permite introduzir medidas especiais derrogatórias para simplificar a cobrança do imposto ou para evitar certas fraudes ou evasões fiscais.
Em conformidade com o previsto na Directiva IVA, o Código do IVA determina, como regra geral, a dedutibilidade do imposto devido ou pago pelo sujeito passivo nas aquisições de bens e serviços feitas a outros sujeitos passivos. Igualmente de acordo com o estatuído na Directiva IVA, o legislador nacional vem determinar algumas situações excepcionais de exclusão do direito à dedução em função do tipo de despesas em causa.
As regras do exercício do direito à dedução do imposto contemplam requisitos objectivos, mais ligados ao tipo de despesas, subjectivos, relativos ao sujeito passivo, e temporais, atinentes ao período em que é possível exercer o direito à dedução do IVA, os quais se devem verificar em simultâneo para se exercer o direito à dedução .
De acordo com o disposto nos artigos 173.º e 174.º da Directiva IVA, para efeitos do exercício do direito à dedução do IVA suportado os sujeitos passivos mistos, como é caso, isto é,, aqueles que em simultâneo praticam operações que conferem direito à dedução de IVA e operações que não conferem tal direito e utilizam bens e serviços em ambas as operações, podem optar pela aplicação do designado método do pro rata ou pelo método da afectação real.
Assim, o n.º 1 do artigo 173.º Directiva IVA vem determinar que:
“No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efetuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações (…)”
O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo”. Por sua vez, estatui o n.º 1 do citado artigo 174.º (a que correspondia o artigo 19.°, n.º 1, da Sexta Directiva) que “O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes: - no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações que conferem direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º; - no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não conferem esse direito à dedução.”
Por um lado, a Directiva permite aferir sobre aquela proporção em função do método de percentagem de dedução ou pro rata, tendo por referência o peso do volume de negócios referente às operações que conferem direito a dedução em relação à globalidade das operações.
Por outro lado, de acordo com o n.º 2 daquele preceito, determina-se que os Estados membros podem autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se possuir contabilidades distintas para cada um desses sectores, obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores, autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas, e estabelecer que não se tome em consideração o imposto sobre o valor acrescentado que não pode ser deduzido pelo su- jeito passivo, quando o montante respectivo for insignificante.
O pro rata de dedução conforme refere a epígrafe do capítulo 2 da Directiva IVA poderá, em síntese, ser aferida em função do método da percentagem de dedução, o denominado pro rata (que poderá ser geral ou sectorizado), determinado em função do volume de negócios e o regime alternativo, denominado entre nós por afectação real, que terá por base a utilização efectiva dos inputs.
Concluindo pela primazia na aplicação do método da afectação real, Xavier de Basto e Odete Oliveira referem que “(…) a leitura correta destas normas obriga a considerar esses procedimentos previstos na diretiva por ordem crescente de “finura” em termos de resultado a obter, constituindo a regra do pro rata, portanto, segundo esta leitura, a que conduz ao resultado menos rigoroso – e por isso ela é a regra aplicável sempre que não seja possível outro procedimento com resultado mais adequado.” Como adequadamente notam os autores, a Directiva IVA “(…) deixa aos Estados membros a possibilidade de aceitar ou mesmo impor os procedimentos mais rigorosos, reservando o pro rata como sistema residual e supletivo”.
O artigo 23.º do CIVA vem, nomeadamente. determinar o seguinte:
“1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:
a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;
b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.
2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.
3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.”
Se atentarmos ao parágrafo 6.º do ponto 98 relativo às conclusões do Relatório do Grupo de Trabalho que entre nós se debruçou sobre esta questão, é-nos referido que a condição de sujeito passivo misto em sede de IVA, abrangida pelo disposto no artigo 23.º do CIVA, não resulta propriamente do exercício simultâneo de operações que conferem o direito à dedução e de operações que não conferem esse direito, mas sim, da utilização “mista” dos seus inputs, isto é, pela afectação simultânea dos inputs em que foi suportado IVA aos dois tipos de operações .
Neste sentido, o TJUE, em reiterada jurisprudência, tem entendido que, antes do mais, para efeitos do exercício do direito à dedução, deverá atender-se ao tipo de operações praticadas pelo sujeito passivo em que os bens ou serviços são utilizados. Se tais bens e serviços são afectos exclusivamente à prática de operações que permitem a dedução do imposto, apresentando uma relação directa e imediata com essas operações e incorporando-se, em princípio, no custo das mesmas, o respectivo IVA pode ser deduzido integralmente. Diversamente, caso os bens ou serviços adquiridos sejam afectos exclusivamente à prossecução de operações que não possibilitam a dedução do IVA suportado, tendo uma relação directa e imediata com essas operações e incorporando-se, em princípio, no custo das mesmas, então o respectivo imposto não pode ser objecto de dedução.
Assim, tal como a Administração Fiscal esclarece, a aplicação do método do pro rata restringe-se à determinação do imposto dedutível relativo aos bens e/ou serviços de utilização mista, isto é, aos bens e serviços utilizados conjuntamente em actividades que conferem o direito à dedução e em actividades que não conferem esse direito.
Por outro lado, caso os bens ou serviços se encontrem exclusivamente afectos a operações sujeitas a imposto mas isentas sem direito à dedução ou a operações que, embora abrangidas pelo conceito de actividade económica, estejam fora das regras de incidência do imposto ou de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica, o IVA suportado não pode ser objecto de dedução.
Caso se constate não ser possível estabelecer um nexo objectivo entre a operação a montante e a operação a jusante “(…) por respeitar a bens e serviços que são ou serão usados tanto em operações do primeiro como do segundo tipo, esse qualificar-se-á como “residual” e será então objeto de “repartição”(apportionment)(…)”.
O método de percentagem de dedução (pro rata), poderá ser afastado por aplicação, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo 23.º, do método de afectação real, que consistirá na possibilidade de deduzir a totalidade do imposto suportado na aquisição de bens e serviços destinados a actividades que dêem lugar à dedução, mas impedindo, ao mesmo tempo, a dedução do imposto suportado em operações que não conferem esse direito.
Não se pode falar de um método de repartição mais apropriado para a dedução de inputs mistos, até porque tal deverá assentar numa análise casuística. No entanto, qualquer que seja o método de custos seguido, a aplicação prática da afectação real pressupõe a existência de uma relação entre as aquisições de bens e serviços efectuadas pelo sujeito passivo e as operações activas correspondentes.
No Caso Securenta o TJUE foi chamado pronunciar-se sobre o critério de repartição adequado quando os inputs são simultaneamente afectos a uma actividade económica e a uma actividade não económica, tendo salientado que “a Sexta Diretiva não contêm qualquer disposição relativa aos métodos ou aos critérios que os Estados Membros devem utilizar na separação dos montantes de imposto a montante relativos à actividade económica dos relativos à actividade não económica.” No entanto, alerta que os Estados membros no exercício desse poder devem assegurar os objectivos prosseguidos pela Directiva, não podendo contrariar o princípio da neutralidade fiscal.
A Autoridade Tributária entendeu sempre a aplicação prioritária do pro rata em detrimento da afectação real, contudo, esta posição foi invertida na sequência da alteração introduzida no artigo 23.º do CIVA. Efectivamente, pro rata e afectação real são agora percepcionados pela Administração Fiscal, no âmbito do exercício de uma actividade económica, num plano de igualdade, de utilização facultativa, ambos norteados pelo magnum princípio da neutralidade económica do imposto e da tradução da objectiva afectação de cada input.
b) O método de percentagem de dedução (pro rata) e as operações de locação financeira
Como vimos, no contexto da separação ex post, em conformidade com o método da percentagem de dedução ou pro rata, previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo 23.º do CIVA, toma-se como referência, no seu numerador, o montante anual das operações que conferem direito a dedução, ponderado em função da totalidade das operações que se insiram no conceito de actividade económica.
A consideração, no denominador da fracção, de operações que se insiram no âmbito do conceito de actividade económica, constitui uma evidente clarificação ocorrida por via da alteração legislativa incutida ao artigo 23.º do CIVA por parte da Lei do Orçamento do Estado para 2008, conduzindo, necessariamente, à alteração das orientações administrativas da AT e das posições entretanto assumidos pelos tribunais nacionais.
Na determinação da percentagem de dedução por esta via, deverá salvaguardar-se o facto de que apenas as operações inseridas no âmbito da actividade económica, conforme é delimitada pela Directiva IVA e pela jurisprudência divulgada pelo TJUE, é que poderão influenciar o direito à dedução, por esta via, dos sujeitos passivos mistos.
A aplicação do método do pro rata suscita algumas questões fundamentais, tais como as que nos por ora nos ocupam.
4. O caso concreto
No presente processo está precisamente em causa aferir se na determinação do pro rata a Requerente procedeu correctamente ao ter considerado, quer no numerador quer no denominador, as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados.
Vejamos.
De acordo com o entendimento da AT não deverá ser incluído no numerador e no denominador da fracção a componente de amortização de capital nas rendas dos contratos de locação financeira mobiliária (e, bem assim o valor de alienação/indemnização/abate de bens locados), mas apenas a componente de juros.
Assim, no Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de Janeiro de 2009, veio a AT estabelecer, designadamente, o seguinte: “Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD”.
No tocante à amortização financeira, tem defendido a AT que “a componente financeira correspondente à amortização do financiamento subjacente à aquisição do bem locado”, não sendo uma contrapartida de uma transmissão de bens ou prestação de serviços, “não tem a natureza de proveito e não pode, por isso, integrar o volume de negócios” (cfr. Relatório de Inspecção relativo ao ano de 2008, junto como documento n.º 9).
No mesmo sentido, no respeitante à alienação/indemnização de bens abatidos por destruição, a AT defende que “o valor da indemnização não constitui proveito do locador” nem “integra[m] o volume de negócios” (Cfr. Relatório de Inspecção relativo ao ano de 2008, junto como documento n.º 9).
Isto é, de acordo com o entendimento veiculado pela AT, nenhuma das situações supra referidas se consubstancia como um verdadeiro proveito, não podendo, por isso, integrar o volume de negócios e, consequentemente, fazer parte do cálculo do pro rata.
Neste contexto, a AT invoca, para efeitos de determinação do conceito de volume de negócios a que alude o n.º 1 do artigo 174.º da Directiva IVA, o conceito de volume de negócios definido pelo Regulamento (CE) n.º 139/2004 do Conselho, de 20 de Janeiro – relativo ao controlo das concentrações de empresas –,aplicável às instituições financeiras, segundo tem alegado a AT, por força da Comunicação constante do Jornal Oficial das Comunidades n.º C 66 de 02.03.1998.
Nestes termos, a AT conclui que o capital (correspondente à amortização financeira da operação) não constitui a remuneração de um qualquer serviço prestado, i.e., não consubstancia um proveito que possa influenciar o resultado do exercício e, assim sendo, não é passível de integrar o volume de negócios para efeitos de determinação da percentagem de dedução (i.e., para apuramento do pro rata).
Neste contexto, na Informação n.º 1763, da Direcção de Serviços de IVA, de 8 de Setembro de 2008 e no citado Ofício Circulado n.º 30108, conclui-se que apenas os juros e outros encargos é que constituem remuneração pelo serviço prestado, pelo que apenas estes podem ser considerados para efeitos do cálculo do pro rata, pelo que, do numerador, deverão ser excluídos os montantes correspondentes ao capital das rendas dos contratos de locação financeira e ao capital da alienação/indemnização de bens abatidos por destruição.
Ora, como bem salientam os Professores Doutores José Guilherme Xavier de Basto e António Martins , deve ser sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, que se deve liquidar IVA, pois o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira é, segundo a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do CIVA, “o valor da renda recebida ou a receber do locatário”; sendo igualmente claro que o numerador da fracção que exprime a percentagem a dedução é constituído pelo “montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar à dedução”, ou seja pelo valor das operações que foram tributadas, e que o respectivo denominador é o “montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo…”, o que obviamente inclui as primeiras.
Com efeito, o entendimento da AT de tributar toda a renda, como determina o disposto na alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º, do CIVA, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fracção a parte da renda correspondente à amortização não tem apoio directo nos textos legais. Não se encontra prevista na legislação nacional a possibilidade de a AT poder alterar / modelar a componente do pro rata, não tendo o legislador nacional feito uso da faculdade que o TJUE entende estar à disposição dos Estados membros de limitar os valores a inserir no numerador e no denominador da aludida fracção. As distorções de tributação que o legislador nacional previu que poderiam existir na modulação do direito à dedução são, no nosso ordenamento jurídico, resolvidas através da imposição ao sujeito passivo do método da afectação real (n.º 3, alínea b) do artigo 23.º do CIVA), ou, quando resultam do facto de o sujeito passivo ter optado por este método, da imposição de o abandonar (parte final do n.º 2 do mesmo artigo). É certo que a lei consente que, no caso de opção pelo método da afectação real, a Administração possa impor ao sujeito passivo “condições especiais”, que a lei não define, mas tais condições não podem consistir em alterações ao pro rata de dedução nos termos ora pretendidos pela AT.
De facto, as regras acolhidas na Directiva do IVA, não obstante a margem concedida aos Estados membros no âmbito do exercício do direito à dedução de bens e serviços de utilização mista, não atribuem à AT poderes para alterar o modo de cálculo da percentagem de dedução do IVA autorizada para os bens de utilização mista, ou seja, relativamente aos custos comuns que não puderam ser atribuídos por critérios objectivos aos dois grupos de operações, tributadas e isentas, do sujeito passivo.
Na realidade, a acolher-se o entendimento da AT, existiria manifestamente uma contradição entre o algoritmo de cálculo da percentagem de dedução e o princípio base que orienta esse cálculo, que é, como temos estado a analisar, o da dedução parcial em proporção do montante das operações que conferem direito à dedução.
Adite-se ainda que a jurisprudência do TJUE no denominado Caso Banco Mais, não poderá colher no sentido invocado pela AT.
Com efeito, neste Caso o TJUE considerou que a Sexta Directiva do IVA não se opõe a que os Estados membros apliquem, numa determinada operação, um método ou um critério diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução mais precisa do que a resultante daqueloutro método. 131.º Ora, analisado o Acórdão do TJUE proferido no Caso Banco Mais, conclui-se que parte de uma premissa que não está correcta, dado assumir uma interpretação, sem na realidade verificar se a lei portuguesa (o disposto no artigo 23.º do Código do IVA) prevê ou não mecanismos que permitam à AT impor outros métodos de dedução de IVA para bens e serviços de utilização mista.
De facto, não se nos afigura que o normativo constante do n.º 2 do artigo 23.º do Código do IVA (conjugado com o n.º 3) represente uma transposição para o direito interno da regra da determinação do direito à dedução acolhida no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, que se configura como uma disposição derrogatória da regra prevista nos artigos 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, e 19.º, n.º 1, de tal Directiva.
No mesmo sentido, já se pronunciou o Tribunal Arbitral nas suas decisões proferidas nos Processos Arbitrais números 309/2017-T, 311/2017-T 312/2017-T, 335/2018-T, 339/2018-T, 498/2018-T, e 581/2018-T14, a cujas conclusões aderimos.
Termos em que se conclui que o disposto no artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, não confere a possibilidade à AT de, no âmbito da aplicação do método do pro rata a um sujeito passivo que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira, apenas considerar os juros na fracção do pro rata de dedução, pelo que a imposição de utilização do “coeficiente de imputação específico” indicado no ponto 9. do Ofício Circulado n.º 30108 enferma de violação de lei, por ofensa do princípio da legalidade ao qual a AT se encontra subordinada em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT), devidamente explicitado no artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, devendo assim proceder o pedido de pronúncia arbitral.
A Árbitro
Clotilde Celorico Palma