DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO:
I – Nada na lei impede que uma SGPS possa beneficiar de operações de tesouraria efetuadas por uma sua participada, como é o caso da Requerente.
II – Se as operações de tesouraria efetuadas por uma SGPS participada em benefício de outra SGPS, sua dominante, não constituem concessão de crédito para os efeitos do RGICSF, já assim não é para efeitos de incidência de Imposto do Selo, pois embora as normas fiscais utilizem termos próprios de outros ramos do direito, em especial do direito comercial e do direito bancário, delas decorre diretamente um sentido diverso (artigo 11.º, n.º 2, da LGT).
III – Aquela forma de financiamento, utilizada sob a forma de conta-corrente, integra a previsão da norma de incidência da verba 17.1.4, da TGIS, assim como integra a previsão da norma de isenção da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, da TGIS.
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros, Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Dra. Mariana Vargas e Dra. Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 17-03-2020, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
1. No dia 27-12-2019, a sociedade comercial A... SGPS, S.A, com sede no ..., ...-... ... ..., registada sob o número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de identificação de pessoa colectiva ... (doravante, “A....” ou “Requerente”), veio, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, constante do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, (doravante, abreviadamente designado de “RJAT”), requerer a constituição de Tribunal Arbitral.
A Requerente peticiona a anulação da liquidação de Imposto do Selo e de juros compensatórios do ano de 2016, com o número 2018..., da qual resulta um montante total a pagar de € 855 302,95, dos quais € 781 892,98 correspondem a Imposto do Selo e € 73 409,97, a juros compensatórios.
A Requerente peticiona ainda a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de indemnização por prestação indevida de garantia.
A Requerente juntou 6 (seis) documentos e arrolou 1 (uma) testemunha, não tendo requerido a produção de quaisquer outros meios de prova.
É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, “Requerida” ou AT).
2. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 30-12-2019.
3. Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º, do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, os Árbitros que inicialmente foram designados pelo Conselho Deontológico comunicaram a aceitação do encargo, no prazo aplicável.
4. Em 14-02-2020 as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
5. Assim, e em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º, da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Tribunal Arbitral Colectivo foi constituído em 17-03-2020.
6. No dia 26-06-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua Resposta, na qual defendeu que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado improcedente, com a sua consequente absolvição de todos os pedidos.
7. A Requerida não requereu a produção de prova e procedeu à junção do processo administrativo (doravante, “PA”) aos autos.
8. No dia 15-07-2020, a Requerente, apresentou requerimento no qual prescindiu da produção da prova testemunhal que havia indicado na sua P.I.
9. Por despacho de 16-07-2020, foi dispensada a realização da reunião a que alude o artigo 18.º, do RJAT, e determinada a notificação das partes para produzirem alegações escritas.
10. Ambas as Partes apresentaram alegações escritas, nas quais reiteraram as posições anteriormente assumidas nos respetivos articulados.
II. SANEAMENTO
O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º, do RJAT).
O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT, e artigo 1.º, da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades, não tendo sido invocadas quaisquer exceções ou suscitadas questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito e de que cumpra conhecer.
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. DE FACTO
III. 1.1. FACTOS PROVADOS
Com relevância para a decisão, consideram-se provados os seguintes factos:
A) A Requerente é uma sociedade anónima, com a designação de A..., SGPS, S.A. pessoa coletiva ..., com início de atividade em 10-07-1992, cujo capital social de € 4 865 000,00, à data de 31-12-2016 era detido em 99,94% pela B..., SGPS, S.A., pessoa coletiva ... [cf. documento 3, pág. 6, junto à P.I. e PA].
B) A Requente, em sede de IRC, está enquadrada no Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), cuja sociedade dominante é a B..., SGPS, S.A., NIPC ... (doravante, “B...”) [cf. documento 3, pág. 6 junto à P.I. e PA].
C) Em cumprimento da Ordem de Serviço OI..., emitida em 09-03-2018 pela Unidade dos Grandes Contribuintes (UGC), a Requerente foi submetida a uma ação inspetiva externa, de âmbito parcial de IRC e Imposto de Selo, com incidência no período de 2016 [cf. documento 3, pág. 6 junto à P.I. e PA].
D) Nessa sequência, foi elaborado o Relatório de Inspeção Tributária, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido, em que se refere, além do mais, o seguinte [cf. documento 3, págs. 7 a 14, junto à P.I. e PA]:
E) Na sequência da inspeção, a Requerida emitiu a nota de liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios do ano de 2016 com o número 2018..., no valor de € 855 302,95, sendo € 781 892,98 correspondentes a Imposto do Selo e € 73 409,97, a juros compensatórios [cf. documento 2, junto à P.I. e PA].
F) A Requerente em 05-06-2019 deduziu reclamação graciosa contra o ato de liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios do ano de 2016 referido no antecedente facto provado E) [cf. documento 4, junto à P.I.].
G) A Requerida, por decisão proferida em 02-10-2019, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, indeferiu a reclamação graciosa deduzida pela Requerente, a que se alude no antecedente facto provado F), confirmando a correção reclamada [cf. documento 1, junto à P.I.].
H) A Requerente prestou garantia sob a forma de fiança para suspender o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva da quantia liquidada [cf. documento 6, junto à P.I.].
I) Em 27-12-2019, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo [cf. sistema informático de gestão processual do CAAD].
III/1.2 – Factos não provados
Não foram considerados como não provados nenhuns dos factos alegados, com efetiva relevância para a boa decisão da causa.
III/1.3 - Fundamentação da decisão da matéria de facto
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, à face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2, do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Não há controvérsia sobre a matéria de facto, pelo que no tocante à matéria de facto dada como provada, a convicção do Tribunal fundou-se nos factos articulados pelas Partes, cuja aderência à realidade não foi posta em causa e, portanto, admitidos por acordo, bem como na análise crítica da prova documental que consta dos autos, designadamente o processo administrativo e os documentos juntos pela Requerente, cuja correspondência à realidade não é contestada pela Autoridade Tributária e Aduaneira.
III.2 – DE DIREITO
1. Delimitação do objeto do pedido. Posição das Partes.
O litígio entre as Partes e que o Tribunal Arbitral Coletivo é chamado a decidir prende-se com a qualificação jurídica, para efeitos da incidência e isenção de Imposto do Selo, das operações de financiamento realizadas pela Requerente em benefício da sua holding.
Entende a AT que, sendo a Requerente uma SGPS, cujo capital social é detido em 99,94% pela B..., holding do grupo em que se encontra inserida e na qual não detém qualquer participação social, lhe é vedada a concessão de crédito em seu benefício, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12, que aprovou o regime jurídico das sociedades gestoras de participações sociais (LSGPS).
Não pondo em causa que as operações do financiamento concedido pela Requerente à B... se traduzam em operações financeiras por prazo não superior a um ano, destinadas exclusivamente à cobertura de carências de tesouraria da respetiva beneficiária (operações de tesouraria), a AT parte do princípio de que, tratando-se de operações legalmente vedadas às SGPS, não poderão as mesmas beneficiar da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do Código do Imposto do Selo (CIS), pois, ao invés, as isenções, enquanto benefícios fiscais, se destinam a tutelar interesses públicos extrafiscais relevantes, superiores aos da própria tributação que impedem.
Conclui, assim, pela sujeição daquelas operações de financiamento a Imposto do Selo, enquadráveis na norma de incidência da verba 17.1.4, da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS), sendo a Requerente a responsável pela respetiva liquidação e pagamento, até a dia 20 do mês seguinte ao da constituição da obrigação tributária.
Por seu turno, defende a Requerente que as referidas operações de concessão de crédito beneficiam da isenção estabelecida pela alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, do CIS, por respeitarem a financiamentos entre entidades em relação de domínio ou de grupo, não sendo necessário que a concedente do crédito detenha qualquer participação na entidade beneficiária, pois, de acordo com o artigo 9.º, n.º 2, alínea d), do Decreto-Lei n.º 298/92, de 28.12, que aprovou o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), as operações de tesouraria, quando legalmente permitidas, entre sociedades que se encontrem numa relação de domínio ou de grupo, não são consideradas como concessão de crédito, o que é corroborado no âmbito da regulamentação específica das SGPS, pelo n.º 3 do artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12.
E que, ainda que as operações de tesouraria fossem “operações vedadas”, sempre haveria um conflito entre a norma proibitiva que impusesse uma sanção (artigo 13.º, da LSGPS) e a norma da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, do CIS, que deverá prevalecer.
Porém, ainda que houvesse lugar a tributação, entende a Requerente que o imposto deveria ser exigido ao titular do interesse económico, que não é o concedente, mas sim o utilizador do crédito.
2. Da (i)legalidade da liquidação objeto do pedido de pronúncia arbitral
i. Operações vedadas às SGPS
As SGPS (sociedades gestoras de participações sociais) são sociedades com regulamentação específica no Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12 (LSGPS), que têm por objeto social exclusivo a gestão de participações sociais noutras sociedades, com caráter de permanência, como forma indireta de exercício de atividades económicas e, apenas excecionalmente lhes é admitida a detenção de participações inferiores a 10% do capital com direito de voto da sociedade participada, quer por si só, quer através de participações de outras sociedades em que a SGPS seja dominante (artigo 1.º, da LSGPS).
Sendo objeto social das SGPS a gestão de participações sociais noutras sociedades, são-lhes igualmente aplicáveis as normas respeitantes a sociedades coligadas, as quais constam do título VI do Código das Sociedades Comerciais (artigo 11.º, da LSGPS, e artigos 481.º e seguintes, do CSC).
Sociedades coligadas são as que mantêm entre si relações de simples participação, de participações recíprocas, de domínio ou de grupo (artigo 482.º, do CSC), presumindo-se como relação de domínio aquela em que a sociedade dita dominante detém, direta ou indiretamente, uma participação maioritária no capital da participada, dispõe de mais de metade dos respetivos direitos de voto e tem a possibilidade de designar mais de metade dos membros dos seus órgãos de administração ou de fiscalização (artigo 486.º, n.º 2, d CSC).
É ainda frequente que, dentro de um grupo societário, se os acionistas nisso tiverem interesse, procedam ao agrupamento das participações em diferentes SGPS, “neste caso com o caráter de sub-holdings, vocacionadas para a gestão de participações de objeto e diferente natureza”.
Ora, face à factualidade dada como provada e não contestada pela Requerida, parece inequívoco que a relação estabelecida entre a Requerente e a beneficiária do crédito é uma relação de domínio, tendo ambas a natureza jurídica de SGPS.
No entanto, por ser a Requerente uma SGPS, fundamenta a AT, quer no RIT na sequência do qual foi emitida a liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios do ano de 2016 objeto dos autos, quer na decisão da reclamação graciosa que manteve a mesma liquidação, a impossibilidade de aplicação da norma de isenção constante do artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS, no facto de, da sua perspetiva, a concessão de crédito ser uma operação vedada às SGPS, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 495/88, de 30.12.
Na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 378/98, de 27.11, em vigor à data dos factos, o artigo 5.º, da LGSPS, na parte que interessa à decisão da causa, estatuía o seguinte:
“Artigo 5.º - Operações vedadas
1 - Às SGPS é vedado:
a) Adquirir ou manter na sua titularidade bens imóveis, exceptuados os necessários à sua própria instalação ou de sociedades em que detenham as participações abrangidas pelo n.º 2 do artigo 1.º, os adquiridos por adjudicação em ação executiva movida contra os seus devedores e os provenientes de liquidação de sociedades suas participadas, por transmissão global, nos termos do artigo 148.º do Código das Sociedades Comerciais;
b) Antes de decorrido um ano sobre a sua aquisição, alienar ou onerar as participações abrangidas pelo n.º 2 do artigo 1.º e pelas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 3.º, excepto se a alienação for feita por troca ou o produto da alienação for reinvestido no prazo de seis meses noutras participações abrangidas pelo citado preceito ou pelo n.º 3 do artigo 3.º ou ainda no caso de o adquirente ser uma sociedade dominada pela SGPS, nos termos do n.º 1 do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais;
c) Conceder crédito, exceto às sociedades que sejam por ela dominadas nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
(…)
3 - As operações a que se refere a alínea c) do n.º 1, efetuadas nas condições estabelecidas no número anterior, bem como as operações de tesouraria efetuadas em benefício da SGPS pelas sociedades participadas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo, não constituem concessão de crédito para os efeitos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro.
(…).”
Uma primeira leitura menos atenta da alínea c) do n.º 1 do artigo 5.º, da LSGPS, poderia levar à conclusão de que à Requerente fosse vedado conceder crédito à sua holding, por não ser a sociedade dominante, nem tão-pouco nela deter qualquer participação.
Contudo, se por um lado é verdade que a Requerente não detém qualquer participação no capital social da B..., enquanto sociedade sua dominante, não é menos verdade que a não poderia deter, fora das condições expressamente estabelecidas no n.º 1 do artigo 487.º, do CSC, o qual proíbe às sociedades em relação de domínio, “adquirir quotas ou ações das sociedades que, diretamente ou por sociedades ou pessoas que preencham os requisitos indicados no artigo 483.º, n.º 2, a dominem, a não ser aquisições a título gratuito, por adjudicação em ação executiva movida contra devedores ou em partilha de sociedades de que seja sócia”, o que também lhe é vedado pelo segmento final da alínea b) do n.º 1 do artigo 5.º, da LSGPS, que não permite o cruzamento de participações.
O que parece fora de questão é que a Requerente não possa, nos termos do n.º 3 do citado artigo 5.º, da LSGPS, conceder financiamento (operações de tesouraria) à sociedade sua dominante, financiamento esse que não constitui “concessão de crédito para os efeitos do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro”, pois sendo esta norma excecional relativamente à da alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo, sobre ela deve prevalecer.
Deverá assim concluir-se que nada na lei impede que uma SGPS, como é o caso da utilizadora do crédito na situação em análise, possa beneficiar de operações de tesouraria efetuadas por uma sua participada, como é o caso da Requerente.
ii) Da isenção prevista no artigo 7.º, n.º 1, alínea g), do CIS
Chegados à conclusão de que, contrariamente à interpretação dada pela Requerida ao disposto no artigo 5.º, da LSGPS, não estava legalmente vedado à Requerente conceder financiamento à sua holding B..., importa agora averiguar do enquadramento e consequências fiscais desse financiamento.
Como se viu, a concessão de crédito em conta-corrente efetuada por uma participada, por prazo inferior a um ano, a fim de suprir carências de tesouraria da SGPS sua dominante, prevista no n.º 3 daquele artigo 5.º, da LSGPS, não só constitui exceção à proibição contida na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo, como nem sequer é havida como concessão de crédito, para efeitos do RGICSF ou da LSGPS.
Mas, se as operações de tesouraria efetuadas por uma SGPS participada a uma outra SGPS, sua dominante, não constituem concessão de crédito para os efeitos do RGICSF ou da LSGPS, já assim não é para efeitos de incidência e isenção de Imposto do Selo, pois embora as normas fiscais utilizem termos próprios de outros ramos do direito, maxime do direito comercial e do direito bancário, delas decorre diretamente um sentido diverso (artigo 11.º, n.º 2, da LGT).
Na verdade, aquela forma de financiamento, utilizada sob a forma de conta-corrente, integra a previsão da norma de incidência da verba 17.1.4, da TGIS, assim como integra a previsão da norma de isenção da alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, da CIS.
Estabelece a referida norma do artigo 7.º, do CIS, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 83-C/2012, de 31.12 (LOE para 2014):
“Artigo 7.º - Outras isenções
1 - São também isentos do imposto:
(…)
g) As operações financeiras, incluindo os respetivos juros, por prazo não superior a um ano, desde que exclusivamente destinadas à cobertura de carência de tesouraria e efetuadas por sociedades de capital de risco (SCR) a favor de sociedades em que detenham participações, bem como as efetuadas por outras sociedades a favor de sociedades por elas dominadas ou a sociedades em que detenham uma participação de, pelo menos, 10 % do capital com direito de voto ou cujo valor de aquisição não seja inferior a (euro) 5 000 000, de acordo com o último balanço acordado e, bem assim, efetuadas em benefício de sociedade com a qual se encontre em relação de domínio ou de grupo.
(…)”.
Tendo ficado demonstrado que a Requerente, embora com a natureza de SGPS, é quase integralmente dominada pela beneficiária das operações de financiamento de que tratam os autos, outra conclusão não resta, senão a de que aquelas operações de financiamento são enquadráveis no segmento final daquela alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, do CIS, e que, portanto, são operações isentas.
Nem para tal conclusão é necessário convocar a norma do artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), que os carateriza como sendo “medidas de caráter excecional instituídas para tutela de interesses públicos extrafiscais relevantes que sejam superiores aos da própria tributação que impedem”, pois se essa norma se dirige ao intérprete, afigura-se que ela é sobretudo dirigida ao legislador e não se crê que o legislador, atendendo à presunção de que este “consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil), tenha criado a isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º, do CIS, sem ter tido em conta a definição legal de benefício fiscal.
A conclusão de que as operações de tesouraria efetuadas pela Requerente à sociedade sua dominante são operações isentas, justifica a anulação da liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios, nos termos artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT, por erro nos pressupostos de direito, bem como da decisão proferida na reclamação graciosa, que a confirmou.
3. Questões de conhecimento prejudicado
Na sentença, deve o juiz pronunciar-se sobre todas as questões que deva apreciar, abstendo-se de se pronunciar sobre questões de que não deva conhecer (segmento final do n.º 1 do artigo 125.º, do CPPT), sendo que as questões sobre que recaem os poderes de cognição do tribunal, são, de acordo com o n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, aplicável subsidiariamente ao processo arbitral tributário, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT, “as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Tendo-se alcançado a conclusão de que a liquidação de Imposto do Selo de 2016 e respetivos juros compensatórios objeto dos autos enferma do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, a justificar a sua anulação, fica prejudicado o conhecimento das questões relativas à responsabilidade pelo pagamento do imposto ou da eventual aplicação da cláusula geral antiabuso, quer pela inexistência da obrigação tributária, quer porque a liquidação incidiu sobre operações enquadráveis nos parâmetros legalmente definidos.
4. Do pedido de indemnização por prestação de garantia indevida
A final, vem a Requerente pedir que, em caso de procedência do pedido de pronúncia arbitral, seja a Requerida condenada no pagamento de indemnização pela garantia indevidamente prestada, sob a forma de fiança, para suspensão da execução fiscal instaurada para cobrança coerciva da liquidação de Imposto do Selo e juros compensatórios ora impugnada.
Embora o processo arbitral tributário tenha sido concebido como meio alternativo ao processo de impugnação judicial, inserido num contencioso essencialmente de anulação, é neste processo, no qual é discutida a legalidade da dívida exequenda, que deve ser pedida e decidida a atribuição de indemnização por prestação de garantia indevida no processo de execução fiscal, como decorre dos artigos 171.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e 53.º, da Lei Geral Tributária (LGT).
Dispõe o artigo 53.º, da LGT:
“Artigo 53.º - Garantia em caso de prestação indevida
1 - O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objecto a dívida garantida.
2 - O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3 - A indemnização referida no n.º 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4 - A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”
Face à redação do n.º 1 do artigo 53.º, da LGT, em que se refere a prestação de “garantia bancária ou equivalente”, têm a doutrina e a jurisprudência entendido que aquela expressão se reporta apenas às “formas de garantia que impliquem para o interessado suportar uma despesa cujo montante vai aumentando em função do período de tempo durante o qual aquela é mantida. Dos meios de garantia expressamente previstos no art.º 199º do CPPT, será o caso do seguro-caução, cujo regime está previsto nos art 6º e 7º do DL nº 183/88, de 24 de Maio” .
“[…] daí que a garantia prestada sob a forma de fiança não se encontre abrangida por estes preceitos legais que atribuem e fixam um direito indemnizatório de forma praticamente automática num procedimento simplificado, o que se justifica por a fiança ser, por regra, prestada gratuitamente, isto é, sem qualquer contraprestação especial destinada a retribuir a obrigação assumida pelo fiador, ainda que nada impeça que seja remunerada. O que não significa que o lesado nos seus direitos patrimoniais pela prestação desta garantia (ou de outras, como a hipoteca e penhor), não possa exigir a reparação dos prejuízos que efetivamente sofreu, por se tratar de direito que lhe é assegurado não só pelo art.º 22º da Constituição como pela Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas (Lei nº 67/2007, de 31.12). Terá, porém, de intentar para o efeito ação judicial para efetivar essa responsabilidade civil da administração tributária, onde terá de invocar e provar todos os danos que sofreu” .
Assim, sem prejuízo de a Requerente poder exercer o seu direito a ser ressarcida dos eventuais prejuízos causados pela prestação de garantia, sob forma de fiança, para suspender a execução fiscal em que é exigida a liquidação objeto dos presentes autos, através do meio judicial apropriado para o efeito, não lhe poderá tal direito ser reconhecido na ação arbitral.
IV. DECISÃO.
Pelos motivos expostos, acordam no Tribunal Arbitral Coletivo em:
a. Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade e consequente anulação da liquidação de Imposto do Selo do ano de 2016 com o n.º 2018... e respetivos juros compensatórios, no valor global de € 855 302,95, bem como da decisão do procedimento de reclamação graciosa que manteve aquela liquidação;
b. Julgar improcedente o pedido de indemnização por prestação de garantia indevida.
VALOR DO PROCESSO: De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se ao processo o valor de € 855 302,95 (oitocentos e cinquenta e cinco mil, trezentos e dois euros e noventa e cinco cêntimos).
CUSTAS: Calculadas de acordo com o artigo 4.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e da Tabela I a ele anexa, no valor de € 12 240,00 (doze mil, duzentos e quarenta euros), a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Notifique-se.
Lisboa, 25 de Setembro de 2020.
Os Árbitros,
Fernanda Maçãs
(árbitro presidente)
Mariana Vargas
(árbitro vogal)
Carla Alexandra Pacheco de Almeida Rocha da Cruz
(árbitro vogal)
Texto elaborado em computador, nos termos do n.º 5 do artigo 131.º, do CPC, aplicável por remissão da alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º, do D.L. n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
A redação da presente decisão rege-se pelo acordo ortográfico de 1990.