SUMÁRIO:
A norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, ao permitir que Administração Tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE, correspondendo à sua transposição para o direito interno.
DECISÃO ARBITRAL
I – Relatório
1. A..., S.A., com o número de identificação de pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade dos actos tributários de consubstanciados nas declarações periódicas de IVA respeitantes ao ano 2018, e, bem assim, da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra eles deduzida, requerendo ainda a condenação no pagamento de juros indemnizatórios.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
Nas declarações periódicas de IVA relativas ao ano de 2018, a Requerente, na condição de sujeito passivo misto, que desenvolve simultaneamente actividades sujeitas (locação financeira) e isentas (concessão de crédito) desse imposto, deduziu o IVA com base no cálculo do pro rata, em cumprimento da posição vertida no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, que considera que no cálculo da percentagem de dedução do pro rata apenas pode ser incluída a componente dos juros e não já as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira.
Os actos tributários em crise enfermam de errada aplicação do direito, maxime do regime legal do direito à dedução do IVA dos sujeitos passivos mistos, estatuído no artigo 23.º do Código do IVA.
Desde logo, nos termos da alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA o valor tributável da locação financeira é constituída por toda a renda recebida (capital e juros), não havendo motivo para distinguir quando há lugar à dedução de IVA relativamente a bens e serviços de utilização mista.
Por outro lado, o acórdão do TJUE proferido no caso Banco Mais apenas permite concluir que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c) da Sexta Directiva não se opõe a que um Estado-Membro possa obrigar um sujeito passivo a aplicar outro método de dedução que se repute mais ajustado, não sendo já possível afirmar que essa disposição de direito europeu se encontra transposta para o direito interno pelo artigo 23.º, n.º 2, do Código do IVA.
E esta disposição do direito interno não contém qualquer menção que permita à Autoridade Tributária impor condições à percentagem de dedução relativamente a um sujeito passivo que opta pelo método do pro rata, para além das instruções objetivas que são fornecidas pelo n.º 4 do artigo 23.º para a determinação dessa percentagem.
Sendo certo que a Sexta Directiva abre a possibilidade de os Estados-membros imporem a um sujeito passivo misto a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços, essa não foi, no entanto, a opção seguida pelo legislador nacional no Código do IVA.
Nestes termos, os actos tributários de autoliquidação, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, ao assentarem na possibilidade de alteração dos componentes do cálculo pro rata violam o disposto nos artigos 19.º, 20.º e 23.º do Código do IVA e os princípios da neutralidade fiscal, da igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, da segurança jurídica e da protecção da confiança, assim como os princípios da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º), da legalidade (artigo 112.º, n.º 5) e da reserva de lei (artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i)).
A Autoridade Tributária, na sua resposta, afirma que as autoliquidações de IVA seguiram o procedimento legalmente ajustado, em conformidade com o Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, e na linha do acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017, no Processo nº 0485/17 e de anterior jurisprudência.
E, por outro lado, o acórdão do TJUE, no caso Banco Mais, veio a considerar que o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 23.º do CIVA reproduz em substância a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva (a que corresponde o actual artigo 173.º, n.º 2, da Directiva 2006/112 CE).
Vindo assim a concluir a citada norma da Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir, no numerador e denominador a fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos.
Conclui pela improcedência do pedido.
2. Na petição inicial, a Requerente limita-se a pôr em causa a interpretação segundo a qual o n.º 2 e 3 do artigo 23.º do Código do IVA permitem à Autoridade Tributária, através de circular interna, definir e restringir o direito à dedução do IVA dos contribuintes através de uma diferente modelação do método pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º do Código do IVA, e por isso considerou que se estava perante uma estrita questão de direito, tendo indicado prova testemunhal apenas para o caso de o tribunal pretender esclarecimentos sobre o processo administrativo.
Em resposta à contestação, a Requerente veio formular um pedido de ampliação da matéria de facto, pretendendo igualmente demonstrar que “os custos gerais também são consumidos, pelo menos em parte significativa, na realização das operações de locação financeira”, e, desse modo, recoloca a questão em saber se, na aplicação do método pro rata de dedução de imposto suportado nos bens e serviços de utilização mista, na actividade de locação financeira, deve ser considerado o valor total da renda e não apenas a parte correspondente aos juros que constitui o proveito ou rendimento do locador.
O requerimento da Requerente constitui, deste modo, não uma mera ampliação da matéria de facto, que, à luz da causa de pedir inicial não teria qualquer justificação, mas uma ampliação da causa de pedir, em vista a assegurar que o pedido possa obter vencimento, com um outro fundamento de direito, caso o primeiro fundamento venha a ser julgado improcedente, e, nesse sentido, o tribunal determinou a notificação da Autoridade Tributária para se pronunciar sobre a pretendida alteração da causa de pedir.
A Requerida não consentiu o seu acordo para a alteração da causa de pedir, pelo que o tribunal, por despacho de 9 de Junho de 2020, considerando que essa modificação da instância apenas poderia ter lugar por acordo das partes, nos termos do artigo 264.º do mesmo Código, não admitiu a alteração da causa de pedir e determinou o prosseguimento do processo para alegações escritas facultativas pelo prazo sucessivo de dez dias.
Em alegações, a Requerente manteve a sua anterior posição. A Autoridade Tributária não contra-alegou.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 5 de Fevereiro de 2020.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não invocadas excepções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
3. Os factos relevantes para a decisão da causa que poderão ser tidos como assentes são os seguintes.
A) A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
B) A Requerente é sujeito passivo misto para efeitos de IVA na medida em que na sua actividade realiza operações de locação financeira mobiliária, que são tributáveis e conferem o direito de dedução do imposto, e operações de financiamento e concessão de crédito, que são isentas do imposto, que não permitem a dedução de IVA.
C) Durante o ano de 2018, a Requerente submeteu, via Internet, as declarações periódicas de IVA em que excluiu do numerador e do denominador da fracção representativa do cálculo pro rata as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, seguindo a posição externada pela Autoridade Tributária no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009;
D) A Requerente reduziu assim o seu pro rata de 43%, que representava o valor definitivo para 2014 e provisório para 2017, segundo o critério anteriormente seguido pela Requerente, para 11 %, por efeito do critério imposto pela Autoridade Tributária;
E) Consequentemente, o montante a deduzir foi reduzido de € 1.361.205,50 para € 348.215,361;
F) Na informação que serve de base ao despacho de indeferimento de reclamação graciosa, considera-se, em síntese, o seguinte:
- O artigo 17.º, n.º 5, § 3.º, da Sexta Directiva consente aos Estados-Membros que autorizem ou imponham métodos específicos de dedução do IVA quando as circunstâncias o justifiquem, o que está em consonância com o disposto no artigo 23.º, n.ºs 2 e 3, alínea b), do Código do IVA;
- O locador financeiro deverá reflectir o valor do bem locado, como crédito que é reembolsado através das amortizações financeiras e os juros e demais encargos como proveitos que irão influenciar o resultado do exercício;
- Assim, embora o artigo 16.º, n.º 2, alínea h), do Código do IVA refira que nas operações de locação financeira, o valor tributável corresponde à renda recebida como um todo, a verdade é que a parcela correspondente à amortização financeira não assume a natureza de proveito e, como tal, não integra o conceito de volume de negócio não pode influenciar o cálculo de percentagem de dedução;
L) A Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu o Ofício Circulado n.º 30108, de 30 de janeiro de 2009, com o seguinte teor:
Assunto: IVA - Direito à dedução Regras para a determinação do direito à dedução pelas instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD
Para conhecimento dos Serviços e de outros interessados, e tendo em vista divulgar a correcta interpretação a dar ao artigo 23º do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a actividade de Leasing ou de ALD, comunica-se que, por meu despacho de 2009.01.30, proferido na informação nº 106, de 19 de Janeiro de 2009, do Gabinete do Subdirector-Geral da área de Gestão do IVA, foi determinado o seguinte:
1. O ofício circulado nº 30103, de 2008.04.23, do Gabinete do SubdirectorGeral da área de Gestão do IVA, procedeu à divulgação de instruções genéricas no sentido de uniformizar a interpretação a dar às alterações introduzidas ao artigo 23º do Código do IVA (CIVA), de assegurar o correcto enquadramento das várias actividades face aos novos preceitos, de estabelecer os procedimentos a serem seguidos na determinação da dedução do imposto e, ainda, de clarificar os critérios a utilizar, quando haja recurso à afectação real na determinação do quantum do imposto a deduzir e sempre que esteja em causa bens e serviços de utilização mista.
2. De acordo com as referidas instruções e seguindo as regras do artigo 23º do CIVA, para apurar o imposto dedutível contido em bens e/ou serviços de utilização mista, aplica-se supletivamente o método da percentagem ou pro rata, excepto quando estejam em causa operações não decorrentes de uma actividade económica, caso em que é obrigatória a afectação real. Nos demais casos, a afectação real é facultativa podendo, no entanto, a Administração Tributária impor esse método de imputação quando a aplicação do pro rata conduza a distorções significativas na tributação (nº 3 artº 23º).
3. No caso de utilização da afectação real, obrigatória ou facultativa, e segundo o n.º 2 do artigo 23.º, o sujeito passivo para determinar o grau de afectação ou utilização dos bens e serviços à realização de operações que conferem direito a dedução ou de operações que não conferem esse direito, deve recorrer a critérios objectivos devendo, em qualquer dos casos, a determinação desses critérios objectivos ser adaptada à situação e organização concretas do sujeito passivo, à natureza das suas operações no contexto da actividade global exercida e aos bens ou serviços adquiridos para as necessidades de todas as operações, integradas ou não no conceito de actividade económica relevante.
4. Os critérios adoptados podem ser corrigidos ou alterados pela DGCI, com os devidos fundamentos de facto e de direito, ou, se for caso disso, fazer cessar a utilização do método, se se verificar a ocorrência de distorções significativas na tributação.
5. No caso específico das entidades financeiras que desenvolvem igualmente actividades de Leasing ou de ALD, a prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação tributada, incluindo a locação financeira, implica, quando houver bens e serviços adquiridos que sejam conjuntamente utilizados em ambas, a necessidade de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado, que é passível de direito a dedução.
6. Face à anterior redacção do artigo 23º do CIVA, no âmbito da aplicação do método da afectação real, sempre que não fosse viável a aplicação da afectação no cálculo do IVA dedutível relativamente a bens de utilização mista, a solução encontrada e seguida pelos Serviços como sendo a que mais se aproximava da neutralidade desejada, foi no sentido de ser aplicada uma proporção entre os dois tipos de operações, de forma a determinar, o mais aproximadamente possível, a afectação dos inputs a cada uma delas. No entanto, não estava aqui em causa a aplicação do nº 4 do artigo 23º do IVA mas do apuramento do imposto dedutível mediante a aplicação de um pro rata específico, uma vez que previamente o método utilizado fora o da afectação real.
7. Face à actual redacção do artigo 23.º, a afectação real é o método que, tendo por base critérios objectivos de imputação, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.
8. Nesse sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de actividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do nº.2 do artigo 23º do CIVA, a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades.
9. Na aplicação do método da afectação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do nº. 4 do artigo 23º do CIVA.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta.
Matéria de direito
4. A Requerente é uma instituição de crédito abrangida pelo Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras que realiza operações de financiamento e concessão de crédito, que se encontram isentas de IVA e não permitem o direito à dedução de imposto, e operações de locação financeira, que estão sujeitas e não isentas de IVA e conferem direito à dedução, sendo assim caracterizada para esse efeito como um sujeito passivo misto.
No caso das operações de locação financeira a contraprestação concretiza-se nas rendas que o locatário se obriga a pagar pela cedência dos bens locados e que integram uma parte correspondente a juros e outra a amortização financeira ou do capital.
A questão que vem colocada é a de saber se, na aplicação do método pro rata de dedução de imposto suportado nos bens e serviços de utilização mista, devem ser considerados no numerador e no denominador da fracção de cálculo o valor total da renda e não apenas a parte correspondente aos juros que constitui o proveito ou rendimento do locador.
A questão foi analisada pelo TJUE em reenvio prejudicial suscitado, em caso similar, pelo Supremo Tribunal Administrativo em que se concluiu que o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva (a que corresponde o artigo 173.º, n.º 2, alínea c), da Directiva 2006/112/CE) deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado Membro obrigue um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos (acórdão de 10 de julho de 2014, Processo n.º C-183/13).
A Requerente sustenta, todavia, que a referida norma de direito europeu não foi objecto de transposição para o direito interno português, e, especificamente, não foi transposta através do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, pelo que cabe aferir se a Autoridade Tributária dispõe da possibilidade, no âmbito da aplicação do método do pro rata a um sujeito passivo que exerce actividades de locação financeira, de considerar apenas os juros para efeitos do cálculo de dedução.
É esta a questão que cabe dilucidar.
5. O direito à dedução do imposto, disciplinado nos artigos 167.º a 192.º da Directiva IVA e, no direito interno, nos artigos 19.º a 25.º do Código do IVA, consiste essencialmente no direito de um sujeito passivo deduzir ao imposto incidente sobre uma certa operação tributável o imposto em que tenha incorrido na aquisição de bens ou serviços que se destinem à realização dessa operação.
Segundo a regra geral constante do artigo 168.º da Directiva, o IVA incorrido nas aquisições feitas por um sujeito passivo é dedutível na integralidade sempre que os bens ou serviços sejam utilizados “para os fins das suas operações tributadas”. Esse corresponde a um método de dedução de imputação directa, havendo de estabelecer-se para esse efeito um nexo directo entre uma dada operação activa e uma dada operação passiva.
Não sendo possível estabelecer esse nexo directo, como sucede quando as despesas com aquisições de bens ou serviços respeitam simultaneamente a operações tributadas e operações isentas de imposto – caso em que estaremos perante custos mistos ou custos promíscuos – o direito à dedução encontra-se limitado nos termos do artigo 173.º da Directiva.
Esse preceito consagra em primeira linha o método pro rata, pelo qual relativamente a bens e serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações e, por conseguinte, apenas em relação a operações que originam o direito à dedução.
Entende-se neste contexto que o método pro rata assenta na presunção de que os custos mistos são utilizados nas operações que conferem direito à dedução na razão directa do valor que essas operações representam face ao volume total de negócios da empresa. É essa a regra de cálculo que se encontra vertida no artigo 174.º da Directiva: “o pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes – (a) no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.o e 169.o; (b) no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.
A presunção baseada na percentagem do valor das operações com direito a dedução em relação ao volume total de negócios é, todavia, afastada pelo critério da afectação real consignado na alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva, que permite que os estados membros autorizem ou imponham que a dedução do IVA seja efectuada com base, não no volume de negócios, mas na efectiva utilização dos bens ou serviços.
A norma dispõe nestes termos:
2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:
(…)
c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;
(…).
Haverá assim de concluir-se que a Directiva IVA contempla três distintos métodos de cálculo da dedução. O método regra de imputação directa, que é aplicável aos custos directos, ou seja, aos custos associados a operações que conferem direito à dedução, e, relativamente aos custos mistos, que estão indistintamente associados a operações que conferem ou não conferem o direito de dedução, o método pro rata e, a título de excepção, o método de afectação real.
Não pode deixar de reconhecer-se, por outro lado, que a Directiva, através do referido artigo 173.º, n.º 2, alínea c), confere aos estados alguma margem de liberdade de conformação quanto à definição do critério de afectação real.
No direito interno, relativamente ao método de dedução aplicável a bens de utilização mista, releva o artigo 23.° do Código do IVA, que, na parte que mais interessa considerar, é do seguinte teor:
«1. Quando o sujeito passivo, no exercício da sua atividade, efetue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que deem lugar a dedução.
2. Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direção Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação.
3. A administração fiscal pode obrigar o contribuinte a proceder de acordo com o disposto no número anterior:
a) Quando o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas;
b) Quando a aplicação do processo referido no n.° 1 conduza a distorções significativas na tributação.
4. A percentagem de dedução específica referida no n.° 1 resulta de uma fração que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19.° e n.° 1 do artigo 20.° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efetuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do âmbito do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento.
[...].
6. Parece não haver dúvidas que o artigo 23.º, n.º 1, alínea b), consagra o método pro rata para a dedução do IVA para sujeitos passivos mistos, estabelecendo no n.º 4 o cálculo da percentagem de dedução. Por outro lado, nos termos do n.º 2, pode o sujeito passivo efetuar a dedução segundo a afetação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, o que corresponde à aplicação de um método de dedução alternativo baseado na afectação real em função da efectiva utilização dos bens. Para esta última hipótese, esse n.º 2 prevê igualmente que a Administração possa impor condições especiais ao método de afectação real – quando o sujeito passivo tenha optado por esse método de dedução – e fazer cessar o procedimento quando se verifiquem distorções significativas na tributação. E nos termos da alínea b) do n.º 3, a Administração pode também obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o método de afectação real quando a aplicação do método pro rata possa conduzir a distorções significativas na tributação.
Por outro lado, o coeficiente específico de dedução que permite calcular a percentagem de dedução apenas com base no montante anual de juros foi somente introduzido pelo Ofício Circulado n.º 30108, de 30 da janeiro de 2009, pelo qual, a Administração Fiscal, tendo concluído, relativamente às instituições de crédito que desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD, que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, determinou, no uso da faculdade prevista no artigo 23.º, n.º 3, que esses sujeitos passivos passassem a utilizar a afectação real.
Segundo os pontos 8 e 9 do Ofício Circulado, a afectação real poderá fazer-se das duas seguintes formas: (a) se for possível, faz-se a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades; (b) se não for possível aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD.
7. Como é salientado pela Requerente, a jurisprudência do CAAD, inaugurada pelo o acórdão arbitral proferido no Processo n.º 309/2017, e seguida por diversas outras decisões arbitrais, aponta no sentido da ilegalidade dos actos tributários que aplicam o critério específico de dedução adoptado pelo ofício-circulado n.º 30103, por violação do disposto no artigo 23.º, n.º 2 e 3, alínea b), do Código do IVA, com base essencialmente nos seguintes considerandos.
Embora a norma de direito europeu admita que, na aplicação do método de afectação real, seja apenas considerada uma parte dos bens de uso misto utilizados, e não a sua totalidade, o certo é que na transposição efectuada pelo legislador nacional apenas se prevê a “afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”.
Ora, é claro que que não é com base no valor parcial da renda (correspondente aos juros) que é possível determinar, com objectividade, as despesas comuns que estão afectas à actividade de locação financeira que conferem o direito à dedução.
Sendo assim, haverá de concluir-se que o poder concedido à Administração Fiscal pelo artigo 23.º, n.º 3, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem de dedução. Tanto mais que, como determina o artigo 16.º, n.º 1, alínea h), o valor tributável nas operações resultantes de um contrato de locação financeira é o valor da renda recebida ou a receber do locatário, e na fórmula legalmente prevista para calcular a percentagem de dedução deve intervir o valor de negócios total (artigo 23.º, n.º 4).
Admite-se, assim, que o Código do IVA efectuou a transposição do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva para o direito interno mas não permite sustentar a aplicação de um coeficiente de imputação específico que tenha por base a dedução do montante anual correspondente aos juros associados à actividade de locação financeira.
7. No entanto, este entendimento não tem sido seguido pelo Supremo Tribunal Administrativo.
No acórdão de 4 de Março de 2015, no âmbito do Processo n.º 1017/12, em que foi formulado o pedido de reenvio prejudicial que originou a pronúncia pelo TJUE no caso Banco Mais, o STA conclui do seguinte modo: “o Tribunal de Justiça da União Europeia, no processo C-183/13 esclareceu que, se houver elementos que permitam concluir que as operações que conferem direito à dedução de imposto representam uma parte mais que proporcional dos custos comuns originados pelos bens e serviços de utilização mista – como aconteceria se a utilização desses bens e serviços de utilização mista fosse sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos de locação financeira (actividade que não confere direito à dedução do Imposto sobre o valor acrescentado) a significar que «esses custos comuns» se reportavam essencialmente às operações bancárias isentas, - é possível calcular o pro rata da forma excluindo do numerador e do denominador a parte das rendas que corresponde à amortização financeira.
Essa orientação foi depois seguida nos Acórdãos da Secção de 4 de Março de 2015 (Processo n.º 081/13), 3 de Junho de 2015 (Processo n.º 0970/13), 17 de Junho de 2015 (Processo n.º 01874/13), 27 de Janeiro de 2016 (Processo n.º 0331/14) e 15 de Novembro de 2017 (Processo n.º 0485/17) e confirmada no recente acórdão para uniformização de jurisprudência de 4 de Março de 2020 (Processo n.º 7/19), fundado na contradição existente, quanto à mesma questão fundamental de direito, entre decisão arbitral (decisão recorrida) e o citado acórdão do STA de 15 de Novembro de 2017 (acórdão fundamento).
Para assim concluir, o acórdão de uniformização de jurisprudência, na parte que mais interessa considerar, refere o seguinte.
Como já se esclareceu no acórdão proferido por este STA a 3 de Junho de 2015 no âmbito do Processo n.º 0970/13, ao interpretar as normas supra referidas o TJUE tomou em consideração que “na interpretação de uma disposição de direito da União, importa ter em conta não apenas os respectivos termos mas também o seu contexto e os objectivos prosseguidos pela regulamentação em que está integrada (acórdão SGAE, C-306/05, EU:C:2006:764, n. 34). E que no caso em apreço, o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado-Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados-Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24)”.
Neste contexto, não só se verifica que o artigo 19.º n.º 1 da Sexta Directiva (intitulado “Cálculo do pro rata de dedução”) remete unicamente para o pro rata previsto no artigo 17.º, n.º 5, primeiro parágrafo, desta Directiva, como se verifica que, “embora o segundo parágrafo do artigo 17.º, n.º 5, da Sexta Directiva preveja que essa regra de cálculo se aplica a todos os bens e serviços de utilização mista adquiridos por um sujeito passivo, o terceiro parágrafo desse artigo 17.º, n.º 5, que também inclui a disposição que figura na alínea c), começa com a conjunção adversativa «todavia», que implica a existência de derrogações à referida regra (acórdão Royal Bank of Scotland, EU:C:2008:750, n.º 23). - parágrafos 25 e 26.
Ora, nesta perspectiva a norma do artº 23º nº 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA – artº 17º, nº 5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços»”.
Como tal, ao abrigo da legislação europeia transposta para o artigo 23.º n.º 2 do Código do IVA, o legislador nacional pode estabelecer condições especiais para o cálculo pro rata do imposto sempre que se verifiquem distorções significativas na tributação, o que determina, no caso dos autos, que para o cálculo do pro rata apenas sejam considerados os juros, ou seja, apenas seja considerada a parte da remuneração do locador incluída na renda e que é, afinal, o valor que traduz o seu interesse financeiro.
Importa, por outro lado, ter presente que o método específico de imputação do pro rata, implicando que apenas possa ser deduzida, no âmbito dos contratos de locação financeira, a parte das rendas pagas pelos clientes que corresponde aos juros, na linha o acórdão Banco Mais, apenas opera quando a utilização dos bens e serviços comuns seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. E nesse sentido o STA em diversos casos, como sucedeu no acórdão de uniformização de jurisprudência, tem vindo a devolver o processo aos tribunais de instância para efeito de ampliação da matéria de facto em vista a apurar se a utilização de bens e serviços mistos “é sobretudo determinada” pelas operações de financiamento e gestão dos contratos de locação financeira, ou, o invés, pela disponibilização dos veículos.
Esta questão colocou-se a propósito do acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Lda (acórdão de 18 de Outubro de 2018, Processo n.º C-153/17) que, não contradizendo o acórdão Banco Mais veio matizar a posição assumida nesse acórdão, ao considerar que não se pode deduzir do raciocínio aí desenvolvido pelo Tribunal de Justiça relativamente a operações de locação financeira, que o artigo 173.o, n.o 2, alínea c), da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros, de modo geral, aplicarem a todos os tipos de operações semelhantes para o sector automóvel um método de repartição que não tem em conta o valor do veículo aquando da sua entrega (§ 56).
Vindo a concluir o Tribunal de Justiça que os artigos 168.o e 173.o, n.o 2, alínea c), da Directiva IVA devem ser interpretados no sentido de que, por um lado, mesmo quando os custos gerais relativos às operações de locação financeira de bens móveis, não sejam repercutidos no montante devido pelo cliente pela disponibilização do bem em causa, ou seja, na parte tributável da operação, mas no montante dos juros devidos a título da parte «financiamento» da operação, ou seja, na parte isenta da operação, esses custos gerais devem ser considerados, para efeitos do IVA, como um elemento constitutivo do preço dessa disponibilização e, por outro lado, que os Estados membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios.
No caso em análise, estavam em causa, no âmbito da locação financeira, os custos gerais da empresa que aproveitavam indistintamente a duas operações que eram tratadas diferentemente para efeitos de IVA: a disponibilização do veículo, que constitui uma operação tributada e o financiamento, que é tido como uma operação de concessão de crédito isenta.
As autoridades do Estado-Membro impunham à empresa, nessa circunstância, um método de dedução que se traduzia na aplicação de um pro rata do qual era excluído o valor da disponibilização dos veículos, por se entender que os custos gerais incorridos pela empresa estavam essencialmente ligados à operação de financiamento que era o cerne da sua actividade e a única operação em que podiam ser repercutidos nos termos da lei interna (SV).
O acórdão Volkswagen Financial Services (UK) Ltd assume assim especial relevo quanto à questão de saber se as diferentes operações relativas a prestações de locação financeira, como seja a concessão de financiamento e a disponibilização de veículos, devem ser tratadas como operações distintas tributáveis separadamente ou como uma única prestação económica indissociável.
Nesse caso, do ponto de vista do cálculo do pro rata para a dedução do IVA no caso de bens e serviços de utilização mista, o Tribunal de Justiça considerou relevante o facto de os custos gerais em causa terem uma relação directa e imediata com a totalidade das actividades da empresa, e não apenas com algumas delas, vindo a concluir que os custos gerais quando tenham sido realmente efectuados, pelo menos em parte, em vista a aquisição e disponibilização de veículos enquanto operações tributáveis, integram os elementos constitutivos do preço dessas operações, havendo lugar ao direito à dedução do IVA.
Diferentemente, o acórdão Banco Mais veio admitir que os Estados-Membros possam obrigar um banco que exerce atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas correspondente aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos. Para justificar essa solução, o TJUE considerou decisivo que os custos mistos se encontrem preponderantemente relacionados com o financiamento e a gestão dos contratos de locação financeira e não com a aquisição e disponibilização de veículos.
E essa questão factual que conduz a que o STA reenvie o processo para as instâncias para apurar se a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes ou, ao contrário, pela disponibilização dos veículos.
8. A questão, todavia, não se coloca no presente processo.
De facto, a Requerente enuncia como questão essencial a decidir a de saber de 137 138 103 113 125. E não alegou quaisquer factos que permitam ao tribunal apurar, em sede de matéria de facto, se os custos gerais são preponderantemente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou pela alienação e abate dos bens locados.
Ora, a questão de direito que vem colocada obteve já resposta do acórdão de uniformização de jurisprudência do STA, em termos a que o tribunal arbitral não pode deixar de aderir, ao consignar que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA efectuou a transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, e, por conseguinte, a Administração não está impedida de considerar que, no cálculo do pro rata das operações de locação financeira, apenas sejam tidos em conta os juros, ou seja, apenas a parte da remuneração do locador incluída na renda.
Certo é que, na pendência do processo, a Requerente formulou um pedido de ampliação da matéria de facto, pretendendo demonstrar que “os custos gerais também são consumidos, pelo menos em parte significativa, na realização das operações de locação financeira”, o que poderia permitir uma resposta positiva à questão factual de saber se os custos gerais são preponderantemente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou pela disponibilização dos veículos.
No entanto, como se decidiu já no despacho arbitral de 9 de Junho de 2020, o que está em causa não é uma mera ampliação da matéria de facto, mas uma ampliação da causa de pedir, em vista a assegurar que o pedido possa obter vencimento, com um outro fundamento de direito, caso o primeiro fundamento venha a ser julgado improcedente. Tratando-se de uma alteração da causa de pedir, e considerando que não se verifica o condicionalismo do artigo 265.º, n.º 1, do CPC, essa modificação da instância apenas poderia ter lugar por acordo das partes, nos termos do artigo 264.º do mesmo Código. Tendo a Autoridade Tributária recusado o seu acordo à pretendida alteração da causa de pedir, a alteração da causa de pedir não foi, nem poderia ser, admitida.
Assim sendo, na linha da jurisprudência do STA, há que reconhecer que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA procedeu à transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva, pelo que os actos de liquidação impugnados não enfermam da ilegalidade que lhes é imputada.
Vícios de constitucionalidade
9. Sem qualquer outro desenvolvimento, a Requerente refere no artigo 164.º da petição inicial que os actos tributários impugnados violam dos princípios que caracterizam o IVA (o princípio da neutralidade fiscal, o princípio da igualdade de tratamento entre sujeitos passivos, o princípio da segurança jurídica e o princípio da protecção da confiança legítima dos sujeitos passivos), assim como dos princípios constitucionais da separação de poderes (artigos 2.º e 111.º), da legalidade (artigo 112.º, n.º 5) e da reserva de lei (artigos 103.º e 165.º, n.º 1, alínea i), todos da Constituição da República Portuguesa.
Não explicitando a Requerente, minimamente, as razões pelos quais se encontram violados qualquer um desses princípios, o tribunal, nessa parte, não pode tomar conhecimento do pedido.
Juros indemnizatórios
10. Face à decisão de improcedência do pedido arbitral, fica prejudicado o conhecimento do pedido de condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.
III – Decisão
Termos em que se decide julgar totalmente improcedente o pedido arbitral.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.551.141,15, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 20.808,00, que fica a cargo da Requerente.
Notifique.
Lisboa, 5 de Setembro de 2020,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Paulo Lourenço (vencido nos termos da declaração de voto que segue em anexo)
O Árbitro vogal
Sérgio Vasques
DECLARAÇÃO DE VOTO
Com todo o respeito pelas posições assumidas no âmbito do presente processo, não concordo com a decisão que foi tomada.
Na verdade, no caso concreto em apreço, está em causa a questão de saber se houve ou não transposição da Diretiva, na parte respeitante à alínea c) do nº 5 do artigo 173º da Diretiva do IVA, de forma a aferir a legitimidade da Autoridade Tributária para agir em conformidade com a regra específica constante do ofício circulado nº 30108, de 30 de janeiro de 2009.
A Requerente não conseguiu evidenciar a existência de quaisquer factos que permitam ao Tribunal apurar se os custos gerais são preponderantemente determinados pelo financiamento e gestão dos contratos de locação financeira ou pela alienação e abate dos bens locados.
Não obstante, a verdade é que, mesmo aceitando que foi efetuada a transposição da norma supra referida, o critério que a Autoridade Tributária utiliza apenas é possível, como bem sustentam o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Supremo Tribunal Administrativo, se a utilização dos bens e serviços mistos estiver relacionada, de forma determinante, com o financiamento e gestão dos contratos, ou seja, com as operações levadas a cabo pela Requerente que sejam isentas e não confiram o direito à dedução.
Ainda que não tenha sido possível a demonstração da preponderância determinante dos custos gerais, a verdade é que falta um pressuposto essencial para poder ser imposta qualquer condição especial, o que significa que, na sua ausência, a dedução do IVA terá que ser efetuada mediante a aplicação da regra geral prevista no nº 4 do artigo 23º do Código do IVA.
A utilização de um coeficiente de imputação específico apenas seria possível se a lei, não um ofício-circulado, referisse expressamente essa possibilidade na ausência de demonstração, por parte dos sujeitos passivos, da preponderância determinante acima mencionada.
Assim sendo, mesmo que se aceite, na linha da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que a norma do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA procedeu à transposição para o direito interno do artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, a Autoridade Tributária não podia aplicar um método de imputação específico que permitisse incluir somente os juros, o que significa que os atos de liquidação impugnados enfermam, na minha opinião, da ilegalidade que lhes é imputada.
O Árbitro vogal
Paulo Lourenço