DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., S.A. - EM LIQUIDAÇÃO, contribuinte fiscal n.º..., com sede na Rua ... n.º..., ...-... ..., apresentou, em 18-10-2019, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida, ou ATA).
2. A Requerente pretende, em cumulação de pedidos, a declaração de ilegalidade do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa, que apresentou, relativamente às liquidações de Imposto do Selo n.ºs 2015..., 2015... e 2015..., de 20.03.2015, referentes a 2015, no valor agregado de 22.321,89 € e n.ºs 2016..., 2016... e 2016..., de 05.04.2016, referentes a 2016, no valor agregado de 22.321,89 €, o que perfaz o valor global de 44.643,78 €, com a consequente devolução do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 21-10-2019.
3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal arbitral, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 10-12-2019 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 13-01-2020.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
4. Com o pedido de pronúncia arbitral defende a Requerente que as liquidações de Imposto do Selo impugnadas são ilegais, com fundamento em diversos erros na aplicação do direito, imputáveis à AT, resultantes da violação da Verba 28.1 da TGIS e dos artigos 77.º da LGT, 153.º do CPA e 268.º, n.º 3, da CRP, na redação em vigor à data dos factos, e em erro sobre os pressupostos de facto (qual seja o de considerar que o Terreno para construção tinha edificação prevista ou autorizada para habitação).
Sustenta, em suma, que todos os pressupostos de revisão oficiosa estão preenchidos uma vez que: (i) o pedido de revisão oficiosa é da iniciativa da AT (embora no caso em apreço, a pedido da Requerente); (ii) o pedido de revisão oficiosa foi apresentado no prazo legal de 4 anos a contar da data das Liquidações Contestadas; e (ii) as Liquidações Contestadas resultam inequivocamente de erros imputáveis aos serviços. Em face do que a AT estava obrigada a emitir pronúncia sobre o mesmo no prazo legal de 4 meses a contar da apresentação do mesmo, o que não fez.
O que está em causa no presente pedido arbitral é a ilegalidade das liquidações contestadas emitidas nos termos da Verba 28.1. da TGIS (na redação em vigor à data dos factos) sobre um terreno para construção da titularidade da Requerente (no pressuposto errado de que o mesmo tinha, em 31.12.2014 e em 31.12.2015, uma edificação prevista ou autorizada exclusivamente para habitação). Não se verificando o referido pressuposto com base no qual foram emitidas as liquidações contestadas, é evidente que as mesmas assentam em erro sobre pressupostos de facto imputável à AT.
Acresce que a AT incorreu igualmente em erro na aplicação do direito na medida em que, conforme referido, não se mostra preenchido um dos pressupostos legais de que depende a tributação dos terrenos para construção em Imposto do Selo da Verba 28.1 da TGIS e, em concreto, que “(…) a edificação, prevista ou autorizada [dos terrenos para construção], seja para habitação”.
Sendo certo que a natureza mista do terreno para construção resultava patente do Alvará de loteamento na posse da AT (que é o único elemento relevante para efeitos de tributação em Imposto do Selo), estando devidamente refletida na própria matriz predial urbana à data da emissão das liquidações contestadas. De facto, o que releva para efeitos de incidência em Imposto do Selo é a edificação prevista ou autorizada de acordo com as regras urbanísticas.
No caso em apreço, tal edificação prevista ou autorizada resulta do Alvará de Loteamento n.º.../2000 que foi emitido em 2002, sendo totalmente irrelevante a informação constante da matriz predial (a qual, reitere-se, não tem força probatória plena nem prevalece sobre a informação constante do Alvará de loteamento) ou o coeficiente de localização indevidamente aplicado pela AT aquando da avaliação do Terreno para construção.
As liquidações contestadas padecem ainda de vício de falta de fundamentação substancial uma vez que a AT não demonstrou, como se impunha nos termos legais, que o terreno para construção tinha edificação prevista ou autorizada exclusivamente para habitação (refira-se, em qualquer caso, que tal fundamentação sempre seria impossível uma vez que a edificação prevista ou autorizada do terreno para construção não é nem nunca foi exclusivamente para habitação).
Tendo as liquidações contestadas sido emitidas com base no pressuposto errado de que o destino previsto ou autorizado para o terreno para construção era para habitação, naturalmente que a mesma assenta em erro sobre os pressupostos de facto, o qual é inequivocamente imputável aos serviços.
Invocam, em favor do seu entendimento, jurisprudência diversa, quer arbitral, quer dos nossos Tribunais superiores.
Conclui requerendo a anulação das liquidações com a consequente restituição do imposto pago acrescido de juros indemnizatórios.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese:
A Subdirectora-Geral dos Impostos, por despacho datado de 15.11.2019, revogou parcialmente os actos de liquidação acima identificados. Assim, na medida em que o acto de revogação parcial das liquidações da Verba 28.1 da TGIS foi praticado no período a que se refere o art. 13º do RJAT, e teve como efeito a emissão, em 18.01.2020, das liquidações correctivas de imposto da Verba 28.1 da TGIS dos anos de 2014 e 2015, cuja impugnação se mantém na presente instancia, o objecto imediato e mediato do presente pedido arbitral reconduz-se a estas liquidações, no montante global de 34.113,46 €.
No caso em apreço, os terrenos para construção foram objeto de avaliação em 2011-09-21, sendo que, de acordo com a ficha de avaliação n.º..., este tinha duas afectações: habitação e comércio, sendo o seu valor patrimonial tributário (VPT) de € 2.183.070,00.
E o VPT dos terrenos para construção cujas edificações, autorizadas ou previstas tenham diferentes afetações, é determinado em função da área de construção destinada a cada uma dessas afetações, isto é, o VPT total é calculado pela soma dos VPT parcelares atribuídos às suas partes economicamente independentes, sem prejuízo da regra de arredondamento prevista no n.º 2 do artº. 38º. do CIMI.
Da avaliação efectuada resultou um VPT (habitação) de € 1668.10,90, pelo que, este terreno para construção era susceptível de integrar o âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS, uma vez que o VPT da parte do prédio afeta a habitação (VPTh) era superior a € 1.000.000,00.
Assim, considerando a atualização prevista no nº 2 do art. 38º do CIMI, o valor afeto à habitação é de € 1.705.663,84, ou seja, de montante superior a € 1.000.000,00, pelo que, o terreno para construção inscrito na matriz predial da freguesia de ... (...), no concelho de Sesimbra, sob o artigo ..., era suscetível de integrar o âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS, na parte respeitante a habitação.
No que respeita à alegada falta de fundamentação, os argumentos aduzidos na douta petição, fenecem face às notas de cobrança das liquidações verba 28.1 da TGIS dos anos de 2014 e 2015, porquanto, é expressa a referência à identificação matricial do prédio inscrito, ao seu valor patrimonial, ao ano de imposto, à data da liquidação, à norma legal aplicada, à taxa utilizada para determinar o montante de imposto e ao valor da colecta.
Conclui a Requerida pela legalidade dos actos de liquidação contestados pela Requerente que deverão, assim, ser mantidos.
6. Por despacho de 03-03-2020, foi dispensada a reunião do artigo 18º do RJAT, bem como, com a anuência das partes, a apresentação de alegações.
Veio, todavia, a Requerente apresentar requerimento em que defende que, sem prejuízo de aceitar expressamente a revogação parcial das liquidações contestadas, a mesma não afasta a ilegalidade das mesmas relativamente a terrenos com edificação prevista ou autorizada mista, como é o caso.
Em observância com o princípio de colaboração das partes com o Tribunal, foi solicitada às partes a apresentação dos respectivos articulados em formato word, o que só a Requerente fez, não podendo, contudo, deixar de ser advertida que os ficheiros a remeter ao Tribunal deverem corresponder exactamente ao que consta dos autos, o que não foi o caso.
II – SANEAMENTO
7.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
7.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
7.3. A cumulação de pedidos é legítima (artigo 3º, n.º 1 do RJAT).
7.4. O processo não enferma de nulidades.
7.5. Não foram suscitadas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
III.1. Matéria de facto
Atendendo às posições assumidas pelas partes e à prova documental junta aos autos – tendo presente que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado (cfr. artº. 596.º, nº.1 e 607º, nºs.2 a 4, do CPC), e consignar se a considera provada ou não provada (cfr. artº.123.º, nº.2, do CPPT) – consideram-se, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, os seguintes factos:
a) A Requerente foi declarada insolvente, por sentença proferida em 31-10-2012, no âmbito do processo n.º .../12...TYLSB que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa;
b) Em 31-12-2014 e 31-12-2015 a Requerente era proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial U-... da freguesia de ... (...), concelho de Sesimbra e distrito de Setúbal;
c) O prédio em causa corresponde a terreno para construção referente ao Lote 8, constante do Alvará de Loteamento n.º .../2000, dispondo de edificação prevista ou autorizada para habitação, comércio e estacionamento;
d) Na Caderneta Predial do prédio em causa constava o item "Tipo de Coeficiente de Localização: Habitação" e "Justificativo: trata-se de um terreno com diferentes afectações com as seguintes áreas máximas; habitação= 5.314 m2, comércio=1.748 m2, estacionamento=3.000 m2";
e) A Requerente foi notificada das liquidações de Imposto do Selo n.º 2015-..., 2015-... e 2015-..., de 20.03.2015, referentes a 2015, no valor de 22.321,89 € e n.º 2016-..., 2016-... e 2016-..., referentes a 2016, no valor de 22.321,89 €;
f) As liquidações em causa resultaram da aplicação do art. 1º, n.º 1 do CIS, conjugado com a verba 28.1 da TGIS;
g) A Requerente pagou o imposto liquidado;
h) A Requerente apresentou, em 20-03-2019, relativamente às liquidações contestadas, pedido de revisão oficiosa, com fundamento em violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito;
i) A Requerente não foi, até ao momento da apresentação do pedido arbitral, notificada de qualquer decisão no âmbito do procedimento de revisão oficiosa, tendo sido, entretanto, notificada de despacho de revogação parcial das liquidações contestadas.
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assentou no exame crítico da prova documental apresentada e não contestada, que aqui se dá por reproduzida, bem como do processo administrativo junto aos autos.
Não foram dados como não provados factos com relevo para a decisão da causa.
III.2. Matéria de Direito
Conforme resulta do pedido arbitral, a Requerente manifesta a sua inconformidade com os actos de liquidação impugnados por entender ser ilegal a aplicação, ao caso, da verba 28.1 da tabela anexa ao CIS (Tabela Geral do Imposto do Selo).
Com efeito, sustenta a Requerente que o terreno para construção de que era – ou é – proprietária não tem edificação prevista ou autorizada exclusivamente para habitação, o que afastará a aplicação da aludida verba 28.1 da TGIS.
A questão coloca-se em virtude da tributação, em sede de imposto do selo, da propriedade, usufruto ou direito de superfície, de prédios urbanos com afectação habitacional cujo valor patrimonial tributário, constante da matriz, seja igual ou superior a € 1.000.000 €, caso em que é devido imposto, à taxa de 1%, sobre respectivo valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI.
Questão que não é nova, tendo sido objecto de apreciação quer na jurisdição arbitral, quer na jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e, inclusive, em acórdão arbitral – de 11-01-2019, no processo n.º 296/2019-T – de que também fomos subscritores.
É sabido que, de acordo com o CIMI, designadamente com o seu artigo 6.º, n.º 1, c), que os terrenos para construção poderão ter como afectação a habitação. Tal decorre do artigo 41.º, do mesmo código e que, como resulta, para além do mais, expressamente do artigo 45.º, nº 5, será determinada com base nos elementos a que alude o artigo 37.º do mesmo diploma, sendo que o n.º 3 deste artigo se refere que:
- “Em relação aos terrenos para construção, deve ser apresentada fotocópia do alvará de loteamento, que deve ser substituída, caso não exista loteamento, por fotocópia do alvará de licença de construção, projecto aprovado, comunicação prévia, informação prévia favorável ou documento comprovativo de viabilidade construtiva”.
Ora, como se diz na identificada decisão arbitral, “a menção da verba 28.1 da TGIS em análise deve ser lida, como remetendo para o conteúdo material do que, face ao CIMI, seja «terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação», não se bastando com a mera formalidade de a AT – bem ou mal -, em aplicação das normas daquele Código (CIMI), ter qualificado para efeitos matriciais um determinado imóvel como tendo essa afectação, já que se fosse essa a intenção do legislador, dentro da presunção de razoabilidade que lhe subjaz, seguramente que teria utilizado a expressão “terreno cujo tipo de coeficiente de localização utilizado para efeitos de determinação do VPT seja habitação”, ou outra, análoga (…) deverão considerar-se como «terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação, nos termos do disposto no Código do IMI», aqueles terrenos em que o «edifício a construir» esteja definido como destinado a habitação em alvará de loteamento ou alvará de licença de construção, ou projecto aprovado, ou comunicação prévia, ou informação prévia favorável ou documento comprovativo de viabilidade construtiva”.
Tal entendimento já havia, aliás, sido acolhido pelo STA, no Acórdão de 28-11-2018 – Proc. 0829/15.5BELLE -, ao referir que “Assim, no que se refere a terrenos para construção, quer estejam, ou não, localizados dentro de um aglomerado urbano, devem, de acordo com o artº 6º, nº 3 do CIMI, ser considerados como tal os terrenos relativamente aos quais tenha sido concedida: - licença para operação de loteamento; - licença de construção; - autorização para operação de loteamento; - autorização de construção; - admitida comunicação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção; emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, bem assim como aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo”.
Ora, no caso em apreço, está assente que, relativamente ao prédio em causa, foi emitido Alvará de Loteamento, o qual tem o n.º .../2000, dele constando edificação prevista ou autorizada mista (para habitação, comércio e estacionamento).
Circunstância que também consta da caderneta predial emitida pela AT, pese embora o prédio tenha sido inscrito como estando apenas afecto a habitação, pois dela fez constar estar em causa “um terreno com diferentes afectações com as seguintes áreas máximas: habitação= 5.314 m2, comércio=1.748 m2, estacionamento=3.000 m2". Por essa razão, no cálculo do valor patrimonial tributário de cada uma das partes foram considerados diferentes coeficientes de afectação e utilizadas fórmulas diversas consoante a respectiva afectação, conduzindo ao apuramento do valor patrimonial de cada uma das partes (Vtc e Vth).
A situação em causa, de terreno para construção com afectação mista, foi objecto de apreciação expressa pelo STA, designadamente no Acórdão de 06-06-2018 – Proc. 080/2018, aí se dizendo:
“- Na presente situação em que foi concedido um alvará de loteamento de acordo com o qual os prédios se destinam «a habitação colectiva e comércio/serviços», não está em causa um prédio cujo destino é apenas a habitação.
- Não estabelece a verba 28 em análise qualquer critério ou necessidade de ponderação sobre a percentagem em que o prédio se destina a habitação ou a comércio/serviços para podermos considerar que o legislador teve em conta tal realidade e, nada havendo dito sobre ela, concluirmos que a pretende dissolver na afectação para habitação.
- A Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro esclareceu que os anteriormente por ele denominados prédios com afectação habitacional eram, afinal, os prédios urbanos ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação.
- Para neste normativo estarem englobados os presentes prédios era absolutamente necessário que houvesse indicação de se são também tributados nesta sede os prédios urbanos ou terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja, predominantemente, para habitação.
(…)
- Na presente situação sabemos que foi concedido um alvará de loteamento pelo Alvará de Loteamento n.º 5/2006, de acordo com o qual os prédios se destinam «a habitação colectiva e comércio/serviços», o que é diverso de se destinarem a habitação. Não estabelece a verba 28 em análise qualquer critério ou necessidade de ponderação sobre a percentagem em que o prédio se destina a habitação ou a comércio/serviços.
- Também se desconhece qual a frequência e peso específico no volume edificado para o mercado imobiliário da afetação de certas partes dos edifícios, mormente do respetivo rés-do-chão, a fins diversos da habitação, mormente, o comércio e os serviços, precisamente por força de razões económicas, de estratégia financeira, atinentes à rentabilidade e fruição de todos os espaços disponíveis, de que a norma em apreço não dá qualquer nota ou relevo. Existe, mas não sabemos se é significativa e, não podemos considerar que o legislador teve em conta tal realidade e, nada havendo dito sobre ela, concluirmos que a pretende dissolver na afectação para habitação.
- Ao invés, cremos que é uma realidade que não foi tida em conta pelo legislador, como antes não havia devidamente ponderado que a lei estabelece uma clara distinção entre prédios urbanos “habitacionais” e “terrenos para construção”, que com a Lei 83-C/2013, de 31 de Dezembro esclareceu que os anteriormente por ele denominados prédios com afectação habitacional eram, afinal, os prédios urbanos ou por terreno para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja para habitação. Para neste normativo estarem englobados os presentes prédios era absolutamente necessário que houvesse indicação de que são também tributados nesta sede os prédios urbanos ou terrenos para construção cuja edificação, autorizada ou prevista, seja, predominantemente, para habitação sob pena de carecermos de uma interpretação extensiva da norma de incidência em tudo desconforme com o disposto no art.º 103.º, n.º 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa”.
Face ao exposto e, designadamente, à jurisprudência citada, que acolhemos sem reservas, estando em causa terreno a que foram atribuídas diferentes afectações, nunca se poderá considerar que o Imposto do incide apenas sobre a parte do prédio com afectação habitacional.
Pelo contrário, sendo inquestionável que a afectação do prédio ora em causa apenas é parcialmente habitacional, pese embora a sua inscrição na matriz apenas com afectação habitacional, e que a norma de incidência não prevê tal situação, deverão ser, atento o vício de violação de lei verificado, anuladas as liquidações objecto do presente pedido arbitral.
Fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas.
Invoca a Requerida, na resposta que apresentou, o facto de ter ocorrido revogação parcial das liquidações impugnadas para daí retirar conclusões relativamente à redução do pedido.
Diremos que sem razão.
A aludida revogação parcial resultou da circunstância de se ter cindido a liquidação, fazendo, para o mesmo prédio, a imputação do Imposto do Selo à parte habitacional destacando-a da não habitacional.
Ora, como já se referiu, a norma de incidência objectiva em causa – a verba 28.1 da TGIS – não permite tal interpretação nem aplicação, pelo que, pese embora o acto de revogação parcial, subsistem as liquidações ilegais, pelo que improcede a pretensão da Requerida.
JUROS INDEMNIZATÓRIOS
Além da restituição do imposto indevidamente pago, pretende a Requerente que seja declarado o direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Tal direito vem consagrado no art. 43º da LGT o qual tem como pressuposto que se apure, em reclamação graciosa ou impugnação judicial - ou em arbitragem tributária – que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida em montante superior ao legalmente devido.
O reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral, resulta do disposto no artigo 24º, n.º 5 do RJAT, quando estipula que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
No caso em apreço, é manifesto que ocorreu, de facto, erro imputável à AT na liquidação em crise que por sua iniciativa o praticou sem suporte legal.
Pelo que assiste à Requerente o direito ao pretendido pagamento de juros indemnizatórios relativamente àquele imposto.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral formulado, determinando-se a anulação das liquidações de Imposto do Selo n.º 2015-..., 2015-... e 2015-..., de 20.03.2015, referentes a 2015 e n.º 2016-..., 2016-... e 2016-..., referentes a 2016, com a consequente restituição à Requerente da quantia paga.
b) Condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios.
c) Condenar a Requerida nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 44.643,78 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 2.142,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 29 de Setembro de 2020
O Árbitro
(António Alberto Franco)