SUMÁRIO: A norma do artigo 45º, ns.º 3 do CIRC (redacção de 2014) não é aplicável quando ocorre a determinação – ao Justo Valor – do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação, o valor dos activos – a posição financeira – acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo.
Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), António Martins e Henrique Fiúza, designados para formarem Tribunal Arbitral, na seguinte:
DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 24 de Julho de 2019, A..., S.G.P.S., S.A., NIPC..., com sede em ..., ..., ...-... ..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da demonstração de liquidação de IRC n.º 2018..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018..., relativas ao ano de 2014, no valor de € 141.674,00, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... que teve as referidas liquidações como objecto.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
i. as liquidações impugnadas padecem de erro de qualificação e excesso de quantificação já que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do Código do IRC impõe a concorrência para a formação do lucro tributável, sem reservas ou limitações, dos rendimentos ou gastos que respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor desde que: (i) sejam reconhecidos através de resultados; (ii) se tratem de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado; (iii) e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social não sendo, aplicável à situação sub judice, o artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC.
ii. as liquidações impugnadas padecem de vício de fundamentação, já que do relatório de inspecção não consta fundamentação suficiente para as correcções efectuadas.
3. No dia 24-07-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente procedeu à indicação de árbitro, tendo indicado o Exm.º Sr. Prof. Doutor António Martins, nos termos do artigo 11.º n.º 2 do RJAT. Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, a Requerida indicou como árbitro o Exm.º Sr. Dr. Henrique Fiúza.
5. Os árbitros indicados pelas partes foram nomeados e aceitaram os respectivos encargos.
6. Na sequência de requerimento apresentado pelos árbitros designados pelas partes para que o árbitro-presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi designado árbitro-presidente nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro e do artigo 5.º do Regulamento de Selecção e de Designação de Árbitros em Matéria Tributária, o ora Relator, que, no prazo aplicável, também aceitou o encargo.
7. Em 02-08-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
8. Em conformidade com o preceituado no n.º 7 do artigo 11.º do RJAT, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 07-10-2020.
9. No dia 11-11-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.
10. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
11. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, as partes abstiveram-se de o fazer.
12. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT, com as prorrogações decretadas.
13. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente é uma sociedade Gestora de Participações Sociais e está inserida no CAE 64202 – Actividades das Sociedades Gestoras de Participações Sociais Não Financeiras.
2- Com efeitos a 01-01-2013 e 01-01-2014, a Requerente optou pela tributação nos termos do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS), previsto no artigo 69.º do Código do IRC.
3- Em 2014, a Requerente era a sociedade dominante de um grupo de sociedades tributado pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (RETGS).
4- A Requerente dedica-se à gestão de participações sociais detidas em várias sociedades portuguesas e estrangeiras (Moçambique, Angola e Espanha) do setor da indústria metalomecânica e da metalurgia de base, bem como dos sectores das máquinas e alfaias agrícolas, imobiliário e turismo.
5- Resulta da actividade normal da Requerente a aquisição, detenção e venda de participações sociais, a detenção de títulos (acções) de certas entidades, cotados num mercado regulamentado, e nos quais se verificam alterações do preço de mercado.
6- A Requerente iniciou a sua actividade em 16-12-1993 e adopta um regime de tributação coincidente com o ano civil.
7- No final de 2009, a Requerente detinha uma participação no capital social do Banco B..., inferior a 5%, correspondente a 1.715.953 acções, cujo preço é determinado em mercado regulamentado.
8- O B... é uma entidade cotada e integrante do principal índice de cotações nacional (PSI 20).
9- Até 01-01-2010, as referidas acções encontravam-se registadas ao custo histórico de acordo com o Plano Oficial de Contabilidade (POC).
10- Com a entrada em vigor do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a Requerente procedeu à alteração da política contabilística de mensuração dos instrumentos financeiros, passando do modelo do custo, para o modelo do justo valor.
11- O ajustamento de transição apurado pela Requerente decorrente da aplicação do justo valor às acções do B..., ascendeu a €3.948.044,04.
12- A Requerente relevou na sua contabilidade, como gasto, o montante de €3.948.044,04, na conta de resultados transitados.
13- No exercício de 2014, a Requerente, enquanto sociedade individual, deduziu no campo 705, a título de variações patrimoniais negativas, no âmbito do regime transitório previsto nos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 5.º do DL 159/2019, o montante de €789.608,80, correspondente a 1/5 de €3.948.044,04.
14- Em 29-05-2015, a Requerente submeteu a declaração modelo 22 de IRC do grupo, identificada sob o n.º..., tendo se apurado um resultado fiscal do grupo de €14.951.519,99.
15- Em 12-07-2016, a Requerente entregou uma declaração de substituição do grupo identificada sob o n.º....
16- A Requerente foi objecto de uma acção de inspecção tributária, de âmbito parcial, ao período de tributação de 2014, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2017....
17- A AT efectuou correcções à matéria tributável de IRC no valor de €394.804,40, tendo o lucro tributável do grupo declarado de €14.951.519,99, sido corrigido para €15.346.324,39.
18- A Requerente foi notificada do relatório de inspecção tributária onde consta, além do mais, o seguinte:
19- Na sequência das correcções efetuadas em sede de inspecção, a Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., da demonstração de liquidação de juros n.º 2018... e da demonstração de acerto de contas n.º 2018... .
20- A Requerente não procedeu ao pagamento voluntário das referidas liquidações, pelo que foi instaurado o processo de execução fiscal n.º ...2019... para cobrança coerciva das mesmas.
21- A Requerente prestou garantia bancária n.º ... para suspender o processo de execução fiscal.
22- A Requerente apresentou reclamação graciosa tendo por objecto as referidas liquidações.
23- O pedido de reclamação graciosa foi apreciado pela Divisão de Justiça Tributária -Contencioso da Direcção de Finanças de ...– Unidade dos Grandes Contribuintes, tendo a Requerente sido notificada do projecto de decisão de deferimento parcial da reclamação graciosa e para, querendo, exercer direito de audição.
24- A Requerente não exerceu direito de audição quanto ao projecto de deferimento parcial da reclamação graciosa.
25- Por despacho datado de 06-05-2019, notificado à Requerente em 08-05-2019, foi deferida parcialmente a reclamação graciosa, nos seguintes termos:
a) Indeferimento do pedido relativamente à correcção fiscal de €394.804,40, referente aos ajustamentos de transição ao abrigo dos n.ºs 1, 5 e 6 do artigo 5.º do DL 159/2009, de 13 de julho, conjugado com o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC;
b) Deferimento do pedido relativo aos prejuízos fiscais dedutíveis, anulando-se a correcção fiscal efectuada no montante de €39.909,32.
26- Não se conformando com a decisão que recaiu sobre o procedimento de reclamação graciosa n.º ...2019..., a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados, tendo em conta que, como se escreveu no Ac. do TCA-Sul de 26-06-2014, proferido no processo 07148/13 , “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
Quanto à questão de fundo que se apresenta a decidir nos presentes autos de processo arbitral, está formada uma corrente jurisprudencial arbitral na matéria, tendo também – o que é completamente omisso na argumentação da Requerida, não obstante o conhecer, por nele ser parte – o STA tomado posição expressa na matéria, no âmbito do Acórdão de 06-06-2018, proferido no processo 0582/17.
Assim sendo, seguir-se-á aqui de perto a argumentação clara e precisa do Ilm.º Senhor Juiz Conselheiro Carlos Cadilha, vertida no processo arbitral 345-2018T do CAAD , onde se pode ler:
“4. A questão que vem colocada prende-se com a dedutibilidade como gasto fiscal das variações patrimoniais negativas resultantes dos ajustamentos que decorram da aplicação do justo valor a participações sociais detidas pelo contribuinte.
A Requerente considera que, por efeito da excepção contida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem na íntegra para a formação do lucro tributável desde que se verifiquem os pressupostos definidos nessa norma, ou seja, quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados e, tratando-se de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social. Encontrando-se esses ajustamentos excluídos, consequentemente, da limitação constante do n.º 3 do artigo 45º desse Código.
A Administração Tributária defende, por sua vez, que, não obstante um determinado ajustamento pelo justo valor em resultados fosse enquadrável na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, se o ajustamento fosse negativo, ainda que aceite nos termos da citada disposição, só seria dedutível em 50% do seu valor em aplicação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, que, sendo uma norma de carácter geral, se aplica a todas as variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Deve começar por dizer-se que a questão não tem sido objecto de entendimento uniforme quer na jurisprudência dos tribunais tributários de instância quer na jurisprudência do CAAD.
No sentido da inaplicabilidade do artigo 45º, n.º 3, do Código de IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor pronunciaram-se, entre outras, as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 108/2013-T, 58/2015-T, 208/2015-T, 473/2015-T, 393/2016-T, 155/2017-T e 30/2015-T. As decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 25/2015-T e 90/2016/T formularam o entendimento contrário, considerando que o gasto para efeito do disposto no artigo 18.º, n.º 9, do Código de IRC corresponde a qualquer das rúbricas contabilísticas que possam afectar negativamente o resultado líquido de uma sociedade, aí se incluindo as menos valias decorrentes da redução do justo valor de instrumentos financeiros e estas cabem no âmbito de aplicação do artigo 45.º, n.º 3.
A questão surge entretanto clarificada pelo acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 (Processo n.º 01401/14), cuja doutrina foi mais recentemente reafirmada pelo acórdão do STA de 6 de junho de 2018 (Processo n.º 0582/17), com referência específica aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, e que não se vê agora motivo para dissentir.
As normas de enquadramento geral que mais interessa considerar são as dos artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e 23.º, n.º 1, alínea i), do Código de IRC. A primeira dessas disposições, na redacção vigente à data dos factos, define exemplificativamente como rendimentos os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, enquanto que a segunda, paralelamente, caracteriza como gastos que poderão ser tidos como indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”.
Por sua vez, o artigo 18º, n.º 9, alínea a), do Código de IRC – que aqui está particularmente em foco - determina que “os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, excepto quando “respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social”.
Qualquer destas disposições foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que, na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, pretendeu proceder às alterações necessárias à adaptação do Código de IRC às regras emergentes do novo enquadramento contabilístico.
Nesse sentido, a nota preambular do referido diploma refere o seguinte:
“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.
Nestes termos, o proémio do n.º 9 do artigo 18.º manteve como regra o princípio da realização para os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, afastando-se do critério geral que resulta do n.º 1 desse artigo, que consigna o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, que consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efectivo recebimento ou pagamento. Excepcionam-se apenas os instrumentos de capitais próprios que preencham as características definidas na sobredita alínea a) desse n.º 9, o que significa que, para esses casos, o legislador aproximou a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do justo valor.
5. No caso vertente e face à matéria dada como assente, não pode deixar de entender-se que a Requerente preenche os requisitos da referida disposição do artigo 18º, n.º 9, alínea a), colocando-se apenas a questão de saber se é aplicável a limitação que consta do artigo 45.º, n.º 3.
Esta norma começou por ser aditada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003), correspondendo então ao artigo 42.º, n.º 3, que ostentava a seguinte redacção: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Por outro lado, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (pág. 53), o que se mostra em consonância com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável” (pág. 34).
Entretanto, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2006), alterou a redacção desse artigo 42.º (que foi depois renumerado como artigo 45.º), passando o seu n.º 3 a dispor do seguinte modo: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Deste modo, o legislador alargou a limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias, passando a considerar, para esse efeito, não apenas as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, como também as que resultem da transmissão onerosa de “outras componentes do capital próprio”.
No entanto, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de 2006 continuou a justificar a alteração legislativa no quadro das medidas tendentes ao “combate à fraude e evasão fiscais e outras medidas direccionadas à consolidação orçamental” (pág. 31). O que levou o citado acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 a concluir que a norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, no ponto em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.
E assim, conforme também se reconhece no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, a norma terá visado “de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.
6. Resta agora verificar em que medida a mensuração dos instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados ao justo valor pode ser compatibilizada com a limitação que resulta do artigo 45.º, n.º 3.
O acórdão ultimamente citado responde a esta questão nos seguintes termos.
“O conceito de justo valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística, quer internacionais (Normas Internacionais de Contabilidade), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes. Refere José de Campos Amorim que, “As IAS/IFRS [International Accounting Standard/International Financial Reporting Standards] e o SNC [Sistema de Normalização Contabilística] com as alterações das normas de relato financeiro, introduziram uma maior justiça na valorização dos bens da sociedade com vista aos utentes da situação económica, financeira e patrimonial da sociedade. Esta abertura da contabilidade ao justo valor vai ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir na empresa.
Não é uma informação que pode condicionar determinadas operações económicas ou financeiras, como, por exemplo, o aumento ou a diminuição de capital, mas que é de uma grande relevância para o investidor que pretende ter uma noção real e atual dos ativos da empresa. É por esse motivo que a contabilidade está orientada não para o custo histórico mas para o valor atual dos ativos.”, cfr. O justo valor e as suas implicações fiscais, IV Congresso de Direito Fiscal, Vida Económica, pág. 168.
Portanto, a consideração do justo valor, no que aqui nos interessa (…) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do Código de IRC se encontra directamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, e no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos - realização das mais ou menos valias - passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de acções de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.
Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo justo valor são meramente potenciais ou provisórias - o valor dos activos consubstancia-se numa posição financeira - porque não há uma efectiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais.
Não há, assim, qualquer dúvida que (…) à posição financeira negativa resultante do justo valor, não lhe “subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo” (cfr. Tomás Castro Tavares, idem, págs. 1143 e 1144).”
Nota-se ainda que a norma do artigo 45.º/3 do Código de IRC tem uma relação teleológica com a norma do art.º 48.º do mesmo Código, em especial, no que para o caso releva, com o seu n.º 4, na medida em que a concorrência negativa em metade do valor para a formação do lucro tributável imposta pela primeira das referidas normas é, compensada, pela concorrência positiva em igual medida (metade do valor), prevista pela segunda.
Contudo, nesta última norma, o legislador impôs condições, sendo que uma delas é a de que o beneficiário dessa redução da base tributável ter de reinvestir o valor que realizou com a venda dos bens que geraram o saldo positivo entre as mais-valias e as menos valias.
Sucede que, em relação aos ganhos relativos à contabilização das partes de capital pelo modelo do justo valor, emerge uma impossibilidade, já que quando a entidade que obtém um rendimento (ganho) resultante da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, fica impossibilitada de aproveitar a redução do valor sujeito a imposto a metade do seu valor.
Efectivamente, para que isso fosse possível, a sociedade teria de reinvestir o valor de realização dos bens que geraram a “mais-valia” (ganho/rendimento) em causa, sendo que, no modelo do justo valor não há um valor de realização a reinvestir, pelo que não é possível cumprir a obrigação de reinvestimento.
Por não existir valor de realização no modelo do justo valor, nem de facto nem de direito (p. ex. o legislador podia ter equiparado a utilização do justo valor ao valor de realização ou ter estabelecido uma presunção de venda e compra sucessiva) o reinvestimento do valor de realização torna-se impossível de cumprir, no caso de o saldo dos ganhos e das perdas geradas com a utilização do modelo do justo valor na contabilização dos instrumentos financeiros
Tal impossibilidade, que determina a não aplicação do benefício da tributação da “mais-valia” gerada pelo justo valor, em metade do seu saldo positivo, também deve determinar que a “menos-valia” gerada com a aplicação do modelo do justo valor aos investimentos financeiros, não possa ser deduzida em metade do seu valor, pelo que ambos – rendimento e gasto – deverão integrar o lucro tributável pela totalidade.
Acresce ainda que a parte do nº 3 do artigo 45º - à data artigo 42º - que refere “…bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio…” foi acrescentada ao respectivo nº 3 pela Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que o modelo do justo valor só apareceu pela primeira vez no código do IRC com Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, que procedeu à adaptação do código do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade, motivo pelo qual não se poderá sustentar que o legislador, com o aditamento feito em 2005, teria querido enquadrar na lei os ganhos ou perdas relativos a uma realidade que só viria a nascer em 2009, muitos anos depois, dado que o modelo do justo valor não fazia parte dos normativos contabilísticos nem das leis fiscais.
Tendo por base todos estes considerandos, torna-se possível concluir que a norma do artigo 45º, n.º 3 do Código de IRC, interpretada de acordo com o fim visado pelo legislador e tendo presente a conjuntura que determinou a decisão legislativa, não pode ser entendida como abrangendo os gastos resultantes da aplicação do justo valor num mercado regulado, caso em que a vontade do contribuinte não releva para a valorização ou desvalorização dos activos financeiros, e nenhuma razão subsiste para a penalização desses gastos para efeitos fiscais.
Entende-se, em conformidade, e na linha do julgado no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, que a diferença negativa releva na totalidade para a formação do lucro tributável, e não apenas em metade do seu valor, pelo que se mostra ser ilegal a correcção efectuada em IRC pela Autoridade Tributária.
Por fim, resta considerar que não tem qualquer relevo para o caso o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, que vem invocado pela Requerida. O aresto limitou-se a julgar não inconstitucional a norma do artigo 45.º, n.º 3, do Código de IRC no confronto com os princípios da proibição da retroactividade da lei fiscal, da protecção da confiança e da tributação segundo o rendimento real. No caso vertente, não vem suscitada, porém, qualquer questão de constitucionalidade e tudo se reconduz à interpretação da norma no plano do direito infraconstitucional.”.
Dando o Acórdão transcrito resposta cabal a todas as questões pertinentes que se apresentam a elucidar na matéria, em termos que se subscrevem plenamente, poucas considerações haverá a acrescentar.
Não obstante, a respeito da questão ligada ao elemento literal da norma do art.º 45.º/3 do CIRC aplicável, questão não abordada no aresto supracitado, e que está, tanto quanto se compreende, na base da declaração de voto lavrada no processo arbitral n.º 351/2016-T do CAAD , sempre se remeterá para o quanto foi escrito a este propósito, na decisão do processo arbitral 77/2016T do CAAD , referindo-se unicamente que não se poderá enquadrar na letra do art.º 45.º/3 do CIRC aplicável, alargando sem qualquer argumento teleologicamente fundado o conceito de “perdas”, uma realidade que aquela não abrange que são os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do nº 9 do artigo 18.º.
Ou seja: não se poderá, julga-se, pressupor que se leia no art.º 45.º/3 uma coisa que não está lá escrita, designadamente que se leia como referindo-se a “gastos/perdas”, quando a letra da lei refere, apenas a “perdas”. Daí que seja, crê-se, ilegítima a invocação do argumento literal da interpretação da lei para sustentar a posição defendida pela Requerida nos autos, não se podendo concluir que o conceito de perdas deverá ser entendido como incluindo gastos e perdas, sem que se justifique que na situação dos autos estamos perante um situação qualificável, à luz do CIRC, como de perda, quando, pelo contrário, se está perante um gasto.
Acresce ainda que os tribunais em geral, e também os tribunais arbitrais, julga-se, estão vinculados ao dever de ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (art.º 8.º/3 do Código Civil).
Por outro lado, e nos termos do art.º 25.º/2 do RJAT, “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.”.
Daí que uma decisão, na matéria sub iudice, que vá contra a jurisprudência firmada pelo STA na matéria, verificando-se, como se verifica, identidade fundamental dos factos e do direito a aplicar a este, entre o presente caso, e o já julgado pelo STA, seria, não só susceptível de recurso nos termos do referido art.º 25.º/2 do RJAT, como, com um elevado grau de probabilidade, passível de ser revogada por aquele Alto Tribunal.
Assim, e em suma, não se crê que tivesse qualquer utilidade, pelo contrário (daria azo a tramitação processual adicional inútil e desnecessária), este Tribunal concluir de outra forma, na matéria ora em apreço.
Deste modo, e face a todo o exposto, deverá proceder integralmente o pedido arbitral, sendo anulados os actos tributários objecto da presente acção arbitral, ficando prejudicado o conhecimento do vício de fundamentação arguido pela Requerente.
***
A Requerente formulou pedido de indemnização por garantia indevida.
A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais tributários restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito, conforme resulta expressamente da alínea b) do art.º 24.º do RJAT.
No mesmo preceito “o legislador deixou claro que os efeitos aí previstos são “sem prejuízo dos demais efeitos previstos no Código do Procedimento e do Processo Tributário”. Considera-se a este propósito que o legislador aqui se está a referir a todos os efeitos que decorram do CPPT, para o sujeito passivo, e que são aplicáveis após a consolidação na ordem jurídica de uma determinada situação jurídico-fiscal, decorrente de uma decisão definitiva seja ela graciosa ou judicial.” .
Não obstante o processo de impugnação judicial ser essencialmente um processo de mera anulação, pode nele ser proferida condenação da Administração Tributária no pagamento de indemnização por garantia indevida, conforme resulta do art.º 171.º do CPPT.
Como se referiu na decisão proferida no Processo nº 28/2013-T “é inequívoco que o processo de impugnação judicial abrange a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação. O pedido de constituição do tribunal arbitral tem como corolário passar a ser no processo arbitral que vai ser discutida a «legalidade da dívida exequenda», pelo que, como resulta do teor expresso daquele n.º 1 do referido art. 171.º do CPPT, é também o processo arbitral o adequado para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida.”
Conclui-se, assim, que este tribunal é competente para apreciar o pedido de indemnização por garantia indevidamente prestada.
O regime do direito a indemnização por garantia indevida consta do artigo 53.º da LGT, que estabelece o seguinte:
“1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.”
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”
No caso em apreço, verifica-se que o erro de que padece o acto de liquidação anulado é imputável à Entidade Requerida pois a liquidação foi da sua iniciativa e a Requerente em nada contribuiu para que esse erro fosse praticado.
Tem, por isso, a Requerente direito a indemnização pela garantia prestada.
No entanto, não foram alegados nem provados os encargos que a Requerente suportou para prestar a garantia, pelo que é inviável fixar aqui a indemnização a que aquela tem direito, o que poderá ser efectuado, se necessário, em execução desta decisão.
*
C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular a liquidação de IRC n.º 2018..., a demonstração de liquidação de juros n.º 2018... e a demonstração de acerto de contas n.º 2018..., relativas ao ano de 2014, no valor de € 141.674,00, assim como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... que teve os referidos actos como objecto;
b) Condenar a Requerida no pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, em montante que vier a ser fixado, se necessário, em execução da presente decisão.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 141.674,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 02 de Outubro de 2020
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
O Árbitro Vogal
(António Martins)
O Árbitro Vogal
(Henrique Fiúza)
(Com declaração de voto)
Declaração de voto
Com todo o respeito pelas fundamentações da presente decisão arbitral e das decisões proferidas no âmbito do CAAD nos processos mencionados na presente pronúncia arbitral, bem como nos mencionados acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), porque no fundamental não nos revemos nelas, entendemos emitir a presente declaração de voto.
A argumentação base usada na presente decisão e nas pronúncias arbitrais emitidas no âmbito do CAAD, bem como dos acórdãos do STA referidos na presente pronúncia arbitral, centram a sua posição em três vectores, que resumidamente se podem apresentar como segue:
1. O nº 3 do artigo “45º - Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais” foi criado com a intenção de combater a fraude e a evasão fiscal que a dedução das menos-valias com a transmissão onerosa de instrumentos financeiros poderia propiciar;
2. O nº 3 do artigo 45º teve a intenção de alargar a base tributável do IRC (por redução dos gastos a considerar como dedutíveis fiscalmente); e
3. Como o justo valor é determinado por um mercado regulado, não dependendo do jogo de interesses do contribuinte, e por isso não sendo propício à evasão fiscal, a limitação imposta pelo nº 3 do artigo 45º não faz sentido no caso das perdas do justo valor em participações sociais.
Esta leitura do nº 3 do artigo 45º do CIRC, com o devido respeito, enferma de um erro que é a de considerar que o mesmo é uma norma de caracter geral com fins de combate à evasão fiscal e de alargamento da base tributável, com o qual não se pode concordar.
Para tal, procedemos ao levantamento do historial da lei e, de tal trabalho, pode facilmente concluir-se que esta norma não foi criada com um fim geral de combate à fraude e à evasão fiscal e de alargamento da base tributável, mas com um fim específico e claramente definido: quando em 2002 a lei passou a excluir da tributação metade das mais-valias realizadas com a alienação onerosa de partes de capital, o legislador não acautelou uma norma simétrica que evitasse o uso da realização de menos-valias com a alienação onerosa de partes de capital, como forma de diminuir o lucro tributável e o imposto a pagar, uma vez que a diferença negativa das mais-valias e das menos-valias era dedutível para efeitos fiscais pela totalidade do seu valor. Isto é, o saldo das mais-valias e das menos-valias obtidas com a alienação onerosa de partes de capital, quando positivo, era sujeito a tributação em metade do seu valor e quando negativo era dedutível na totalidade.
Perante a falta de simetria da lei, o legislador corrigiu no ano seguinte tal situação, tendo criado o nº 3 do artigo 45º para, no que respeita à tributação das mais-valias e das menos-valias, a tornar simétrica e, por isso, mais justa e equitativa.
Assim, a partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que tenham procedido à transmissão onerosa de partes de capital e que tenham feito o reinvestimento dos valores de realização, foram tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado passou a ser considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
Com o devido respeito pelas fundamentações produzidas nas decisões tomadas como referência, entendemos que foi este o motivo da criação do nº 3 do artigo 45º do CIRC e não as justificações e argumentações que são produzidas nas pronúncias arbitrais e nos acórdãos do STA dados como referência na presente pronúncia arbitral.
É o que nos propomos fazer na argumentação que se apresenta de seguida.
A tributação da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado corpóreo foi, desde a criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), objecto de um tratamento fiscal mais favorável que outros tipos de rendimentos.
Desde a sua criação (1 de Janeiro de 1989) até à publicação da Lei nº 71/93 de 26 de Novembro (Lei do Orçamento Suplementar ao Orçamento do Estado para 1993) a diferença positiva entre as mais-valias e as menos valias realizadas em cada ano, era excluída da tributação em IRC na sua totalidade.
Após a alteração legislativa de trazida pela Lei nº 71/93 de 26 de Novembro, o regime das mais-valias deixou de constituir uma exclusão da sua tributação, passando a consubstanciar um mero diferimento da tributação. Isto é, no exercício em que ocorria a alienação onerosa dos elementos do activo imobilizado corpóreo, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias não concorria para a formação do lucro tributável, mas, em contrapartida, as reintegrações dos bens nos quais se tenha concretizado o reinvestimento dos valores de realização, não eram fiscalmente dedutíveis na parte correspondente ao saldo positivo das mais-valias e das menos-valias que, para o efeito, foi imputada ao valor de aquisição de cada bem.
Foi uma solução que pretendia introduzir mais justiça na atribuição deste benefício, mas que trouxe, na prática, mais trabalho administrativo aos contribuintes e maiores dificuldades de controlo à Administração Fiscal.
A solução legislativa que passou a prever a tributação de apenas metade do saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias geradas num dado exercício, sujeito ao reinvestimento do valor de realização, foi introduzida no código do IRC pela lei do Orçamento do Estado para 2002, a Lei nº 109-B/2001 de 29 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 45º do CIRC seria alterado como segue, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2002:
“Artigo 45.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 – Para efeitos de determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado corpóreo, detidos por um período não inferior a um ano, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no exercício anterior ao da realização, no próprio exercício, ou até ao fim do segundo exercício seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos elementos seja reinvestido na aquisição, fabricação ou construção de elementos do activo imobilizado corpóreo afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º.
2 - ...............................................................................................................................................
3 - ...............................................................................................................................................
4 – O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de partes de capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial com sede ou direcção efectiva em território português ou ainda em títulos do Estado português;
b) As partes de capital alienadas devem ter sido detidas por um período não inferior a um ano e corresponder a, pelo menos, 10% do capital social da sociedade participada.
5 – Para efeitos do disposto nos n.ºs 1, 2 e 4, os contribuintes devem mencionar a intenção de efectuar o reinvestimento na declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 109.º, do exercício da realização, comprovando na mesma e nas declarações dos dois exercícios seguintes os reinvestimentos efectuados.
6 – Não sendo concretizado, total ou parcialmente, o reinvestimento até ao fim do segundo exercício seguinte ao da realização, considera-se como proveito ou ganho desse exercício, respectivamente, a diferença ou a parte proporcional da diferença prevista nos n.ºs 1 e 4 não incluída no lucro tributável, majorada em 15%.
Ao longo do ano de 2002, com a nova lei, o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias realizadas em cada ano era tributado em metade do seu valor, na condição de o sujeito passivo reinvestir a totalidade do valor de realização dos bens que geraram as respectivas mais-valias e menos-valias. Porém, nos casos em que o saldo entre as mais-valias e as menos-valias geradas em cada ano fosse negativo, o sujeito passivo poderia deduzir na totalidade desse saldo negativo.
Detectada esta situação de iniquidade da solução legislativa que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2002, o legislador tratou de a corrigir, para que a nova lei entrasse em vigor no dia 1 de janeiro de 2003. Tal correcção da iniquidade existente foi efectuada pela lei do Orçamento do Estado para o ano de 2003, a Lei nº 32-B/2002 de 30 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 42º do CIRC seria alterado como segue:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 - ...
2 - ...
3 - A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. (sublinhado nosso)
Com esta alteração, a lei, no que respeita à tributação das mais-valias obtidas com a transmissão onerosa de partes de capital de sociedades com sede ou direcção efectiva em território português, ficou mais equilibrada, mais equitativa. O princípio da simetria vingou.
A partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que procedam à transmissão onerosa de partes de capital, em determinadas condições, e que façam o reinvestimento dos valores de realização, serão tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias geradas em cada ano. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado será considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
Esta foi a razão de ser do nº 3 do artigo 45º do código do IRC. A sua ratio foi corrigir a solução legislativa criada no ano anterior, por esta se ter mostrado desequilibrada, por não cumprir o princípio da simetria.
Passados 3 anos, a Lei do Orçamento do Estado para 2006 (Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro) veio alterar o nº 3 ao artigo 42º do código do IRC, ficando como a seguir se transcreve:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — …
2 — ….
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. (sublinhado nosso)
4 — …
Esta alteração do texto legal teve um objectivo bem claro e preciso, sem os fins gerais que alguns lhe querem atribuir. Este novo texto do nº 3 tem de ser interpretado no âmbito da transmissão onerosa de partes de capital e de acordo com a intenção do legislador à data. Tendo sempre em mente que o regime das mais-valias e das menos-valias realizadas é de aplicação exclusiva às transmissões onerosas (ou equiparadas).
E a alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, realizadas mediante transmissões onerosas, alargar o leque de activos financeiros que passaram a ter o mesmo tratamento que as partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que poderíamos acrescentar as prestações acessórias, as reservas e os instrumentos de capital contingente (CoCo’s) - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital, já previstas anteriormente para o capital e agora alargadas a outras componentes do capital próprio que não o próprio capital.
A alteração efectuada neste nº 3 teve por objectivo incluir nele as perdas geradas com a transmissão onerosa de outras componentes do capital próprio que não o capital social. Ou seja, quis incluir na lei, entre outras, as perdas com a transmissão ou com o reembolso de prestações suplementares, com a transmissão ou com o reembolso de prestações acessórias, com a transmissão ou com o reembolso de títulos de capital contingente (CoCo’s) e equiparados. Perdas estas que não estavam previstas no referido nº 3 antes da alteração legislativa, sendo até então dedutíveis na totalidade para efeitos fiscais.
Como se disse já, o nº 3 do artigo 42º do código do IRC foi criado no âmbito das mais-valias e das menos-valias geradas com a transmissão onerosa de partes de capital e depois alargado a perdas em outras componentes do capital próprio (geradas por transmissão onerosa), e é nesse âmbito que a sua interpretação deve ser feita.
Motivo pelo qual, como se concluirá mais à frente, este nº 3 não pode ser aplicável às reduções de valor das participações sociais com preço formado em mercado regulamentado, pela utilização do modelo do justo valor.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho.
As alterações mais relevantes para apreciação do caso, são as a seguir indicadas, com os artigos já renumerados para efeitos da sua republicação (com negrito e sublinhado nosso).
Artigo 18º
Periodização do lucro tributável
1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 - …
9 — Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando- se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.
10 - …
Artigo 20º
Rendimentos
1 — Consideram- se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:
a) …
f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
g) …
h) Mais-valias realizadas;
i) …
Artigo 21.º
Variações patrimoniais positivas
1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;
Artigo 23.º
Gastos
1 — Consideram- se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:
a) . . .
i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
j) …
l) Menos-valias realizadas;
Artigo 24.º
Variações patrimoniais negativas
Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;
Artigo 45.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:
…
2 — …
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
NOTA: o nº 3 do artigo 42º não foi alterado pelo Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, mantendo o texto que se encontrava em vigor desde 1 de Janeiro de 2006.
Artigo 46.º
Conceito de mais-valias e de menos-valias
1 — Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:
a) Activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda;
b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º
Artigo 48.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de activos fixos tangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, detidos por um período não inferior a um ano, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no período de tributação anterior ao da realização, no próprio período de tributação ou até ao fim do segundo período de tributação seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos activos seja reinvestido na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º
2 — . .
3 — . . .
4 — O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de participações no capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial ou em títulos do Estado Português, ou na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, nas condições referidas na parte final do n.º 1;
b) . . .
É no quadro jurídico apresentado que importa aferir se as correcções efectuadas pela Requerida ao lucro tributável da Requerente, por referência ao período de tributação de 2010, enfermam alguma ilegalidade.
Em resumo, poder-se-ia dizer que, a questão que vem colocada se prende com a dedutibilidade como gasto fiscal dos gastos registados com os ajustamentos que decorreram da aplicação do justo valor às participações sociais detidas pela Requerente em 31 de Dezembro de 2009.
Mais precisamente, o que cabe ao Tribunal aferir é se as perdas apuradas com a utilização do modelo do justo valor às partes de capital detidas em 31 de Dezembro de 2009 pela Requerente é aplicável, ou não, a limitação da dedução a metade do seu valor prevista no nº 3 do artigo 45º do código do IRC.
Para tal, haverá que saber se a perda (ou gasto) em causa é caracterizada como um “gasto resultante da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 23º do CIRC ou se se trata de uma menos-valia enquadrável na alínea l) do mesmo número e artigo.
Caracterizado o gasto como pertencente a um tipo ou a outro, ter-se-á encontrado a resposta à questão colocada.
A lei (Decreto-Lei nº 442-B/88) que trata as mais-valias e as menos-valias (em IRC) data de 30 de Novembro de 1988 e entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1989. A tributação das mais-valias e menos-valias foi sofrendo várias alterações e ajustamentos para chegar em 2010 aos textos que são reproduzidos acima.
Como se demonstrou atrás, o nº 3 do artigo 45º do código do IRC foi criado para vigorar a partir de 1 de Janeiro de 2003 com a intenção de balancear a dedução de apenas metade do saldo negativo das mais-valias e menos-valias geradas com a transmissão de partes de capital, com a não tributação de metade do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias geradas com a transmissão de activos do mesmo tipo, de acordo com o nº 4 do artigo 48º, que tinha sido criado um ano antes.
Ou seja, estando num prato da balança uma norma que, sob condição de reinvestimento do valor de realização, previa a tributação de apenas metade da diferença positiva das mais-valias e das menos-valias geradas com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 4 do artigo 48º), o legislador colocou no outro prato da balança uma norma que previa a dedução de apenas metade da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias gerada com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 3 do artigo 45º). Este equilíbrio da lei é característica de um sistema fiscal justo e equitativo.
E a inclusão na lei do princípio da simetria é a harmonização estrutural do modelo de tributação do saldo das mais-valias e das menos-valias.
Assim, desde 1 de Janeiro de 2003, sob condição de reinvestimento do valor de realização, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais, em determinadas condições, é tributada em metade do seu valor e a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais é dedutível para efeitos fiscais em metade do seu valor.
A simetria implica um tratamento equitativo dos ganhos e das perdas – se aqueles são tributáveis, estas devem ser dedutíveis, ambos na mesma proporção.
Cumpre lembrar que as normas em referência entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2002 e em 1 de Janeiro de 2003.
No ano de 2005, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2006, foi alterado o nº 3 do artigo 42º que passou a ter a seguinte redacção, tendo-lhe sido acrescentada a parte a sublinhado.
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
E, como já ficou dito, tal alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, realizadas mediante transmissões onerosas, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que acrescentaríamos as prestações acessórias, as reservas e os instrumentos de capital contingente (CoCo’s), a título de exemplo - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital, já previstas anteriormente para o capital e agora alargadas a transmissões onerosas de outras componentes do capital próprio que não capital.
A alteração efectuada neste nº 3 teve por objectivo nele fazer incluir as perdas geradas com a transmissão onerosa de outras componentes do capital próprio que não o capital social. Ou seja, quis incluir na lei as perdas com a transmissão ou o reembolso de prestações suplementares, com a transmissão ou o reembolso de prestações acessórias, com a transmissão ou o reembolso de títulos de capital contingente (CoCo’s) e equiparados. Que, sem esta alteração, seriam dedutíveis na totalidade.
Faz-se notar que, não é imaginável que, em 2005, o legislador alterasse a lei porque previa que em 2010 iria entrar em vigor o SNC e que essa realidade poderia vir a gerar perdas que só deveriam ser aceites como gastos fiscais em metade do seu valor, tendo acautelado nessa data uma realidade que só quatro anos depois veio a acontecer.
E se assim fosse, se o legislador tivesse a capacidade de adivinhar, deveria ter criado outro número do artigo 45º para nele colocar a limitação da dedução a metade do seu valor das desvalorizações geradas pela utilização do modelo do justo valor em partes de capital transacionado em mercado regulamentado. Porque aquele nº 3 é aplicável exclusivamente ao saldo negativo das mais-valias e das menos-valias e de outras perdas geradas mediante transmissão onerosa de partes de capital e de outras componentes do capital próprio. O que não é o caso das perdas resultantes da aplicação do justo valor.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2010 ou no período de tributação com início posterior a esta data.
Esta nova lei, veio claramente distinguir os ganhos considerados como mais-valias, e as perdas como menos-valias, dos ganhos e das perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em investimentos financeiros, entre os quais se destacam as participações sociais cotadas em mercados regulados.
Nas alterações ao código do IRC para a sua adaptação ao SNC, o legislador teve o cuidado de distinguir claramente os “rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” (artigo 20º, nº 1, alínea f)) das “mais-valias realizadas” (artigo 20º, nº 1, alínea h)), bem como os “gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros (artigo 23º, nº 1, alínea i)) das “menos-valias realizadas” (artigo 23º, nº 1, alínea l)), para que ficasse claro que umas e outras realidades não se confundem.
A nova lei, também na alínea b) do nº 1 do artigo 46º, refere de forma clara que os ganhos e as perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais não são mais-valias nem menos-valias.
Como tal, sendo o nº 3 do artigo 42º do CIRC uma norma aplicável, exclusivamente, ao saldo negativo das mais-valias e das menos-valias e de outras perdas geradas mediante transmissão onerosa de partes de capital ou de outras componentes do capital próprio, fica claro que tal norma não é aplicável às perdas apuradas pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais.
E não se diga que, aquando das alterações ao código do IRC para a adaptação ao SNC, o legislador não alterou o referido nº 3 por considerar que as perdas pelo modelo do justo valor já nele estavam incluídas, dir-se-á que o legislador não alterou o nº 3 porque sabendo que essas perdas lá não estavam, não poderia excluir uma realidade que lá não estava incluída.
As perdas pela utilização do justo valor (obviamente) não estavam no nº 3 antes da alteração legislativa de 2010 (adaptação do CIRC ao SNC) nem nele passaram a estar depois dessa alteração, porque, como ficou demonstrado, em momento algum poderiam lá estar, por um lado pela imposição do princípio da simetria, e por outro, porque as perdas por utilização do justo valor em partes de capital não são geradas no âmbito de transmissões onerosas.
E como se referiu antes, o nº 3 do artigo 42º (à data artigo 45º) nasceu (em 2003) da necessidade de estabelecer uma clara simetria entre a tributação das mais-valias e a dedução das menos-valias geradas com a transmissão onerosa de partes de capital, alargado posteriormente (em 2006) à transmissão onerosa de outras componentes do capital próprio. Sempre no âmbito de transmissões onerosas, o que não é o caso das perdas pela utilização do justo valor.
Estes são os motivos pelos quais entendo que as perdas apuradas com a utilização do justo valor em participações sociais com preço fixado em mercado regulado – vulgo, bolsa de valores – devem ser consideradas como perdas para efeitos fiscais pela totalidade do seu valor.
Embora não concordando com a fundamentação produzida ao longo da presente pronúncia arbitral, entendo que o nº 3 do artigo 45º do CIRC não é aplicável às perdas apuradas com a utilização do modelo do justo valor em participações sociais com preço formado em mercado regulamentado, acompanhando, por isso, a decisão proferida.
O árbitro
Henrique Fiúza
(Economista)