DECISÃO ARBITRAL
A Signatária, Dra. Elisabete Flora Louro Martins, foi designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (adiante designado apenas por CAAD) para formar o TRIBUNAL ARBITRAL SINGULAR, o qual foi constituído em 26 de fevereiro de 2020.
I. RELATÓRIO
1. A..., portadora do cartão de cidadão n.º..., contribuinte fiscal nº..., residente na ..., ..., ..., ...-..., Chaves, (doravante, Requerente), apresentou no dia 5 de dezembro de 2019 pedido de pronúncia arbitral, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de Janeiro, Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (doravante, RJAT), em que é Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante, Requerida).
No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pede a declaração de ilegalidade das liquidações de imposto feitas pela Requerida — referente aos rendimentos obtidos pela Requerente no ano de 2017 (liquidação nº 2019 ... de 29 de junho de 2019, com acerto de contas nº 2019 ... de 03 de julho de 2019, que determinou, relativamente aos rendimentos obtidos pela Requerente em 2017, um reembolso de IRS no valor de EUR 133,63), e no ano de 2018 (liquidação nº 2019 ... de 27 de junho de 2019, com acerto de contas nº 2019 ... de 03 de julho de 2019, que determinou, relativamente aos rendimentos obtidos pela Requerente em 2018, um reembolso de IRS no valor de EUR 321,73) — (doravante, ato impugnado). Pede ainda a Requerente que a Requerida seja condenada a aplicar o coeficiente de 0,35 aos rendimentos auferidos na qualidade de árbitro de futsal, e a aceitar que esses rendimentos sejam declarados no campo 404, do anexo B da declaração de IRS. Constitui também objeto do pedido de pronúncia arbitral a decisão da reclamação graciosa à qual foi atribuída o processo n.º ...2019..., na medida em que a mesma manteve as mesmas liquidações de IRS relativas aos anos fiscais em análise.
2. O pedido de pronúncia arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD em 06 de dezembro de 2019, e foi notificado à Requerida em 11 de dezembro de 2019.
3. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, em 27 de janeiro de 2020 ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea a) do RJAT, o Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a Signatária como Árbitro do Tribunal Arbitral Singular, tendo a Signatária comunicado a aceitação do encargo no prazo aplicável.
4. Em 27 de janeiro de 2020, as partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo as mesmas manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.
5. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral Singular foi constituído em 26 de fevereiro de 2020.
6. Em 26 de fevereiro de 2020, o Tribunal Arbitral proferiu despacho arbitral ordenando a notificação da Requerida para apresentar Resposta, juntar cópia do Processo Administrativo, e solicitar, querendo, a produção de prova adicional. Deste despacho foi a Requerida notificada na mesma data.
7. A Requerida veio aos autos apresentar Resposta e juntar o processo administrativo em 30 de março de 2020, dentro do prazo legal.
8. Em 17 de abril de 2020, a Requerente veio aos autos juntar cópia da Decisão Arbitral proferida em 9 de março de 2020 no processo nº 704/2019-T. Na mesma data (17 de abril de 2020), a Requerida respondeu àquele requerimento informando os autos que aquela Decisão Arbitral não transitou em julgado, dado a Requerida ter interposto recurso que corre termos no STA com o número de processo .../20...BALSB.
9. Em 1 de julho de 2020 foi proferido despacho arbitral que: (i) ordenou a notificação da Requerente para se pronunciar, por escrito, relativamente à matéria de exceção deduzida na Resposta da Requerida (Prazo: 10 dias); (ii) dispensou a realização da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal na condução do processo, e (em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade do mesmo) nos termos do artigo 19.º e do artigo 29.º n.º 2 do RJAT; e (iii) indicou o dia 1 de setembro de 2020 (termo do prazo de seis meses, previsto no disposto no artigo 21.º do RJAT, sem considerar a suspensão prevista na Lei 1-A/2020, de 19 de março, republicada pela Lei 16/2020 de 29 de maio) para prolação da decisão arbitral.
10. Em 4 de agosto de 2020, em cumprimento do despacho referido no número anterior, a Requerente veio aos autos responder às exceções alegadas pela Requerida, e veio ainda juntar aos presentes autos o Parecer do Ministério Público notificado no recurso nº .../20...BALSB, já identificado supra na presente Decisão Arbitral.
11. No pedido de pronúncia arbitral, a Requerente pugna pela ilegalidade e consequente anulação do ato impugnado, alegando que a atividade de árbitro de futsal (plasmada na prestação de serviços de “outras actividades desportivas”, com o código CAE 93192), não encontra previsão típica e expressa na tabela anexa ao artigo 151.º do CIRS, o que determina que o coeficiente de 0,75 não é aplicável aos rendimentos decorrentes da atividade de árbitro de futsal desenvolvida pela Requerente nos anos fiscais de 2017 e 2018 (e cuja declaração deu origem à emissão do ato impugnado). Entende a Requerente que os rendimentos decorrentes da atividade de árbitro de futsal devem ser enquadrados na categoria residual constante da alínea c) do n.º 1, do artigo 31.º do CIRS — onde se incluem os restantes rendimentos da categoria B não previstos nas alíneas anteriores — estando assim os mesmos sujeitos a um coeficiente de 0,35.
12. Na sua Resposta, a Requerida alega:
a) A exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia. Alega a Requerida que o pedido tão só concretiza a declaração de erro da Administração Tributária no enquadramento dos rendimentos no campo 403 e não no campo 404, o que, tendo em conta a matéria a sindicar, não é suscetível de resolução por via arbitral. Defende ainda que o meio próprio para impugnar estes atos, que não comportam a apreciação da legalidade de atos de liquidação e que também não são atos de fixação da matéria tributável ou da matéria coletável não é a impugnação judicial, mas sim a ação administrativa especial (alínea p), do n.º 1 do artigo 97.º do CPPT e artigo 37.º e seguintes do CPTA). Estamos perante um ato da administração tributária que não integra os atos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, pelo que, deve o Tribunal Arbitral julgar procedente a exceção invocada de incompetência absoluta do foro arbitral, em razão da matéria e, em consequência, rejeitar o pedido de pronúncia arbitral, absolvendo a AT da instância;
b) Que a atividade de árbitro de futsal deve ser enquadrada no código de atividades “1323 – Desportistas” (que é um código abrangente e engloba, para além de atletas, todos os agentes desportivos envolvidos em atividades desportivas). Assim, atendendo a que os rendimentos da Requerente provêm de atividade especificamente prevista na tabela de atividades a que se refere o artigo 151.º do CIRS, tais rendimentos enquadram-se na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do CIRS, tendo o coeficiente de 0,75 sido corretamente aplicado.
II. SANEAMENTO
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram se regularmente representadas (artigos 4.º e 10.º n.º 2 do RJAT, e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de Março).
O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
O processo não enferma de nulidades.
Cumpre apreciar e decidir.
III. FACTOS PROVADOS
1. A Requerente é árbitro de futsal, pertencente aos quadros da Associação de Futebol de ... estando inscrita na Autoridade Tributária com o código CAE 93192 (Outras atividades desportivas);
2. Por ocasião da entrega anual da sua declaração modelo 3 do IRS, a Requerente, declarou os rendimentos que aufere na sua atividade de árbitro de futsal, tendo os mesmos sido declarados no campo 403, do quadro 4, do anexo B, nas declarações entregues em 2018 e 2019, referentes aos rendimentos auferidos em 2017 e 2018;
3. Posteriormente à submissão das declarações de IRS supra aludidas, a Requerente tomou conhecimento que outros colegas árbitros de futebol e de futsal tinham declarado os seus rendimentos no campo 404, do quadro 4, do anexo B da declaração de IRS, alicerçados num parecer jurídico da Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), Instituição com Utilidade Pública e representativa da maioria dos árbitros de futebol e futsal portugueses;
4. A Requerente procedeu à alteração das duas declarações de IRS já mencionadas, declarando os seus rendimentos de árbitro de futsal no campo 404;
5. No Anexo B da declaração Modelo 3 de IRS relativa a 2017 (apresentada em 26 de junho de 2019), a Requerente preencheu o campo “A-08” (Código CAE – Rendimentos profissionais, comerciais e industriais), com o CAE 93192;
6. No Anexo B da declaração Modelo 3 de IRS relativa a 2018 (apresentada em 26 de junho de 2019), a Requerente preencheu o campo “A-08” (Código CAE – Rendimentos profissionais, comerciais e industriais), com o CAE 93192;
7. A Requerida notificou a Requerente para corrigir as divergências que lhe foram apresentadas, referentes às declarações de IRS dos rendimentos de 2017 e 2018, submetidas, respetivamente em 2018 e 2019 instando a Requerente a entregar elementos justificativos para as declarações entregues ou a corrigir as mesmas;
8. De forma a suprir a divergência criada pela Requerida, o Requerente alterou as suas declarações de IRS referidas declarando os seus rendimentos de árbitro de futsal no campo 403 o que determinou a aplicação aos referidos rendimentos de um coeficiente de 0,75 — ao invés do coeficiente de 0,35 que seria aplicado, caso a Requerente tivesse declarado os seus rendimentos no campo 404, do quadro 4, do anexo B da declaração de IRS (2017 e 2018);
9. A Reclamante apresentou reclamação graciosa (à qual foi atribuída o processo n.º ...2019...), a qual foi indeferida pela Requerida por despacho de dia 6 de novembro de 2019, notificado em 08 de Novembro de 2019;
10. A Requerente não foi notificada para exercer o direito de audição prévia no âmbito da reclamação graciosa.
IV. FACTOS NÃO PROVADOS E FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base na apreciação da prova documental junta aos autos pelas partes. Não se registaram quaisquer factos não provados com interesse para a resolução da causa.
V. DA APRECIAÇÃO JURÍDICA
Foram suscitadas pelas partes duas questões essenciais às quais o Tribunal irá responder:
Questão 1:
Exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia.
Questão 2:
Enquadramento da atividade de árbitro de futsal no código de atividades “1323 – Desportistas”.
Questão 1:
Exceção de incompetência do Tribunal em razão da matéria e da hierarquia.
No que respeita à primeira questão, a Requerida afirma que “o pedido tão só concretiza a declaração de erro da Administração Tributária no enquadramento dos rendimentos no campo 403 e não no campo 404, o que, tendo em conta a matéria a sindicar, não é suscetível de resolução por via arbitral”. Esta afirmação feita pela Requerida na sua Resposta, não corresponde de todo à verdade.
No pedido, a Requerente pede expressamente: “Ser declarada ilegal as liquidações de imposto feitas pela Requerida, referente aos rendimentos obtidos pelo Requerente nos anos de 2017 e 2018 e declarados, respectivamente, nos anos de 2018 e 2019”. Na causa de pedir, a Requerente é clara ao afirmar que o que pretende é a anulação das liquidações de IRS relativas aos anos fiscais de 2017 e de 2018, por considerar que as mesmas são manifestamente ilegais, na medida em que aplicaram erradamente a lei que determina o coeficiente que deverá ser aplicado aos rendimentos obtidos pela Requerente.
Manifestamente, resulta da leitura do pedido de pronúncia arbitral que o que a Requerente pretende é a “A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos”, aliás, conforme a própria Requerida reconhece na sua Resposta quando afirma: “Vem a Requerente vem deduzir pedido de pronúncia arbitral que tem por objeto as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) n.ºs 2019... e 2019..., referente aos anos de 2017 e 2018, com os fundamentos constantes da petição que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”.
Resulta assim do exposto, que o meio processual adequado para a Requerente reagir aos atos de liquidação emitidos (bem como, à decisão de indeferimento da reclamação graciosa na medida em que esta confirma os argumentos com base foram emitidas as liquidações) é efetivamente a impugnação judicial, nos termos do disposto no 97.º n.º (a) do CPPT ou o pedido de pronúncia arbitral, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.º n.º 1 al. (a) do RJAT que prevê: “A competência dos tribunais arbitrais compreende a apreciação das seguintes pretensões: (a) A declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;” — o que determina a competência do Tribunal Arbitral Singular para conhecer do pedido de pronúncia arbitral, apresentado pela Requerente.
Acresce que é do conhecimento da Requerida que existe já uma extensa jurisprudência do CAAD relativamente ao tema objeto de discussão (tanto assim é que existe já um recurso de oposição de acórdãos em curso no STA). Termos em que, a exceção invocada é declarada manifestamente improcedente, com as demais consequências legais.
Questão 2:
Enquadramento da atividade de árbitro de futsal no código de atividades “1323 – Desportistas”.
No que respeita à questão de fundo, é conhecido o facto de existirem decisões do CAAD em sentido manifestamente divergente. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 8.º nº 3 do Código Civil: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”. Por conseguinte, na questão de fundo, vamos aderir aos argumentos expostos na Decisão Arbitral de 09 de Março de 2020, proferida no processo nº 704/2019-T (que acompanhou o entendimento de outras Decisões Arbitrais, como a Decisão de 06 de abril de 2018, proferida no processo nº 510/2017-T, e a Decisão Arbitral de 12 de outubro de 2016, proferida no processo nº 107/2016-T), apesar da mesma estar em discussão no recurso em curso no STA, já identificado.
Para facilidade de referência, transcrevemos o teor da Decisão Arbitral de 09 de Março de 2020, proferida no processo nº 704/2019-T (atendendo à semelhança da situação de facto), à qual aderimos totalmente, sem reservas:
“O Anexo B do Modelo 3 do IRS, desde logo no quadro 3A, campos 7, 8 e 9, dá seguimento à necessidade de se colocar o código ou códigos de actividade, tal como foram definidos na declaração de início de actividade (...) Ou seja, a indicação de que “caso se trate de actividade não prevista nessa Tabela, deve ser preenchido o campo 08 ou com indicação do Código CAE que lhe corresponda”, (...) em consonância com os códigos de actividade que constam da declaração de início de actividade, o Anexo B do Modelo 3 do IRS no quadro 4A (rendimentos brutos obtidos em território nacional), distingue:
No campo 403 – os rendimentos de actividades profissionais especificadamente previstas na Tabela do artigo 151º do CIRS;
No campo 404 – os rendimentos de prestações de serviços não previstos nos campos anteriores.
Também em consonância com os códigos de actividade que constam da declaração de início de actividade, as instruções de preenchimento do Anexo B do Modelo 3 do IRS no quadro 4A, campos 403 e 404, referem:
Para que esta indicação quanto ao campo 403 tenha coerência (com a declaração de início de actividade e com as instruções de preenchimento do quadro 3A, campos 7, 8 e 9) e face ao valor vinculante, nas relações entre a AT e o sujeito passivo do conteúdo das declarações de início de actividade; quando ocorram situações em que a actividade não tenha sido classificada, inicialmente, na declaração de início pela AT, segundo a tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, terá que considerar-se que a actividade cabe ou caberia na exclusão do campo 403, sendo os rendimentos declarados no campo 404, como se constasse no registo o código “1519 – outros prestadores de serviços”, uma vez que é o código onde cabem todas as situações não enquadradas em situações específicas.
Aliás, é o que parece resultar do elemento irremovível do artigo 151º do CIRS (a sua letra), como a seguir se vai demonstrar.
O artigo 151º do CIRS e a codificação constante da tabela anexa versus a codificação da CAE. A Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto.
Será necessário levar a efeito uma leitura do artigo 151º do CIRS, em conformidade com o seu elemento irremovível, a sua letra. Com efeito, o elemento literal da norma é sempre o mais relevante, por ser delimitador da actividade interpretativa. A letra é um elemento irremovível da interpretação, ou um “limite da busca do espírito”.
Refere o Artigo 151.º do CIRS que “as atividades exercidas pelos sujeitos passivos do IRS são classificadas, para efeitos deste imposto, de acordo com a Classificação das Atividades Económicas Portuguesas por Ramos de Atividade (CAE), do Instituto Nacional de Estatística, ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de atividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças.”
Ou seja, há duas formas distintas de classificar as actividades exercidas pelos sujeitos passivos de IRS:
de acordo com a Classificação das Atividades Económicas Portuguesas por Ramos de Atividade (CAE),
ou de acordo com os códigos mencionados em tabela de atividades aprovada por portaria do Ministro das Finanças.
O legislador escolheu a conjunção coordenativa alternativa ou disjuntiva “ou” e não usou a conjunção coordenativa aditiva “e”, o que há-de ter consequências ao nível da determinação da vontade da lei.
Se o legislador criou na tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, uma actividade “1323 – Desportistas”, tal não pode significar, que aí cabem, sem mais, as actividades de todos os “atletas, árbitros, cronometristas e de outros desportistas independentes”, conforme código CAE 93 192 – Outras actividades desportivas N.E.
A actividade “1323-Desportistas”, face à definição do código “CAE 93 192 – Outras actividades desportivas N.E.” abrangerá apenas os “desportistas independentes”, mas não, desde logo, todos o que sejam “árbitros e cronometristas”.
No caso dos árbitros de futebol, que é o que aqui nos ocupa, não vislumbramos suporte seguro na lei que permita concluir, de forma clara, que devam ser considerados “desportistas”, para efeitos de integração na actividade “1323-Desportistas” da tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, muito embora integrem o leque de entidades que exercem ou estão ligadas à “actividade desportiva”, enquanto um dos tipos de agentes desportivos que fazem parte do fenómeno desportivo.
A Lei de Bases do Sistema Desportivo – LBSD (Lei 1/90, de 13 de Janeiro) o seu Capítulo II, abordava o que se considerava ser “actividade desportiva”, sendo relevante o nº 4 do artigo 4º que refere: “são considerados agentes desportivos os praticantes, docentes, treinadores, árbitros e dirigentes, pessoal médico, paramédico e, em geral, todas as pessoas que intervêm no fenómeno desportivo”.
Também a Lei de Bases do Desporto (Lei nº 30/2004, de 21 de Julho), no seu capítulo IV, mormente no artigo 34º nº 1, apontava no sentido de que só os “praticantes desportivos” desenvolvem uma actividade desportiva. Quanto aos árbitros configura-se que eram considerados “recursos humanos ... que intervêm directamente na realização de actividades desportivas”, porquanto eram “elementos que desempenham na competição funções de decisão, consulta ou fiscalização, visando o cumprimento das regras técnicas da respectiva modalidade” (nº 1 do artigo 33º).
Por último, o regime da Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – LBAFD (Lei nº 5/2007, de 16,01), na Secção II do Capítulo IV, sob a epígrafe “agentes desportivos” parece integrar os árbitros de futebol, na categoria de “praticantes desportivos” (artigo 34º), como se infere da sua menção no nº 4 do artigo 40º deste diploma legal. Desde logo, a definição do estatuto de cada tipo de praticante desportivo, face à redacção do nº 1 do artigo 34º da LBAFD, parece ser casuístico, porquanto se refere “é definido de acordo com o fim dominante da sua actividade”.
No entanto, a LBAFD tem uma norma específica sobre a tributação dos agentes desportivos que é o nº 1 do artigo 48º, que refere o seguinte:
O regime fiscal para a tributação dos agentes desportivos é estabelecido de modo específico e, no caso dos praticantes desportivos, de acordo com parâmetros ajustados à natureza de profissões de desgaste rápido”.
Ora, perante várias decisões arbitrais adoptadas no CAAD e indicadas pelas partes, em dois sentidos opostos, não podemos deixar de anotar, desde já, que, ao caso presente e face a esta orientação da LBAFD, se configura mais assertiva v.g. a decisão adoptada no Processo 540/2017-T, incluindo por força do princípio da legalidade (artigo 106º-2 da CRP) e dos princípios da tipicidade e determinação em que aquele se desdobra.
Do que se expõe, resultará que este TAS não consegue aderir ao decidido na douta decisão arbitral CAAD nº 421/2019-T, citada pela AT nas alegações, desde logo porque não é possível subscrever a afirmação de que é desportista (para efeitos de integração na actividade “1323-Desportistas” da tabela anexa ao artigo 151º do CIRS) aquele que se dedica a uma actividade desportiva, por ir contra lei expressa (nº 1 do artigo 48º da LBAFD), porquanto é o conceito amplo de “agente desportivo” que surge associado à noção de “actividade desportiva” em sentido amplo e não o conceito de “desportista”, querendo significar os “atletas” na expressão do código “CAE 93 192 – Outras actividades desportivas N.E.”.
Resultará, como atrás se referiu, que a designação da actividade com o código “1323-Desportistas” da tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, tendo em conta as actividades que integram o código “CAE 93 192 – Outras actividades desportivas N.E.” poderá abranger os “desportistas independentes”, ou seja, os “atletas” que exerçam actividade de forma independente, mas não abrangerá os “árbitros”, muito embora sejam “agentes desportivos” que intervêm directamente na realização de actividades desportivas, porque apenas desempenham, na competição, funções de decisão, consulta ou fiscalização, visando o cumprimento das regras técnicas da respectiva modalidade. É esta a leitura que se compaginará com o nº 1 do artigo 34º e com o nº 1 do artigo 38º, ambos da LBAFD.
Quanto aos árbitros de futebol e quanto aos rendimentos auferidos no âmbito da qualidade de um tipo específico de agente desportivo, de forma independente, restará uma de duas hipóteses (1) ou considerá-los para efeitos de codificação, no início de actividade, apenas com o “CAE 93 192 – Outras actividades desportivas N.E.” (2) ou considerá-los com o “CAE 93 192 - Outras actividades desportivas N.E” e simultaneamente com o código “1519 – Outros prestadores de serviços” segundo a tabela anexa ao artigo 151º do CIRS.
No caso concreto aqui em julgamento, provou-se que o Requerente, no início da actividade, em 10.01.2017, ficou inscrito com o CAE 93 192 – outras actividades desportivas.
Esta inscrição foi validada pela AT. O Requerente fez constar na sua declaração de rendimentos, como se infere da declaração de substituição, apenas este código de actividade e nem a AT promoveu qualquer procedimento tendo em vista a prévia alteração do código da actividade, expresso no cadastro fiscal de contribuinte.
É a própria AT que reconhece, nas instruções de preenchimento da declaração de início de actividade, que “este enquadramento, definido pelo Serviço de Finanças no momento da sua apresentação, vinculará os Serviços e o sujeito passivo quanto às obrigações estabelecidas para o respectivo regime de tributação nos CIVA, CIRS e CIRC. Por esta razão, todas as dúvidas devem aí ser completamente esclarecidas”.
Resulta do exposto que a AT, ao exigir uma alteração da declaração de rendimentos do Requerente, em contradição com o código de registo da actividade que antes aceitou e validou, e que foi bem expresso na declaração de rendimentos, agiu em desconformidade com a lei e de certa maneira, agindo de forma contraditória, susceptível de integrar "venire contra factum proprium".
Mesmo que não fosse como acima se refere, sempre seria de aplicar o que se decidiu no Processo CAAD nº 510/2017-T, a que se adere, por se tratar de um caso em tudo similar e que aqui se reproduz:
“... não obstante a bondade dos argumentos carreados na Resposta da AT, a verdade é que há princípios fundamentais que em caso algum podemos olvidar no direito tributário, pelo que tendemos a concordar com decisão proferida no Processo 107/2016-T deste CAAD.
Entendemos, pois que, efetivamente, as regras de interpretação das normas fiscais são exactamente as mesmas que são aplicadas às normas dos outros ramos do direito. «Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis».
Mas até por isso, (ou, não obstante), há que ter presente, que em Direito Fiscal vigora o princípio da tipicidade específica, elemento do princípio da legalidade, o que, para o que interessa, exige a enumeração taxativa dos factos ou realidades que, «dentro de cada tipo genérico do objecto normativo de incidência, são indicados por lei como objecto de incidência».
Por força do princípio da legalidade previsto no artigo 106º, nº 2, da Constituição da República e dos princípios da tipicidade e determinação em que aquele se desdobra, as normas de incidência têm de ser pré-determinadas no seu conteúdo, devendo os elementos integrantes da mesma estar formulados de modo preciso e determinado.
«A determinação do conteúdo da norma tributária de incidência exclui a utilização de conceitos indeterminados, bem como de conceitos determinados normativos, cuja aplicação ao caso concreto assente em valoração subjectiva ou pessoal do órgão de aplicação, sob pena de ser postergada a segurança jurídica»
Ora não vemos, que, no sentido referido, as atividades em causa tenham inequívoca e clara constância e previsão, na referida tabela anexa ao artigo 151º do CIRS, ainda que sejam, ou não, relacionadas com qualquer atividade desportiva, pois, quer uma quer outra, não são, notoriamente, elas próprias atividades desportivas, sem mais.
NESSA MEDIDA E RAZÃO temos que concordar, como se disse, com a decisão referida, quando refere que (...) partindo do elemento literal, o resultado da interpretação parece-nos unívoco — o coeficiente de 0,75 é aplicável, apenas, a rendimentos das atividades profissionais constantes da tabela a que se refere o artigo 151º.
Não se vê, portanto, como é possível incluir nesse âmbito rendimentos provenientes de atividades que não sejam atividades profissionais especificamente constantes da tabela a que se refere o artigo 151º.
Sendo a letra da lei o limite máximo da tarefa interpretativa, não é possível concluir que outros rendimentos além desses devem merecer o mesmo tratamento. sobretudo quando o próprio legislador criou. em paralelo a essa categoria específica de rendimentos. uma categoria residual constante da alínea c) do º 1 do artigo 31º do CIRS — onde se incluem os "restantes rendimentos da categoria B não previstos nas alíneas anteriores”. Será de concluir que o pedido de pronúncia arbitral merece acolhimento e nessa medida terá que proceder”.
Na situação em causa nos presentes autos, ficou assente que a Requerente está inscrita na Autoridade Tributária com o código CAE 93192 (Outras atividades desportivas), código esse que identificou nas declarações Modelo 3 apresentadas em 26 de junho de 2019. Esta inscrição foi validada pela Requerida. A Requerida NÃO promoveu qualquer procedimento tendo em vista a prévia alteração do código da atividade, expresso no cadastro fiscal de contribuinte. Por conseguinte, ao exigir uma alteração da declaração de rendimentos (de substituição) entregue pela Requerente, a Requerida atuou contra a lei, na medida em que exigiu que a declaração de rendimentos da Requerente fosse apresentada em contradição com o código de registo da atividade que a Requerida antes aceitou e validou. Pelo que subscrevemos integralmente a solução encontrada na Decisão Arbitral citada.
Acompanhamos ainda a mesma Decisão Arbitral no que respeita à interpretação das diversas normas do CIRS, no sentido do NÃO enquadramento da atividade de árbitro no disposto na atividade de “Desportistas” (Código 1323) da Tabela de Atividades Exercidas pelos Sujeitos Passivos de IRS, prevista pela Portaria 1011/2001 de 21 de agosto. Conforme referem e bem as referidas Decisões Arbitrais, temos de encontrar a definição de “Desportistas” fora da lei fiscal, designadamente na Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, (Lei n.º 5/2007 de 16 de janeiro de 2007 (doravante, LBAFD)), que distingue na Secção II o que define como “Agentes Desportivos”:
(i) o praticante desportivo: definido de acordo com o fim dominante da sua atividade, entendendo-se como profissionais aqueles que exercem a atividade desportiva como profissão exclusiva ou principal, sujeitos a um regime jurídico contratual próprio (artigo 34.º nº 1 e 2);
(ii) o Técnico: designadamente no âmbito da gestão desportiva, do exercício e saúde, da educação física e do treino desportivo (artigo 35.º);
(iii) os titulares de cargos dirigentes desportivos (artigo 36.º); e
(iv) os empresários desportivos (artigo 37.º).
O artigo 34.º nº 1 e 2 da LBAFD define como “praticante desportivo” aquele que exerce a atividade desportiva como profissão exclusiva ou principal, sujeito a um regime jurídico contratual próprio (artigo 34.º nº 1 e 2) — a profissão de “Árbitro” não está abrangida pela noção de “praticante desportivo” dada por esta disposição legal.
O disposto no artigo 40.º da LBAFD (com a epígrafe Medicina Desportiva) regula o “acesso à prática desportiva”, no âmbito das federações desportivas, por parte do praticante desportivo. Esta norma só é aplicável aos Árbitros, porque o disposto no nº 4 prevê “O disposto no n.º 1, com as devidas adaptações, aplica-se aos árbitros”. Ora, se o legislador sentiu a necessidade de incluir os Árbitros, expressamente, no disposto no nº 4 do artigo 40.º da LBAFD, é porque no espírito da lei, os Árbitros não se enquadram na noção de “praticante desportivo”, prevista no disposto no artigo 34.º nº 1 do mesmo Diploma.
Note-se que exatamente no mesmo sentido, o disposto no artigo 44.º da LBAFD (com a epígrafe Medidas de Apoio) no nº 2 diz expressamente que as medidas de apoio são estabelecidas de forma diferenciada, abrangendo (i) o praticante desportivo, bem como (ii) os técnicos e árbitros participantes nos mais altos escalões competitivos. O que significa que nas diversas normas da LBAFD o legislador diz-nos expressamente que o Árbitro NÃO É um praticante desportivo, para efeitos de aplicação do diploma.
Nos termos do artigo 9.º nº 3 do Código Civil, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. Por conseguinte, se na LBAFD o legislador não enquadra o Árbitro como praticante desportivo, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o que significa que temos de concluir que o Árbitro não deve ser enquadrado como um praticante desportivo, nem para efeitos de aplicação da LBAFD nem para efeitos de aplicação da lei fiscal (artigo 11.º nº 2 da LGT: “Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei”).
Note-se ainda que, em matéria de imposto sobre o rendimento e sobre o património, os comentários ao artigo 17.º da Convenção Modelo da OCDE dizem, no que respeita à noção de desportista:
“5 - Whilst no precise definition is given of the term “sportsmen” it is not restricted to participants in traditional athletic events (e.g. runners, jumpers, swimmers). It also covers, for example, golfers, jockeys, footballers, cricketers and tennis players, as well as racing drivers.
7 - Income received by impresarios, etc. for arranging the appearance of an artiste or sportsman is outside the scope of the Article, but any income they receive on behalf of the artiste or sportsman is of course covered by it”.
Ou seja, para efeitos de aplicação da Convenção Modelo da OCDE, é desportista o praticante de atividade desportiva (nos mesmos termos definidos pela LBAFD). Os comentários da Convenção excluem expressamente da noção de “desportista” as demais figuras definidas como Agentes Desportivos, como é o caso dos empresários desportivos (artigo 37.º da LBAFD).
Recorrendo ainda a outro elemento de interpretação, na Classificação Portuguesa das Profissões do Instituto Nacional de Estatística, I.P., a profissão de “Árbitro” enquadra-se numa categoria própria (“Árbitro (juiz) de desportos - 3422.2”), a qual se enquadra no grupo base de “Treinadores, instrutores e árbitros, de desportos (3422)”, e no sub-grupo “Técnicos de atividade física e de desporto (342)”. A profissão de Árbitro está enquadrada de forma autónoma em relação à profissão de atleta de alta competição, que é enquadrada no grupo base “3421”.
Também para efeitos fiscais, a Requerente foi enquadrada (aquando da apresentação da declaração de início de atividade) com o CAE 93 192 (Outras atividades desportivas N.E.) e não com o código 1323 (Desportistas) da Tabela prevista na Portaria 1011/2001, de 21 de agosto. O que significa que aquando da validação da declaração de início de atividade apresentada pela Requerente, a própria Requerida considerou que a profissão de Árbitro NÃO se enquadrava, nos termos da lei, no código 1323 (Desportistas).
Em conclusão, é entendimento deste Tribunal que a atividade de Árbitro de futsal não se enquadra na noção de “Desportistas” prevista no código 1323 da Tabela da Portaria 1011/2001 de 21 de agosto — para a qual remete o artigo 151.º e o artigo 31.º al. (b) do Código do IRS — o que determina que o coeficiente corretamente aplicável na situação em causa nos autos é o coeficiente de 0,35 previsto no artigo 31.º nº 1 al. (c) do Código do IRS, e não o coeficiente de 0,75 que nos termos da lei é aplicável exclusivamente “aos rendimentos das atividades profissionais especificamente previstas na tabela a que se refere o artigo 151.º”, o que claramente não é o caso dos rendimentos obtidos por sujeitos passivos enquadrados com o CAE 93 192 (Outras atividades desportivas N.E.), como é claramente o caso da Requerente.
VI. DECISÃO
Termos em que se decide julgar TOTALMENTE PROCEDENTE o presente pedido de pronúncia arbitral, e por conseguinte:
a) Anular o ato impugnado, por ser manifestamente ilegal, sendo o mesmo substituído por outro nos termos da lei;
b) Condenar a Requerida no pagamento das custas do processo.
VII. VALOR DO PROCESSO
Em conformidade com o disposto no artigo 306.º n.º 2 do CPC, no artigo 97.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, e no artigo 3.º n.º 2 do Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, é fixado ao processo o valor de EUR 430,74.
VIII. CUSTAS
Nos termos do disposto no artigo 12.º n.º 2 e no artigo 22.º n.º 4 do RJAT, no artigo 4.º n.º 4 e na Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, o montante das custas é fixado em EUR 306,00, nos termos da Tabela I (anexa) do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerida.
Notifique-se.
Lisboa, 31 de agosto de 2020.
Elisabete Flora Louro Martins
(Árbitro Singular)