DECISÃO ARBITRAL
SUMÁRIO
1. Incidindo o pedido de pronúncia arbitral sobre a anulação parcial, por ilegalidade, de uma liquidação tributária está-se perante matéria que é da competência material dos tribunais arbitrais, conforme decorre do disposto nos artigos 2º e 4.º do RJAT e da portaria de vinculação. 2. O pedido de reembolso da importância correspondente ao valor da parcela anulada, por indevidamente cobrada, bem como os juros indemnizatórios que lhe são associados, evidencia-se, com clareza, como consequência necessária da eventual procedência do pedido de pronúncia arbitral, sendo que ambos os pedidos, conforme constitui reiterado entendimento jurisprudencial, se situam no âmbito da competência material do tribunal arbitral.
3. Salvo disposição legal expressa em sentido diverso, a taxa geral de IRC aplicável com referência a cada período de tributação, é a que vigora no momento da verificação do facto gerador - último dia do período de tributação - independentemente de este coincidir ou não com o termo do ano civil.
DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório.
1. A..., pessoa coletiva n.º..., com sede em ..., Rua ..., n.º ..., ...-... Maia, veio, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, alínea a), do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, apresentar pedido de constituição de Tribunal Arbitral, em que figura como Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
2. O pedido de pronúncia arbitral, apresentado em 21-11-2019, visa a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa da autoliquidação de IRC relativa ao exercício de 2014, bem como a declaração de ilegalidade da referida autoliquidação, com a consequente anulação parcial e reembolso do imposto indevidamente cobrado, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT).
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro.
5.Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o Conselho Deontológico designou como árbitro do tribunal arbitral singular o signatário, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável, tendo, oportunamente, notificado as Partes.
6. Devidamente notificadas dessa designação, as Partes não manifestaram vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
7. Pelo que em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 12-02-2020.
8. Oportunamente notificada, a Requerida veio apresentar a sua resposta ao pedido de constituição do tribunal arbitral, invocando, por exceção, a incompetência material do tribunal arbitral quanto à apreciação do pedido de reembolso de importância que a Requerente considera indevidamente cobrada, pronunciando-se, por impugnação, quanto ao mérito do pedido no sentido da manutenção na Ordem Jurídica da decisão impugnada e da liquidação controvertida.
9. O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e, sem prejuízo do que decidir quanto à exceção invocada pela Requerida, é materialmente competente, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01.
10. As Partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e encontram-se legalmente representadas (cfr. art.º 4.º e n.º 2 do art.º 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/01, e art.º 1.º da Portaria n.º 112/2011, de 22/03.
11. O processo não enferma de vícios que o invalidem. Não foram proferidas alegações orais por desnecessárias, não se conhecem nulidades e não foram suscitadas quaisquer outras questões que obstem à apreciação do mérito da causa, mostrando-se, assim, reunidas as condições para ser proferida decisão final.
12. Atento o conhecimento que decorre das peças processuais que integram o presente processo, que se julga suficiente, o Tribunal decidiu dispensar a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT.
13. Tendo em linha de conta a exceção invocada pela Requerida, foi, por despacho de 29-04-2020, notificada a Requerente para, no prazo de 10 dias, no exercício do contraditório, apresentar a sua resposta.
14. Considerando que as posições das Partes estão já, no essencial, claramente expressas nas peças apresentadas, foi, pelo mesmo despacho, dispensada - salvo oposição expressa de qualquer das Partes no prazo de 10 dias - a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, sendo-lhes concedido um prazo de 15 dias para, querendo, apresentarem alegações escritas.
15. Foi, ainda, fixado o dia 12-06-2020 como data limite para a prolação e notificação da decisão final – prazo não cumprido devido às circunstâncias e constrangimentos provocados pela pandemia.
16. A Requerente, oportunamente, exerceu o direito ao contraditório, apresentando a sua resposta à exceção invocada pela Requerida, tendo, também oportunamente, apresentado alegações escritas, num e noutro caso, reafirmando a posição já anteriormente expressa na petição inicial. A Requerida não apresentou alegações.
II. Matéria de facto.
17. O presente pedido de pronúncia arbitral tem como objeto imediato a declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2014 e, como objeto mediato, a declaração de ilegalidade parcial do ato de autoliquidação de que, por errada aplicação da taxa, resultou imposto indevido no montante de € 53 052,10, cuja restituição é pedida, com acréscimo dos correspondentes juros indemnizatórios.
18. Com relevância para a apreciação do pedido e com base nos documentos que integram o presente processo, destacam-se os seguintes elementos factuais:
18.1. A Requerente é um sujeito passivo de IRC, nos termos do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do respetivo Código, que iniciou a sua atividade em 01-01-1991, encontrando-se inscrita no cadastro com o CAE 24520, fundição de aço.
18.2. No que respeita ao exercício de 2014, a Requerente, ao abrigo do artigo 8.º, n,º 2, do Código do IRC, adotou um período de tributação não coincidente com o ano civil, o qual teve início em 01-02-2014 e termo em 31-01-2015.
18.3. Com referência ao mencionado exercício, a Requerente apresentou, em 29-06-2015, a competente declaração periódica de rendimentos Modelo 22, tendo posteriormente, em 13-04-2016, entregue uma declaração de substituição que, contudo, não introduziu qualquer alteração à anteriormente entregue no que concerne à taxa aplicável (Docs. 1 e 2).
18.4. Na sua autoliquidação de imposto relativa ao exercício em causa de 2014, a Requerente apurou uma coleta de imposto correspondente a € 610.099,11 (cfr. campos 347-B e 351 do quadro 10 dos Docs. n.ºs 1 e 2), a qual resultou da aplicação, por imposição do sistema informático da AT, de uma taxa de IRC de 23% à matéria coletável no montante de € 2.652.604,81 apurada pela Requerente relativamente ao exercício em causa (cfr. campos 311 e 346 do Quadro 9 e campo 347-B do quadro 10, dos Docs. n.ºs 1 e 2).
18.5. Considerando que, com a entrada em vigor da Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82-B/2014, de 31/12), a taxa geral de IRC diminuiu de 23% para 21%, conforme dispõe o artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC, na redação que lhe foi dada pelo artigo 192.º daquela Lei, e que esta nova taxa é aplicável a partir de 01-01-2015, data em que, segundo o artigo 261.º da referida Lei, a mesma entrou em vigor, a ora Requerente apresentou pedido de revisão oficiosa da liquidação, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da Lei Geral Tributária.
18.6. Dirigido ao Diretor de Finanças do Porto, o referido pedido, apresentado em 26-06-2019, originou o processo de revisão oficiosa n.º ...2019... .
18. 7. O referido pedido tem como objeto a liquidação de IRC relativa ao exercício de 2014 que conduziu a uma coleta superior ao que seria devido por errada aplicação da taxa por facto imputável aos serviços da administração tributária.
18.8. Como fundamento do pedido alega a Requerente que à data em que se verificou o facto gerador do imposto – 31-01-2015 - por referência ao seu período de tributação de 2014, encontrava-se em vigor a taxa de 21%, devendo ser esta a aplicável à matéria coletável apurada com referência ao aludido exercício.
18.9. Sobre o pedido foi elaborada informação técnica (Doc.3), de que, no essencial, se destaca:
“Analisando a questão em si, verificamos que o orçamento de estado para 2015, aquele que alterou a taxa do IRC de 23% para 21%, aplica-se aos factos tributários ocorridos ou iniciados a partir de 2015.01.01.
Tendo em conta a anualização da tributação em sede de IRC, se um período de tributação tiver sido iniciado antes daquela data, então deverá ser a ele aplicada a taxa proveniente do orçamento do estado para 2014, ou seja, no caso presente deverá ser considerada a taxa de 23% para o IRC/2014 (período especial de tributação iniciado em 2014.02.01) do sujeito passivo A... (NIPC ...), pelo que achamos dever ser de indeferir este pedido de revisão oficiosa.
Igualmente, deveremos notificar o sujeito passivo deste n/projecto de decisão, informando-o que – se assim o entender – poderá exercer o correspondente direito de audição, nos termos do disposto no artigo 60.º da LGT.”
18.10. Através de ofício de 22-07-2019, remetido a coberto de registo postal, foi a Requerente notificada do projeto de decisão, para efeitos do direito de audição prévia, a exercer no prazo de 15 dias (Doc.3).
18.11. Decorrido o prazo fixado sem que tivesse sido exercido o referido direito, foi elaborada informação complementar, em que se conclui: “Face ao exposto e tendo em atenção os factos e fundamentos invocados no projeto de decisão, propõe-se que o mesmo seja convertido em definitivo, disso notificando o sujeito passivo, informando-o que – se assim o pretender – poderão recorrer hierarquicamente, nos termos do disposto no artigo 66.º do código de procedimento e de processo tributário (CPPT) e do artigo 81.º da LGT, ou, então, impugnar judicialmente nos termos do artigo 102.º do CPPT.”
18.12. Sobre a informação e parecer acima referidos o diretor adjunto da Direção de Finanças do Porto, no uso de competência subdelegada, proferiu o seguinte despacho: “Concordo com o indeferimento do pedido pelas razões expostas na informação.” (Doc.4)
18.13. Esta decisão foi notificada à Requerente através de ofício de 04-09-2019 (Doc.4).
19. Não existem factos relevantes para a decisão que não se tenham provado.
III. Matéria de direito.
Questão prévia: Da incompetência material do tribunal arbitral
20. A Requerida, na sua resposta, suscita a questão da incompetência material do tribunal arbitral para a apreciação do pedido de pronúncia arbitral alegando que quanto ao pedido formulado a final no sentido de ser reconhecido o direito ao reembolso não só o processo arbitral não é o meio próprio para que um direito em matéria tributária seja reconhecido, como a quantia exata a reembolsar, decorrente de uma eventual procedência do pedido, não pode ser determinada neste momento.
21. Conforme expressamente decorre do artigo 13.º do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável à jurisdição arbitral por força do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), o âmbito de competência material do tribunal é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria.
22. Nos termos do artigo 16.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), conjugado com o disposto nos artigos 96.º, alínea a) e 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ao processo arbitral por remissão expressa daquele artigo 29.º do RJAT, a infração às regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, sendo esta de conhecimento oficioso.
23. No entendimento da Requerida, caso o Tribunal Arbitral venha a decidir um reembolso que só deve ser quantificado pela AT, nomeadamente em sede de execução do julgado, terá excedido a sua competência, uma vez que tal cálculo não se contém nas competências próprias da jurisdição arbitral. Nomeadamente, o Tribunal não poderá julgar ser devido tal montante sem relevar os factos atinentes ao pedido em concreto.
24. Pelo que, segundo a Requerida, “estando as suas competências circunscrita às matérias indicadas no nº 1 do artigo 2º do RJAT e da vinculação operada nos termos da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, ex vi artigo 4º do RJAT, é manifesto que não se insere no âmbito destas competências a apreciação do pedido de reconhecimento de direitos nos termos formulado pela Requerente, inexistindo qualquer suporte legal que permita que sejam proferidas condenações de outra natureza que não as decorrentes dos poderes fixados no RJAT.
Ou seja, ainda que possa constituir consequência, a nível de execução, da declaração de ilegalidade de actos de liquidação, conforme decorre do previsto no artigo 24.º do RJAT, o modo como se deve concretizar a execução de julgados arbitrais compete, em primeira linha, à AT, com possibilidade de recurso aos tribunais tributários para requerer coercivamente a execução, no âmbito do processo de execução de julgados, previsto no artigo 146.º do CPPT e artigos 173.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.
25. Nestes termos, conclui a Requerida, “a incompetência material do Tribunal para a apreciação da parte do pedido identificada supra consubstancia uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento desse pedido e conduz à absolvição da instância quanto à pretensão em causa, de acordo com o previsto nos artigos 576º nº 2 e 577º, alínea a) do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi artigo 29º nº 1, alínea e) do RJAT.”
26. No exercício do direito ao contraditório, a Requerente vem salientar que o poder de condenar no reembolso constitui uma exigência do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, que se impõe na arbitragem tributária da mesma maneira que se impõe na impugnação judicial.
27. Citando jurisprudência dos tribunais superiores, vem alegar a Requerente que quem tem poderes /competência para anular imposto, tem necessariamente competência /poderes - ou a tutela não seria efetiva - para condenar no reembolso, mais ainda (ou por maioria de razão) do que tem competência para condenar no pagamento de juros indemnizatórios.
28. Sobre esta matéria, a Requerente cita a posição assumida em recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) de cujo sumário transcreve: “...2- O princípio da tutela jurisdicional efectiva com consagração constitucional (cfr.artº.268, nº.4, da Constituição da República) somente é alcançado se as sentenças puderem ter todos os efeitos necessários e aptos a proteger o direito ou interesse apreciado pelo Tribunal, assim não podendo limitar-se à mera anulação do acto tributário e podendo o processo de impugnação revestir uma natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros; 3 - O princípio da economia processual que exige que se ponha fim ao litígio utilizando do processo judicial tudo o que puder ser aproveitado para basear uma decisão do Tribunal de onde sai logo uma definição da situação tributária concreta sob análise que não careça de qualquer nova pronúncia da Administração Tributária”.
29. Com efeito, esta matéria tem vindo a ser aprofundadamente analisada na jurisprudência dos tribunais superiores, como, por todos, se pode extrair de acórdão proferido sobre impugnação de decisão arbitral intentada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, ao abrigo do disposto nos artigos 27.º e 28.º do RJAT. A referida impugnação, que aborda situação, e fundamentação, de conteúdo em tudo idênticos à que ora é invocada a título de exceção, foi julgada improcedente pelo TCAS , que sobre a competência dos tribunais arbitrais se pronunciou nos seguintes termos:
“ A competência dos tribunais arbitrais está fixada no art.º2.º, n.º1 alíneas a) e b), do RJAT, pelo que importará, desde logo, indagar se o pedido de condenação da AT "no reembolso à Requerente do montante de imposto pago (€ 55.081,78)", se compreende no âmbito da competência do tribunal arbitral para apreciar a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta e a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais.
Uma leitura conjugada do disposto naquele art.º2.º do RJAT com o disposto no art.º10.º, n.º1, alínea a) do mesmo diploma, parece apontar no sentido de que a competência dos tribunais arbitrais corresponderá, salvo restrições legais, aos casos em que, no processo judicial tributário, os tribunais tributários conhecem das pretensões através do meio processual da impugnação judicial – artigos 97.º, n.º1 alíneas a) a f), 99.º e 102.º, n.º1, todos do CPPT.
Como se sabe, em processo judicial tributário, é pelo pedido que se afere a adequação do meio processual ao fim por ele visado: se o pedido formulado pelo Autor não se ajusta à finalidade abstractamente configurada por lei para essa forma processual, ocorre erro na forma do processo (cf. Prof. Alberto dos Reis, in "Código de Processo Civil Anotado", volume II, Coimbra Editora, 3.ª edição - reimpressão, págs. 288/289).
Só que, estando os tribunais arbitrais limitados na sua competência material à apreciação de pretensões que se prendem com "a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta" e "a declaração de ilegalidade de actos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de actos de determinação da matéria colectável e de actos de fixação de valores patrimoniais", quaisquer outras pretensões – não compatíveis, em processo judicial tributário, com a forma processual da impugnação judicial – excedem o âmbito da sua competência, fixada no art.º2.º, n.º1 do RJAT.
Ora, por força da consagração do princípio constitucional da tutela judicial efectiva (cf.artº.268.º, nº.4, da Constituição da República), o processo judicial tributário tem vindo a perder a sua natureza estrita de um contencioso de mera anulação e a conferir tutela a pretensões características de um contencioso de plena jurisdição. É que, como se diz no Acórdão deste tribunal de 06/08/2017, tirado no proc.º 06112/12, aquele princípio constitucional "somente é alcançado se as sentenças puderem ter todos os efeitos necessários e aptos a proteger o direito ou interesse apreciado pelo Tribunal, assim não podendo limitar-se à mera anulação do acto tributário e podendo o processo de impugnação revestir uma natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros" (sublinhado nosso).”
E para sustentar a natureza tendencial da impugnação como processo de plena jurisdição, aponta-se também no aresto em citação, "o princípio da economia processual que exige que se ponha fim ao litígio utilizando do processo judicial tudo o que puder ser aproveitado para basear uma decisão do Tribunal de onde sai logo uma definição da situação tributária concreta sob análise que não careça de qualquer nova pronúncia da Administração Tributária" e, ainda e por último, "razões ligadas ao próprio âmbito do contencioso tributário ou aos limites à plena jurisdição de um tal contencioso, os quais só serão de aceitar em relação àqueles domínios ou aspectos da acção administrativa em que a mesma plena jurisdição implique para o juiz tributário a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa, nomeadamente a intangibilidade do caso julgado administrativo ou o respeito pelas áreas em que a Administração Tributária goza de uma margem de livre apreciação na sua decisão (v.g. discricionariedade técnica)".
Nesta linha de entendimento, não se descortinam razões para restringir aos tribunais arbitrais a possibilidade – que se confere aos tribunais tributários em processo de impugnação judicial – de proferirem decisões de natureza condenatória, caso o contribuinte solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante pago acrescido dos respectivos juros, desde que tal não implique para o tribunal arbitral a prática de actos que afrontem o núcleo essencial da função administrativa, nomeadamente a intangibilidade do caso julgado administrativo ou o respeito pelas áreas em que a Administração Tributária goza de uma margem de livre apreciação na sua decisão (cf. Carla Castelo Trindade, "Regime Jurídico da Arbitragem Tributária – Anotado", Almedina, 2016, a págs.120 e ss.).
Concluímos, pois, pela competência dos Tribunais Arbitrais para proferir condenatórias nas situações em que, como a dos autos, contribuinte requerente solicite não só a anulação do acto tributário, mas também a devolução do montante de imposto pago acrescido dos respectivos juros indemnizatórios.
Não existe, pois, pronúncia indevida por parte da decisão arbitral impugnada (artigo 28.º, nº1, al. c), do RJAT), improcedendo este segmento da impugnação.
30. De resto, como bem observa a Requerente, numerosas são as decisões arbitrais que, na sequência de anulação de atos tributários eivados de ilegalidade se determina a sua anulação determinando-se, em consequência, o respetivo reembolso – caso tenham sido objeto de pagamento – acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios se forem estes devidos.
31. Analisando-se, assim, o pedido de constituição do tribunal arbitral verifica-se que o mesmo conclui nos seguintes termos:
32. É, pois, manifesto que o pedido de pronúncia arbitral, nos exatos termos em que se encontra formulado, se dirige, no plano imediato, à declaração de ilegalidade de uma decisão de indeferimento expresso de pedido de revisão oficiosa do ato tributário e, no plano mediato, à declaração de ilegalidade de uma liquidação de IRC, que, a obter procedência, envolve a sua anulação parcial com a consequente restituição do montante de imposto indevidamente cobrada acrescido, se devidos, dos correspondentes juros indemnizatórios.
33. Tal como vem formulado, o pedido incide, pois, sobre a anulação parcial de uma liquidação tributária, matéria que é da competência material dos tribunais arbitrais, conforme decorre do disposto nos artigos 2º e 4.º do RJAT e da portaria de vinculação. O reembolso referido na petição, bem como os juros indemnizatórios que lhe são associados, evidencia-se, com clareza, como consequência necessária da eventual procedência do pedido de pronúncia arbitral, sendo que ambos os pedidos, de acordo com a jurisprudência acima citada, se situam no âmbito de competência material do tribunal arbitral.
34. Nestes termos, e com os fundamentos expendidos, o Tribunal não pode deixar de julgar de todo improcedente a exceção invocada pela Requerida, declarando-se competente para apreciação do mérito do pedido.
Do mérito do pedido
35. Como já acima se referiu, a Requerente vem pedir a revogação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa bem como a anulação parcial do ato de autoliquidação de IRC nº 2016..., referente ao exercício de 2014.
36. Fundamentando o pedido que formula, alega que estando sujeita a um período de tributação não coincidente com o ano civil, com inicio em 01-02-2014 e termo em 31-de Janeiro do ano seguinte, e tendo ocorrido a alteração da taxa de IRC, introduzida pela Lei 82-B/2014, de 31/12, com entrada em vigor em 01-01-2015, deverá ser essa a taxa (21%) a aplicar ao exercício de 2014, por nada constar naquela lei que o excecione, ou seja, não existe qualquer disposição transitória à alteração assim introduzida no nº 1 do artigo 87º do CIRC, pelo que, concluí a Requerente, a alteração legislativa aqui em causa, entrou em vigor a 01-01-2015, tal como resulta do disposto no nº 1 do artigo 261º da Lei nº 82º - B/2014, de 31/12.
Posição da Requerente
37. Mais detalhadamente, alega a Requerente que: “ (…) 28º À data em que teve início o exercício de 2014 da ora requerente – isto é, em 1 de Fevereiro de 2014 (cfr. Docs. n.ºs 1 e 2) – encontrava-se em vigor a redacção do n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC que havia sido introduzida pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro (que procedeu à Reforma do IRC), que fixava a taxa geral do IRC em 23%.
29º Ora, sucede que a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2015, determinou, entre outras alterações legislativas, a redução da taxa geral do IRC, de 23% para 21% (cfr. artigo 192.º da referida Lei). 30º Não tendo a Lei que aprovou o Orçamento do Estado para 2015 previsto uma disposição transitória aplicável à alteração assim introduzida no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC, conclui-se que a alteração legislativa aqui em causa entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 2015, tal como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 261.º da Lei n.º 82.º-B/2014, de 31 de Dezembro: “A presente lei entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2015.”. 31º Assim, o n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC passou a prever que a taxa do IRC era de 21%, aplicando-se aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2015.
32º Neste sentido, o n.º 1 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária estabelece em termos gerais que “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos.” – sublinhado nosso. 33º Atento o exposto, e colocando-se a questão de qual a taxa de IRC aplicável por referência ao exercício de 2014 da ora requerente iniciado em 1 de Fevereiro de 2014 e só terminado em 31 de Janeiro de 2015, importa determinar o momento em que se verificou o facto tributário, isto é, o facto gerador de imposto, aspecto este determinante na fixação da taxa de IRC aplicável neste caso concreto: 23% (em vigor no início do período de tributação) ou 21% (em vigor desde 1 de Janeiro de 2015, e por conseguinte em vigor no último dia do período de tributação). 35
38. Entende, pois, a Requerente, que o momento relevante para definição de taxa de tributação aplicável é aquele em que, de acordo com a norma legal, se situa o facto tributário, que, no caso do IRC, consta do artigo 8.º, n.º 9, do respetivo Código. Com ressalva das situações elencadas no n.º 10, especificamente dirigidas a entidades não residentes sem estabelecimento estável em território nacional, estabelece o citado preceito que “O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.”
39. Segundo a Requerente, “ o disposto no artigo 8.º do Código do IRC é quanto basta para se atender favoravelmente a pretensão da requerente no presente pedido de pronúncia arbitral. Mas vai a requerente continuar, para que não possa haver dúvida.”
40. Citando doutrina relativa a esta matéria, diz a Requerente: “ (…) 39º RUI DUARTE MORAIS aborda diretamente esta problemática: “o IRC é um imposto periódico, ou seja, tem por base um facto gerador de carácter tendencialmente duradouro (a actividade da empresa) que, como vimos, é – artificialmente – cindido em períodos (exercícios) para apuramento de resultados. Sendo o facto gerador duradouro, coloca-se a questão do momento a considerar para determinar qual a lei que regerá a obrigação de imposto relativa a dado exercício. A resposta resultará, em princípio, do disposto no n.º 9 do art. 8.º: o facto gerador de imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.” (cfr. MORAIS, RUI DUARTE, Apontamentos ao IRC, Almedina, Novembro 2007, pág. 47 – sublinhado nosso).
40º E continua o mesmo Autor, retirando do texto legal as necessárias consequências:
“Ou seja, a lei fiscal aplicável será, por regra (admitindo a normal coincidência do exercício com o ano civil), a vigente em 31 de Dezembro. O que resulta coerente com a anualidade dos impostos (desde logo, com as alterações que são introduzidas na lei fiscal por força da Lei do Orçamento, também ele referido a um ano civil). Significa isto que aos sujeitos passivos cujo exercício não coincida com o ano civil serão aplicáveis, no cálculo do lucro tributável e do imposto a pagar relativamente a cada período de doze meses, regras diferentes daquelas a que está sujeita a generalidade dos sujeitos passivos.” (cfr. MORAIS, RUI DUARTE, Apontamentos ao IRC, Almedina, Novembro 2007, pág. 47 – sublinhado nosso).
41º Também neste sentido tem propugnado a restante doutrina: “O facto gerador do imposto, ou seja, o facto tributário (entendido como aquilo que desencadeará a obrigação do pagamento do imposto) considera-se, nos impostos periódicos (como é o caso do IRS e do IRC), verificado no último dia do período de tributação (em regra, 31 de dezembro de cada ano civil, com as exceções pontualmente observáveis e de acordo com o preceituado na disposição aqui em análise) – cfr. n.º 9. Deste modo, a lei fiscal aplicável a cada exercício será a vigente no termo do período de tributação considerado, coerentemente com a questão da anualidade dos impostos.” (cfr. AZEVEDO, PATRÍCIA ANJOS, Anotação ao artigo 8.º in “Código do IRC 2019 – Anotado & Comentado”, 2013-2019, O Informador Fiscal, Lexit – sublinhado nosso).
42º Pode, assim, dizer-se que: “Pela sua própria natureza, nos impostos periódicos – como é o caso do IRC – o facto tributário forma-se no decurso do período de tributação, ao passo que nos impostos de formação única essa formação é instantânea. Sucede que, por razões várias, o legislador decidiu fixar a verificação do facto tributário “no último dia do período de tributação”. Todavia, e porque tal período não pode sequer ser determinado em certas circunstâncias, o legislador excecionou os casos em que o IRC não se comporta enquanto imposto periódico, a saber, nos casos que envolvem a generalidade dos rendimentos obtidos por não residentes sem estabelecimento estável em território nacional.” (cfr. COURINHA, GUSTAVO LOPES, “Manual do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas”, Almedina, 2019, pág. 71 – sublinhado nosso).”
41. Na perspetiva da posição que defende, a Requerente invoca, ainda, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, proferida a propósito da aplicação das taxas de tributação autónoma, nos seguintes termos: “ (…) 44º Também o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre o momento inequívoco da verificação do facto tributário em sede de IRC, a propósito da tributação autónoma, nos seguintes termos (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional proferido em 12 de Julho de 2012, no âmbito do processo n.º 121/2012, que ora se junta como Doc. n.º 6 - sublinhado nosso): (…) “na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere)” (…) “Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).
Já no que respeita à tributação autónoma em IRC, o facto gerador do imposto é a própria realização da despesa, não se estando perante um facto complexo, de formação sucessiva ao longo de um ano, mas perante um facto tributário instantâneo. Esta característica da tributação autónoma remete-nos, assim, para a distinção entre impostos periódicos (cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, e tende a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar imposto com caráter regular) e impostos de obrigação única (cujo facto gerador se produz de modo instantâneo, surge isolado no tempo, gerando sobre o contribuinte uma obrigação de pagamento com caráter avulso)”.
42. Assim, conclui a Requerente que:” (…) 45º Atento o exposto, resulta claro da lei, conforme entendimento da doutrina e do próprio Tribunal Constitucional que, verificando-se o facto tributário em sede de IRC no último dia do período de tributação em causa (que, no caso do exercício de 2014 da requerente, correspondeu ao dia 31 de Janeiro de 2015), é a taxa vigente neste dia que terá de aplicar-se na determinação da matéria colectável daquele exercício. 46º De onde resulta que, no caso concreto, deveria ter-se aplicado a taxa de 21% de IRC (em vigor no último dia do período de tributação correspondente ao exercício de 2014 da requerente – 31 de Janeiro de 2015), ao invés da taxa de 23% (que vigorou apenas até 31 de Dezembro de 2014), sendo que, por erro do sistema informático da AT, foi esta última taxa de 23% imposta no apuramento (autoliquidação) do imposto devido pela requerente.”
42. De resto, a Requerente sublinha que a questão de direito subjacente aos presentes autos foi já resolvida em sentido favorável à sua pretensão, na decisão arbitral proferida em 15-10-2018, no âmbito do processo n.º 179/2018-T (HÉLDER FILIPE FAUSTINO), a cuja fundamentação adere: “ Por força do artigo 14.º da referida Lei n.º 2/2014, as alterações introduzidas ao Código do IRC aplicavam-se aos períodos de tributação que se iniciassem, ou aos factos tributários que ocorressem, em ou após 01/01/2014. Assim, em 01/07/2014, data em que se iniciou o período de tributação de 2014 da Requerente, a taxa de IRC em vigor era de 23%. Contudo, no final do mesmo ano, o artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro (“Lei do Orçamento de Estado para 2015”) veio alterar a taxa de IRC para 21%. Nos termos do n.º 1 do seu artigo 261.º, a Lei do Orçamento de Estado para 2015 entrou em vigor no dia 01/01/2015 e, portanto, a taxa geral de IRC em vigor desde essa data é de 21%. Ora, ao contrário do que fez nos anteriores diplomas legais que alteraram a taxa de IRC, o legislador não estabeleceu na Lei do Orçamento de Estado para 2015 qualquer disposição transitória relativa à alteração da taxa de IRC e à sua aplicação temporal. Não existindo norma transitória, importa atender às regras gerais sobre a aplicação no tempo da lei fiscal. Ao abrigo do n.º 1 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária, “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroactivos” (sublinhado nosso). Assim, tendo em consideração que a Lei do Orçamento de Estado para 2015 entrou em vigor no dia 01/01/2015, é necessário determinar quando é que o facto gerador do IRC, relativo ao seu período de tributação de 2014, foi verificado na esfera da Requerente. Com efeito, dispõe o n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC que o “facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação”. Mas se dúvidas existissem, para as esclarecer bastaria atender à decisão proferida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 382/2012 de 12 de Julho de 2012, ao analisar a retroatividade da lei fiscal que alterou as taxas de tributação autónoma no ano de 2008, “na tributação dos rendimentos em sede de IRS ou IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere) (...) no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC)” (sublinhado nosso).” (…) “Portanto, no caso da Requerente, o facto gerador do IRC devido com referência ao período de tributação de 2014 verificou-se no último dia de tal período de tributação, ou seja, no dia 30/06/2015, quando a taxa de IRC em vigor era 21%. E não se diga para contrariar a conclusão a que chegámos no artigo anterior que, na verdade, apenas por mero lapso o legislador não estabeleceu uma norma transitória na Lei do Orçamento de Estado para 2015, sendo sua intenção que a nova taxa de IRC se aplique apenas aos períodos de tributação iniciados depois de 01/01/2015. Esta afirmação deve ser liminarmente rejeitada, por não merecer qualquer acolhimento nos termos das normas interpretativas previstas no Código Civil, em especial no n.º 3 do seu artigo 9.º, nos termos do qual o “intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Com efeito, se o legislador não estabeleceu uma norma transitória, devemos concluir que apenas não o fez porque não o quis fazer, ou seja, porque pretendeu a aplicação das regras gerais acima referidas, das quais resulta a aplicação imediata da nova taxa de IRC a todos os períodos de tributações iniciados ou em curso a 01/01/2015. Com efeito, em ocasiões anteriores onde a taxa geral de IRC foi alterada e o legislador quis que a nova taxa apenas se aplicasse a períodos de tributação iniciados após a entrada em vigor da nova taxa, o legislador estabeleceu uma norma transitória nesse sentido, conforme resulta dos vários exemplos que se seguem.” (…) “Como resulta dos vários exemplos de alterações à taxa de IRC mencionados anteriormente, sempre que a intenção do legislador foi excluir a aplicação da nova taxa de IRC aos períodos de tributação iniciados antes da entrada em vigor da nova lei, mas com um termo posterior à alteração da taxa, o legislador estabeleceu normas transitórias nesse sentido. Se não o fez para a redução da taxa de IRC prevista na Lei do Orçamento de Estado para 2015 não foi certamente porque se esqueceu. Foi simplesmente porque pretendeu a imediata aplicação da nova taxa a todos os períodos de tributação iniciados em 01/01/2015, após 01/01/2015 ou em curso a 01/01/2015. Assim, é imperioso concluir que a taxa geral de IRC em vigor em 30/06/2015, data do termo do período de tributação de 2014 da Requerente, era de 21%, sendo essa a taxa a aplicar para efeito do cálculo do IRC devido pela Requerente com referência a tal período. Finalmente, importa ainda notar que a DSIRC refere que a taxa de 23% deverá aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, uma vez que o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, estabelece que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”.
O artigo 14.º estabeleceu que a taxa de IRC de 23% introduzida com a referida lei era aplicável aos períodos de tributação iniciados em ou após 01/01/2014, ou aos factos tributários ocorridos após essa data. Com efeito, o período de tributação de 2013 da Requerente, iniciado 01/07/2013, findo em 30/06/2014, já se encontrava em curso aquando da entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, pelo que o facto tributário ocorrido após 01/01/2014 foi o facto gerador de IRC do período de tributação de 2013, no dia 30/06/2014 (determinando assim, ainda que não tenha sido reclamado pela Requerente, que ao IRC desse período de tributação deveria ter sido aplicada a taxa de 23% e não de 25%). Da mesma forma que no ano subsequente, em 30/06/2015, foi consumado o facto gerador de IRC relativo ao período de tributação de 2014 da Requerente, quando a taxa de IRC em vigor era 21%.”.
43. Já em sede de alegações, vem a Requerente acrescentar que “ (…) a questão de direito subjacente aos presentes autos foi já resolvida em sentido favorável à pretensão da requerente, não apenas na decisão arbitral proferida em 15 de Outubro de 2018 no âmbito do processo n.º 179/2018-T (HÉLDER FILIPE FAUSTINO), citada no parágrafo 58.º do pedido de pronúncia arbitral e cuja cópia foi junta a este pedido como Doc. n.º 7, mas também, mais recentemente, na decisão arbitral proferida em 20 de Dezembro de 2019 no âmbito do processo n.º 412/2019-T (RICARDO RODRIGUES PEREIRA), a que se juntou o voto de vencido de um dos árbitros (ANA TEIXEIRA DE SOUSA) no processo n.º 411/2019-T (JOSÉ PEDRO CARVALHO, REGINA DE ALMEIDA MONTEIRO e ANA TEIXEIRA DE SOUSA - vencida) cuja decisão arbitral (tanto quanto sabemos, a única que, nesta matéria, concluiu em sentido favorável à AT) é amplamente citada pela AT na sua resposta.
Com efeito, concluíram os senhores árbitros, nas duas decisões arbitrais que se conhecem favoráveis à pretensão da requerente (nos referidos processos n.ºs 179/2018-T e 412/2019-T) – duas, sublinha-se, de um total de três, a que se juntou o voto de vencido de um dos árbitros que integrou o colectivo da única decisão arbitral que decidiu a favor da AT - que, porque o facto tributário em causa ocorreu já na vigência da taxa de IRC de 21% introduzida pela Lei do Orçamento do Estado para 2015 (Lei n.º 82.º-B/2014, de 31 de Dezembro), deve ser esta a taxa de IRC a aplicar ao exercício de 2014 que tenha terminado já após 1 de Janeiro de 2015 (e não a taxa de IRC de 23% que esteve em vigor apenas até 31 de Dezembro de 2014): “Com efeito, o período de tributação de 2013 da Requerente, iniciado 01/07/2013, findo em 30/06/2014, já se encontrava em curso aquando da entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, pelo que o facto tributário ocorrido após 01/01/2014 foi o facto gerador de IRC do período de tributação de 2013, no dia 30/06/2014 (determinando assim, ainda que não tenha sido reclamado pela Requerente, que ao IRC desse período de tributação deveria ter sido aplicada a taxa de 23% e não de 25%). Da mesma forma que no ano subsequente, em 30/06/2015, foi consumado o facto gerador de IRC relativo ao período de tributação de 2014 da Requerente, quando a taxa de IRC em vigor era 21%” (cfr. pág. 13 da versão PDF publicada no site do CAAD da decisão arbitral proferida no processo n.º 179/2018-T – HÉLDER FILIPE FAUSTINO; Doc. n.º 7 junto aos autos – sublinhado nosso) e “atento o disposto no n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, no sentido de que a formação do facto tributário só se conclui no termo do período anual de tributação,” (…) “entendemos que a lei nova tem aplicação a todos os factos e situações ocorridos no período de tributação em que entra em vigor, uma vez que só no seu termo é que esses factos e situações adquirem a sua configuração integral, pelo que a sua tributação deve ser efetuada em consonância com a lei em vigor no termo do período de tributação.” (cfr. pág. 34 da versão PDF publicada no site do CAAD da decisão arbitral proferida no processo n.º 412/2019-T – RICARDO RODRIGUES PEREIRA – sublinhado nosso).”
Resposta da Requerida
44. Por seu lado, a Requerida sustenta posição inteiramente diversa da que vem expressa pela Requerente, pronunciando-se pela manutenção na ordem jurídica da liquidação controvertida, nos seguintes termos: “ (…) 17. Determina o art.º1.º do CIRC que: “ O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre os rendimentos obtidos, mesmo que provenientes de actos ilícitos, no período de tributação, pelos respectivos sujeitos passivos, nos termos deste Código”, definindo-se este nos termos do art.º 8.º n.º 1CIRC.
18. Ou seja, o IRC é devido em cada exercício, estando directamente relacionado com a obtenção de um resultado positivo, passível de tributação, ao qual é aplicada uma determinada taxa.
19. Não estando as taxas a aplicar previstas nas normas de incidência, são um elemento da relação jurídico tributária, não se confundindo com a obrigação tributária, a qual se define no início do período de tributação, quando este não coincide com o ano civil, inexistindo neste caso qualquer controvérsia.
20. Assim, a obrigação tributária que nasce depois da aprovação e publicação da Lei n.º 82B/2014, de 31 de Dezembro de 2014, isto é, o disposto no n.º 1 do art.º 97.º do CIRC apenas se aplica aos períodos de tributação com início em ou após 01 de Janeiro de 2015. 21. Questão diferente é a do facto gerador do imposto se considerar verificado no último dia do período de tributação, que pode ou não coincidir com o ano civil.
22. Em direito fiscal o princípio da anualidade assume especial relevância no que respeita aos impostos sobre o rendimento, na medida em que segmenta em termos anuais o respectivo regime, construindo períodos tributários temporalmente delimitados.
23. Assim, em sede de IRC, em conformidade com este princípio, estabeleceu-se que o lucro tributável das empresas será determinado anualmente, correspondendo, em regra, cada período de tributação, ao ano civil.
24. Com efeito, nos termos do art.º 8.º n.º 1 do CIRC, o IRC é devido por cada período económico, sendo um imposto periódico, cujo facto gerador se produz de modo sucessivo, pelo decurso de um determinado período de tempo, em regra anual, tendendo a repetir-se no tempo, gerando para o contribuinte a obrigação de pagar.
25. Ou seja, o facto gerador do imposto é complexo e de formação sucessiva ao longo de um ano.
26. Pelo que definida a incidência objectiva e subjectiva do imposto, o facto gerador não se confunde nem com a determinação da matéria colectável, nem com a taxa aplicável, as quais tem a sua própria autonomia conceptual, concretizando-se em momentos diferentes.
27. O que nos conduz ao caso em concreto no qual o ano de tributação de 2014 se inicia em 1 de Fevereiro de 2014 e termina a 31 de Janeiro de 2015, devendo a taxa a aplicar ser a definida para o ano de 2014, sob pena de ferir o princípio da igualdade tributária, porquanto teríamos no mesmo exercício a aplicação de taxas diferentes, apenas pelo facto de terem sido definidos períodos de tributação diferentes e não por qualquer factor distintivo de criação de riqueza.
28. Assim, a taxa a aplicar, independentemente de o ano de tributação começar em 01.01.2014 e terminar em 31.12.2014 ou começar em 01.02.2014 e terminar em 31.01.2015 (como sucede no caso em apreço), sempre será a definida para o exercício de 2014, inexistindo qualquer norma de direito transitório criadora de um regime de excepção como pretendido pela Requerente. “
45. Aderindo à posição tomada no processo arbitral n.º 411/2019-T – que decidiu em sentido contrário à posição assumida nos processos arbitrais citados pela Requente – considera a Requerida que a decisão em causa parte de pressupostos diferentes dos que naquelas foram assumidos pelo que daí decorre que a solução seja igualmente diferente.
46. Aderindo, assim, a posição assumida naquela decisão, a Requerida transcreve os trechos que da mesma considera relevantes para a decisão a proferir no presente processo: “ (…) 52. Efectivamente, julga-se, o ponto de partida da determinação do critério decisório a aplicar deverá situar-se, não na alteração da taxa de IRC pela Lei do Orçamento de Estado para 2015 , no momento da sua entrada em vigor, e na determinação do momento da verificação do facto tributário sujeito a imposto pela liquidação sub iudice, mas no teor normativo do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao dispor que "Sem prejuízo do disposto no artigo 8.': a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014", norma esta em que a Requerida estriba, essencialmente, o entendimento pelo qual pugna. Efectivamente, não estará, em primeira linha, em questão apurar se a taxa de IRC genericamente em vigor a 31 de Janeiro de 2015 era ou não 21% - que era, como refere a decisão acima transcrita - nem apurar se o facto tributário sujeito a imposto pela liquidação ora em crise se deu naquela data - que se deu, como também aquela decisão o demonstra mas, antes, apurar se, e em que medida, a norma do supra-referido art.º 14.º estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015 .
É que, se se considerar que aquela norma vigorava a 3 l de Janeiro de 2015, por força da mesma, ter-se-á de considerar que a taxa de imposto aplicável era, ainda, a instituída na Lei que a consagra. Deste modo, dever-se-á começar por definir o sentido e alcance do art.º 14.º em questão. Antes de mais, e a este respeito, convirá notar que a redacção do mesmo não é a mais feliz. Com efeito, situando-nos apenas na letra da norma em causa, verifica-se, desde logo, que a mesma comportaria a interpretação de que, por exemplo, no caso de entidades como a Requerente, que tivessem um período de tributação em IRC não coincidente com o ano civil, se aplicariam as normas da Lei 2/2014, relativamente aos factos tributários ocorridos a partir de Ide Janeiro de 2014, mesmo que relativos ao exercício de 2013.
Por outro lado, e situando-nos ainda no plano da letra da lei, também se poderia concluir que da mesma resultaria que as normas da Lei 2/2014, por força do seu art.º 14.º, se aplicariam aos exercícios e factos tributários, ocorridos nos exercícios e anos de 2015 e seguintes, e portanto, abrangendo o facto tributário em causa no presente processo arbitral, a menos que se concluísse que aquele artigo 14.º tivesse sido revogado, o que, sem prejuízo do quanto adiante se dirá, não ocorreu, pelo menos expressamente. Do exposto resulta que, em ordem a apreender devidamente o sentido do enunciado normativo do art.º 14.º da Lei 2/2014, o intérprete tem de recorrer a outros elementos que não a letra da lei. Assim, a referência, no art.º 14.º em análise, "aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram", não deverá, sob o ponto de vista lógico, ser visto como um, passe a expressão ''pleonasmo" jurídico, devendo antes ser indagada a intencionalidade e o sentido (ou seja a teleologia) de tal expressão.
Sob este ponto de vista, deverá atender-se a que a Lei 2/2014 procede a alterações profundas em sede de IRC e, também, em sede de IRS, imposto estes cuja tributação assenta, por norma, em períodos de tributação, mas que, incidentalmente, podem impor tributação de factos tributários isolados (como seja no caso das tributações autónomas). Daí que a referência a ''períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram" se não deva ter por alternativa, mas como tendo uma relação de subsidiariedade entre si. Ou seja, interpretado desta forma, o que o art.º 14.º da Lei 2/2014 pretende dizer é que o disposto nesta lei se aplica aos períodos de tributação, quando esta assente naqueles, e aos factos tributários, quando a tributação não tenha por base aqueles. Já no contexto sistemático, aquela norma deve ser compreendida como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, que dispõe, no que para o caso interessa, que:
"1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos. 2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor." (…) Efectivamente, aquele art.º 14.º, veio dispor sobre o âmbito da vigência temporal das disposições da Lei que integra, e apenas se pode explicar como tendo subjacente o propósito de dispor na matéria de modo distinto do que resultaria da aplicação da referida norma da LGT. Sob este ponto de vista, a abrangência, que o elemento literal da interpretação acolhe, pelo art.º 14.º em questão, de períodos de tributação subsequentes a 2014, não assumirá qualquer relevância, na medida em que se sobrepõe ao que já resultaria do art.º 12.º da LGT. Daí que, ponderado o quanto previamente se expôs, o art.º 14 da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação. Delimitado assim o sentido normativo do artº 14º da Lei 2/2014, cumpre, então, apurar se, a 31 de Janeiro de 2015, o mesmo se encontrava em vigor. Ora, como se adiantou atrás, não existe qualquer norma que tenha revogado expressamente aquele art.º 14.º, sendo que, seguramente, a Lei n.º 82-B/2014 não o faz. Daí que a conclusão a retirar deva ser a de que aquele art.º 14.º se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, e, como tal, deve aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, que findou nesse ano. Não obstará, naturalmente, à conclusão retirada o disposto no art.º 12.º da LGT, na medida em que, como se expôs, o art.º 14.º em questão deverá ser entendido como uma norma especial, e, como tal, prevalecente na matéria que regula, relativamente àquele. Sem prejuízo do que vem de se dizer, sempre se chegaria à mesma conclusão por uma outra via. Efectivamente, e como se indicou já, a questão verdadeiramente fulcral para o sentido da decisão a proferir no caso sub iudice será a de saber se a o art.º 14.º da Lei 2/2014 estava, ou não vigente a 31 de Janeiro de 2015. E, como também se apontou antes, a Lei do Orçamento para 2015, não contém nenhuma norma que revogue, expressamente, o disposto naquele art.º 14º , sendo que, ausência de norma transitória, invocada pela Requerente, e notada na decisão arbitral supra-citada, não deverá, de per si, ter-se como evidenciadora de uma intenção revogatória. Acresce que o art.º 14.º em questão, não se reporta exclusivamente, à alteração da taxa de IRC operada pelo art.º 2º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, abrangendo todas as alterações em matéria tributária, consagradas pela mesma Lei, a maioria das quais continua em vigor, pelo que qualquer revogação que se possa equacionar daquela norma seria, meramente parcial. Daí que, o único entendimento possível que se concebe neste domínio, seria o de que art.º 14.º em causa foi parcialmente revogado, na parte em que impunha a aplicação da alteração ao art.º 8º /1 do CIRC, operada pelo artº 2º da Lei n.º 2/2014, e que tal revogação não se poderá retirar senão da entrada em vigor do art.º 192.º da Lei n.º 82-8 /2014, que alterou, novamente, aquele mesmo art.º 87.º/ l do CIRC. Estaríamos, portanto, perante um caso de revogação tácita parcial da supra referida norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, na parte em impunha a aplicação da alteração ao art.º 87.º/1 do CIRC, operada pelo art.º 2.º daquela mesma Lei. Assim, como ensinava o insigne Mestre João Baptista Machado (in "Introdução ao Direito e ao discurso legitimador", Alme dina, 1990, pp.165 e s), "A revogação pode ser expressa ou tácita, total (ah-rogação) ou parcial (derrogação). É ( ...) tácita quando resulta de incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas". (…)” Efectivamente, julga-se ser este o critério a seguir na delimitação do âmbito de uma revogação tácita, ou seja, dever-se-á identificar qual a ligação entre as normas em questão e sobretudo no fundamento, da razão de ser da nova lei. Ora, vistas as coisas assim, e à luz da interpretação da norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, atrás exposto, incluindo a configuração daquele como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, não será possível concluir que o art.º 192.º da Lei n.º 82-B /2014, tenha tido por propósito a revogação daquele art.º 14.º, pelo menos na parte em que se referia à aplicação das normas da Lei que o mesmo integra ao período de tributação de 2014, no caso da tributação em IRS e IRC que tenha por base, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação naqueles impostos que não assente no período de tributação. Deste modo, concluindo-se, nos termos expostos, que o artº 14.º da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/ 0 1/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014, haverá que concluir pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os pedidos acessórios formulados. (…)”.
53. Neste sentido, decidiu o Tribunal arbitral, julgar improcedente o pedido arbitral e absolver a Requerida do pedido.”
47. Nestes termos, conclui a Requerida que não se verificando qualquer ilegalidade ou inconstitucionalidade do ato de liquidação nem fundamento legal que sustente a pretensão da Requerente improcede, em consequência, o pedido de reembolso das quantias pagas, bem como o pagamento de juros indemnizatórios.
Do direito aplicável
48. No caso em apreço está em causa determinar-se qual a taxa de tributação aplicável, em sede de IRC, a uma empresa que adotou um período de tributação não coincidente com o ano civil estando em vigor, no momento em que esse período de iniciou, uma taxa de 23% e, no momento do seu termo, uma taxa de 21%. Ou seja, muito simplesmente, está em causa saber se a taxa aplicável é a que vigora no momento em que se inicia o período de tributação ou aquela que está em vigor no seu termo.
49. Sobre esta matéria, as posições encontram-se claramente demarcadas: para a Requerente a taxa aplicável é a que estiver em vigor à data em que o período de tributação tem o seu termo; para a Requerida, a taxa aplicável é a que vigora no início do período de tributação.
50. No caso em apreço, poderá equacionar-se, ainda, uma outra questão relacionada com a anterior, concretamente, sobre o âmbito de aplicação do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16/01, abordada em acórdão arbitral, cuja fundamentação vem acolhida pela AT na sua resposta.
51. Desde logo, parece poder salientar-se que a jurisprudência arbitral é unânime no tocante à consideração de que a taxa de IRC aplicável é, salvo disposição legal em contrário, a que estiver em vigor no último dia do período de tributação, conforme decorre do disposto no artigo 8.º, n.º 9, do respetivo Código. É este entendimento que fundamenta as decisões arbitrais de 15-10-2018 e de 20-12-2019, proferidas nos Processos 179/2018-T e 411/2019-T, respetivamente.
52. No mesmo sentido vai o entendimento expendido no acórdão arbitral de 20-12-2019, proferido no processo 412/2019-T, em que, para situação idêntica à que ora se equaciona, se conclui que a questão a apreciar situa-se não na determinação da verificação do facto tributário sujeito a imposto, mas no teor normativo do artigo 14,º da Lei n.º 2/2014, de 16/01.
53. Com efeito, é nessa perspetiva que a decisão em causa se orienta, conforme na mesma expressa e claramente se afirma: “ Efectivamente, não estará, em primeira linha, em questão apurar se a taxa de IRC genericamente em vigor a 31 de Janeiro de 2015 era ou não 21% - que era, como refere a decisão acima transcrita – nem apurar se o facto tributário sujeito a imposto pela liquidação ora em crise se deu naquela data – que se deu, como também aquela decisão o demonstra – mas, antes, apurar se, e em que medida, a norma do supra-referido art.º 14.º estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015.”
54. Partindo-se, assim, de uma base comum de entendimento sobre o momento em que se define a taxa de IRC aplicável - no termo do período de tributação, seja este coincidente ou não com o ano civil – atinge-se, na situação concreta soluções divergentes que se centram sobre a aplicação no tempo da lei fiscal, especificamente do artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16/01.
Quadro normativo
55. Prevê o artigo 1.º do Código do IRC que este tributo incide sobre os rendimentos obtidos no período de tributação, pelos respetivos sujeitos passivos. De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, alínea a), o rendimento tributável, no caso de sociedades comerciais, é constituído pelo lucro que o n.º 2 do mesmo artigo define como a “diferença entre os valores do património líquido no fim e no início do período de tributação, com as correções estabelecidas neste Código.” Apurado com base no resultado líquido do exercício, o lucro tributável das pessoas coletivas, segundo o artigo 17.º, n.º 1, do mesmo Código, “ é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.”
56. Salvo nos casos expressamente elencados no artigo 8-º, n.ºs 4 e 8 – anos do início e cessação de atividade, mudança de período de tributação, sujeição e cessação das condições de sujeição a imposto num mesmo ano, liquidação de pessoa coletiva – o período de tributação segue a regra da anualidade, sendo, em princípio, coincidente com o ano civil, conforme estabelece o n.º 1 do citado artigo.
57. Porém, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, é facultado às pessoas coletivas com sede ou direção efetiva em território português, bem como as pessoas coletivas ou outras entidades sujeitas a IRC que não tenham sede nem direção efetiva neste território e nele disponham de estabelecimento estável, a possibilidade de adotarem um período anual de imposto não coincidente com o ano civil, na condição de o mesmo coincidir com o período social de prestação de contas e de dever ser mantido durante, pelo menos, os cinco períodos de tributação imediatos.
58. Com exceção de rendimentos obtidos por entidades não residentes sem estabelecimento estável em território português, elencados artigo 8.º, n.º 10, prevê o n.º 9 do mesmo artigo que “O facto gerador do imposto considera-se verificado no último dia do período de tributação.”
59. O facto gerador – facto tributário - que tanto por ser instantâneo como reportado a um determinado período temporal – determina a constituição da relação tributária, como decorre do artigo 36.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.
60. No caso do IRC, e salvo as exceções assinaladas, a relação jurídica tributária segundo dispõe aquele n.º 9 do artigo 8.º do respetivo Código, constitui-se no último dia do período de tributação. Por outras palavras, o facto tributário só se completa no último dia do período de tributação.
61. É, a nosso ver, pacifico, na doutrina e na jurisprudência, que, diversamente do que vem alegado pela Requerida, o apuramento da base tributável e da taxa aplicável são definidas em função da legislação em vigor no momento em que ocorre o facto gerador que, no caso do regime geral do IRC, como se vem referindo, considera-se verificado no último dia do período de tributação.
62. Sobre esta matéria releva a doutrina e jurisprudência citada em anteriores decisões arbitrais já acima transcritas, que aqui se dão por inteiramente reproduzidas.
63. Poderá, no entanto, acrescentar-se que sobre a relevância do momento da ocorrência do facto tributário para a definição da taxa aplicável, o Tribunal Constitucional, em decisão reportada embora às tributações autónomas na área dos impostos sobre o rendimento, afirma: “ Contrariamente ao que acontece na tributação dos rendimentos em sede de IRS e IRC, em que se tributa o conjunto dos rendimentos auferidos num determinado ano (o que implica que só no final do mesmo se possa apurar a taxa de imposto, bem como o escalão no qual o contribuinte se insere), no caso tributa-se cada despesa efetuada, em si mesma considerada, e sujeita a determinada taxa, sendo a tributação autónoma apurada de forma independente do IRC que é devido em cada exercício, por não estar diretamente relacionada com a obtenção de um resultado positivo, e por isso, passível de tributação.
Assim, e no caso do IRC, estamos perante um imposto anual, em que não se tributa cada rendimento percebido de per si, mas sim o englobamento de todos os rendimentos obtidos num determinado ano, considerando a lei que o facto gerador do imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação (cfr. artigo 8.º, n.º 9, do CIRC).”
Donde poder concluir-se que tanto a doutrina como a jurisprudência, designadamente a jurisprudência arbitral citada, apontam no sentido de que a taxa geral de IRC aplicável é a que vigora no momento da verificação do facto gerador, último dia do período de tributação, independentemente de este coincidir ou não com o termo do ano civil.
65. Só assim não será quando a lei disponha de forma diversa. E, assim, sempre que pretendeu que fosse considerado outro momento relevante para determinação da taxa aplicável, o legislador não deixou de o determinar de forma expressa. É que se verifica, por exemplo, com a Lei n.º 3-B/2000, de 04/04, que fixa a taxa de IRC em 32%, cujo artigo 41.º, n.º 3, expressamente prevê que a mesma é aplicável aos períodos de tributação que se iniciem a partir de 01-01-2000 ou da Lei n.º 109-B/2001, de 31/12, que fixa a taxa de 30%, mas que prevê, no seu artigo32.º, n.º 7, que a mesma se aplica aos períodos de tributação iniciados em 01-01-2002.
66. Sendo este o entendimento que, em consonância, aliás, com as anteriores decisões arbitrais citadas, se acolhe, resta, ainda, saber se, no caso concreto, a taxa aplicável é a prevista na Lei n.º 2/2014 ou a que veio a ser introduzida pela Lei n.º 87-B/ 2014, de 31/12, ou seja, saber-se se no termo do período de tributação – 31-01-2015 - aquela ainda se encontrava em vigor.
67. Como já referido, esta matéria foi objeto de apreciação em decisão arbitral de 27-02-2020, no processo n.º 411/2019, que a Requerida cita e a cuja fundamentação adere.
68. Vem esta questão equacionada na aludida decisão arbitral nos seguintes termos:
“ Efectivamente, julga-se, o ponto de partida da determinação do critério decisório a aplicar deverá situar-se, não na alteração da taxa de IRC pela Lei do Orçamento de Estado para 2015, no momento da sua entrada em vigor, e na determinação do momento da verificação do facto tributário sujeito a imposto pela liquidação sub iudice, mas no teor normativo do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, ao dispor que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014”, norma esta em que a Requerida estriba, essencialmente, o entendimento pelo qual pugna. Efectivamente, não estará, em primeira linha, em questão apurar se a taxa de IRC genericamente em vigor a 31 de Janeiro de 2015 era ou não 21% - que era, como refere a decisão acima transcrita – nem apurar se o facto tributário sujeito a imposto pela liquidação ora em crise se deu naquela data – que se deu, como também aquela decisão o demonstra – mas, antes, apurar se, e em que medida, a norma do supra-referido art.º 14.º estava, ou não em vigor, no dia 31 de Janeiro de 2015. É que, se se considerar que aquela norma vigorava a 31 de Janeiro de 2015, por força da mesma, ter-se-á de considerar que a taxa de imposto aplicável era, ainda, a instituída na Lei que a consagra. Deste modo, dever-se-á começar por definir o sentido e alcance do art.º 14.º em questão. Antes de mais, e a este respeito, convirá notar que a redacção do mesmo não é a mais feliz. Com efeito, situando-nos apenas na letra da norma em causa, verifica-se, desde logo, que a mesma comportaria a interpretação de que, por exemplo, no caso de entidades como a Requerente, que tivessem um período de tributação em IRC não coincidente com o ano civil, se aplicariam as normas da Lei 2/2014, relativamente aos factos tributários ocorridos a partir de 1 de Janeiro de 2014, mesmo que relativos ao exercício de 2013. Por outro lado, e situando-nos ainda no plano da letra da lei, também se poderia concluir que da mesma resultaria que as normas da Lei 2/2014, por força do seu art.º 14.º, se aplicariam aos exercícios e factos tributários, ocorridos nos exercícios e anos de 2015 e seguintes, e portanto, abrangendo o facto tributário em causa no presente processo arbitral, a menos que se concluísse que aquele artigo 14.º tivesse sido revogado, o que, sem prejuízo do quanto adiante se dirá, não ocorreu, pelo menos expressamente. Do exposto resulta que, em ordem a apreender devidamente o sentido do enunciado normativo do art.º 14.º da Lei 2/2014, o intérprete tem de recorrer a outros elementos que não a letra da lei.
Assim, a referência, no art.º 14.º em análise, “aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram”, não deverá, sob o ponto de vista lógico, ser visto como um, passe a expressão “pleonasmo” jurídico, devendo antes ser indagada a intencionalidade e o sentido (ou seja a teleologia) de tal expressão. Sob este ponto de vista, deverá atender-se a que a Lei 2/2014 procede a alterações profundas em sede de IRC e, também, em sede de IRS, imposto estes cuja tributação assenta, por norma, em períodos de tributação, mas que, incidentalmente, podem impor tributação de factos tributários isolados (como seja no caso das tributações autónomas). Daí que a referência a “períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram” se não deva ter por alternativa, mas como tendo uma relação de subsidiariedade entre si. Ou seja, interpretado desta forma, o que o art.º 14.º da Lei 2/2014 pretende dizer é que o disposto nesta lei se aplica aos períodos de tributação, quando esta assente naqueles, e aos factos tributários, quando a tributação não tenha por base aqueles. Já no contexto sistemático, aquela norma deve ser compreendida como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, que dispõe, no que para o caso interessa, que: “1 - As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos. 2 - Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.”. Efectivamente, aquele art.º 14.º, veio dispor sobre o âmbito da vigência temporal das disposições da Lei que integra, e apenas se pode explicar como tendo subjacente o propósito de dispor na matéria de modo distinto do que resultaria da aplicação da referida norma da LGT. Sob este ponto de vista, a abrangência, que o elemento literal da interpretação acolhe, pelo art.º 14.º em questão, de períodos de tributação subsequentes a 2014, não assumirá qualquer relevância, na medida em que se sobrepõe ao que já resultaria do art.º 12.º da LGT. Daí que, ponderado o quanto previamente se expôs, o art.º 14.º da Lei 2/2014 deverá ser interpretado como dispondo no sentido de que as normas daquela Lei se apliquem ao período de tributação de 2014, relativamente à tributação, em IRS ou IRC, que assente naquele, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação, também em IRS ou IRC, que não assente no período de tributação. Delimitado assim o sentido normativo do art.º 14.º da Lei 2/2014, cumpre, então, apurar se, a 31 de Janeiro de 2015, o mesmo se encontrava em vigor. Ora, como se adiantou atrás, não existe qualquer norma que tenha revogado expressamente aquele art.º 14.º, sendo que, seguramente, a Lei n.º 82-B/2014 não o faz. Daí que a conclusão a retirar deva ser a de que aquele art.º 14.º se encontrava em vigor a 31 de Janeiro de 2015, e, como tal, deve aplicar-se ao período de tributação de 2014 da Requerente, que findou nesse ano. Não obstará, naturalmente, à conclusão retirada o disposto no art.º 12.º da LGT, na medida em que, como se expôs, o art.º 14.º em questão deverá ser entendido como uma norma especial, e, como tal, prevalecente na matéria que regula, relativamente àquele. Sem prejuízo do que vem de se dizer, sempre se chegaria à mesma conclusão por uma outra via. Efectivamente, e como se indicou já, a questão verdadeiramente fulcral para o sentido da decisão a proferir no caso sub iudice será a de saber se a o art.º 14.º da Lei 2/2014 estava, ou não vigente a 31 de Janeiro de 2015. E, como também se apontou antes, a Lei do Orçamento para 2015, não contém nenhuma norma que revogue, expressamente, o disposto naquele art.º 14.º, sendo que, ausência de norma transitória, invocada pela Requerente, e notada na decisão arbitral supra-citada, não deverá, de per si, ter-se como evidenciadora de uma intenção revogatória. Acresce que o art.º 14.º em questão, não se reporta exclusivamente, à alteração da taxa de IRC operada pelo art.º 2.º da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, abrangendo todas as alterações em matéria tributária, consagradas pela mesma Lei, a maioria das quais continua em vigor, pelo que qualquer revogação que se possa equacionar daquela norma seria, meramente parcial. Daí que, o único entendimento possível que se concebe neste domínio, seria o de que art.º 14.º em causa foi parcialmente revogado, na parte em que impunha a aplicação da alteração ao art.º 87.º/1 do CIRC, operada pelo art.º 2.º da Lei n.º 2/2014, e que tal revogação não se poderá retirar senão da entrada em vigor do art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, que alterou, novamente, aquele mesmo art.º 87.º/1 do CIRC.
Estaríamos, portanto, perante um caso de revogação tácita parcial da supra referida norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, na parte em impunha a aplicação da alteração ao art.º 87.º/1 do CIRC, operada pelo art.º 2.º daquela mesma Lei. Assim, como ensinava o insigne Mestre João Baptista Machado2, “A revogação pode ser expressa ou tácita, total (ab-rogação) ou parcial (derrogação). É (...) tácita quando resulta de incompatibilidade entre as disposições novas e as antigas”. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2007, proferido no processo 4117/2007-7: “A revogação, que ora nos ocupa, pressupõe a entrada em vigor de uma nova lei, e pode ser expressa ou tácita, total ou parcial. Da revogação que ora tratamos, a tácita, é resultante da incompatibilidade entre as disposições novas e as anteriores, ou ainda, quando a nova lei regula toda a matéria (substituição global). Todavia, este juízo de incompatibilização decorrente da abrogação tácita entre a lei antiga e a nova lei não surge sempre em segurança para o intérprete. Se a nova lei geral sucede a uma especial, a regra é da coexistência, mas o inverso é duvidoso. No nosso sistema jurídico vigora a presunção da subsistência do regime especial perante alteração de norma geral-artº 7, nº 3 do CCivil – só cederá perante uma interpretação segura, inequívoca da intenção revogatória do legislador. Como proceder então perante esta aparente coexistência de normas reguladoras da mesma situação? A solução dependerá caso por caso de identificar qual a ligação entre as normas em questão e sobretudo no fundamento, da razão de ser da nova lei.”. Efectivamente, julga-se ser este o critério a seguir na delimitação do âmbito de uma revogação tácita, ou seja, dever-se-á identificar qual a ligação entre as normas em questão e sobretudo no fundamento, da razão de ser da nova lei. Ora, vistas as coisas assim, e à luz da interpretação da norma do art.º 14.º da Lei n.º 2/2014, atrás exposto, incluindo a configuração daquele como uma norma especial em relação ao art.º 12.º da LGT, não será possível concluir que o art.º 192.º da Lei n.º 82-B/2014, tenha tido por propósito a revogação daquele art.º 14.º, pelo menos na parte em que se referia à
aplicação das normas da Lei que o mesmo integra ao período de tributação de 2014, no caso da tributação em IRS e IRC que tenha por base, e aos factos tributários ocorridos em 2014, relativamente à tributação naqueles impostos que não assente no período de tributação. Deste modo, concluindo-se, nos termos expostos, que o art.º 14.º da Lei n.º 2/2014 se encontrava vigente a 31/01/2015, na parte em que impõe a aplicação do disposto naquela Lei à tributação em IRS e IRC que assente no período de tributação de 2014, haverá que concluir pela legalidade da actuação da AT, e pela consequente improcedência do pedido arbitral, incluindo os pedidos acessórios formulados.
69. Com o devido respeito, não se acompanha a conclusão tirada no douto acórdão arbitral na parte acima transcrita.
70. Com efeito, a Lei n.º 2/2014, de 16/01, entre outras modificações introduzidas ao Código do IRC, alterou a redação do seu artigo 87.º, n.º 1, ficando do mesmo a constar que “A taxa do IRC é de 23 %, exceto nos casos previstos nos números seguintes.”
71. Sobre a sua aplicação no tempo, dispõe o artigo 14.º da referida Lei que “Sem prejuízo do disposto no artigo 8.º, a presente lei aplica-se aos períodos de tributação que se iniciem, ou aos factos tributários que ocorram, em ou após 1 de janeiro de 2014.”
72. Desde logo, parece não oferecer dúvidas que a norma em análise, na sequência, aliás, de legislação anterior sobre a aplicação temporal de taxas de IRC em caso de alteração destas, se aplica aos períodos de tributação iniciados em 01-01-2014, admitindo-se que a referência aos factos tributários que ocorram em ou após essa data se refira às tributações de não residentes sem estabelecimento estável e, atenta a controvérsia que então se havia gerado sobre a aplicação retroativa, às tributações autónomas previstas no artigo 88.º do Código do IRC.
73. Porém, a norma em causa contém um segmento que não pode deixar de ter-se em atenção. Ali se estatui que o que nela se dispõe é “Sem prejuízo do disposto no artigo 8..º.”
74. Referindo-se precisamente à evolução das taxas de IRC, no sentido da sua progressiva redução, diz aquele artigo 8.º -“ 1 - Tendo em conta os resultados alcançados pela reforma da tributação do rendimento das pessoas coletivas operada pela presente lei e em função da avaliação da evolução da situação económica e financeira do país, a taxa prevista no n.º 1 do artigo 87.º do Código do IRC deve ser reduzida nos próximos anos, ponderando, simultaneamente, a reformulação dos regimes do IVA e do IRS, especialmente no que diz respeito à redução das taxas destes impostos.
2 - A redução da taxa de IRC prevista no número anterior para 21 % em 2015, bem como a sua fixação num intervalo entre 17 % e 19 % em 2016, será objeto de análise e ponderação por uma comissão de monitorização da reforma a constituir para o efeito.”
75. A referida Lei considerava já no preceito acima transcrito, uma redução geral da taxa normal de IRC ao longo dos próximos anos e, ainda que dependente de determinadas condições, uma eventual redução de taxa de IRC para 21% em 2015.
76. Sobre a sua aplicação no tempo, o artigo 14.º da Lei n.º 2/2014, ao prever expressamente que a alteração de taxa aplicável aos exercícios iniciados em 2014 se faz “sem prejuízo” do disposto no artigo 8.º acolherá desde logo a eventualidade de concretização da prevista redução de taxa para os próximos anos e, designadamente, da redução para 21% em 2015.
77. E, com efeito, esta prevista redução da taxa de IRC para 21% veio a efetivar-se através do artigo 192.º da Lei n.º 82-B/2014, de 31/12, que alterou a redação daquele artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC.
78. Sendo a lei omissa no tocante à sua aplicação temporal, será, pois, de concluir-se que a nova taxa é aplicável nos termos gerais, isto é, a todos os factos tributários que ocorram em ou após o seu início de vigência, conforme decorre do regime geral da aplicação no tempo da lei tributária, consagrado no artigo 12.º da Lei Geral Tributária.
79. Em consonância com o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa que estabelece o princípio da proibição da retroatividade em matéria tributária e com o princípio consagrada no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil, prevê o n.º 1 daquele artigo que “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos.”
80. Porém, tratando-se de impostos periódicos, em que o facto tributário é de formação sucessiva, o n.º 2 daquele artigo consagra um critério de “pro rata temporis” prevendo que “ Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor.”
81. No domínio da tributação do rendimento das pessoas coletivas está-se perante um tributo de periodicidade anual em não se tributa cada rendimento isoladamente mas o englobamento de todos os rendimentos auferidos no período de tributação, deduzidos dos gastos inerentes, obtendo-se um resultado líquido apurado em conformidade com as normas contabilísticas e sujeito a correções expressamente previstas no respetivo Código. Porém, a regra geral contida na norma do n.º 2 do artigo 12.º da Lei Geral Tributária cede, a nosso ver, perante a disposição constante do artigo 8.º, n.º 9 do Código do IRC.
82. No que concerne à aplicação da lei no tempo e em obediência ao princípio constitucional da proibição de retroatividade da lei fiscal, a citada norma do Código do IRC consagra, pois, uma solução específica prevendo que o facto gerador da obrigação de imposto se tem por verificado no último dia do período de tributação.
83. Com efeito, considerado o disposto naquele n.º 9 do artigo 8.º do Código do IRC, entendemos que a lei nova, salvo disposição legal em sentido diverso, será aplicável aos factos geradores que ocorram a partir do momento em que a mesma entra em vigor.
84. Revertendo ao caso em análise, verifica-se que o facto constitutivo da obrigação tributária ocorreu em 31-01-2015, termo do período anual de tributação por que optou a Requerente.
85. Estando em vigor nesse momento a taxa de 21% constante do artigo 87.º, n.º 1, do Código do IRC, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 87-B/2014, de 31/12, em vigor a partir de 01-01-2015, é esta a taxa aplicável para determinação do montante de imposto relativo ao exercício de 2014.
86. Pelo exposto, o Tribunal declara ferida de ilegalidade a liquidação de IRC efetuada com aplicação da taxa de 23% prevista na Lei n.º 2/2014, determinando a sua anulação parcial com a consequente restituição da importância indevidamente cobrada. No mesmo sentido, é revogada a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da referida liquidação.
87. Assim, sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em vício de violação da lei, que assegura estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil (artigo 130.º do CPC) o conhecimento das restantes questões suscitadas.
Dos juros indemnizatórios
88. A par da anulação da liquidação, e consequente reembolso da importância indevidamente paga, a Requerente solicita ainda que lhe seja reconhecido o direito as juros indemnizatórios, ao abrigo do artigo 43.º da LGT.
89. Com efeito, nos termos da norma do n.º 1 do referido artigo, são devidos juros indemnizatórios "quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido." Para além dos meios referidos na norma que se transcreve, entendemos que, conforme decorre do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, o direito aos mencionados juros pode ser reconhecido no processo arbitral e, assim, se conhece do pedido.
90. O direito a juros indemnizatórios a que alude a norma da LGT supra referida pressupõe que haja sido pago imposto por montante superior ao devido e que tal derive de erro, de facto ou de direito, imputável aos serviços da AT.
91. Porém, importa referir que, associada ao atraso em decisão sobre pedido de revisão oficiosa do ato tributário prevê artigo 43.º, n.º 3, alínea c), que são devidos juros indemnizatórios “Quando a revisão do ato tributário por iniciativa do contribuinte se efetuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
92. Sobre o âmbito de aplicação deste preceito tem vindo a firmar-se jurisprudência uniforme dos tribunas superiores no sentido de que “Pedida pelo sujeito passivo a revisão oficiosa do acto de liquidação (cfr. art. 78.º, n.º 1, da LGT) e vindo o acto a ser anulado (parcialmente), mesmo que em impugnação judicial do indeferimento daquela revisão, os juros indemnizatórios são devidos depois de decorrido um ano após a apresentação daquele pedido, e não desde a data do indeferimento tácito do pedido de revisão oficiosa apresentado [cfr. art. 43.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), da LGT].”
93. Acompanhando, em total concordância, a orientação jurisprudencial atualmente consolidada, remete-se para a fundamentação expendida em acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo : “A leitura do disposto no art. 61.º, n.º 1 do Código de Processo e Procedimento Tributário permite concluir que dirigindo-se ele à entidade administrativa lhe confere poder/dever de reconhecer o direito a juros indemnizatórios em benefício do contribuinte em diversas situações sendo que, tratando-se de entidade a quem compete decidir o pedido de revisão do acto tributário a pedido do contribuinte, situação destes autos, tal entidade apenas pode reconhecer esse direito se não for cumprido o prazo legal de revisão do acto tributário. O mesmo é dizer que se tal decisão for proferida dentro do prazo legal não tem a entidade administrativa competência para reconhecer o direito a juros indemnizatórios.
Além do referido normativo dispõe ainda a Lei Geral Tributária, art. 43.º, n.º 3, que: «São também devidos juros indemnizatórios quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária”.
Como se concluiu no acórdão fundamento, e foi reafirmado no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 01201/17 em 23/05/2018, também a situação dos autos é enquadrável no n.º 3, al. c), do art. 43.º da Lei Geral Tributária porque o contribuinte, podendo ter obtido anteriormente a anulação do acto de liquidação praticado em 2012 e 2013, nada fez, desinteressando-se temporariamente da recuperação do seu dinheiro, até que em 28 de Setembro de 2016, apresentou um pedido de revisão oficiosa do acto tributário.
Entre 2012 e 2016 decorre um extenso período em que a reposição da legalidade poderia ter sido provocada por iniciativa do contribuinte que a não desenvolveu, o que justifica que o direito a juros indemnizatórios haja de ter uma extensão mais reduzida por contraposição à situação em que o contribuinte suscita a questão da ilegalidade do acto de liquidação imediatamente após o desembolso da quantia em questão, nomeadamente nos três meses seguintes ao termo do prazo de pagamento voluntário usando o processo de impugnação do acto de liquidação.
O legislador considera que o prazo de um ano é o prazo razoável para a Administração decidir o pedido de revisão e executar a respectiva decisão, quando favorável ao contribuinte, afastando-se da indemnização total dos danos a partir do momento em que surgiram na esfera patrimonial do contribuinte.
Impondo a lei constitucional ao Estado a obrigação de reparar os danos causados pelos seus actos ilegais, tem vindo a lei ordinária a estabelecer limites a essa reparação, sejam os decorrentes da valorização da maior ou menor diligência do lesado, seja do tempo que faculta para a Administração Tributária decidir.
A decisão arbitral recorrida atribuiu a indemnização a partir da ocorrência do evento danoso, sendo que face às normas de direito tributário vigente tal indemnização não tem assento legal, pelo menos sob a égide do processo de impugnação da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa do acto de liquidação.
É certo que o contribuinte se viu forçado a recorrer ao tribunal arbitral em virtude de os serviços da Administração não terem procedido à solicitada revisão do acto de liquidação ilegal, e que isso constitui uma circunstância que tem sido esgrimida para afastar a aplicação da alínea c) do nº 3 do art.º 43º da LGT.
Todavia, importa não esquecer que o princípio da igualdade impõe um tratamento semelhante entre os contribuintes cujos pedidos de revisão obtêm êxito (para além do prazo de um ano) junto da Administração, e os contribuintes que obtêm idêntico resultado (também para além desse prazo) junto do Tribunal. Em qualquer dos casos, a demora de mais de um ano é imputável à Administração e deriva da prática de acto ilegal: ou porque tardou a dar razão ao contribuinte ou porque não lha deu e veio a revelar-se que o devia ter feito. Nestes casos, o direito de indemnização deriva da prática de acto ilegal e não do incumprimento de um prazo procedimental para os serviços decidirem favoravelmente a pretensão do contribuinte, já que o prazo de um ano fixado nesse normativo nem sequer coincide com o prazo de quatro meses que a LGT fixa para a emissão de decisão (art. 57.º, n.º 1)”
94. No presente caso, a liquidação (autoliquidação) ocorreu em 28-06-2013 - ou, se considerarmos da liquidação decorrente de declaração de substituição em 13-04-2016 – tendo o pedido de revisão oficiosa sido apresentado em 26-06-2019. Ao abrigo da norma citada, os juros indemnizatórios são devidos a partir de um ano após a apresentação do pedido de revisão oficiosa da liquidação, isto é, a partir de 20-06-2020, devendo ser contados nos termos do disposto no artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
III. Decisão.
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, o Tribunal Arbitral decide:
a) Julgar improcedente a exceção invocada pela Requerida relativa à incompetência material do tribunal arbitral;
b) Julgar o procedente o pedido de declaração de ilegalidade da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa da liquidação;
c) Julgar procedente o pedido de declaração de ilegalidade da liquidação de IRC identificada nos autos, determinando a sua reforma com base da taxa de 21%, com a consequente anulação parcial e restituição da importância a mais cobrada, acrescida dos correspondentes juros indemnizatórios contados nos termos legais.
Valor do processo: € 53 052,10.
Custas: Ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, e nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixo o montante das custas em € 2 142,00, a cargo da Requerida (artigo 536.º, n.º 3, segunda parte, do CPC).
Lisboa, 22 de agosto de 2020,
O árbitro, Álvaro Caneira.