Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 788/2019-T
Data da decisão: 2020-10-17  IRS  
Valor do pedido: € 121.262,10
Tema: IRS – Cláusula geral anti-abuso.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

            1. A..., SGPS, S.A., com o número único de matrícula e de identificação de pessoa colectiva  ..., com sede na Rua ..., n.º...,  ..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.ºs 2012..., 2012... e 2012..., bem como dos respectivos actos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2012..., 2012 ... e 2012 ..., relativos aos exercícios de 2008, 2009 e 2010, no valor global de € 121.262,10, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios e em indemnização por indevida prestação de garantia.

            

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

Em Fevereiro de 2006, verificou-se o aumento de capital da sociedade por quotas B..., Lda. e a sua transformação numa sociedade anónima que passou a denominar-se B..., S.A., de cujo capital, dividido em acções, passaram a ficar detentores cinco accionistas: C..., D..., E..., F... e G... .

Em Maio de 2007, foi constituída a A... que viria a deter o capital social da B..., sendo que tal constituição ficou a dever-se à vontade dos accionistas desta última de estruturarem a actividade por si levada a cabo através de uma estrutura empresarial de cúpula que permitisse, no futuro, a diversificação do negócio e a sua especialização em várias empresas ligadas pelas sociedades gestoras de participações sociais (SGPS).

O facto de a A... não ter adquirido outras participações sociais, em cumprimento da estratégia de constituição de uma holding, resultou das significativas alterações da conjuntura económica que recomendaram uma retracção dos investimentos.

Encontrava-se previsto que, quando estivesse constituída a SGPS, os accionistas da B... lhe alienariam as suas participações sociais nesta sociedade mediante o reconhecimento de um crédito obrigacional, o que ocorreu ainda em Maio de 2007.

A transmissão das participações sociais não produziu qualquer efeito fiscal da esfera dos accionistas, em virtude da isenção de IRS sobre as mais-valias provenientes da alienação de acções detidas há mais de 12 meses, e, por outro lado, a alienação realizou-se a um preço de mercado.

O financiamento da aquisição das participações sociais mediante o reconhecimento de um crédito aos anteriores accionistas da B... representava a melhor opção, visto que evitava o recurso à prestação remunerada de serviços de financiamento externo, com custos elevados no tempo, e permitia que os créditos pudessem ser solvidos sem encargos durante o desenvolvimento da actividade da empresa.

Acresce que a B... apenas distribuiu dividendos após a constituição da SGPS, uma vez que até 2006 a empresa não dispunha de autonomia financeira para tal.

Entende a Requerente que a aplicação da cláusula geral anti-abuso prevista no artigo 38.º, n.º 2, da LGT nesta circunstância é ilegal, porquanto o procedimento administrativo e os actos de liquidação impugnados resultam na exigência do montante de imposto alegadamente em falta, não aos accionistas que a própria Administração identifica como os  beneficiários da vantagem fiscal, mas sim à A..., que não retirou desse negócio qualquer vantagem, pelo que a Requerente é parte ilegítima no procedimento administrativo, quer à luz da letra do n.º 2 do artigo 38.º da LGT, quer dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da liberdade de iniciativa económica e da capacidade contributiva, concretização do princípio da igualdade.

            Caso assim se não entenda, haverá de considerar-se que a situação em apreço não se enquadra no âmbito de aplicação da cláusula geral anti-abuso.

A Autoridade Tributária, na sua resposta, sustenta a legalidade do acto de liquidação, reproduzindo os fundamentos constantes do Relatório de Inspecção Tributária elaborado no âmbito das acções inspectivas dirigidas contra a Requerente.

            No tocante à alegada ilegitimidade da Requerente para intervir no procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso, a Autoridade Tributária refere que a Requerente é responsável pelo imposto na condição de substituto tributário, nos termos das disposições  conjugadas dos artigos 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea h), e 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS, e, por outro lado, com a revogação do n.º 10 do artigo 63.º do CPPT, que previa a impugnação autónoma da autorização para a aplicação da cláusula anti-abuso, esta passou a ser sindicada com referência ao próprio acto de liquidação.

 

            Acrescenta que é materialmente inconstitucional a interpretação normativa do artigo 38.º, n.º 2, da LGT que exclua, na sequência de planeamento fiscal abusivo, a possibilidade de a sociedade que tem o papel de substituto na relação jurídica tributária ser responsável pelo pagamento das quantias que se entendam devidas nos termos das normas legais aplicáveis, por violação dos princípios da legalidade tributária, da igualdade na repartição da carga tributária, da prossecução da satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas, consagrados nos artigos 13.º e 103.º, n.ºs 1 e 2, da CRP.

 

2. No seguimento do processo, a Requerente prescindiu da produção de prova testemunhal indicada na petição inicial e, por despacho arbitral de 30 de Julho de 2020, o tribunal determinou a remessa do processo para alegações por prazo sucessivo.

 

Em alegações, a Requerente manteve a sua anterior posição. A Autoridade Tributária não contra-alegou.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 17 de Fevereiro de 2020.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro. 

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março). 

 

O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas exceções.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II - Fundamentação 

 

Matéria de facto

 

4. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)    Em 9 de Dezembro de 1991 foi constituída a sociedade B..., Lda, para o exercício da actividade de comércio por grosso de bebidas, com sede no ..., município de ... .

B)    Por escritura outorgada em 3 de Janeiro de 2006, o capital social desta sociedade foi aumentado para € 300.000.00, passando a ser representado por 5 quotas, e ficou assim distribuído: C..., € 179 880500, D..., € 44 970,00, E..., € 74 950,00€, F..., € 100,00, e G..., € 100,00.

C)    Nessa mesma escritura, a sociedade foi transformada em sociedade anónima e adoptou a designação B..., S.A. 

D)    O capital social, representado por 60.000 acções com o valor nominal de € 5,00 mediante a conversão das quotas em acções na proporção das quotas detidas, passou a estar assim distribuído:

 

 

 

NIF

N.º de acções 

Participação

C...

...

          35.976

              59,96 %

D...

...

         8.994

           14,99 %

E...

...

         14.990

             24,98%

F...

... 

           20

            0,03%

G...

...

           20

            0,03%

 

E)    Em 4 de Maio de 2007 foi constituída a sociedade A..., com sede no Lugar da ..., ..., com o capital social de € 50.000,00 representado por 10.000 acções com valor nominal de € 5,00, assim distribuído:

 

 

NIF

N.º de acções 

Participação

C...

...

          7900

         79 %

D...

...

         1900

           19 %

H...

...

          100

             1%

G...

...

           50

            0,5%

I...

...

           50

            0,5%

 

F)   A 7 de Maio de 2007, foi celebrado um contrato de transmissão de acções pelo qual E... e F... alienaram à A..., 14.990 acções e 20 acções, respectivamente, da sociedade B..., pelo valor global de 212.500,00€, correspondendo a um preço unitário de 14,16€;

G)  Na mesma data, C... e D..., alienaram à A..., 35.936 acções e 8.994 acções, respectivamente, da sociedade B..., pelo preço total de € 1.571.850,00, a que corresponde um valor unitário de € 35,00.

H)   A Requerente, tendo por objecto a gestão de participações sociais que detenha noutras empresas, como forma indirecta do exercício de actividades económicas, nos períodos de tributação em causa detinha directamente 99,87% do capital social da B..., S.A., que resultaram da alienação de acções a que se referem as antecedentes alíneas F) e G).

I)  Nesse período, a Requerente não adquiriu outras participações sociais.

J) No contrato de alienação de acções a que se refere a antecedente alínea G) foi clausulado o seu pagamento fraccionado pelo prazo de 10 anos. 

K)  Na sequência dessa operação, foi reconhecido, na contabilidade da sociedade A... SGPS, um crédito a favor dos sócios accionistas alienantes das participações sociais da B..., correspondente aos valores da transmissão de acções.

L) A B... não distribuiu quaisquer resultados aos seus sócios, pessoas singulares, desde o exercício de 1999 até ao exercício de 2006.

M) Nos exercícios de 2007 e seguintes a B... passou a distribuir dividendos à Requerente, A..., tendo pago aos accionistas C... e D..., a título de reembolso do crédito gerado com a aquisição de participações sociais na B..., um total de dividendos de € 299.600, em Novembro de 2007, € 249.666,67, em Novembro de 2008, € 172.733,33, em Dezembro de 2009, e € 130.800,00, em Dezembro de 2010.

N) A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva, credenciada pela OI2011..., relativamente aos exercícios de 2008, 2009 e 2010, em resultado de uma acção de controlo das alienações de acções por sujeitos passivos singulares.

O) No âmbito dessa acção inspectiva, foi desencadeado o procedimento de autorização previsto no artigo 63.º do CPPT para aplicação da cláusula geral anti-abuso do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, em que foram praticados os seguintes actos procedimentais:

- Em 12 de Dezembro de 2011, o sujeito passivo foi notificado, através do oficio n.º..., do despacho de abertura do procedimento próprio para aplicação das normas anti-abuso;

- Em 19 de Abril de 2012, o sujeito passivo foi notificado, através do oficio n.º ...,  para exercer o direito de audição sobre a informação relativa à aplicação das normas anti-abuso nos termos dos nºs 4 e 5 do artigo 63.º do CPPT;

- O sujeito passivo exerceu o direito de audição através de requerimento entrado em 22 de maio de 2012;

- Em 23 de Agosto de 2012, o sujeito passivo notificado, através do ofício n.º..., do despacho do Director-geral da Autoridade Tributária de autorização de aplicação da cláusula geral anti-abuso.

P) Da informação dos serviços em que se baseou a aplicação da cláusula anti-abuso consta, quanto ao enquadramento fiscal dos factos, o seguinte:

 

2.2.2. Da verificação dos elementos para a aplicação do n.º 2 do artigo 38.º da LGT e n.º 9 do artigo 63.º do CPPT:

Atendendo a que, para a aplicação das normas anti-abuso deve ser observado o prescrito no art.º  63° do Código do Procedimento e de Processo Tributário, sendo essencial para a fundamentação da decisão, e de acordo com o n.º 9 deste artigo, o cumprimento de diversos requisitos, importa, pois, no caso em apreço, e após explanação detalhada da factualidade supra transcrita,  aferir da verificação cumulativa de tais requisitos.

 

a)  Descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica

Dispõe a alínea a) do n.º 9 do citado artigo 63° do CPPT, que deverá proceder-se em primeiro lugar a descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica.

Ora, no caso em concreto, este requisito consubstancia-se no reembolso aos acionistas, C... e D..., após a distribuição de dividendos pela B..., antecedida pela alienação das participações que estes detinham de 59,96% e 14,99%, respetivamente, no capital social da sociedade B..., em 7 de Maio de 2007, pelo valor global de 1 571 850,00 €, à sociedade A... SGPS, que havia sido constituída em 4 de Maio de 2007 e na qual detêm participações de 79% e 19%, respetivamente, que tiveram como objetivo fundamental a distribuição de dividendos, colocados à disposição nos exercícios de 2008, 2009 e 2010.

Mostra-se evidente que, sem a utilização desses meios, os contribuintes beneficiários não evitariam a tributação, resultante da transformação dos dividendos em reembolso do crédito, ficando sujeitos a imposto, nos termos gerais, como rendimentos da categoria E de IRS.

 

b) lndicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou   da prática do ato tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou ato de substância económica equivalente

 

Consideramos que o reembolso do crédito pela sociedade A... SGPS aos seus acionistas, resultante da distribuição de dividendos da sociedade B... após a aquisição das participações que estes detinham na sociedade  B..., visou, a retirada de dividendos da sociedade B... sem qualquer tributação.

Para atingir esse objetivo, foram encenados vários atos jurídicos, mais complexos e dispendiosos, que, se revelam manifestamente desnecessários e denunciam claramente a intenção artificiosa da sua utilização, ou seja, evitar a tributação que seria devida. 

 

c) A descrição dos negócios ou atos de substância económica equivalente aos efetivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam.

Para remunerar o capital dos acionistas a forma normal seria a distribuição de  dividendos (aos seus  acionistas e administradores neste caso) pagando o respetivo imposto, e não a criação de uma estrutura que permitiu retirar os dividendos sem qualquer tributação,  através da sua  transformação em reembolso do crédito gerado por uma operação efetuada entre entidades juridicamente distintas, mas economicamente controladas pelos mesmos acionistas. Ao utilizar esta estrutura, resulta claro que os acionistas e administradores das sociedades identificadas decidiram   artificiosamente, evitar a tributação em IRS, através da utilização de um conjunto de negócios anómalos, atingindo assim, idêntico fim económico, evitando o imposto de 108 587,00 €, apurado conforme o disposto nos artigos acima mencionados.

 

3. Conclusão

Destarte, verifica-se que, de acordo com o supra exposto, estão reunidas as condições para aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º 2, da LGT e no artigo 63.º do CPPT.

Com efeito, caso a distribuição de dividendos se tivesse dado sem o recurso à estrutura utilizada, os mesmos seriam tributados (conforme disposto nos artigos anteriormente mencionados).

Por assim ser, face ao disposto nos artigos indicados, incumbe à Administração Fiscal considerar ineficaz no âmbito tributário, a transtornação dos dividendos, uma vez que  tais atos/negócios foram praticados com abuso das formas jurídicas e tiveram como objetivo essencial a  eliminação de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou a obtenção de vantagens fiscais que não seriam  alcançadas total ou parcialmente, sem utilização desses meios.

Face ao exposto, a tributação deve ocorrer de acordo com as normas aplicáveis na ausência da tal estrutura, não se produzindo as vantagens fiscais referidas, tal como dispõe o n.º 2 do artigo 38° da LGT.

Ou seja, deve-se proceder à tributação dos montantes pagos pela sociedade A... SGPS no momento em qua foram colocados a disposição dos acionistas:

 

Exercício

Imposto a reter

Data da entrega do imposto

2008

48.000,00

20-12-2008

2009

34.400,00

20-01-2010

2010

26.187,00

20-01-2011

Total

108.187,00

 

 

Q) Relatório de Inspecção Tributária elaborado no âmbito da acção inspectiva a que se refere a antecedente alínea J) conclui nos seguintes termos:

    

III.2. Enquadramento fiscal e correções propostas

 

Como consequência da aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do  artigo  38.º da LGT, cujo procedimento se realizou nos termos do artigo 63.º do CPPT, foi apurado a distribuição de  dividendos  (através da sua transformação em reembolso de  créditos dos acionistas), nos exercícios de 2008, 2009 e 2010 no valor total de 533.800,00€, com os fundamentos constantes da informação notificada ao sujeito  passivo  para o exercício do direito de audição - através do oficio n.º..., em anexo n.º 2 - e da informação sobre a qual recaiu a autorização do Director Geral, através do oficio n." ..., em anexo n.º 4 - efetuadas  no âmbito do procedimento próprio  para a aplicação  da cláusula geral anti-abuso.

Conforme demonstrado e fundamentado nas informações já notificadas ao sujeito  passivo, os valores distribuídos nos anos em análise são considerados rendimentos de capitais  (categoria  E), de acordo com a alínea h) do n.º 2 do artigo 5° do Código de Imposto  sobre  Pessoas Singulares (CIRS), sujeitos a tributação através de retenção  na fonte, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 71º do mesmo diploma.

Desta forma, foi apurado falta de entrega de imposto conforma quadro seguinte:

 

Exercício

Data do pagamento

Valor de pagamento

Taxa de imposto

Valor de imposto

Data de entrega de imposto

2008

19-11-2008

240.000,00

20%

48.000,00

20-12-2008

2009

30-12-2009

172.000,00

20%

34.400,00

20-01-2010

2010

09-12-2010

121.800,00

21,50%

26.187,00

20-01-2011

Total

533.800,00

 

108.587,00

 

 

R)  Em 4 de Março de 2013, a Requerente deduziu, no Tribunal Administrativo e Fiscal de..., impugnação judicial contra os actos de liquidação adicional de IRC n.ºs 2012..., 2012... e 2012..., bem como dos respectivos actos de liquidação de juros compensatórios n.ºs 2012..., 2012... e 2012 ..., relativos aos exercícios de 2008, 2009 e 2010, no valor global de € 121.262,10.

S)  Ao abrigo do disposto no artigo 11.º do Decreto‑Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro, a Requerente solicitou a extinção da instância nesse Processo em vista ao cometimento à arbitragem tributária.

T)  Em 8 de Outubro de 2019, o TAF de ... proferiu sentença homologatória da extinção da instância.

 

Factos não provados

 

            O Tribunal não considerou provada a factualidade alegada nos artigos 12º a 16º do pedido de pronúncia arbitral. Em especial, não se considera provado que a constituição da A..., SGPS tivesse tido em vista organizar a actividade dos accionistas da B... através de uma estrutura empresarial de cúpula que permitisse  a diversificação do negócio e a sua especialização em várias empresas ligadas por sociedades gestoras de participações sociais e que a criação dessa empresa tivesse sido determinada essencialmente por razões empresariais e económicas.

 

Sobre esta matéria, o Tribunal terá de partir de presunções judiciais que resultem das diversas operações que se encontram documentadas, relevando, entre outras, as seguintes circunstâncias: (a) a A... foi constituída como uma empresa familiar, com preponderância, no capital social, de C... (79%) e D... (19%); (b) estes eram accionistas da B... e alienaram à A... a totalidade das acções que detinham nessa empresa (59,96% e 14,99%), juntamente com os outros dois sócios mais influentes (E... e F...), que igualmente alienaram à A... a totalidade das acções de que eram detentores na B... (24,98% e 0,03%); (c) por efeito dessas transacções, a A... passou a deter  99,87% do capital da B... e não adquiriu, nos períodos de tributação em referência, quaisquer outras participações sociais; (d) no contrato de alienação de acções outorgado por C... e D... foi convencionado o pagamento fracionado no prazo de 10 anos; (e) em 2008, 2009 e 2010, a B... pagou dividendos à A..., SGPS, que os atribuiu aos accionistas C... e  D... a título de reembolso do crédito pela alienação das acções.

 

Não existe outra factualidade alegada que não tenha sido considerada provada e que seja relevante para a composição da lide processual.

 

Motivação da matéria de facto

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e, designadamente, no documento n.º 7 e seus anexos, que integra o procedimento de autorização de aplicação da cláusula geral anti-abuso, e no documento n.º 9, que constitui o Relatório de Inspecção Tributária, que foram juntos ao pedido, e em factos não questionados pelas partes.

 

Matéria de direito

 

Ilegitimidade da Requerente para intervir no procedimento de autorização de aplicação da cláusula anti-abuso

 

5. A Requerente começa por alegar que é parte ilegítima no procedimento de aplicação da cláusula geral anti-abuso, na medida em que o montante de imposto em falta, por efeito dos actos de liquidação impugnados, se torna exigível, não aos accionistas, que são tidos como os beneficiários da vantagem fiscal, mas à A..., que não retirou a vantagem  dos negócios a que é imputada uma finalidade artificiosa.

É a esta a questão que cabe preliminarmente dilucidar. 

Segundo o disposto no artigo 5.º, n.º 1, alínea h), do Código do IRC, os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos associados ou titulares e os adiantamentos por conta de lucros (com exclusão daqueles que são objecto de imputação especial aos sócios ou membros de entidades abrangidas pelo regime de transparência fiscal) constituem facto gerador de rendimentos de capitais e são sujeitos  a tributação. Por outro lado, os rendimentos de capitais obtidos em território português estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28 % (artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS).

 

Como resulta do n.º 2 do artigo 20.º da LGT, o mecanismo de retenção na fonte do imposto devido constitui uma forma de substituição tributária. A substituição tributária, a que se refere esse preceito, pressupõe a deslocação da obrigação tributária do contribuinte directo - que se encontra abrangido pelas normas de incidência do imposto - para um terceiro que é devedor dos rendimentos sujeitos a tributação e a quem incumbe a dedução de uma parcela desses rendimentos aquando do seu pagamento para entrega ao Estado. A responsabilidade do substituto tributário – como especifica o artigo 28.º - traduz-se na obrigação de dedução das importâncias que estiverem sujeitas a retenção e da sua entrega nos cofres do Estado que, uma vez satisfeita, desonera o substituído do pagamento dessas importâncias.

 

Como explicita Saldanha Sanches, a substituição tributária por meio da retenção na fonte do rendimento explica-se por razões de natureza essencialmente prática, visando assegurar através de um meio seguro a cobrança do imposto e, simultaneamente, aproximar temporalmente o momento da verificação do facto tributário – que se traduz no pagamento dos rendimentos sujeitos a imposto – e o cumprimento da dívida tributária. Deste modo, a retenção do rendimento, pelo devedor, vai servir para o pagamento de uma parte da dívida fiscal, se for um pagamento por conta de uma obrigação fiscal futura (como sucede nas retenções feitas sobre rendimentos do trabalho) ou da sua totalidade (como sucede no caso de retenções feitas, a título definitivo, através da aplicação das taxas liberatórias que oneram os rendimentos de capitais) (Manual de Direito Fiscal, 3.ª edição, Coimbra, pág. 269).

 

Por seu lado, o mecanismo da retenção na fonte encontra-se regulado, em  termos gerais, no artigo 98.º do Código do IRS, consignando-se aí que, nos casos em que haja lugar à retenção de imposto no momento do pagamento de rendimentos do trabalho dependente, as entidades devedoras dos rendimentos sujeitos a retenção são obrigadas, no acto do pagamento do vencimento, a deduzir as importâncias correspondentes à aplicação das taxas de tributação que se encontram previstas para essa categoria de rendimentos (n.º 1), havendo lugar à entrega até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas as quantias retidas (n.º 3). Tratando-se de rendimentos de capitais, a retenção é definitiva, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, sendo o substituído apenas subsidiariamente responsável pela não retenção ou entrega do imposto (artigo 28.º, n.º 3, da LGT).

 

Ora, tendo havido lugar à correcção da matéria colectável por efeito do procedimento inspectivo, com a consequente emissão de um acto de liquidação adicional de imposto, tudo se passa como se essa liquidação tivesse resultado dos rendimentos originariamente declarados pelo contribuinte, não havendo nenhuma razão para deixar de aplicar as regras gerais em matéria de substituição tributária e retenção na fonte. Ou seja, se o acionista tivesse declarado as importâncias que foram transferidas para a sua conta como lucros, a Requerente teria de levar a efeito a retenção na fonte, nos termos do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do Código do IRS. E se a liquidação de imposto resulta, nos mesmos exactos termos, da correcção resultante da acção inspectiva, por identidade de razão, a entidade que colocou à disposição do accionista as importâncias que geraram a tributação está sujeita ao mesmo dever de retenção na fonte. 

 

Não se trata de uma nova obrigação fiscal ou de uma obrigação fiscal que não resulte directamente da lei, mas da mesma obrigação que já incidia sobre o substituto tributário e que apenas se tornou efectiva por efeito da correcção da matéria tributável na sequência da acção inspectiva.

 

Não estamos, por conseguinte, perante uma mera questão de legitimidade procedimental para intervir no procedimento de aplicação da cláusula anti-abuso, mas antes perante o instituto da substituição tributária, que é aplicável por força da lei, independentemente de o substituto tributário ter intervindo ou ter legitimidade para intervir no dito procedimento tributário.

O pedido arbitral é, pois, manifestamente improcedente neste ponto.

 

Cláusula geral anti-abuso

 

6.  A disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT declara como “ineficazes, no âmbito tributário, os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, àredução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente,sem utilização desses meios”. E, nesse caso, determina que a tributação se efectue de acordo com as normas que seriam aplicáveis se esses meios não tivessem sido utilizados, não se produzindo as vantagens fiscais que se pretendia obter.

 

Segundo assinala Sérgio Vasques, a cláusula geral anti-abuso consagrada na LGT é composta de três elementos essenciais. “Em primeiro lugar exige-se a prática de acto ou negócio artificioso ou fraudulento e que exprima abuso das formas jurídicas, no sentido de estarmos perante esquemas negociais que ocultem os seus verdadeiros propósitos e aos quais seja dada uma utilização manifestamente anómala face à prática jurídica comum. Em segundo lugar, exige-se o objectivo único ou principal de através desses esquemas negociais obter uma vantagem fiscal, qualquer que seja a sua natureza, com a marginalização evidente de objectivos económicos reais. Em terceiro lugar, exige-se que da lei resulte com clareza a intenção de tributar os bens em causa, nos mesmos termos em que estes seriam tributados se tivesse o contribuinte recorrido às formas jurídicas e práticas negociais mais comuns” (Manual de Direito Fiscal, Coimbra, 2018, pág. 369).

 

O sentido geral da norma é, nestes termos, o de permitir a desqualificação para efeitos fiscais de um qualquer acto ou negócio jurídico praticado pelo contribuinte com o único, ou principal, objectivo de obtenção de uma vantagem fiscal, que possa consubstanciar uma fraude à lei fiscal. O efeito jurídico que resulta do funcionamento da cláusula anti-abuso é o de considerar os actos como praticados de acordo com o padrão normal do comércio jurídico para obter o mesmo resultado económico, determinando-se a obrigação tributária em função dos actos equivalentes que pudessem ser praticados.

 

Resulta de todas as precedentes considerações, que a cláusula geral anti-abuso se destina a eliminar as vantagens fiscais ilegítimas obtidas na esfera jurídica pelo contribuinte através de actos ou negócios abusivos praticados com o intuito de obviar ao pagamento do imposto que seria devido caso se tivesse recorrido às formas negociais comuns.   

 

A aplicação da cláusula anti-abuso depende, por outro lado, de uma apreciação casuística, havendo que ponderar a actuação concreta imputável ao sujeito passivo em função das circunstâncias de facto que possam ser tidos como assentes (cfr. acórdão do TCA Sul de 15 de fevereiro de 2011, Processo n.º 04255/10, e acórdão arbitral proferido no Processo n.º 377/2014).

 

No caso vertente, a vantagem fiscal ilícita que justificou a aplicação da disposição anti-abuso traduziu-se na evitação de pagamento de imposto relativamente à distribuição de dividendos a dois dos sócios, que, normalmente, seria objecto de tributação como rendimentos de capitais, nos termos da alínea h) do n.º 2 artigo 5.º do Código do IRS, e que foi alcançada através de um conjunto sucessivo de operações societárias que se encontram assim descritas. 

 

Em 3 de Janeiro de 2006, o capital social da B..., Lda. foi aumentado para € 300.000.00, passando a ser representado por 5 quotas pertencentes a  C..., D..., E..., F... e G....

 

Nessa mesma data, a sociedade foi transformada em sociedade anónima, e adoptou a designação B..., SA, com um capital social representado por 60.000 acções com o valor nominal de € 5,00 mediante a conversão das quotas em acções assim distribuído: C... (59,96%), D... (14,99%), E... (24,98%), F... (0,03% e G... (0,03%).

 

Em 4 de Maio de 2007 foi constituída a sociedade A..., SGPS, com o capital social de € 50.000,00 representado por 10.000 acções, assim distribuído: C... (79%), D... (19%), H... (1%), Marisa G... (0,5%) e I... (0,5%).

 

Apenas três dias depois, os sócios E..., F..., C... e D..., alienaram acções que detinham na B..., S.A. à A... SGPS, sendo que no caso destes dois últimos a alienação atingiu o preço total de € 1.571.850,00.

 

No contrato de alienação de acções foi clausulado o pagamento fraccionado pelo prazo de 10 anos. 

 

Na sequência dessa operação, foi reconhecido, na contabilidade da sociedade A..., um crédito a favor dos sócios accionistas alienantes das participações sociais da B..., correspondente aos valores da transmissão de acções.

 

A B... distribuiu dividendos à Requerente,  A..., a título de reembolso do crédito gerado com a aquisição de participações sociais na B..., tendo sido atribuídos aos accionistas C... e D... um total de € 249.666,67 (2008), €172.733,33 (2009) e € 130.800,00 (2010).

 

7. A referência a actos ou negócios jurídicos que podem ser tidos como ineficazes por aplicação da cláusula anti-abuso deve ser entendida em sentido amplo, abrangendo quaisquer esquemas negociais que possam considerar-se finalisticamente relacionados e que, por ausência de racionalidade económica, devam ser tidos como visando obviar ao pagamento do imposto que normalmente seria devido. Ademais, as formas negociais que tenham sido utilizadas devem ser aferidas em termos objectivos, a partir da substância económica das transações segundo um padrão de razoabilidade económica e comercial.

 

Não podendo perder-se de vista que o sentido geral da Diretiva Antielisião Fiscal (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016, que sugere que uma montagem (ou série de montagens) será considerada como não genuína na medida em que não coloque em prática um propósito comercial válido baseado em razões que reflitam a realidade económica.

 

             No caso, as operações de modificação do capital social levadas a efeito e a constituição de um crédito a favor dos accionistas da B... não revelam um objectivo suficientemente definido e justificado do ponto de vista financeiro, nem encontra uma explicação bastante na alegada pretensão de reorganização societária em vista a diversificação do negócio e a sua especialização em várias empresas ligadas por uma sociedade gestora de participações sociais.

 

De facto, a Requerente detinha a quase totalidade das acções da B... por efeito da aquisição dessas acções aos principais accionistas dessa empresa, entre os quais se contavam C... e D..., que eram também os accionistas maioritários da Requerente. E não adquiriu quaisquer outras participações sociais.

 

O único efeito prático da constituição da Requerente, enquanto sociedade gestora de participações sociais, foi o de permitir o reconhecimento de uma dívida por uma outra sociedade como a contrapartida da transmissão de participações sociais, e que teve em vista o pagamento planeado através de distribuição de dividendos entre as empresas mas que eram atribuídos a título de reembolso.

 

Assistiu-se, nestes termos, a uma série de transações por passos (“step transaction”) com um efeito consequencial que é o de permitir que os sócios maioritários da B... passassem a deter apenas um crédito resultante da alienação de acções que lhes assegura a possibilidade de auferirem rendimentos a título de pagamento que, na realidade, provêm de distribuição de dividendos.

 

Subsistem, em todo este contexto, factos indiciários suficientes para considerar que o conjunto articulado de operações, não tendo tido um objectivo que se torne justificável no plano da racionalidade económica e da actividade empresarial, teve o único propósito de obstar à tributação em sede de IRS dos rendimentos de capitais, havendo fundamento bastante para a declaração de ineficácia dos negócios jurídicos em aplicação da cláusula geral anti-abuso a que se refere o artigo 38.º, n.º 2, da LGT.

 

Juros indemnizatórios e indemnização por prestação de garantia indevida

 

8. Sendo de julgar improcedente o pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento dos pedidos acessórios de condenação no pagamento de juros indemnizatórios e indemnização por prestação de garantia indevida.

 

III – Decisão

Termos em que se decide julgar improcedente o pedido arbitral e manter os actos de liquidação impugnados.

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 121.262,10, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 3.060,00, que fica a cargo da Requerente.

 

Notifique.

 

Lisboa, 17 de Outubro de 2020,

   

 

O Presidente do Tribunal Arbitral

 

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro vogal

 

Leonardo Marques dos Santos

(vencido conforme declaração de voto)

 

O Árbitro vogal

 

Arlindo José Francisco

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Declaração de Voto

 

Votei vencido na medida em que considero que a reestruturação empresarial efetuada pela Requerente, por si só, não configura a utilização de meios artificiosos ou fraudulentos ou um abuso de formas jurídicas. Sem prejuízo de compreender a decisão e a argumentação expendida no presente acórdão, entendo que a necessidade e metodologia utilizada na reorganização é legítima, e o resultado da operação traduz um figurino normal de organização empresarial. 

Assim, ainda que se registe uma poupança fiscal decorrente da operação de reestruturação efetuada, considero que o instituto da Cláusula Geral Anti- Abuso não poderá ser aplicado o caso concreto. Desta feita, manifesto uma posição mais próxima da definida no Processo 126/2018-T com uma factualidade idêntica.

 

 

Leonardo Marques dos Santos