DECISÃO ARBITRAL
I. RELATÓRIO
1. A..., residente em ..., titular do número de identificação fiscal ..., veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, no n.º 2 do artigo 3.º e nos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, apresentar pedido de pronúncia arbitral do ato de liquidação de Imposto sobre Veículos no valor de € 6.372,89 da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, de 11 de novembro de 2019, com o número 2019/..., relativo à introdução no consumo do veículo usado referido na Declaração Aduaneira de Veículo n.º 2019/..., pedindo a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira à restituição da quantia de € 1.445,14 e ao pagamento de juros indemnizatórios.
1.1. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 7 de fevereiro de 2020.
1.2. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Conselho Deontológico designou como o signatário como árbitro, nomeação aceite dentro do prazo legal.
1.3. Notificadas as partes dessa designação, não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
1.4. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral foi constituído no dia 26 de fevereiro de 2020.
1.5. Prolatado o despacho determinado pelo artigo 17.º, n.º 1, do RJAT, na redação dada pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, a Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou Resposta, juntando o Processo Administrativo.
1.6. Não existindo exceções a discutir ou controvérsia sobre a matéria de facto, foi proferido despacho arbitral, no dia 13 de setembro de 2020, dispensando a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e, bem assim, a produção de alegações, tendo-se designado o dia 30 de setembro de 2020 como data de prolação da decisão judicativa arbitral.
2. O tribunal arbitral foi regularmente constituído, ex vi o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do RJAT.
3. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão devidamente representadas, como determinado pelos artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, não enfermando o processo de quaisquer nulidades.
II. Fundamentação
4. Matéria de facto
4.1. Factos Provados
Com interesse para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
4.1.1. No dia 11 de novembro de 2019, a Requerente apresentou junto da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz a Declaração Aduaneira de Veículos (“DAV”) n.º 2019/..., para introdução no consumo, por sujeito passivo particular, o veículo ligeiro de passageiros, usado, marca ..., modelo ..., cor cinzenta, movido a combustível gasóleo, com o número de motor... e número de quadro W ..., com cilindrada de ...cc e com a matricula definitiva ...– cf. DAV remetida com o Processo Administrativo.
4.1.2. Da referida DAV constam, entre o mais, os seguintes elementos:
a) O veículo, usado, proveio da Bélgica;
b) A primeira matrícula é datada de 25 de fevereiro de 2015;
c) O veículo tem de cilindrada 2143 cc;
d) A emissão de gases CO2 é de 129 g/km – cf. Processo Administrativo.
4.1.3. De acordo com o “Quadro R” da Declaração Aduaneira de Veículos, o ISV foi apurado de acordo com os seguintes elementos:
4.1.4. Em 11 de novembro de 2019, foi emitida a liquidação com o número 2019/..., com o valor de imposto a pagar de € 6.372,89 e data limite de pagamento de 25 de novembro de 2019, tendo o mesmo sido pago pela Requerente – cf. Processo Administrativo.
4.2. Factos não provados
Não há factos relevantes para decisão da causa que não se tenham provado.
4.3. Motivação da matéria de facto
Considerando o disposto nos artigos 596.º, n.º 1 e 607.º, n.os 2 a 4, ambos do Código de Processo Civil (por remissão do disposto no artigo 29.º, n.º 1, do RJAT), incumbe ao Tribunal o dever de selecionar a matéria de facto pertinente para a decisão judicativa, tomando em consideração a causa de pedir que sustenta a pretensão dos Requerentes.
No caso sub judice, a decisão sobre os factos provados e não provados radicou, segundo o princípio da livre apreciação da prova, no acervo documental presente nos autos, tanto com o requerimento de pronúncia arbitral, como, posteriormente, com o Processo Administrativo, organizado nos termos do artigo 111.º do CPPT, e junto pela Requerida.
Para além disso, a decisão da matéria de facto baseou-se no alegado pelos Requerentes que não foi questionado ou controvertido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, aqui Requerida, que, ademais, circunscreveu a questão controvertida ao plano da análise da matéria de direito.
5. Matéria de direito
5.1. Enquadramento da questão decidenda
No caso sub judicio está em causa a questão de saber se a liquidação de Imposto Sobre Veículos realizada, nos termos do artigo 11.º do Código do Imposto Sobre Veículos, sem que seja tida em consideração, no cálculo do imposto, qualquer dedução relativa à componente ambiental para fins de depreciação, padece, ou não, de ilegalidade determinante da sua anulação.
5.2. Fundamentos de direito
A questão decidenda foi já tratada em diversas decisões arbitrais singulares proferidas pelo CAAD. Assim sucedeu nos Processos n.os 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 466/2019-T, 498/2019-T, 776/2019-T, e pelo signatário no processo n.º 833/2019-T, nos quais foram proferidas decisões anulatórias com fundamento na incompatibilidade do disposto no artigo 11.º do CISV com a disposição do artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (“TFUE”), segundo a qual “[n]enhum Estado-Membro fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados-Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente, sobre produtos nacionais similares”.
No presente caso concreto, coloca-se questão análoga na medida em que a Requerente não aceita a liquidação do imposto feita por aplicação da tabela constante do n.º 1, por considerar que o artigo 11.º do Código do ISV viola o disposto no artigo 110.º do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia (TFUE) porquanto “permite que a Administração Fiscal cobre um imposto sobre os veículos importados com base num valor superior ao valor real do veículo, onerando-os com uma tributação fiscal superior à que é aplicada aos veículos usados similares disponíveis em território nacional”.
Por seu turno, a Requerida defende que o artigo 11.º do CISV não comporta a aplicação de qualquer redução relativa à componente ambiental para além daquela prevista no artigo 7.º do mesmo diploma, sustentando que um juízo de ilegalidade da liquidação determina a violação da lei e de diversos parâmetros de constitucionalidade.
Vejamos.
O artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do CISV, estabelece a incidência objetiva do imposto sobre “automóveis ligeiros de passageiros, considerando-se como tais os automóveis com peso bruto até 3500 kg e com lotação não superior a nove lugares, incluindo o do condutor, que se destinem ao transporte de pessoas”, sendo sujeitos passivos do mesmo, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do mesmo diploma, “os operadores registados, os operadores reconhecidos e os particulares (…) que procedam à introdução no consumo dos veículos tributáveis, considerando -se como tais as pessoas em nome de quem seja emitida a declaração aduaneira de veículos”.
Segundo a disposição do artigo 5.º, n.os 1 e 3, do CISV, constitui facto gerador do imposto “o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional (...)” [n.º 1], entendendo-se por “admissão”, a “entrada de um veículo originário ou em livre prática noutro Estado-membro da União Europeia em território nacional” [n.º 3].
No que interfere com o presente caso concreto, cumpre explicitar ainda que a coleta do imposto é determinada, nos termos do artigo 7.º, do CISV, e do artigo 11.º, do CISV, para os veículos usados, tendo por referência a componente da cilindrada, por escalão em centímetros cúbicos, e a componente ambiental, por escalão de CO2, em gramas por quilómetro. No artigo 11.º, n.º 1, estabelece-se que o “imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objeto de liquidação provisória nos termos das regras do presente Código, com exceção da componente cilindrada à qual são aplicadas as percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respetiva, as quais estão associadas à desvalorização comercial média dos veículos no mercado nacional” (itálico aditado), seguindo-se uma tabela que associa percentagens diferenciadas de redução tendo em conta o “tempo de uso” do veículo, considerando-se este o “período decorrido desde a atribuição da primeira matrícula e respetivos documentos pela entidade competente até ao termo do prazo para apresentação da declaração aduaneira de veículos” [n.º 3].
O regime supra referido constitui o reflexo de uma evolução legiferante condicionada pelo direito da União Europeia, como se deu nota na decisão tirada no processo n.º 572/2018-T, deste Centro de Arbitragem Administrativa, nos termos seguintes:
“(...)
[...] Em sede de ISV, existe um longo percurso no que diz respeito às questões que a Comissão Europeia tem levantado ao Estado Português em matéria de legalidade das normas nacionais, nomeadamente, quanto à carga fiscal incidente sobre os veículos usados.
[...] Com efeito, essa legalidade foi muito cedo questionada pela Comissão Europeia, ainda no âmbito do Imposto Automóvel, porquanto esta entendia que as normas portuguesas então vigentes não observavam o disposto no artigo 95º do Tratado de Roma e, sendo necessário que Portugal perdesse o seu carácter protecionista, era imprescindível que o montante de imposto fosse idêntico ao remanescente do imposto incorporado no preço dos veículos usados similares, comercializados no mercado português, remanescente esse a calcular a partir da percentagem da depreciação do valor desses veículos.
[...] Não obstante, em 2001, o Acórdão do TJCE (de 22-02-01) denominado “Gomes Valente”, proferido a título prejudicial, veio criar as condições para se romper, a nível nacional, com o quadro clássico de tributação dos veículos usados, assente exclusivamente em reduções fixas em função do nº de anos de uso.
[...] Neste âmbito, embora tenha sido referido que a aplicação de uma tabela de taxas para os veículos usados fundada num critério de depreciação único não seria contrário ao referido artigo 95º do Tratado de Roma, foi sublinhado que era importante que fossem tomados em conta outros factores de depreciação que não apenas a antiguidade, de forma a garantir que a referida tabela refletisse de modo mais preciso a depreciação real dos veículos e permitisse alcançar de uma forma mais fácil o objectivo da tributação dos veículos usados, de modo a que, em nenhum caso, esta pudesse ser superior ao montante da taxa residual incorporada no valor dos veículos usados já matriculados em território nacional.
[...] Esta jurisprudência veio a ser reforçada com o Acórdão do TJCE nº 101/00, proferido em 19 de Setembro de 2002 num processo que então envolveu o Governo Finlandês e Antti Sillin, no qual foi considerado que o artigo referido artigo 95º, primeiro parágrafo do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 90º, primeiro parágrafo) permitia a um EM aplicar aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o valor tributável é determinado por referência ao valor aduaneiro definido, mas obsta a que o valor tributável varie em função da fase de comercialização quando daí possa resultar, pelo menos, em determinados casos, que o montante do imposto que incide sobre um veículo usado importado exceda o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
[...] Refira-se ainda que, na sequência do designado Acórdão “Gomes Valente”, a jurisprudência têm entendido que para que um sistema de tributação dos veículos usados seja compatível com o disposto no Tratado é necessário que se adopte ou um modelo de tributação baseado na avaliação de cada veículo ou um modelo de tributação baseado em tabelas fixas que exclua todo e qualquer efeito discriminatório.
[...] Por outro lado, o actual artigo 110º do TFUE opõe-se a que um EM aplique aos veículos usados importados de outro EM um sistema de tributação em que o imposto que incide sobre esses veículos não atenda à depreciação real do veículo e não permita garantir sempre que o montante do imposto que fixa não excede o montante do imposto residual incorporado no valor de um veículo usado similar já matriculado no território nacional.
[...] Mais se considerou que, quando um EM aplica aos veículos usados importados de outros Estados membros um sistema de tributação em que a depreciação real dos veículos é definida de modo geral e abstrato com base em critérios determinados pelo direito nacional, o disposto no Tratado exige que esse sistema de tributação seja organizado de forma a excluir todo e qualquer efeito discriminatório.
[...] Pode assim afirmar-se que o Acórdão do TJCE proferido no caso “Gomes Valente” abriu a porta para uma nova forma de tributação dos veículos usados admitidos de outros Estados membros.
[...] Mas, ao que ao presente caso interessa, refira-se que em 2006, no âmbito do sistema de tributação Húngaro, no Acórdão do TJUE de 5 de Outubro de 2006 (C-290/05), no caso Nádasdi, foi analisada pela primeira vez a questão ambiental face aos impostos automóveis aplicáveis dentro do espaço da União Europeia.
[...] Com efeito, o sistema fiscal Húngaro ignorava a desvalorização do veículo e tratava de forma igualitária todos os veículos que tivessem a mesma motorização e comportamento ambiental.
[...] Contudo, o referido Acórdão veio declarar que “o artigo 90.º, primeiro parágrafo, CE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a um imposto como o instituído pela lei relativa ao imposto automóvel, na medida — em que seja cobrado sobre os veículos usados quando da sua primeira colocação em circulação no território de um Estado-Membro e — em que o seu montante, exclusivamente determinado em função das características técnicas dos veículos (tipo de motor, cilindrada) e da sua classificação ambiental, seja calculado sem ter em conta a depreciação dos mesmos, de tal forma que, quando se aplique a veículos usados importados de outros Estados-Membros, ultrapasse o montante do referido imposto contido no valor residual de veículos usados similares que já foram registados no Estado-Membro de importação. Não é relevante proceder a uma comparação com os veículos usados postos em circulação no Estado-Membro em questão antes da introdução desse imposto” (sublinhado nosso).
[...] Adicionalmente, considerou-se que os Estados-Membros (EM) têm liberdade para selecionar os critérios a utilizar no cálculo do imposto e estabelecer um sistema de tributação diferenciado para certos produtos, em função de critérios objectivos aplicados, sendo que tais diferenciações só serão consideradas compatíveis com o direito da UE se, por um lado, prosseguirem objectivos compatíveis, também eles, com as exigências do Tratado e do direito derivado e, se por outro, as formas que vierem a revestir sejam de molde a evitar qualquer forma de discriminação, directa ou indirecta, das “importações” provenientes dos outros EM, ou de proteção em favor de produções nacionais concorrentes.
[...] Assim, ainda que, em termos gerais, no âmbito de um regime fiscal relativo à tributação automóvel, critérios como o tipo de motor, a cilindrada e uma classificação assente em factores ambientais constituem critérios objectivos e possam ser utilizados no sistema de tributação, da sua utilização não poderá resultar discriminação e o imposto que vier a ser apurado não poderá onerar mais os produtos provenientes de outros EM do que os produtos nacionais similares, implicando que a cobrança por um EM de um imposto sobre os veículos usados provenientes de outro EM é contrária ao artigo 110º do TFUE quando o montante do imposto, calculado sem tomar em conta a depreciação real do veículo, exceda o montante residual do imposto incorporado no valor dos veículos automóveis usados semelhantes já matriculados no território nacional.
[...] Em 2009, interpretando o mesmo artigo 110º do TFUE, o TJUE, no Acórdão de 19 de Março de 2009 (que opôs a Comissão Europeia à Finlândia), considerou que este artigo visa garantir a perfeita neutralidade das imposições internas no que se refere à concorrência entre produtos que já se encontrem no mercado nacional e produtos importados, de um modo que não pode, em caso algum, ter efeitos discriminatórios.
[...] Ora, relevando que, nos termos do disposto no artigo 8º da Constituição da República Portuguesa (CRP), o direito internacional prevalece sobre o direito interno português e é directamente aplicável em território nacional, sem desenvolver qualquer fundamentação, fez eco uma comunicação da Comissão Europeia em que se informava que esta tinha encetado, no TJUE, um processo contra Portugal, no sentido de defender que era censurável o artigo 11º do Código do ISV não contabilizasse no cálculo do ISV incidente sobre veículos usados nenhuma desvalorização até o veículo ter mais de um ano de tempo de uso, nem é considerada nenhuma diminuição do valor real para os veículos com mais de cinco anos de utilização, processo que culminou com a prolação do Acórdão to TJUE (C-200/15), de 16-06-2016, acima já referido.
[...] Com efeito, em matéria de direito internacional, o artigo 8º, nº 4 da CRP estabelece que “as disposições dos tratados que regem a UE e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetiva competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático” (sublinhado nosso).
[...] Neste âmbito, conforme se escreve na Decisão Arbitral nº 577/2016-T, de 1 de Junho de 2017, “(…) apesar de só os Estados Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado, através das suas decisões, que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia. Evitando assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente (…) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE) (…). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades, diretamente aplicáveis, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades. (…) O direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (…). Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais” (sublinhado nosso).
[...] E, prossegue a mesma decisão referindo que “os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º n. os 1 e 2 da CRP. Apresenta-se, pois, como claro que, para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão materialmente inconstitucionais se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa” (sublinhado nosso).
[...] Não obstante as disposições internas, e como já vimos, o artigo 110º do TFUE (na esteira do artigo 90º do Tratado de Roma), preceitua que “nenhum EM fará incidir, direta ou indiretamente, sobre os produtos dos outros Estados Membros imposições internas, qualquer que seja a sua natureza, superiores às que incidam, direta ou indiretamente sobre produtos nacionais similares”.
[...] Sobre a interpretação deste artigo face aos direitos nacionais já o TJUE se pronunciou por diversas vezes precisando o seu alcance dado que a admissão nos mercados nacionais de veículos automóveis portadores de placa de matrícula definitiva de outros Estados membros, isto é de veículos usados, rege-se exclusivamente pelo direito nacional, não podendo, todavia, tal direito contrariar os princípios em que se alicerça o funcionamento da UE.
[...] Por isso, dentro da liberdade conformadora que o legislador nacional dispõe para modelar o imposto de forma a proceder à sua cobrança de forma exequível e eficaz, é necessário ter em conta, para além da opinião da Comissão Europeia, enquanto entidade a quem cabe zelar pelo respeito pelo Tratado, a jurisprudência comunitária que se vai produzindo.
[...] E tanto assim é que em conformidade com o documento anexado pela Requerida com as suas alegações escritas se percebe que o Estado Português, interpelado pela Comissão Europeia em 2009/2010, quanto à forma como eram tributados os veículos usados admitidos em Portugal provenientes da UE (porque contrária ao previsto no referido e citado artigo 110º do TFUE), se viu forçado a alterar a legislação em vigor em matéria de ISV, em concreto o artigo 11º, nº 1 do Código do ISV (naquela data vigente), através da Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do OE para 2011), no sentido de:
“O imposto incidente sobre veículos portadores de matrículas definitivas comunitárias atribuídas por outros Estados membros da União Europeia é objecto de liquidação provisória, com base na aplicação das percentagens de redução previstas na tabela D ao imposto resultante da tabela respectiva, as quais estão associadas à desvalorização social média dos veículos no mercado nacional, calculada com referência à desvalorização comercial média corrigida do respectivo custo de impacte ambiental (...).
[...] Contudo, como não foi contemplada, com a referida alteração legislativa, a questão da desvalorização dos veículos usados, oriundos de outro EM, com menos de um anos e mais de cinco, surge então o já citado Acórdão do TJUE nº C–200/15, de 16 de Junho de 2016 (referido e citado pelo Requerente), visando directamente a legislação nacional, consubstanciada no artigo 11º do Código do ISV (na redacção em vigor até 2016), nos termos do qual se veio considerar que “a República Portuguesa ao aplicar, para efeitos da determinação do valor tributável dos veículos usados provenientes de outro EM, introduzidos no território nacional, um sistema relativo ao cálculo da desvalorização dos veículos que não tem em conta a sua desvalorização antes de atingirem um ano, nem a desvalorização que seja superior a 52% no caso de veículos com mais de cinco anos, não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110º do TFUE” (sublinhado nosso).
[...] E assim, o legislador nacional foi forçado a alterar o referido artigo 11º do Código do ISV, no sentido de nele incluir a desvalorização referida no ponto anterior, através da Lei nº 42/2016, de 28 de Dezembro, mas excluindo de novo da redação do artigo a questão da desvalorização incidente sobre a componente ambiental do ISV.
(...)”.
A alteração promovida pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, não pacificou, porém, a questão da conformidade do direito pátrio com o direito da União Europeia uma vez que a componente ambiental ficou excluída da depreciação decorrente do “tempo de uso” do veículo, como se deu conta na decisão arbitral dada no Processo n.º 498/2019-T:
“A desconformidade do direito nacional, na sua atual redação, com a norma comunitária conduziu já ao início de procedimento de infração. Conforme comunicado de 24-01-2019, a Comissão Europeia deu início a ação judicial contra o Estado Português ‘por este Estado-Membro não ter em conta a componente ambiental do imposto de matrícula aplicável aos veículos usados importados de outros Estados-Membros para fins de depreciação. A Comissão considera que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE, na medida em que os veículos usados importados de outros Estados-Membros são sujeitos a uma carga tributária superior em comparação com os veículos usados adquiridos no mercado português, uma vez que a sua depreciação não é plenamente tida em conta. Se Portugal não atuar no prazo de dois meses, a Comissão poderá enviar um parecer fundamentado sobre esta matéria às autoridades portuguesas.’
Não o tendo feito, em comunicado de 27 de novembro de 2019, a Comissão refere:
A Comissão decidiu hoje enviar um parecer fundamentado a Portugal por tributar veículos usados importados de outros Estados-Membros mais do que os automóveis usados adquiridos no mercado português. Atualmente, a legislação portuguesa não tem plenamente em conta a depreciação de veículos importados de outros Estados-Membros, pelo que a legislação portuguesa não é compatível com o artigo 110.º do TFUE. O Tribunal de Justiça Europeu tinha já concluído, em 16 de junho de 2016 (Acórdão C-200/15), que uma versão anterior deste imposto português era contrária ao direito da UE. Se Portugal não atuar no prazo de um mês, a Comissão pode decidir remeter o processo para o Tribunal de Justiça da UE”.
Essa ação foi intentada em 23 de abril de 2020 (Processo C-169/20), tendo a Comissão pedido ao Tribunal de Justiça da União Europeia que este “declar[ass]e que, ao não desvalorizar a componente ambiental no cálculo do valor aplicável aos veículos usados introduzidos no território da República Portuguesa e adquiridos noutros Estados-Membros no âmbito do cálculo do imposto de registo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 110.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.
Nos “fundamentos e principais argumentos” invocados refere-se que a “legislação portuguesa em causa consagra uma discriminação entre a tributação que incide sobre o veículo importado e aquela que incide sobre o veículo nacional similar. As modalidades e a forma de cálculo em vigor levam a que a tributação do veículo importado seja quase sempre mais elevada. [§] Esta situação é tanto mais preocupante quanto ela é contrária à jurisprudência assente do Tribunal de Justiça: a legislação portuguesa relativa ao cálculo do imposto aplicável aos veículos usados adquiridos noutros Estados-Membros já foi objeto de procedimentos de infração anteriores e de vários acórdãos do Tribunal de Justiça. [§] A legislação portuguesa não garante que os veículos usados importados de outros Estados-Membros sejam tributados num montante que não exceda o imposto refletido nos veículos usados domésticos similares. Tal pode ser explicado pelo facto de, em consequência da alteração da legislação em 2016, a componente ambiental utilizada para calcular o valor de um veículo usado não ser desvalorizada. [§] Daqui resulta que a tabela de desvalorização adotada pela legislação nacional não conduz a uma aproximação razoável do valor real do veículo usado importado. Consequentemente, o montante pago para registar um veículo usado importado excede o montante relativo a um veículo usado similar já registado em Portugal, o que configura uma violação do artigo 110.o do TFUE e da jurisprudência do Tribunal de Justiça” – cf. Jornal Oficial da União Europeia de 22 de junho de 2020.
Tal como preteritamente decidido nos Processos n.os 572/2018-T, 346/2019-T, 348/2019-T, 350/2019-T, 459/2019-T, 466/2019-T, 498/2019-T e 776/2019-T, cuja argumentação se acompanha, também aqui se formula idêntico juízo de desconformidade dos referidos critérios de imposição fiscal com a disposição do artigo 110.º do TFUE, na medida em que o cálculo do imposto não leva inteiramente em linha de conta a depreciação do veículo levando a que a admissão do veículo de outro Estado-Membro esteja sujeita a uma carga tributária superior à que se encontra incorporada – e depreciada – no valor dos veículos automóveis usados anteriormente matriculados no território nacional, razão pela qual pode concluir-se que a lei nacional está a fazer incidir sobre os “produtos” dos outros Estados-Membros uma imposição interna, superior à que incide, direta ou indiretamente, sobre os veículos usados “nacionais”, em sentido oposto ao determinado no artigo 110.º do TFUE.
Ora, não subsistem quaisquer dúvidas relativamente ao direito da União Europeia como fonte do ordenamento jurídico português, seja aquele referido ao “direito primário” – o direito dos tratados –, como ao direito derivado – constituído pelos “atos jurídicos vinculativos (regulamentos, diretivas e decisões) emanados das instituições da União Europeia (artigo 288.º do TFUE), que podem ser adotados, na sequência do Tratado de Lisboa, enquanto atos legislativos (artigo 289.º do TFUE), atos delegados (artigo 290.º do TFUE) e atos de execução (artigo 291.º do TFUE)”, como refere Fernando Alves Correia, Texto e contexto da Constituição Portuguesa de 1976, “in” e-Pública, vol. 3., n.º 3, dezembro de 2016, p. 4.
Do mesmo passo, não pode hodiernamente obnubilar-se o princípio de prevalência do direito da União Europeia sobre as normas de direito interno português, nos termos estabelecidos pela nossa norma normarum, seja em decorrência do disposto no n.º 3 do artigo 8.º - aditado em 1982 e alterado na revisão constitucional seguinte -, seja, com idêntica evidência, pela disposição do n.º 4, introduzida na revisão de 2004, nos termos do qual “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. De acordo com J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, trata-se de “uma das mais importantes alterações alguma vez introduzidas no sistema das fontes de direito do ordenamento jurídico-constitucional português e, mesmo, uma das mais importantes alterações constitucionais desde a origem da CRP”, significando que “as normas dos tratados, bem como as normas emanadas pelas instituições europeias, prevalecem sobre as normas de direito interno, incluindo normas da própria Constituição (pois a norma comunitária não distingue e a referida jurisprudência comunitária sempre se pronunciou nesse sentido)” – cf. J.J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 2007, pp. 264 e 265.
Nestes termos, o direito da União não se dirige unicamente ao legislador nacional, conformando a sua discricionariedade constitutiva, mas integra verdadeiramente o ordenamento jurídico, nos termos constitucionalmente reconhecidos e supra citados, pelo que a liquidação de imposto em desconformidade com as normas europeias inquina de ilegalidade, numa aceção ampla, a respetiva liquidação, que, por essa via, se torna anulável.
Por outro lado, não se vislumbra que esse entendimento colida com quaisquer “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” ou que exista qualquer inconstitucionalidade dos critérios mobilizados como ratio desse juízo.
A Requerida considera que a interpretação do Requerente do artigo 11.º do CISV quando interpretado da forma em que o faz, viola os princípios, acima mencionados, da legalidade e da legalidade fiscal, da justiça tributária, da igualdade e da certeza e segurança jurídica, do Estado de direito ambiental e do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, impondo-se a apreciação da constitucionalidade de tal entendimento.
Por um lado, do princípio da legalidade e, mais especificamente, da legalidade fiscal não decorre qualquer proibição de ponderação da validade da lei fiscal face aos parâmetros constitucionais e a normas ou princípios a que o legislador deva respeito no exercício das suas competências, nem o mesmo se opõe à sindicância de normas ou atos jurídicos que estejam em desconformidade com fontes de direito relativamente às quais a primazia decorre da própria lei fundamental. Da mesma sorte e também com referência ao mesmo princípio constitucional, não poderá defender-se, com propriedade, que tal ponderação resulte na criação por via interpretativa de um qualquer benefício fiscal uma vez que a redução do valor do imposto decorre diretamente da invalidade da norma com base na qual se quantificou indevidamente o valor do mesmo.
Em segundo lugar, também não se alcança como a interpretação do artigo 11.º do CISV possa comprometer os princípios da igualdade, da certeza e da segurança jurídica. Quanto ao primeiro parâmetro, não procede o argumento de que a procedência do pedido coloca “a Requerente em situação de vantagem face aos demais sujeitos passivos, criando também, nesta parte, uma situação de desigualdade fiscal”. Com efeito, uma suposta igualdade no não direito não é de todo obstáculo ao restabelecimento da ordem jurídica nos termos tidos por adequados às vinculações jurídicas, jurídico-constitucionais e jurídico-internacionais, a que o Estado se encontra obrigado, pelo que a argumentação para suportar a alegada violação da Constituição não pode deixar de considerar-se manifestamente improcedente, juízo que, mutatis mutandis, acaba por estender-se à dimensão da certeza e da segurança jurídica invocada pela Requerida e, por maioria de razão, à ideia de justiça tributária que nesta sede se pretende repor.
Em terceiro lugar, quanto ao invocado direito ao ambiente, é consabido estarmos perante uma importante e ineliminável dimensão extrafiscal dos impostos, bem patente, aliás, na configuração da tributação automóvel. No entanto, não só não há qualquer incompatibilidade entre as injunções constitucionais que são acolhidas na tributação automóvel e a vinculação decorrente do artigo 110.º do TFUE, como esta norma não impede que o imposto tenham como critério de determinação uma qualquer “componente ambiental”, conquanto a mesma seja refletida nos automóveis admitidos em território nacional em termos semelhantes à depreciação a que todos os veículos estão sujeitos, sendo que essa componente surge apenas diretamente refletida em sede de matrícula e não em futura transmissão, onde apenas indiretamente afeta o valor global da transmissão sem constituir facto gerador autónomo.
Por fim, a Requerida alega ainda que a interpretação do artigo 11.º do CISV é inconstitucional por violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva atendendo às limitações que o RJAT introduz em matéria de recursos. Bem se compreenderá, no entanto, que o referido preceito que se considera inconstitucional não constitui, semel pro semper, suporte normativo de qualquer decisão impugnatória do presente juízo arbitral.
Nessa medida, atenta a desconformidade do disposto no regime legal pressuposto pela liquidação com o disposto no artigo 110.º do TFUE, impõe-se a anulação da liquidação na parte em que considera a componente ambiental desprovida de qualquer redução depreciativa, nos termos sobreditos.
Em conformidade com o peticionado, os efeitos desse vício, que em abstrato poderiam ter maior amplitude, restringir-se-ão, in casu, à restituição da quantia tida por indevidamente paga.
5.3. Juros indemnizatórios
A Requerente requereu a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios.
É pacífica a competência do CAAD para se pronunciar sobre tal pretensão, devendo a mesma apenas proceder quando, nos termos do disposto no 43.º da LGT, se determinar a existência de erro imputável aos serviços da Requerida por mor do qual venha a resultar um pagamento em montante superior ao legalmente devido.
No caso concreto, pelas razões referidas, a ilegalidade parcial do ato de liquidação decorre de erro de direito imputável aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, tendo o mesmo gerado imposto a pagar de valor superior ao devido, reconhecendo-se, assim, o direito da Requerente aos juros indemnizatórios, apurados, de acordo com a taxa legal, desde a data do pagamento até ao momento do reembolso sobre o montante indevidamente cobrado, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
6. Decisão
Destarte, atento o exposto, este Tribunal Arbitral decide:
a) julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral quanto à anulação parcial da liquidação ISV, no valor de € 1.445,14 (mil quatrocentos e quarenta e cinco euros e catorze cêntimos), ordenando-se o reembolso dessa quantia à Requerente;
b) condenar a Requerida no pagamento de juros indemnizatórios, calculado nos termos legais; e
c) condenar a Requerida nas custas processuais infra determinadas.
7. Valor do processo
De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 1.445,14.
8. Custas
Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 306,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Lisboa, 27 de setembro de 2020,
João Pedro Rodrigues
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