SUMÁRIO: I - O imposto devido e suportado pelo Fundo de Investimento Imobiliário não deve acrescer à matéria coletável de IRC dos detentores de Unidades de Participação, na proporção do respetivo rendimento, por não se verificarem os pressupostos previstos no art. 68º, n. º2 do CIRC. II - Os titulares das unidades de participação são, nos termos do n.º 3 do artigo 22.º do EBF, tributados pelos rendimentos efetivamente auferidos, podendo ainda deduzir o imposto retido na esfera do Fundo de Investimento.
Decisão Arbitral
Os árbitros Dr. José Poças Falcão (Árbitro Presidente), Dr. Amândio Silva (Árbitro Vogal) e Dr. André Festas da Silva (Árbitro Vogal), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 05 de fevereiro de 2020, decidem o seguinte.
I. RELATÓRIO
I.1
1. Em 12 de novembro de 2019 a contribuinte A..., CRL pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º .../..., ...-... Lisboa, requereu, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e no artigo 10.º, ambos do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, a constituição de Tribunal Arbitral com designação de árbitros (Tribunal Coletivo) pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos do disposto na al. a), n.º 2 do artigo 6.º do referido diploma.
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Presidente do CAAD em 13 de novembro de 2019 e foi notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (de ora em diante designada por AT ou “Requerida”) no dia 20 de novembro de 2019.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, alínea b) e artigo 6.º, n. º2, al. a) do RJAT, os signatários foram designados pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD para integrar o presente Tribunal Arbitral Coletivo, tendo aceitado nos termos legalmente previstos.
4. Por despacho de 20 de fevereiro de 2020 a AT foi notificada para, querendo, apresentar a sua resposta.
5. A AT apresentou a sua resposta em 17 de junho de 2019.
6. Por despacho de 26.06.2020, foi dispensada a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como, a inquirição das testemunhas, foi decidido que o processo prosseguisse com alegações escritas e indicada a data de 21.09.2020 para a prolação do Acórdão.
7. Em 17 de julho de 2020 a Requerente apresentou as suas alegações de direito.
8. A Requerida apresentou as suas alegações de direito em 8 de setembro de 2020.
9. Pretende a Requerente que o Tribunal Arbitral declare a ilegalidade e, em consequência, anule as decisões de indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa das autoliquidações de IRC de 2014 e 2015 e declare a ilegalidade parcial dos mesmos atos de autoliquidação de IRC, referentes aos exercícios de 2014 e 2015, no que respeita aos montantes em excesso, respetivamente, de €1.413.945,00 e €1955.866,73 das bases tributáveis, com a consequente anulação do imposto reflexo no montante de €445.392,68 (2014) e €537.863,34 (2015), num total de €983.256,02, bem como, condene a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios nos termos do artigo 43º da LGT.
I.A. A Requerente sustenta o seu pedido, em síntese, nos seguintes termos:
1. Os atos objeto do pedido de pronúncia do Tribunal Arbitral são os indeferimentos dos pedidos de revisão oficiosa e, consequentemente (e em termos finais ou últimos), os atos de autoliquidação de IRC relativos aos exercícios de 2014 e 2015, na medida correspondente ao acréscimo ao lucro tributável de imposto suportado por entidade terceira, mais concretamente por um fundo de investimento.
2. É pretensão da AT que será́ aplicável à requerente, com respeito ao imposto suportado pelo Fundo, o artigo 68.º, n.º 2, do CIRC.
3. Entende a AT que deverá ser acrescida à matéria coletável da requerente o imposto devido e suportado pelo Fundo (de Investimento Imobiliário), nos montantes de € 1.413.945,00 em 2014 e de € 1.955.866,73 em 2015.
4. Na realidade, o imposto aqui em causa que a AT pretende ser de acrescer à matéria coletável da requerente, alegadamente ao abrigo deste n.º 2 do artigo 68.º do CIRC, não se subsume na supracitada previsão normativa.
5. Em primeiro lugar, o imposto (realidade) aqui em causa não se reconduz “a retenção na fonte de IRC relativamente a rendimentos englobados para efeitos de tributação”.
6. Pela razão primeira, e evidente, de que o imposto aqui em causa não diz respeito aos rendimentos englobados da requerente, não diz respeito, designadamente, aos rendimentos das UP (unidades de participação) da requerente no Fundo.
7. O imposto aqui em causa diz antes respeito à tributação sofrida pelo Fundo, sobre os rendimentos da variedade de ativos detidos pelo Fundo, património autónomo.
8. Está expressamente previsto na lei que rege a tributação dos fundos e seus participantes que os rendimentos das UP em fundos detidas por sujeitos passivos de IRC residentes como a requerente, não são passiveis de (sujeitos a) retenção na fonte (n.º 3 do artigo 22.º do EBF).
9. O imposto aqui em causa diz respeito à tributação dos (variados) rendimentos do Fundo, e não aos rendimentos da requerente advenientes de UPs no Fundo.
10. O imposto suportado pelo Fundo, imposto este que na proporção das UP detidas pela requerente correspondeu a € 1.413.945,00 em 2014 e € 1.955.866,73 em 2015 que a lei manda creditar ao IRC da requerente, não constitui “retenção na fonte de IRC relativamente a rendimentos englobados para efeitos de tributação” pela requerente (cfr. o n.º 2 do artigo 68.º do CIRC), pelo que esta não tem que acrescer tais montantes à sua matéria coletável.
11. E não tem a requerente que os acrescer, não só́ por não se tratar de retenções na fonte de IRC relativas a rendimentos por si, requerente, englobados (antes se trata de imposto relativo a rendimentos da titularidade de terceiro, o património autónomo que é o Fundo, rendimentos esses junto desse terceiro tributados).
12. Mas também porque, adicionalmente, mesmo que por absurdo se pudesse sustentar, que o artigo 68.º do CIRC, em especial o seu n.º 2, abarcaria retenções na fonte de IRC suportadas por terceiros, temos que:
i) O imposto em causa suportado pelo Fundo (€ 1.413.945,00 em 2014 e € 1.955.866,73 em 2015, na parte proporcionalmente imputável às UP da requerente) não se pode dizer que seja necessariamente, ou sequer predominantemente, adveniente de retenções na fonte, muito menos de IRC, aplicadas ao Fundo sobre os rendimentos por si auferidos. Ora, o artigo 68.º, n.º 2, do CIRC, apenas manda acrescer à matéria coletável tributação (imposto) adveniente de “retenções na fonte de IRC”.
ii) Os rendimentos obtidos pelo Fundo não são sequer tributados em IRC, pelo que as eventuais retenções na fonte que sofram não são “retenções na fonte de IRC”. E só́ estas a norma invocada pela AT (o n.º 2 do artigo 68.º do CIRC) manda acrescer à matéria coletável.
iii) Os rendimentos obtidos pelo Fundo, a que diz respeito, o imposto no valor de € 1.413.945,00 em 2014 e de € 1.955.866,73 em 2015, a que a AT pretende aplicar o artigo 68.º, n.º 2, do CIRC (por referência à requerente), tao pouco são englobados pelo seu titular. Antes são tributados cedular e autonomamente, por vezes com remissão para o regime do IRS, que nunca para o do IRC.
13. A eventual lacuna que a AT entenda existir, não poderia jamais ser preenchida por acrescento normativo do intérprete no sentido de alargar a tributação (alargar os casos de acréscimo à matéria coletável em relação ao efetivamente previsto no n.º 2 do artigo 68.º do CIRC).
14. Porquanto prescreve a LGT no seu artigo 11.º, n.º 4: “As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são suscetíveis de integração analógica”.
15. E seria inconstitucional norma que o permitisse, porquanto a incidência e com ela as regras de delimitação e recorte da matéria coletável são constitucionalmente falando reserva de lei da Assembleia da República, como tal insuscetíveis de serem criadas casuisticamente por via administrativa ou outra, a pretexto de que, no critério do aplicador da lei a Assembleia da República devia ter legislado assim, ou assado, e não o fez.
16. Declarada a ilegalidade das autoliquidações na parte aqui peticionada, a requerente tem direito não só́ ao respetivo reembolso, mas, também, ao abrigo do artigo 43.º da LGT, a juros indemnizatórios.
I.B Na sua Resposta a AT, invocou, o seguinte:
1. Nos presentes autos está em causa saber se, por força do art. 22.º, n.º 3 do EBF (na redação em vigor à data dos factos) e art. 68.º, n.º 2 do Código do IRC, os rendimentos de unidades de participação do Fundo de Investimento Imobiliário B... (doravante Fundo B...), obtidos pela Requerente em 2014 e 2015, devem ser incluídos no lucro tributável acrescidos dos montantes de € 1.413.945,00 (2014) e de € 1.955.866,73 (2015), correspondentes ao imposto suportado pelo Fundo e associado àqueles rendimentos.
2. Tenha-se em conta que a Requerente, no apuramento do lucro tributável relativo ao período de tributação de 2014 e de 2015, acresceu ao resultado contabilístico– no Quadro 07, campo 752, da declaração periódica de rendimentos modelo 22 - os montantes do imposto suportado pelo Fundo B..., que foram imputados aos rendimentos obtidos em resultado de distribuição/resgate, tendo, em simultâneo, deduzido à coleta do IRC – no Quadro 10, campo 359 retenções na fonte – os mesmos montantes.
3. É consabido que o regime fiscal especial aplicável aos fundos de investimento, até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 7/2015, de 13 de Janeiro, recortava-se no modelo designado por “tributação à entrada e isenção à saída”, cuja operacionalização assentava, quer na tributação autonomamente dos rendimentos gerados pelos ativos que constituíam os patrimónios dos Fundos, de acordo com as regras definidas, quanto aos fundos de investimento imobiliário, nos números 1 e 6 do mesmo preceito, quer na isenção à saída dos rendimentos – por distribuição ou por resgate das unidades de participação – para a esfera jurídica dos participantes.
4. Porém, para assegurar que a tributação definitiva dos rendimentos obtidos através dos fundos de investimento seria aproximada à que se verificaria se os seus ativos fossem fruto do investimento direto dos titulares das unidades de participação, o regime fiscal especial estabelecia uma mecânica de tratamento diferenciado, consoante os titulares fossem pessoas singulares ou pessoas coletivas.
5. Assim, se os rendimentos eram auferidos por sujeitos passivos de IRS residentes que tivessem investido em unidades de participação «fora do âmbito de uma atividade comercial, industrial ou agrícola» estavam isentos de IRS, pelo que, em definitivo, a carga de imposto que oneraria tais rendimentos corresponderia ao imposto que tinha sido retido ao Fundo ou que, por este tinha sido devido, exceto se formulada a opção pelo englobamento com os demais rendimentos sujeitos ao IRS, caso em que aquele imposto teria a natureza de imposto por conta , sendo dedutível à coleta do IRS (cfr., art. 22.º, números 2 e 7, do EBF).
6. Quando os rendimentos eram obtidos por sujeitos passivos de IRS que detivessem os títulos no âmbito de uma atividade comercial, industrial ou agrícola ou por sujeitos passivos de IRC residentes ou fossem imputáveis a estabelecimento estável em território português de entidade não residente,
(1) não estavam sujeitos a retenção na fonte à saída do património do Fundo,
(2) devendo ser considerados como proveitos ou ganhos dos participantes, e
(3) tendo o imposto retido ao Fundo ou por este devido tinha a natureza de imposto por conta do imposto final, mediante dedução à coleta do IRS ou do IRC, nos termos dos artigos 78.º do Código do IRS e art.º 83.º (atual 90.º) do Código do IRC (cfr., art.º 22º, números 3 e 7, do EBF).
7. Resulta do exposto, que a solução gizada pelo legislador relativamente aos rendimentos respeitantes às unidades de participação na titularidade de sujeitos passivos do IRC obedecia a uma técnica de «quase transparência fiscal» , a qual assegurava, grosso modo, que a tributação final dos rendimentos que afluíam aos Fundos, seria a que ocorreria na esfera jurídico-tributária dos participantes, funcionando o imposto retido ao fundo ou por este devido como pagamento antecipado por conta do imposto devido a final pelos titulares das unidades de participação.
8. Nas situações em que os titulares das unidades de participação não beneficiam de isenção, o art.º 22.º, n.º 3 do EBF estabelecia que o “montante do imposto retido ou devido nos termos do n.º 1 a natureza de imposto por conta, para efeitos do disposto no artigo 83.º [atual art.º 90.º] do Código do IRC e do artigo 78.º do Código do IRS.”, o que vale por dizer que se subsumia nas deduções previstas no n.º 2, em concreto, na alínea e) “A relativa a retenções na fonte não suscetíveis de compensação ou reembolso nos termos da legislação aplicável”.
9. Ora, justamente, as retenções na fonte a que alude o art.º 90.º, n.º 2, alínea e), do Código do IRC têm a natureza de imposto por conta e respeitam a rendimentos obtidos pelos sujeitos passivos que tenham sido incluídos no lucro tributável/matéria coletável, pelo montante ilíquido do imposto retido na fonte.
10. Por isso, não se pode dissociar a norma do art.º 90, n.º 2 do Código do IRC da correção prevista no art.º 68.º, n.º 2 do mesmo Código, que impõe o chamado “gross-up” dos rendimentos, nos casos em que são contabilizados pela importância efetivamente recebida, havendo então que proceder ao acréscimo do imposto suportado a título de retenção na fonte no âmbito da determinação do lucro tributável.
11. Pois bem, se o legislador equiparou o “montante do imposto retido ou devido nos termos do n.º 1” a “retenção na fonte de IRC” com a natureza de imposto por conta, associou-lhe a consequência legal que tal assimilação implica, que se traduz na inclusão no lucro tributável dos rendimentos ilíquidos, o que, aliás, está em consonância com o modus operandi e objetivos da técnica da transparência fiscal projetada no art.º 22.o, n.º 3 do EBF.
12. Efetivamente, afirmar que os montantes de imposto, de € 1.413.945,00 (2014) e de € 1.955.866,73 (2015) dizem respeito a imposto nos termos da lei incidente sobre, suportado por e pago pelo Fundo até 30.06.2015, imposto de que é sujeito passivo o Fundo com respeito aos rendimentos por si obtidos, nos termos do artigo 22.º do EBF, não podem considerados «retenções na fonte» para efeitos do artigo 68.º, n.º 2, do Código do IRC, é esquecer que o n.º 3 do art.º 22.º já́ assimila tais montantes de imposto a «retenções na fonte» para efeitos da dedução ao abrigo do art.º 90.o, n.º 2, alínea e) do mesmo Código.
13. A verdade é que, nos termos do art.º 22.º, n.º 3 do EBF, o imposto retido ou devido pelo Fundo, nos termos do n.º 1 ou do n.º 6 do mesmo artigo, associado aos rendimentos distribuídos ou aos rendimentos resultante do resgate das unidades de participação, transmuta-se em imposto retido ou devido pelos respetivos titulares sobre os rendimentos auferidos com a natureza de pagamento por conta e é deduzido por estes como se se tratasse de «retenções na fonte» nos termos previstos no art.º 90.º, n.º 2, alínea e) do Código do IRC.
14. É evidente que quando proveitos ou ganhos são englobados para efeitos de apuramento do lucro tributável, como foi o caso sob análise, tendo sido objeto de "retenção na fonte" cujo valor se constitui numa dedução à coleta do seu titular, o montante dos proveitos só́ pode ser o somatório do que lhe foi pago ou colocado à disposição, com o montante que lhe foi retido previamente como adiantamento por conta do pagamento da sua divida fiscal do exercício.
15. Por outras palavras, a situação pretendida pela interpretação dada pela Requerente ao no 3 do artigo 22° do EBF, consubstancia-se numa desconsideração injustificada de parte do rendimento imputável às suas unidades de participação, pois o montante que foi distribuído encontra-se influenciado pela dedução do imposto por conta - o qual também é rendimento.
16. Ora, se não se considerar no apuramento do lucro tributável essa parte do rendimento que corresponde ao imposto pago, haverá́ então uma situação de dupla dedução do valor desse imposto, sendo uma para efeitos da determinação da matéria coletável e outra para efeitos do apuramento da coleta.
17. Desse modo, no final, o rendimento acaba por ser objeto de uma tributação menor à que era devida.
18. Pelo que, a Requerente bem procedeu, para efeitos da determinação do rendimento tributável, englobando os rendimentos recebidos do fundo pelo seu valor ilíquido da "retenção na fonte" que lhe foi imputada, como determina o no 2 do artigo 68° do CIRC, e que deduziu à sua coleta de IRC do exercício.
19. Finalmente, não se verificando, nos presentes autos, em nosso entender, erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, não deve ser reconhecido à requerente qualquer indemnização, nos termos do disposto no art. 53.º da LGT.
20. Caso assim não se entenda, o que só́ por mera hipótese académica se concebe, o apuramento do imposto foi efetuado pela Requerente.
21. Entendendo-se, o que não se concede, que são devidos juros indemnizatórios, estes apenas seriam devidos partir do prazo de um ano após o pedido de revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte, em consonância com a lógica da alínea c) do n.º 3 art.º 43.o da LGT.
22. Ambas as revisões oficiosas foram decididas em menos de um ano.
23. Termos em que não são devidos quaisquer juros indemnizatórios.
II. SANEAMENTO
O Tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n. º1, alínea a), 5.º e 6.º, todos do RJAT.
O processo é o próprio.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias.
As partes são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e do artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março.
Inexistem outras questões prévias que cumpra apreciar nem vícios que invalidem o processo.
Impõe-se agora, pois, apreciar o mérito do pedido.
III. THEMA DECIDENDUM
Aa questão a apreciar é a seguinte:
A requerente deve acrescer à sua matéria coletável de IRC o imposto suportado pelo Fundo de Investimento imobiliário, na proporção do rendimento das Unidades de Participação detidas pela requerente, nos termos dos arts. 68º, n. º2 do CIRC e 22º, nº3 do EBF?
IV. – MATÉRIA DE FACTO
IV.1. Factos provados
Antes de entrar na apreciação das questões, cumpre apresentar a matéria factual relevante para a respetiva compreensão e decisão, a qual, examinada a prova documental, o processo administrativo tributário junto e tendo em conta os factos alegados, se fixa como segue:
1. A requerente é uma instituição de crédito, sujeito passivo de IRC residente em Portugal, cuja atividade tem natureza empresarial, cujo objeto social consiste na concessão de crédito e a prática de demais atos inerentes à atividade bancária nos termos do Regime Jurídico do Crédito Agrícola Mútuo e das Cooperativas (RJCAM).
2. A requerente realizou diversos investimentos no âmbito da sua atividade, incluindo a subscrição de unidades de participação do Fundo de Investimento Imobiliário B..., doravante Fundo B... ou Fundo, do qual a requerente foi entidade depositária.
3. A Requerente obteve em 2014 e em 2015 rendimentos das referidas unidades de participação no Fundo.
4. A Requerente deduziu à coleta das autoliquidações de IRC de 2014 e de 2015, os montantes de € 1.413.945,00 (2014) e de € 1.955.866,73 (2015), montantes estes correspondentes ao imposto suportado pelo Fundo sobre rendimentos por este (Fundo) obtidos até 30 de Junho de 2015, na proporção dos rendimentos que couberam às unidades de participação detidas pela Requerente no Fundo.
5. Estes montantes correspondem ao imposto suportado pelo Fundo na proporção dos rendimentos que couberam às unidades de participação detidas pela Requerente no Fundo.
6. Com respeito àqueles mesmos montantes de imposto incidente sobre o (e consequentemente suportado pelo) Fundo, de € 1.413.945,00 (2014) e de € 1.955.866,73 (2015), acrescentou-os (campo 752 do quadro 07 do Modelo 22) a Requerente aos seus lucros tributáveis respetivamente de 2014 e 2015, aumentando-os nesse montante.
7. A requerente procedeu em 27.05.2015 à apresentação da declaração de rendimentos Modelo 22 de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”) referente ao exercício de 2014, sendo que foi apresentada ainda declaração de substituição em 23 de Maio de 2016.
8. Em 27 de Maio de 2016 a requerente procedeu à apresentação da declaração de rendimentos Modelo 22 de IRC referente ao exercício de 2015.
9. A requerente apesentou um pedido de revisão oficiosa contra a autoliquidação de IRC de 2014 em 27.05.2019.
10. A requerente apesentou um pedido de revisão oficiosa contra a autoliquidação de IRC de 2015 em 07.06.2019.
11. Na sequência de apresentação de pedidos de revisão oficiosa contra as autoliquidações de IRC respeitantes aos exercícios de 2014 e 2015, procedimentos n.º ...2019... e nº ...2019..., respetivamente, foi a requerente notificada dos seus indeferimentos no dia 2 de Setembro de 2019, por despachos proferidos em 26 de Agosto de 2019 pelo Exmo. Senhor Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, por subdelegação de competências.
12. A autoliquidação de IRC de 2014 foi paga em 28.05.2015.
13. O termo do prazo para o reembolso oficioso do imposto (IRC) relativo a 2015 foi 01.09.2016.
IV.2. Factos dados como não provados
Não existem factos dados como não provados, uma vez que todos os factos relevantes para a apreciação do pedido foram dados como provados.
IV.3. Motivação da matéria de facto
Os factos dados como provados integram matéria não contestada e documentalmente demonstrada nos autos.
Os factos que constam dos números 1 a 13 são dados como assentes por acordo das partes, pelos documentos juntos pela Requerente (docs. 1 a 11 do pedido de constituição do Tribunal Arbitral) e pelo processo administrativo junto aos autos.
V. Aplicação do direito aos factos
Matéria de direito
O regime fiscal dos fundos de investimento em vigor à data dos factos (2014 a 30 de junho de 2015) estava previsto no artigo 22.º do EBF que, no essencial, consagrava uma tributação autónoma dos rendimentos gerados pelos fundos de investimento mobiliário (denominado de tributação à entrada).
Nos termos do n.º 2 do artigo 22.º, os rendimentos obtidos em território português, à exceção das mais-valias, eram tributados por retenção na fonte como se de pessoas singulares residentes em Portugal se tratassem, ou, no caso de rendimentos não sujeitos a retenção na fonte, à taxa de 25% sobre o respetivo valor líquido obtido em cada ano. Se estivéssemos perante rendimentos obtidos fora do território português, com exceção das mais-valias, não sujeitos a retenção na fonte, estes estavam sujeitos a tributação autónoma de 20% relativamente a rendimentos de títulos de dívida, a lucros distribuídos e a rendimentos de fundos de investimento, e à à taxa liberatória de 25%, incidente sobre o valor líquido dos rendimentos obtidos em cada ano.
No que respeita às mais-valias, obtidas no território português ou fora dele, estas eram tributadas autonomamente em condições idênticas às aplicáveis a sujeitos passivos de IRS residentes em território português, à taxa de 25%, sobre a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias obtidas em cada ano.
Relativamente aos participantes consagrava-se um regime de “isenção à saída”, com especificidades consoante a natureza dos sujeitos passivos.
Relativamente aos sujeitos passivos que sejam pessoas singulares residentes em território português, estes encontravam-se isentos de IRS relativamente aos rendimentos decorrentes do resgate e distribuição de unidades de participação nesses fundos. No entanto, poderiam optar pelo englobamento destes rendimentos, caso em que o imposto pago na esfera do fundo teria natureza de pagamento por conta, com a possibilidade de dedução de 50% dos rendimentos, nos termos previstos no artigo 40.º-A.
Os sujeitos passivos de IRC residentes em território portuguesa que, em consequência de isenção, não estivessem obrigados à entrega da declaração de rendimentos Modelo 22, o montante de imposto pago pelo Fundo seria restituído pela entidade gestora do fundo e pago conjuntamente com os rendimentos respeitantes a estas unidades.
Os sujeitos passivos não residentes em território português, sem estabelecimento estável em território português a quem sejam imputáveis, são isentos de IRS ou de IRC. Não haveria, ainda assim, a possibilidade de, na tributação no país da residência, beneficiar do crédito de imposto por dupla tributação relativamente ao imposto pago pelo Fundo porque do ponto de vista jurídico-fiscal não tinha havido qualquer tributação na sua esfera, mas na esfera do Fundo.
Por fim, relativamente aos sujeitos passivos de IRS ou IRC, residentes em território nacional, que obtenham estes rendimentos no âmbito de uma atividade comercial, industrial ou agrícola o n.º do artigo 22.ºdo EBF previa o seguinte regime:
“3 - Relativamente a rendimentos respeitantes a unidades de participação nos fundos referidos no n.º 1, de que sejam titulares sujeitos passivos de IRC ou sujeitos passivos de IRS, que os obtenham no âmbito de uma actividade comercial, industrial ou agrícola, residentes em território português ou que sejam imputáveis a estabelecimento estável de entidade não residente situado neste território, os mesmos não estão sujeitos a retenção na fonte e são pelos seus titulares considerados como proveitos ou ganhos, e o montante do imposto retido ou devido nos termos do n.º 1 a natureza de imposto por conta, para efeitos do disposto no artigo 83.º do Código do IRC e do artigo 78.º do Código do IRS.”
Ou seja, o legislador não acolhe um regime de isenção à semelhança do que acontece com os demais sujeitos passivos de IRS mas determina: (i) a consideração dos rendimentos como proveitos ou ganhos na esfera dos titulares; (ii) não há qualquer retenção na fonte no momento do pagamento ao titular; e (iii) o imposto pago pelo Fundo, nos termos do n.º 1, assume a natureza de pagamento por conta, para efeitos do disposto da liquidação do IRC ou IRS.
Nos termos do n.º 7 do presente artigo é aplicável o regime aqui previsto é também aplicável aos rendimentos respeitantes a unidades de participação em fundos de investimento imobiliário.
A questão controvertida que aqui nos traz é relativa à aplicação concreta do regime previstos no n.º 3.
Alega, em síntese, a Requerente que, atendendo a que o imposto retido diz respeito ao Fundo, o valor a incluir com rendimento na sua esfera é apenas o valor efetivamente pago pelo Fundo (ou seja, o valor líquido).
Não é, ainda, aplicável o disposto no artigo 68.º, n.º 2, que prevê que sempre que tenha havido retenção na fonte de IRC relativamente a rendimentos englobados para efeitos de tributação, o montante a considerar da determinação da matéria coletável é a respetiva importância ilíquida porque o imposto suportado pelo Fundo não constitui retenção na fonte para efeitos de IRC relativamente a rendimentos por si englobados e constituiria a inclusão na sua esfera de retenções suportas por terceiro. Acrescenta ainda que, como o Fundo é tributado autonomamente nos termos supra descritos, não se trata sequer de rendimentos de IRC.
Alega, em sentido diverso, a Requerida que o objetivo do regime previsto no n.º 3 do artigo 22.º era assegurar que a tributação definitiva dos rendimentos obtidos através dos fundos se aproximasse à que se verificaria se os ativos fossem fruto de investimento direto dos titulares das unidades de participação, criando uma “técnica de quase transparência fiscal”. Ora, quando o legislador determina que o imposto retido assume a natureza de pagamento por conta e remete para as deduções previstas no artigo 83.º [atual artigo 90.º], teremos que atender ao disposto no n.º 2 do artigo 68.º, nomeadamente a obrigação de incluir os rendimentos ilíquidos.
Atentos à letra da lei e sentido do regime, é para nós claro que o artigo 22.º estabelece um regime de tributação autónomo na esfera do fundo, tendo em vista isentar “à saída” a generalidade dos respetivos titulares. De forma diferenciada, o n.º 3, pela sua natureza de entidades que exerce uma atividade comercial, industrial ou agrícola, estabelece que os rendimentos respeitantes às unidades de participação nos fundos são considerados como “proveitos ou ganhos” na esfera dos seus titulares.
Atendendo a que a tributação foi feita exclusivamente na esfera do fundo, os rendimentos a declarar nunca poderão incluir o imposto suportado autonomamente por uma terceira entidade. Se tal fosse a intenção do legislador, tê-lo-ia expresso de forma categórica (“rendimentos ilíquidos gerados pelo fundo de investimento”). Não podemos, por isso, atender, in casu, a uma interpretação "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso" (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, ex vi artigo 11.º da Lei Geral Tributária).
Por outro lado, a interpretação conforme à letra da lei não é, sublinhamos, contrária ao espírito e sistematização da norma que, na sua essência, consagra um sistema de tributação autónoma dos rendimentos dos fundos e reconhecimento de um tratamento mais favorável - daí a sua inclusão no Estatuto dos Benefícios Fiscais - aos titulares das unidades, de participação, seja pela isenção tout court, seja pela possibilidade de dedução na sua esfera do imposto pago pelo Fundo.
No mesmo sentido, refere-se na decisão do CAAD de 27 de junho de 2019, proferida no processo n.º 309/2018-T que:
“A nosso ver, é isso mesmo que o texto legal – o disposto no n.º 3 do art.º 22.º do EBF – pretende, ou seja, que o proveito a reconhecer pelo titular das UPs deverá corresponder ao montante pago pelo Fundo, sem que haja lugar ao acréscimo do valor respeitante ao imposto pago por este relativamente àquele rendimento. Mesmo que se entenda que esse regime seja mais benéfico do que o regime geral (o que não sucede em todos os casos, note-se), a verdade é que é nesse sentido que milita a letra da lei, não cabendo ao intérprete fazer conclusões interpretativas que se afastem da letra e espírito da lei. Acresce que a lei em causa regula precisamente os denominados benefícios fiscais, ou seja, medidas de carácter excepcional instituídas para a tutela de interesses extra-fiscais relevantes.”
Também assim se conclui na decisão do CAAD de 6 de junho de 2018, proferida no Proc. n.º 371/2017-T:
“Ora, o que o sujeito passivo fez, e que não é desmentido pela AT, foi considerar o montante dos rendimentos recebidos como proveito, incluindo-o na sua declaração de IRC, sendo isso o que determina aquela disposição, uma vez que, como se referiu, não há lugar a retenção na fonte. Assim sendo, não é aplicável o art.º 68º, nº2 do CIRC, não podendo, consequentemente, a AT ter feito a correção a que procedeu.
A Requerida deveria ter considerado a importância líquida dos valores recebidos para efeitos de tributação, que é o que determina o art.º 22º, nº3, do EBF.”
V. Do pedido de juros indemnizatórios
A Requerente formulou o pedido de juros indemnizatórios pelo pagamento do imposto em excesso.
Em consequência, o Tribunal, de acordo com o disposto nos art.ºs 43º e 100º da Lei Geral Tributária, reconhece o direito do Requerente aos juros indemnizatórios nos termos e condições previstos na lei, calculados sobre o montante do imposto indevidamente pago, a liquidar em execução de sentença, desde o momento do indeferimento dos pedidos de revisão oficiosa.
VI) DECISÃO
Em face de tudo quanto se deixa consignado, decide-se:
a) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade parcial dos atos de autoliquidação de IRC, referentes aos exercícios de 2014 e 2015, no que respeita aos montantes em excesso, respetivamente, de €1.413.945,00 e €1955.866,73 das bases tributáveis, com a consequente anulação do imposto reflexo no montante de €445.392,68 (2014) e €537.863,34 (2015), num total de €983.256,02;
b) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei;
Fixa-se o valor do processo em €983.256,02 nos termos do artigo 97º-A, n.º 1, c), do CPPT, aplicável por força da alínea a) do n. º1 do artigo 29.º do RJAT e do n. º2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em €13.770,00 nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 7 de outubro de 2020
Os Árbitros
(José Poças Falcão-Presidente)
(Amândio Silva-Vogal)
(André Festas da Silva-Vogal)