Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 617/2019-T
Data da decisão: 2020-08-28  IVA  
Valor do pedido: € 117.622,46
Tema: IVA – Inversão do sujeito passivo; Duplicação de colecta; Vícios da reclamação graciosa.
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Acordam os Árbitros José Pedro Carvalho (Árbitro Presidente), Hélder Faustino e Cristina Coisinha, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem Tribunal Arbitral, no seguinte:

 

DESPACHO ARBITRAL

 

                Nas suas alegações de direito, o Requerente peticiona, ao abrigo do artigo 16.º, alíneas c) e e) do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que este Tribunal Arbitral oficie às construtoras C... e D... (ou os seus sucessores legais) para virem juntar aos presentes autos provas documentais adicionais que atestem que estas entidades efetivamente procederam à entrega ao erário público do IVA que liquidaram ao Requerente em virtude dos serviços de construção civil realizados em regime de empreitada.

                Conforme o Requerente aponta, o Tribunal Arbitral dispõe de autonomia na condução do processo e na determinação das diligências de produção de prova necessárias para a descoberta da verdade material.

                No exercício desse poder dever, o Tribunal Arbitral deve ponderar a utilidade previsível das diligências a efectuar, bem como o respectivo enquadramento e adequação na tramitação processual verificada.

                No caso, o que se verifica é que o processo se encontra em fase de elaboração de decisão final, tendo sido produzidas alegações finais por ambas as partes.

                No decurso da tramitação processual, foi facultada ao Requerente a possibilidade de diligenciar, nos termos que tivesse por convenientes, no sentido de recolher os elementos probatórios ora em questão.

                Por outro lado, cumpre ter presente que o Tribunal Arbitral apenas dispõe de poderes de autoridade na condução da relação processual entre as partes, e sobre qualquer outro tipo de relações jurídicas nem, muito menos, sobre terceiros.

                Quer isto dizer que as entidades indicadas pelo Requerente, não têm qualquer dever de corresponder a qualquer solicitação que o Tribunal Arbitral lhes dirija, nem, correspondentemente, dispõe este Tribunal de quaisquer meios para compelir tais entidades terceiras a fornecer a documentação, no caso, pretendida pelo Requerente.

                Deste modo, ponderada a utilidade potencial da diligência requerida, à luz do estado actual da tramitação processual, ao abrigo do disposto nos artigos 16.º/c) e e), e 29.º/2, ambos do RJAT, indefere-se a diligência sugerida pelo Requerente e ora em apreço.

 

***

 

DECISÃO ARBITRAL

 

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 19 de Setembro de 2019, A... – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO, NIPC..., com sede na Rua ..., n.º ..., ..., ...-... Lisboa, representado pela sociedade gestora B...– Sociedade Gestora de Fundos de Investimento Imobiliário, S.A., NIPC..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade do acto de liquidação adicional de IVA n.º 2018..., dos períodos 201409T e 201412T, no valor de € 117.622,46, assim como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019...que teve o referido acto de liquidação como objecto.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:

i.             o Requerente (assim como a C... e a D...) limitou-se a seguir as regras ditadas pela Directiva IVA, pelo Código do IVA e pela própria AT no que respeita à aplicação da regra da inversão do sujeito passivo prevista para a aquisição de serviços de construção civil, em regime de empreitada;

ii.            quando contratou as empreitadas aqui postas em causa junto dos fornecedores  D...e C..., era um sujeito passivo totalmente isento de IVA e, nesse sentido, não se encontrava verificada uma das condições (adquirente ser um sujeito passivo do IVA em Portugal que aqui pratique operações que confiram, total ou parcialmente, o direito à dedução do IVA) de que depende a aplicação da regra de inversão aos serviços de construção civil adquiridos em regime de empreitada;

iii.           quando os serviços de construção civil começaram a ser executados e facturados pelos fornecedores D... e C..., o Requerente continuava a ser um sujeito passivo totalmente isento de IVA, pelo que, nesses momentos, o Requerente também não cumpria todas as condições subjacentes à aplicação da regra de inversão aos serviços de construção civil adquiridos em regime de empreitada;

iv.           a circunstância de, na vigência dos contratos de empreitada, durante a execução dos serviços de construção civil acordados e após terem sido emitidas algumas facturas, o Requerente ter iniciado um novo ramo de actividade, passando assim a ser, do ponto de vista do seu enquadramento em sede de IVA, um sujeito passivo misto, não poderá implicar qualquer mudança no que tange aos moldes e à responsabilidade de liquidação do IVA incidente sobre tais serviços, já que a regra da inversão do sujeito passivo abrange necessariamente a universalidade da facturação relacionada com uma obra;

v.            esta é a única interpretação possível e plausível a conferir ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Código do IVA, e a que melhor respeita o princípio da legalidade fiscal e as regras da hermenêutica;

vi.           deverá ser julgada inconstitucional, por estar em violação dos artigos 103.º, n.ºs 2 e 3, e 104, n.º 4, todos da CRP, a norma (nos moldes em que a mesma é pugnada pela AT) que se possa retirar da interpretação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Código do IVA, da qual resulte uma regra de incidência tributária subjectiva que imponha a aplicação da inversão do sujeito passivo a um adquirente de serviços de construção civil, relativamente a uma parte de uma obra realizada em regime de empreitada, a partir do momento em que o mesmo passou a praticar, ainda que em parte, operações sujeitas a IVA e dele não isentas;

vii.          a Lei, nos moldes em que foi estipulada pelo legislador (europeu e nacional), não conferiu qualquer margem de discricionariedade à AT quanto às consequências a aplicar em virtude da não observância da regra da inversão do sujeito passivo, nos casos da aquisição de serviços de construção civil, em regime de empreitada;

viii.         à luz dos artigos 2.º, n.º 1, alínea c), e do 19.º, n.º 8, do Código do IVA, nos casos em que seja obrigatória a aplicação da inversão do sujeito passivo e esta não seja respeitada, o fornecedor que liquide IVA na factura fica obrigado, enquanto sujeito passivo, a entregá-lo ao Estado, ao passo que o adquirente, também na qualidade de sujeito passivo, não pode deduzir o IVA indevidamente liquidado;

ix.           através da conjugação de ambas as normas e conforme reconhecido pela AT, fica de igual modo assegurada a eficácia do mecanismo legal da inversão do sujeito passivo e, por essa via, alcança-se o propósito deste mecanismo que é o de prevenir e evitar casos de fraude e evasão fiscal;

x.            a solução preconizada pela AT de simplesmente vir liquidar o imposto em dobro ao Requerente após a sua entrega ao Estado pelos fornecedores, é ilegal (porquanto não encontra qualquer suporte nos artigos 2.º e 19.º, do Código do IVA), é violadora dos princípios basilares do IVA, designadamente dos princípios da legalidade, da neutralidade e da igualdade (nas suas vertentes de uniformidade de tratamento do IVA e o da eliminação das distorções da concorrência, onde elas possam existir) e constitui uma violação clara da proibição do enriquecimento ilegítimo do Estado.

xi.           esta solução é, de resto, particularmente grave num caso em que todas as facturas analisadas pela AT remontam ao período entre Setembro e Dezembro de 2014 e, em consequência, os prazos de regularização dessas facturas, em conformidade com os artigos 78.º, n.º 3, e 98.º, n.º 2, do Código do IVA encontram-se totalmente ultrapassado;

xii.          sempre deverá ser julgada inconstitucional, por estar em violação dos artigos 8.º, n.º 4, 18.º, n.º 2, e 103.º, n.º 3, e 104, n.º 4, todos da CRP, a norma (nos moldes em que a mesma é pugnada pela AT) que se possa retirar da interpretação conjugada do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas c) e j), e 19.º, n.º 8, 78.º, n.º 3, e 98, n.º 2, todos do Código do IVA, da qual resulte que a um sujeito passivo adquirente de serviços de construção civil, em regime de empreitada, que tenha entregue aos seus fornecedores o IVA que lhe foi liquidado por estes e não tenha deduzido esse mesmo imposto, possa ser exigido, em duplicado, o pagamento desse mesmo imposto incidente sobre o mesmo facto tributário, sempre que não haja evidência da ocorrência de qualquer situação de fraude ou evasão fiscal e o sujeito passivo adquirente não tenha possibilidade de regularizar o IVA liquidado pelos seus fornecedores;

xiii.         a situação ora em apreciação configura um caso de uma verdadeira duplicação de colecta, ilícita e ilegal, tal como é esta é configurada no artigo 205.º, do CPPT, dado que decorre da matéria de facto tida como provada que se encontram verificados todos os requisitos aí enunciados;

xiv.         o Requerente satisfez em pleno o ónus da prova que impendia sobre si, à luz das regras postuladas no artigo 74.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, carreando para os autos todos os elementos que teve possibilidade de obter, colaborando com a AT no esclarecimento e comprovação dos factos tributários relevantes à boa decisão da causa e à descoberta da verdade material;

xv.          o Requerente cumpriu, de forma perfeita e em linha com os mandamentos normativos, o ónus da prova que sobre ele recaía relativamente ao facto de os fornecedores D... e C.. terem entregue o IVA ao Estado, requerendo à AT, sucessivamente, que confirmasse ou refutasse este facto;

xvi.         sempre caberia à AT (querendo) cumprir as regras de ónus da prova que (também) recaem sobre si, pelo que, estando em posse dos elementos de prova desse facto (desde logo, declarações periódicas entregues pelos fornecedores e comunicações efetuadas pelos fornecedores

 relativamente aos elementos das faturas), deveria ter apresentado provas que, no limite, contrariassem o postulado pelo Requerente em relação a este mesmo tema;

xvii.        a AT revelou ao longo de todo o procedimento tributário (e, também, nestes autos), uma manifesta ausência de vontade em colaborar com o Requerente (e, também com este Tribunal Arbitral), não se movendo pelo cumprimento da lei (nomeadamente do disposto nos artigos 58.º e 74.º, da LGT), pela satisfação do interesse público e pela descoberta da verdade material;

xviii.       a AT já teve oportunidade – quer durante o procedimento tributário, quer no decurso destes autos arbitrais – de demonstrar que o imposto liquidado pelos fornecedores ao Requerente não fora (hipoteticamente) entregue ao Estado.

 

3.            No dia 21-09-2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 08-11-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 10-12-2019.

 

7.            No dia 28-01-2020, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 03-03-2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT, onde foram inquiridas as testemunhas, no acto, apresentadas pela Requerente.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.

 

11.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir

 

II. DECISÃO

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O Requerente é um organismo de investimento colectivo que consiste num fundo de investimento imobiliário fechado de distribuição, constituído por subscrição particular, gerido pela B...– Sociedade Gestora de Fundos de Investimento, S.A.

2-            O Requerente foi constituído em 12-12-2006, através de deliberação do Conselho Directivo da CMVM, em consonância com o disposto no Decreto-Lei n.º 60/2002, de 20 de Março, o qual veio estabelecer o regime jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliário.

3-            Este fundo tem como objectivo “(...) alcançar, numa perspetiva de longo prazo, uma valorização satisfatória do capital, através da constituição e gestão de uma carteira diversificada de ativos, predominantemente imobiliários, nos termos e segundo as regras previstas neste Regulamento, e baseado em critérios de prudência, estabilidade, escolha criteriosa e rentabilidade, de forma a acautelar e valorizar os interesses dos participantes”.

4-            O Requerente encontra-se enquadrado com o CAE 64201 – “actividades das sociedades gestoras de participações sociais financeiras”.

5-            Desde a sua constituição em 12-12-2006 até ao dia 09-09-2014, o Requerente esteve enquadrado, em sede de IVA, no regime de isenção previsto no artigo 9.º do CIVA, dado apenas praticar operações activas isentas que não conferiam direito à dedução.

6-            A partir de 10-09-2014, o Requerente passou a estar enquadrado no regime normal de periodicidade trimestral, por passar a realizar simultaneamente operações que conferem direito à dedução e operações isentas nos termos dos n.ºs 29 e 30 do artigo 9.º do CIVA.

7-            Durante o ano de 2014, a actividade do Requerente consistiu na aquisição e reconstrução de imóveis para subsequente venda ou arrendamento e subarrendamento de fracções para fins habitacionais.

8-            Em 2014, o Requerente celebrou um contrato de empreitada com a empresa de construção civil “D..., Lda.”, no âmbito do qual foi contratada a prestação dos seguintes trabalhos:

a)            Empreitada de reabilitação do prédio da Rua ...  ... a ... e ... ... a ...; e

b)           Empreitada de reabilitação do prédio na Rua ... ... a ... e Rua ... ... .

9-            O Requerente celebrou um contrato de empreitada com a empresa de construção civil “C..., Lda.”, no âmbito do qual foi contratada a prestação dos seguintes trabalhos:

a)            Empreitada de construção e instalação técnicas do edifício sito na Rua ..., ...; e

b)           Empreitada de construção e instalação técnicas do edifício na Rua ..., ... a ... .

10-         Nas datas da celebração dos contratos de empreitada com a D... e a C..., o Requerente era um sujeito passivo isento para efeitos de IVA.

11-         Os imóveis em causa foram alienados com isenção de IVA ao abrigo do n.º 30 do artigo 9.º do CIVA.

12-         Por opção contratual e comercial do Requerente e da D... e C..., a facturação e os pagamentos dos serviços de empreitada de construção civil foram efectuados de uma forma faseada no tempo.

13-         A “D..., Lda.” e a “C..., Lda.” emitiram periodicamente as facturas relativas à parte correspondente dos serviços prestados, tendo em conta os autos de medição aos trabalhos que iam sendo realizados nos bens imóveis acima mencionados, e liquidaram o respectivo IVA.

14-         A D... e C... usaram programas de facturação certificados pela AT para emitir as facturas respeitantes aos serviços de construção civil por estes prestados ao Requerente.

15-         O IVA que ia sendo liquidado pela “D..., Lda.” e pela “C..., Lda.” e suportado pelo Requerente não foi por este deduzido.

16-         Durante todo o período de duração dos contratos de empreitada celebrados pelo Requerente com a D... e a C..., o procedimento de facturação seguido por estes fornecedores manteve-se inalterado, pelo que estes continuaram a emitir facturas com liquidação do IVA sem aplicarem a regra da inversão do sujeito passivo.

17-         Todas as facturas que foram emitidas pela “D..., Lda.” e pela “C..., Lda.” foram integralmente pagas pelo Requerente.

18-         O Requerente foi objecto de uma acção inspectiva externa, de âmbito parcial, em sede de IVA e IRC, ao exercício de 2014, credenciada pela Ordem de Serviço n.º OI2017... .

19-         No decorrer da acção inspectiva, o Requerente foi contactado pela AT através de e-mail datado de 30-10-2018, nos termos do qual foram enunciadas as seguintes situações:

a)            “Falta de liquidação de IVA nas facturas do fornecedor D...”;

b)           “Falta de liquidação de IVA nas facturas do fornecedor C...”;

c)            “Operações isentas não declaradas”.

20-         No e-mail enviado pela AT ao Requerente, a AT comunicou ao Requerente que poderia:

a)            Proceder à regularização voluntária das situações acima descritas, nas declarações periódicas alusivas aos períodos de 201409T e 201412T; e

b)           Apresentar pedido de redução de coima.

21-         No decurso da acção inspectiva, em 14-11-2018, o Requerente procedeu à entrega das declarações periódicas de substituição n.º ... e n.º..., respeitantes ao período de 201409T e 201412T, respectivamente, regularizando a sua situação tributária.

22-         O Requerente procedeu ao pagamento do montante apurado na sequência da entrega das referidas declarações de substituição.

23-         Em 04-12-2018, através do Ofício n.º..., de 03-12-2018, o Requerente foi notificado do Relatório de Inspecção Tributária.

24-         Em 13-03-2019, o Requerente apresentou reclamação graciosa contra as autoliquidações de IVA efectuadas nas declarações de substituição alusivas aos períodos de 201409T e 201412T.

25-         Em 17-05-2019, o Requerente foi notificado da proposta de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e para, querendo, exercer direito de audição.

26-         Em 30-05-2019, o Requerente exerceu direito de audição.

27-         Em 21-06-2019, o Requerente foi notificado da decisão final de indeferimento da reclamação graciosa n.º ...2019... .

28-         Não se conformando com a decisão de indeferimento da reclamação graciosa, o Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.

A.2. Factos dados como não provados

1-            Que os fornecedores do Requerente “D..., Lda.” e “C..., Lda.” entregaram nos cofres do Estado o IVA por si liquidado ao Requerente.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, bem como a prova testemunhal produzida, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.

O facto dado como não provado deve-se à insuficiência da prova produzida a seu respeito.

O ónus da prova do facto em questão incumbia ao Requerente, dado ser o mesmo que o alega e dele pretende retirar efeitos jurídicos, estando em causa, nos presentes autos de processo arbitral a apreciação da legalidade de um acto de auto-liquidação, e não de um acto de liquidação praticado pela AT.

O Requerente não logrou apresentar qualquer prova documental que evidenciasse o pagamento ao Estado do imposto que lhe foi liquidado, pretendendo que tal prova se considerasse feita por duas vias.

Em primeiro lugar, na perspectiva do Requerente, não só tal pagamento não foi negado pela AT, como o teor da decisão de indeferimento da reclamação graciosa evidenciaria que tal pagamento teria sido feito.

Ora, nem a AT tinha qualquer dever ou obrigação de negar tal pagamento, porquanto, conforme se verá de seguida, não se trata de um facto do seu conhecimento pessoal, como as expressões das quais o Requerente pretende retirar o reconhecimento da ocorrência de tal pagamento são descontextualizadas, e não revelam concludentemente tal ocorrência, verificando-se, antes, que se trata de semântica retirada do Ac. do STA de 27-02-2013, proferido no processo 01079/12.

Em segundo lugar, pretende o Requerente que, por força da aplicação do disposto no art.º 74.º, n.º 2 da LGT, se deveria considerar feita a prova do pagamento em causa.

Todavia, nos termos da norma referida, para que a estatuição da mesma opere é necessário:

- que os elementos de prova dos factos estejam em poder da administração tributária; e

- que o interessado tenha procedido à sua correcta identificação.

Ora, no caso, ressalvado o respeito devido, nem uma nem outra das referidas condições se verifica.

Assim – e tal será um facto notório – as declarações periódicas de IVA entregues pelos contribuintes e, no que para o caso interessa, pelos fornecedores do Requerente, à AT, não permitem discriminar a que facturas correspondem os montantes de imposto liquidado, pelo que não se pode concluir que os elementos de prova dos factos estejam em poder da administração tributária.

Por outro lado, e precisamente pelo que vem de se referir, o Requerente não procedeu sua correcta identificação dos elementos de prova que estariam em poder da administração tributária, limitando-se a referir, genericamente, que a AT teria em seu poder prova documental do pagamento do imposto em causa nos presentes autos pelos seus fornecedores, sem indicar, especificamente, que documentos seriam esses.

Face ao exposto, não é possível a este Tribunal Arbitral considerar provado, para lá da dúvida razoável, que o pagamento de imposto em questão haja ocorrido, devendo tal dúvida, por força das regras do ónus da prova, ser resolvida em sentido desfavorável ao Requerente.

 

B. DO DIREITO

 

                Conforme resulta do ponto 2 do Relatório da presente decisão arbitral o Requerente alega vários e diversos fundamentos para sustentar a procedência do pedido arbitral por si formulado, passando-se, então à apreciação dos mesmos.

 

*

Começa então o Requerente por arguir que (assim como a C... e a D...) limitou-se a seguir as regras ditadas pela Directiva IVA, pelo Código do IVA e pela própria AT no que respeita à aplicação da regra da inversão do sujeito passivo prevista para a aquisição de serviços de construção civil, em regime de empreitada, já que quando contratou as empreitadas aqui postas em causa junto dos fornecedores D... e C..., era um sujeito passivo totalmente isento de IVA e, nesse sentido, não se encontrava verificada uma das condições (adquirente ser um sujeito passivo do IVA em Portugal que aqui pratique operações que confiram, total ou parcialmente, o direito à dedução do IVA) de que depende a aplicação da regra de inversão aos serviços de construção civil adquiridos em regime de empreitada.

Mais salienta o Requerente que quando os serviços de construção civil começaram a ser executados e facturados pelos fornecedores D... e c..., o Requerente continuava a ser um sujeito passivo totalmente isento de IVA, pelo que, nesses momentos, o Requerente também não cumpria todas as condições subjacentes à aplicação da regra de inversão aos serviços de construção civil adquiridos em regime de empreitada e que a circunstância de, na vigência dos contratos de empreitada, durante a execução dos serviços de construção civil acordados e após terem sido emitidas algumas facturas, o Requerente ter iniciado um novo ramo de actividade, passando assim a ser, do ponto de vista do seu enquadramento em sede de IVA, um sujeito passivo misto, não poderá implicar qualquer mudança no que tange aos moldes e à responsabilidade de liquidação do IVA incidente sobre tais serviços, já que a regra da inversão do sujeito passivo abrange necessariamente a universalidade da facturação relacionada com uma obra.

Para o Requerente esta é a única interpretação possível e plausível a conferir ao disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Código do IVA, e a que melhor respeita o princípio da legalidade fiscal e as regras da hermenêutica,  devendo ser julgada inconstitucional, por estar em violação dos artigos 103.º, n.ºs 2 e 3, e 104, n.º 4, todos da CRP, a norma (nos moldes em que a mesma é pugnada pela AT) que se possa retirar da interpretação do disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Código do IVA, da qual resulte uma regra de incidência tributária subjectiva que imponha a aplicação da inversão do inversão do sujeito passivo a um adquirente de serviços de construção civil, relativamente a uma parte de uma obra realizada em regime de empreitada, a partir do momento em que o mesmo passou a praticar, ainda que em parte, operações sujeitas a IVA e dele não isentas.

Sublinha, por fim, o Requerente que a Lei, nos moldes em que foi estipulada pelo legislador (europeu e nacional), não conferiu qualquer margem de discricionariedade à AT quanto às consequências a aplicar em virtude da não observância da regra da inversão do sujeito passivo, nos casos da aquisição de serviços de construção civil, em regime de empreitada.

                Relativamente a esta questão, julga-se não assistir razão ao Requerente.

                Com efeito, o artigo 2.º, n.º 1, alínea j), do Código do IVA aplicável, trata apenas da delimitação subjectiva da sujeição à obrigação de imposto.

                De acordo com a mesma, e no que para o caso importa, serão sujeitos passivos de imposto as pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) do mesmo número, que cumpram cumulativamente as seguintes condições:

a)            disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional;

b)           que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto; e

c)            que sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subempreitada.

Ou seja: o que determina a norma em questão é que:

i.             enquanto não se preencherem os requisitos nela elencados, as pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) do mesmo número 1 do artigo 2.º do CIVA aplicável, não serão passivos de imposto relativamente às operações objectivamente (nos termos do artigo 1.º do CIVA) sujeitas em que sejam intervenientes, na pendência de tal situação;

ii.            a partir do momento em que se preencherem os requisitos nela elencados, as pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) do mesmo número 1 do artigo 2.º do CIVA aplicável, serão passivos de imposto relativamente às operações objectivamente (nos termos do artigo 1.º do CIVA) sujeitas em que sejam intervenientes, na pendência de tal situação.

Não dispõe, nem é função do artigo 2.º, n.º 1, e no que para o caso releva, al. j), determinar em que momento se devem considerar praticadas as operações objectivamente (nos termos do artigo 1.º do CIVA) sujeitas.

Essa função é executada pelo art.º 7.º do CIVA, que regula a determinação do momento em que se consuma o facto gerador do imposto, nos termos ali melhor discriminados.

É à luz dessa norma que cumprirá aferir o momento em que ocorre uma operação objectivamente sujeita a imposto e, a partir daí, quem é o sujeito passivo do mesmo.

Assim, para aferir o momento em que se gera a obrigação de imposto será irrelevante o conceito de adquirente do serviço, empregue na al. j) do n.º 1 do art.º 2.º, conceito esse que relevará unicamente para aferir quem é o sujeito passivo daquele referida obrigação.

Ou seja, e concretizando, é no momento em que, nos termos daquele art.º 7.º do CIVA, resultar que ocorreu uma operação objectivamente sujeita a imposto, que cumprirá apurar, numa situação reconduzível, no que para o caso importa, à al. j) do n.º 1 do art.º 2.º, quem é, nesse mesmo momento, o adquirente dos serviços, independentemente de essa qualidade de adquirente ter-se consumado nesse momento, ou em momento anterior.

Pelo exposto, e como é bom de ver, não é a ocorrência da qualidade de adquirente que gera a obrigação de imposto, o que resulta claro, julga-se, da circunstância de um pessoa singular ou colectiva poder assumir essa qualidade, e nunca se vir a gerar aquela obrigação, desde logo por não chegarem a ser efectivamente prestados os serviços adquiridos.

Deste modo resultará claro, julga-se igualmente, que não é aquela sobredita norma do art.º 2.º/1/j) do CIVA, mas as normas que integram o art.º 7.º do CIVA, que impõem a aplicação do regime da inversão do sujeito passivo a um adquirente de serviços de construção civil, relativamente a uma parte de uma obra realizada em regime de empreitada, a partir do momento em que o mesmo passou a praticar, ainda que em parte, operações sujeitas a IVA e dele não isentas.

De resto, o raciocínio exposto é válido para qualquer um dos três pressupostos cumulativos exigidos pelo referido art.º 2.º/1/j), atrás já elencados. Assim, e por exemplo, se determinada empreitada for contratada por, e durante determinado período de tempo, facturada a, determinada pessoa singular ou colectiva que não reúna aqueles referidos pressupostos, mas, a partir de determinado momento, àquela primitiva pessoa suceder uma outra que preencha a totalidade desses pressupostos, passará, a partir daí, a vigorar o regime da inversão do sujeito passivo, ao contrário do que ocorreria se se subscrevesse a interpretação propugnada pelo Requerente.

Deste modo, e pelo exposto, não se verifica a ilegalidade arguida pelo Requerente, e ora em apreço, nem as inconstitucionalidades por aquele, a tal respeito, arguidas.

 

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                Seguidamente, prossegue o Requerente alegando que à luz dos artigos 2.º, n.º 1, alínea c), e do 19.º, n.º 8, do Código do IVA, nos casos em que seja obrigatória a aplicação da inversão do sujeito passivo e esta não seja respeitada, o fornecedor que liquide IVA na factura fica obrigado, enquanto sujeito passivo, a entregá-lo ao Estado, ao passo que o adquirente, também na qualidade de sujeito passivo, não pode deduzir o IVA indevidamente liquidado e que através da conjugação de ambas as normas e conforme reconhecido pela AT, fica de igual modo assegurada a eficácia do mecanismo legal da inversão do sujeito passivo e, por essa via, alcança-se o propósito deste mecanismo que é o de prevenir e evitar casos de fraude e evasão fiscal.

                No entanto, considera o Requerente que a solução preconizada pela AT de simplesmente liquidar o imposto em dobro ao Requerente após a sua entrega ao Estado pelos fornecedores, é ilegal (porquanto não encontra qualquer suporte nos artigos 2.º e 19.º, do Código do IVA), é violadora dos princípios basilares do IVA, designadamente dos princípios da legalidade, da neutralidade e da igualdade (nas suas vertentes de uniformidade de tratamento do IVA e o da eliminação das distorções da concorrência, onde elas possam existir) e constitui uma violação clara da proibição do enriquecimento ilegítimo do Estado.

Acrescenta o Requerente que esta solução é particularmente grave num caso em que todas as facturas analisadas pela AT remontam ao período entre Setembro e Dezembro de 2014 e, em consequência, os prazos de regularização dessas facturas, em conformidade com os artigos 78.º, n.º 3, e 98.º, n.º 2, do Código do IVA encontram-se totalmente ultrapassado, pelo que sempre deverá ser julgada inconstitucional, por estar em violação dos artigos 8.º, n.º 4, 18.º, n.º 2, e 103.º, n.º 3, e 104, n.º 4, todos da CRP, a norma (nos moldes em que a mesma é pugnada pela AT) que se possa retirar da interpretação conjugada do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alíneas c) e j), e 19.º, n.º 8, 78.º, n.º 3, e 98, n.º 2, todos do Código do IVA, da qual resulte que a um sujeito passivo adquirente de serviços de construção civil, em regime de empreitada, que tenha entregue aos seus fornecedores o IVA que lhe foi liquidado por estes e não tenha deduzido esse mesmo imposto, possa ser exigido, em duplicado, o pagamento desse mesmo imposto incidente sobre o mesmo facto tributário, sempre que não haja evidência da ocorrência de qualquer situação de fraude ou evasão fiscal e o sujeito passivo adquirente não tenha possibilidade de regularizar o IVA liquidado pelos seus fornecedores.

Também esta alegação da Requerente deverá improceder.

Efectivamente, face aos factos dados como provados e não provados, não se apura que, ao contrário do que postula o Requerente, o imposto tenha sido entregue ao Estado pelos seus fornecedores, em causa nos autos.

Assim, desfalecendo este pressuposto fundamental da alegação do Requerente, não poderá a mesma proceder, incluindo no que à arguida inconstitucionalidade diz respeito.

 

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Seguidamente, considera o Requerente que a situação ora em apreciação configura um caso de uma verdadeira duplicação de colecta, ilícita e ilegal, tal como é esta é configurada no artigo 205.º, do CPPT, dado que decorre da matéria de facto tida como provada que se encontram verificados todos os requisitos aí enunciados.

Todavia, como resulta do Acórdão do STA de de 27-02-2013, proferido no processo 1079/12, citado pela Requerida nas suas alegações:

“I – Por aplicação das regras gerais, o prestador de serviços é o sujeito passivo de IVA, mas nas denominadas situações reversão da dívida tributária ou inversão da sujeição ou do sujeito passivo (reverse charge) o adquirente dos serviços ou dos bens torna-se o sujeito passivo do imposto pela respectiva aquisição, devendo proceder, em conformidade, à liquidação do imposto, sendo-lhe atribuído o direito à dedução do IVA pago pela aquisição dos serviços.

II – A duplicação da colecta, prevista no art. 205º do CPPT, resulta da aplicação do mesmo preceito legal mais do que uma vez ao mesmo facto tributário ou situação tributária concreta, sendo que a não exigência de segundo pagamento, a que a invocação da duplicação de colecta se reconduz, apenas se pode justificar se o primeiro era devido, pois, se não o foi, o que foi pago poderá ser ulteriormente reembolsado, através dos meios adequados de impugnação e revisão do acto tributário e, numa situação desse tipo, não se justifica que se prescinda do segundo pagamento, que é efectivamente devido.”.

Ora, os tribunais em geral, e também os tribunais arbitrais, julga-se, estão vinculados ao dever de ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (art.º 8.º/3 do Código Civil).

                Por outro lado, e nos termos do art.º 25.º/2 do RJAT, “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.”.

                Daí que uma decisão, na matéria sub iudice, que vá contra a jurisprudência firmada pelo STA na matéria, verificando-se, como se julga que se verifica, identidade fundamental dos factos e do direito a aplicar a este, entre o presente caso, e o já julgado pelo STA, seria, não só susceptível de recurso nos termos do referido art.º 25.º/2 do RJAT, como, com um elevado grau de probabilidade, passível de ser revogada por aquele Alto Tribunal.

                Assim, e em suma, não se crê que tivesse qualquer utilidade, pelo contrário (daria azo a tramitação processual adicional inútil e desnecessária), este Tribunal Arbitral concluir de outra forma que não a afirmada pelo STA.

                Acresce ainda que, como se viu já, não resultou provado que o imposto em causa tenha sido entregue duas vezes ao Estado, dado que não se provou que os fornecedores do Requerente tenham entregue o imposto que lhe liquidaram.

                Assim, e pelo exposto, deverá, também, improceder a alegação do Requerente, ora apreciada.

 

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                Por fim, alega o Requerente que satisfez em pleno o ónus da prova que impendia sobre si, à luz das regras postuladas no artigo 74.º, n.ºs 1 e 2, da LGT, carreando para os autos todos os elementos que teve possibilidade de obter, colaborando com a AT no esclarecimento e comprovação dos factos tributários relevantes à boa decisão da causa e à descoberta da verdade material e que cumpriu, de forma perfeita e em linha com os mandamentos normativos, o ónus da prova que sobre ele recaía relativamente ao facto de os fornecedores D... e C... terem entregue o IVA ao Estado, requerendo à AT, sucessivamente, que confirmasse ou refutasse este facto.

Para o Requerente sempre caberia à AT (querendo) cumprir as regras de ónus da prova que (também) recaem sobre si, pelo que, estando em posse dos elementos de prova desse facto (desde logo, declarações periódicas entregues pelos fornecedores e comunicações efetuadas pelos fornecedores relativamente aos elementos das faturas), deveria ter apresentado provas que, no limite, contrariassem o postulado pelo Requerente em relação a este mesmo tema, considerando que a AT revelou ao longo de todo o procedimento tributário (e, também, nestes autos), uma manifesta ausência de vontade em colaborar com o Requerente (e, também com este Tribunal Arbitral), não se movendo pelo cumprimento da lei (nomeadamente do disposto nos artigos 58.º e 74.º, da LGT), pela satisfação do interesse público e pela descoberta da verdade material.

Vejamos.

As alegações do Requerente ora em apreço, deverá notar-se desde logo, não respeitam a vícios do acto tributário objecto da presente acção arbitral, mas a vícios do procedimento de reclamação graciosa, que teve aquele como objecto.

Efectivamente, estando em causa na presente acção arbitral um acto de auto-liquidação, não foi o mesmo realizado pela AT, pelo que, no que ao mesmo diz respeito, não se podem configurar violações de normas procedimentais, como aquelas invocados pelo Requerente, já que o referido acto tributário não resulta de qualquer procedimento tributário encetado pela AT.

Daí que, como se apontou, a violação daquelas referidas normas pela AT, apenas se pode ocorrer no âmbito do procedimento de reclamação graciosa.

Ora, sucede que a decisão da reclamação graciosa apenas integra o objecto da presente acção arbitral na parte que incide sobre a legalidade da liquidação de imposto que lhes serviu de objecto, e não na parte que se reporte a vícios próprios de tal acto de decisão.

                Como explica Carla Castelo Trindade , “Esta é a primeira questão que deve ficar clara: o objecto do processo arbitral é o acto de liquidação (...)”.

                Prossegue a mesma Autora, esclarecendo que “os actos de segundo ou terceiro grau poderão sempre ser arbitráveis, na medida em que comportem, e só nessa medida, eles próprios, a (i)legalidade dos actos de liquidação em causa”.

                Decorrência do quanto se vem de expor, é que “não são arbitráveis os vícios próprios dos actos de indeferimento de reclamações graciosas, de recursos hierárquicos ou de pedidos de revisão do acto tributário porque escapam ao âmbito material da arbitragem tributária.” .

                Como exemplifica ainda a mesma Autora , integram-se nesses vícios próprios dos actos de segundo e terceiro grau, os vícios formais que os inquinem, incluindo a sua falta de fundamentação.

                Ou seja, e em suma, o artigo 2.º do RJAT toma como objecto da competência dos tribunais arbitrais, os actos primários (“actos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta”), sendo os actos secundários unicamente relevantes como elementos proporcionadores da tempestividade da pretensão impugnatória, como resulta do artigo 10.º, n.º  1, al. a) daquele Regime, onde se impõe que os pedidos de constituição de tribunal arbitral sejam apresentados no prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.º 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

                Daí que, em primeira linha, se esteja no presente processo a sindicar a legalidade do acto de auto-liquidação de IVA do Requerente (objecto directo da competência dos tribunais arbitrais), sendo a legalidade do acto secundário de decisão da reclamação graciosa – cuja função principal no processo arbitral tributário é a de garantir a tempestividade da impugnação arbitral do acto primário – meramente reflexa ou derivada da legalidade daquele.

                Deste modo, e pelo exposto, sendo o objecto da presente acção arbitral o acto de liquidação de IRC, e o acto de decisão da reclamação graciosa apenas e na medida em que incorpore a (i)legalidade daquele primeiro acto, não se incluindo aí, portanto, os vícios próprios de tal actos, incluindo a violação de normas relativas ao ónus da prova e ao princípio do inquisitório, não poderá este Tribunal pronunciar-se sobre esses vícios arguidos pela Requerente, no que diz respeito ao acto de decisão da reclamação graciosa, devendo concluir-se que o acto de autoliquidação de IVA do Requerente, objecto do presente processo arbitral, não enferma daqueles vícios arguidos pelo Requerente, improcedendo, por isso, o pedido arbitral também nesta parte.

 

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C. DECISÃO

Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente improcedente o pedido arbitral formulado e condenar o Requerente nas custas do processo, no montante abaixo fixado.

 

D. Valor do processo

Fixa-se o valor do processo em € 117.622,46, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.

 

E. Custas

Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pelo Requerente, uma vez que o pedido foi totalmente improcedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 28 de Agosto de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Pedro Carvalho)

 

O Árbitro Vogal

(Hélder Faustino)

 

O Árbitro Vogal                                          

(Cristina Coisinha)