DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 09 de outubro de 2019, A..., Lda., NIPC..., com sede na Rua ..., nº..., ..., ...-... Porto, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da liquidação adicional nº..., de Imposto sobre o Tabaco (IT), de 18/06/2019, no valor de € 29.746,00 e respetivos juros compensatórios, operada no «processo de cobrança a posteriori» nº...A –.../2019, pela Alfândega do Freixieiro. Requer ainda a condenação da Requerida à restituição do imposto e dos juros indemnizatórios.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
i. “ilegalidade resultante da violação do princípio da legalidade;
ii. ilegalidade por falta de fundamentação do ato.
iii. Ilegalidade por violação dos elementos sistemático e racional que devem presidir à interpretação das normas jurídicas.”
3. No dia 09-10-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, pelo que o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a ora signatária como árbitro do tribunal arbitral singular, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 29-11-2019, as partes foram notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a nomeação, pelo que esta se consolidou.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 02-01-2020.
7. No dia 02-01-2020, foi proferido despacho arbitral nos termos do disposto no artigo 17º do RJAT, fixando o prazo de 30 dias para resposta. A Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta em 05-02-2020, defendendo-se por impugnação. Em simultâneo juntou aos autos o respetivo processo administrativo.
8. No dia 17-02-2020 foi proferido despacho arbitral, devidamente notificado às partes, propondo a dispensa de realização da reunião prevista no artigo 18º do RJAT, uma vez que não se verifica divergência quanto à matéria de facto, não há prova a produzir e a questão a decidir configura-se como questão exclusivamente de direito. Na ausência de resposta o Tribunal presumiria a concordância das partes com a dispensa e promoveria a tramitação subsequente dos autos. No prazo fixado as partes nada disseram pelo que se presumiu a sua concordância.
9. No dia 18-03-2020, foi proferido despacho arbitral a dispensar a realização da reunião prevista no artigo 18º, na qual se fixou o prazo de 10 dias, igual e sucessivo, para as partes juntarem as suas alegações escritas.
10. Em 19-05-2020 a AT veio aos autos juntar as suas alegações, nas quais, sumariamente, reforça o já alegado em sede de resposta.
11. Considerando a situação de confinamento gerado pela pandemia COVID 19 e a legislação sobre a suspensão dos prazos em curso no âmbito dos processos judiciais e arbitrais, em 07-07-2020 foi proferido despacho arbitral, com o seguinte teor:
“Considerando o teor do Despacho arbitral proferido em 18-03-2020, o prazo para prolação da decisão arbitral conforme o disposto no artigo 21º, nº 2 do RJAT e a posterior suspensão dos prazos, operada a partir de 09/03/2020, nos termos da Lei nº1-A/2020 de 19 de março, com as alterações introduzidas pela Lei nº4-A/2020 de 6/04/22, resulta que a data limite para prolação da decisão arbitral, o próximo dia 24/09/2020, não obstante poder ser proferida antes dessa data.”
12. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
13. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
14. O processo não enferma de nulidades.
15. Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir decisão.
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
a) A Requerente é uma sociedade comercial por quotas, sediada no Porto, cuja atividade consiste na comercialização e introdução no mercado de produtos para cigarros eletrónicos.
b) No âmbito da sua atividade foi alvo de uma fiscalização “a posteriori”, realizada pela Alfândega do Freixieiro, com iniciou em 14/09/2018, procedimento OI 2018..., com o objetivo de proceder ao controlo dos produtos sujeitos a Imposto sobre o Tabaco (IT);
c) A ação de fiscalização incidiu sobre o período compreendido entre 01-01-2016 a 14-09-2018;
d) Resulta do ponto IV.B.1 do RIT que a Requerente comercializou produtos líquidos com nicotina para carga e recarga de cigarros eletrónicos, bem assim como, líquidos para cigarros eletrónicos, sem nicotina.
e) No ponto IV.B.1 do RIT consta o seguinte: “Note-se que a empresa no período em análise apresentou 41 declarações de introdução em livre prática relativas a cigarros electrónicos e líquidos para cigarros electrónicos, todos sem nicotina.”;
f) No Relatório da Inspeção Tributária (RIT) apurou-se, ainda, que a Requerente, adquiriu 12.106 unidades com 120 gramas de produto com o nome comercial ... e 1.440 unidades com 150 gramas de produto com o nome comercial ... GEL;
g) Estes produtos destinavam-se a ser fumados por meio de cachimbo de água, a fornecedores intracomunitários, tendo procedido à sua introdução no consumo em território nacional sem o pagamento do IT;
h) Na página 3 do RIT consta que os produtos em causa são constituídos por “substancias que, não sendo tabaco nem contendo nicotina se destinam a ser fumados em cachimbo de água;
i) A composição do produto designado por ... vem descrita no RIT como contendo Glicerol e Dióxido de Silício, podendo conter óleos, extratos aromatizados melaços ou açúcar e aromas de fruta;
j) O produto designado por ...GEL contém água destilada, aroma, corante, conservante e espessante;
k) Foram encontradas embalagens de amostras de líquidos que continham nicotina (amostras de produtos enviadas por fornecedores), cuja destruição foi solicitada pela Requerente à AT, pelo que não foi liquidado imposto sobre o tabaco quanto a estes produtos;
l) A IT considerou que as situações de aquisição intracomunitária e introdução no consumo em território nacional dos produtos mencionados em i) e j), que se destinam a ser fumados por meio de cachimbo de água, estão sobre a incidência objetiva de IT;
m) A Requerente foi regularmente notificada do Relatório Final Inspetivo e exerceu o seu direito de audição em 27-05-2019;
n) Em 18-06-2020 a AT emitiu a liquidação adicional de IT nº..., de 18-06-2020, no valor de € 29.746,09, de IT e juros;
o) Em 10/07/2019 a Requerente foi regularmente notificada da liquidação de imposto e respetivo prazo de pagamento;
p) A Requerente procedeu ao respetivo pagamento, por cheque datado de 10-07-2020, junto aos autos como documento nº3 em anexo ap pedido arbitral;
q) Em 08-10-2019 a Requerente apresentou o presente pedido de pronúncia arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, devendo selecionar os factos relevantes para a decisão, de modo a discriminar a matéria provada da não provada, como resulta do disposto no art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito, como resulta do disposto no artigo 596.º do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.
No caso em apreciação, considerando as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados. Foi tido em conta, em particular, a prova contida no PA e em concreto o RIT, considerando “o valor probatório do relatório da inspecção tributária (...) poderá ter força probatória se as asserções que do mesmo constem não forem impugnadas”.
Em suma, os factos provados constantes das alíneas a) a o) resultam da prova documental constante do PA, corroborada pelas versões das partes quanto à matéria de facto, nos respetivos articulados.
O facto constante da alínea p) resulta provado pelo documento nº3 junto em anexo ao pedido arbitral, não impugnado pela AT. O facto provado na alínea q) resulta do sistema de gestão processual do CAAD.
B. DO DIREITO
A questão a decidir é a de saber se os produtos descritos nas líneas f), i) e j) da matéria de facto provada estão ou não sujeitos a incidência de imposto sobre o tabaco (IT).
Como se viu já, para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, o seguinte:
i. violação do princípio da legalidade;
ii. falta de fundamentação do ato.
iii. violação dos elementos sistemático e racional que devem presidir à interpretação das normas jurídicas.
Vejamos, então, seguindo a ordem da alegação da Requerente no seu pedido arbitral, se tem ou não razão quanto às alegadas ilegalidades da liquidação.
- Da violação do princípio da legalidade
Está em causa a aplicação das normas de incidência do IT. A controvérsia existe apenas porque, no caso dos presentes autos, estão em causa dois produtos ... e ... GEL, destinados a serem fumados em cachimbo de água, os quais não contêm na sua composição nicotina, nem são derivados de tabaco.
Resulta provado nos autos que a inspeção reconhece que estes produtos não são tabaco e não contêm nicotina. Por dúvida, solicitam um parecer ao Diretor de Serviços dos Impostos Especiais sobre o Consumo e Imposto sobre Veículos, como consta do PA. Em resposta o Exmo. Senhor Diretor dos IECS e ISV informa que “reconhece a composição dos produtos (S/nicotina)” mas considera que “estes devem ser equiparados a tabaco para os efeitos previstos no artigo 101º, nº1, alínea d), nºs 7 e 12 do mesmo artigo.”
Verdadeiramente, esta é a questão a decidir. Este tipo de produtos está ou não sujeito a incidência de imposto sobre o tabaco?
A incidência do imposto sobre o tabaco está prevista no artigo 101.º do Código dos Impostos Especiais de Consumo (CIEC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 73/2010, de 21 de Junho, o imposto incide sobre o tabaco manufaturado.
Considerando que a fiscalização que deu origem à liquidação do imposto decorreu para os anos 2016 a 2018, importa verificar a versão da lei em vigor em 2016 e as eventuais alterações posteriores. Na versão em vigor em 2016, que se manteve sem alterações nas versões seguintes, relevantes para a decisão do caso, o artigo 101º do CIEC apresentava a seguinte redação:
“Artigo 101.º
Incidência objectiva
1- O imposto incide sobre o tabaco manufacturado, considerando-se como tal os seguintes produtos:
a) Os charutos e as cigarrilhas;
b) Os cigarros;
c) Os tabacos de fumar, compreendendo o tabaco de corte fino destinado a cigarros de enrolar e os restantes tabacos de fumar, com exclusão do tabaco para cachimbo de água;
d) O tabaco para cachimbo de água.
e) O rapé;
f) O tabaco de mascar;
g) O tabaco aquecido;
h) O líquido contendo nicotina, em recipientes utilizados para carga e recarga de cigarros eletrónicos.
2 - Para efeitos de aplicação da alínea a) do número anterior, são considerados charutos e cigarrilhas, se puderem ser fumados tal como se apresentam e se, tendo em conta as suas características e as expectativas normais dos consumidores, se destinarem exclusivamente a sê-lo:
a) (Revogada.)
b)Os rolos de tabaco revestidos de uma capa exterior em tabaco natural;
c) (Revogada.)
d) Os rolos de tabaco com um interior constituído por uma mistura de tabaco batido e revestidos de uma capa exterior, com a cor natural dos charutos, em tabaco reconstituído, abrangendo a totalidade do produto, incluindo, se for caso disso, o filtro, mas não a boquilha, no caso de charutos com boquilha, quando o seu peso unitário, sem filtro nem boquilha, for igual ou superior a 2,3 g e inferior a 10 g e o seu perímetro, em pelo menos um terço do comprimento, for igual ou superior a 34 mm.
3 - Os rolos de tabaco mencionados no número anterior são considerados cigarrilhas ou charutos, consoante o seu peso seja igual ou inferior a 3 g por unidade ou superior a 3 g por unidade, respetivamente.
4 - São equiparados a charutos e cigarrilhas os produtos constituídos parcialmente por substâncias que não sejam tabaco, mas que correspondam aos outros critérios definidos no número anterior.
5 - Para efeitos de aplicação da alínea b) do n.º 1, são considerados cigarros:
a) Os rolos de tabaco susceptíveis de serem fumados tal como se apresentam e que não sejam charutos ou cigarrilhas no sentido definido no n.º 2;
b) Os rolos de tabaco que, mediante uma simples manipulação não industrial, são introduzidos em tubos de papel de cigarro;
c) Os rolos de tabaco que, por simples manipulação não industrial, são envolvidos em folhas de papel de cigarro;
d) Um rolo de tabaco dos referidos nas alíneas anteriores é considerado, para efeitos de aplicação do imposto, como dois cigarros quando, sem filtro e sem boquilha, tenha um comprimento superior a 8 cm, sem ultrapassar 11 cm, como três cigarros quando, nas mesmas condições, tenha um comprimento superior a 11 cm, sem ultrapassar 14 cm, e assim sucessivamente.
6 - Para efeitos de aplicação da alínea c) do n.º 1, são considerados tabacos de fumar:
a) O tabaco cortado ou fraccionado de outra maneira, em fio ou em placas, susceptível de ser fumado sem transformação industrial posterior;
b) Os resíduos de tabaco acondicionados para venda ao público não abrangidos nos n.os 2 e 4 susceptíveis de serem fumados, considerando-se resíduos de tabaco os restos das folhas de tabaco e os subprodutos provenientes da transformação do tabaco ou do fabrico de produtos de tabaco;
c) O tabaco de corte fino destinado a cigarros de enrolar, conforme definido nas alíneas anteriores, relativamente ao qual mais de 25 % em peso das partículas tenha uma largura de corte inferior a 1,5 mm, ou superior a 1,5 mm e que tenha sido vendido ou se destine a ser vendido para cigarros de enrolar.
d) As folhas de tabaco destinadas a venda ao público.
7 - Para efeitos de aplicação da alínea d) do n.º 1, é considerado 'tabaco para cachimbo de água' o tabaco próprio para ser fumado exclusivamente num cachimbo de água e que consista numa mistura de tabaco e glicerol, podendo ainda conter óleos e extratos aromáticos, melaços ou açúcar e ser aromatizado com frutas.
8 - Para efeitos de aplicação da alínea e) do n.º 1, é considerado rapé o tabaco em pó ou em grão, especialmente preparado para ser cheirado, mas não fumado.
9 - Para efeitos de aplicação da alínea f) do n.º 1, é considerado tabaco para mascar o tabaco apresentado em rolos, barras, tiras, cubos ou placas, acondicionado para a venda ao público, especialmente preparado para ser mascado mas não fumado.
10 - Para efeitos de aplicação da alínea g) do n.º 1, é considerado tabaco aquecido o produto de tabaco manufaturado especialmente preparado para emitir um vapor sem combustão da mistura de tabaco nele contida.
11 - Para efeitos de aplicação da alínea h) do n.º 1, é considerado cigarro eletrónico o produto que pode ser utilizado para consumir vapor que contém nicotina, por meio de boquilha, ou qualquer componente desse produto, incluindo um cartucho, um reservatório e o dispositivo sem cartucho ou reservatório, podendo ser descartável ou recarregável através de uma recarga e de um reservatório, ou recarregado por cartucho não reutilizável.
12 - São equiparados aos cigarros, aos tabacos de fumar, ao tabaco para cachimbo de água, ao rapé, ao tabaco de mascar e ao tabaco aquecido os produtos constituídos, total ou parcialmente, por substâncias que, não sendo tabaco, obedeçam aos outros critérios definidos nos n.ºs 4 a 9, excetuando os produtos que tenham uma função exclusivamente medicinal.”
Tendo como referência a norma de incidência contida neste artigo 101º, nº1, concretamente, na sua alínea d), resulta que o imposto incide sobre o tabaco para cachimbo de água. Donde se extrai que o pressuposto legal para a incidência do imposto é que o produto em causa contenha na sua composição tabaco. Tanto é assim que o nº 7 do artigo 101º esclarece, ainda, o que se considera como tabaco para cachimbo de água, este sim sujeito a imposto.
À luz da letra e do espírito da lei (art. 101º do CIEC), está sujeito a imposto todo o tipo de tabaco, especificando o nº 7, a regra para a tributação do tabaco para cachimbo de água. Ora, o nº 7 do artigo 101º do CIEC que dispõe que:
“Para efeitos de aplicação da al. d), do nº 1, é considerado tabaco para cachimbo de água, o tabaco próprio para ser fumado exclusivamente num cachimbo de água e que consista numa mistura de tabaco e glicerol, podendo ainda conter óleos e extratos aromáticos, melaços ou açúcar e ser aromatizado com frutas”.
Posto isto, o regime de incidência resultante da norma do artigo 101º do CIEC não deixa margem para dúvida: está sujeito a imposto o tabaco para cachimbo de água, considerando-se como tal o produto que contenha uma mistura de tabaco com glicerol, podendo conter ainda outros elementos, sendo que o tabaco é o elemento base. Sem a presença deste produto (tabaco) não se verifica o pressuposto essencial para a incidência de IT.
O legislador definiu a norma de incidência de forma clara e precisa, considerando como sujeito a imposto a mistura que contenha tabaco e glicerol, podendo conter óleos e extratos aromáticos, melaços, açúcar e aromas de frutas. Para efeitos de incidência, só a mistura do tabaco com o glicerol é sujeita a IT. Todos os outros possíveis aditivos (incluindo o Glicerol) quando isolados da substância tabaco não configuram um produto suscetível de gerar incidência de imposto. O que vale por dizer que sem o elemento «tabaco» não pode haver incidência de IT, sob pena de ofender a tipicidade contida na norma de incidência.
Resta, ainda, analisar o disposto no nº 12 do referido artigo 101.º do CIEC que nos diz que são “equiparados aos cigarros, aos tabacos de fumar, ao tabaco para cachimbo de água, ao rapé, ao tabaco de mascar e ao tabaco aquecido os produtos constituídos, total ou parcialmente, por substâncias que, não sendo tabaco, obedeçam aos outros critérios definidos nos n.ºs 4 a 9, excetuando os produtos que tenham uma função exclusivamente medicinal.”
Ora, à luz do disposto nos nºs 4 a 9, do artigo 101º do CIEC, analisando os critérios aí estabelecidos, verifica-se que em todos os casos especificadamente previstos há um elemento recorrente, comum a todos, que é a referência a um determinado tipo de tabaco, pressuposto para a incidência do imposto. Dito de outro modo, o legislador ao remeter para os critérios definidos nos nºs 4 a 9 do artigo 101º, reforça a intenção de tributar qualquer tipo de tabaco, ao que equipara os produtos que consistam em mistura de tabaco com outros elementos, nomeadamente glicerol. Mas sempre terá de conter um qualquer tipo de tabaco ou mistura de tabaco com outros elementos para operar a incidência de imposto sobre o tabaco.
Neste enquadramento, releva que os produtos em questão no caso dos autos, de acordo com as respetivas fichas técnicas e conforme consta do RIT, não contêm tabaco ou nicotina e apresentam a seguinte composição:
a. Produto com a designação comercial de ..., composto por glicerol e dióxido de silício, podendo ainda conter óleos e extratos aromáticos, melaços ou açúcar e serem aromatizados com fruta, apresentado como “pedras de vapor”;
b. Produto com a designação de ... GEL, composto por glicerol, água destilada, aroma, corante, conservante e espessante, apresentado como “gel para shisha”.
Concluindo, nenhum dos produtos em causa preenche os pressupostos da norma de incidência objetiva. Não podemos considerar que por força do disposto no nº12 do artigo 101º do CIEC, estes produtos sejam alvo de incidência de IT, pois que não cumprem nenhum dos critérios previstos nos nºs 4 a 9 do mesmo normativo legal.
Chegados aqui, analisados todos os elementos de prova juntos aos autos e constantes do PA constata-se que a Inspeção teve dúvidas quanto à incidência de IT sobre os produtos em causa, pedindo orientações superiores. No seguimento desse pedido de informação surge uma orientação emanada do Exmº Sr. Diretor de Serviço dos Impostos Especiais sobre o consumo e Imposto sobre Veículos, a qual considera que se deve “estender a incidência aos produtos que se destinem a ser fumados por cachimbos de água” mesmo que não contenham tabaco.
Esta orientação, baseada na interpretação conjugada dos normativos referidos anteriormente, nomeadamente, do disposto no nº12 do artigo 101º e da remissão para os critérios contidos nos nºs 4 a 9, reconhece a necessidade de proceder a uma interpretação extensiva, senão mesmo criativa, do texto legal.
Pois bem, em matéria de incidência de imposto prevalece o princípio da legalidade fiscal, previsto no artigo 103º da CRP, do qual decorre, entre outros, o princípio da tipicidade tributária aplicável em sede de incidência tributária.
Refere a este propósito Diogo Leite Campos: “tem-se entendido, em Portugal, como na generalidade dos ordenamentos jurídicos ibero-americanos, que a principal garantia dos contribuintes residia no princípio da legalidade dos impostos, e nos seus corolários fundamentais, como a tipicidade, a igualdade e a não discriminação.”
No mesmo sentido afirma Paulo Marques que: “a segurança jurídica (tutela da confiança) e a legalidade tributária (reserva de lei) constituem assim dois alicerces indispensáveis na sustentação e na credibilidade do Estado de Direito. Uma consequência importante dos princípios jurídicos enunciados é justamente a tipicidade tributária (numerus clausus), também conhecida por princípio da determinação. Este implica que apenas podem ser tributados os factos previstos na lei. Logo, esta deve conter a totalidade dos elementos essenciais para a valoração dos factos e para a produção dos necessários efeitos jurídicos. A tipicidade corresponde a uma exigência de liberdade económica dos cidadãos e das empresas, balizando a actuação quotidiana do Fisco perante o contribuinte.”
Também os nossos Tribunais superiores têm vindo a seguir este entendimento, considerando que as normas de incidência devem ser interpretadas de acordo com os cânones gerais da interpretação das leis, mas que na interpretação dessas normas, o intérprete tem de considerar as exigências feitas ao legislador ordinário pelos princípios da legalidade e tipicidade tributárias. (…) Os conceitos de incidência têm de ser compreendidos pelo
ângulo da susceptibilidade de previsão objectiva por banda dos particulares da sua situação tributária, por isso constituir uma das dimensões do princípio da tipicidade fiscal. “
Por tudo o que vem exposto, considerando o disposto no nº2 do artigo 103.º da Constituição, que estabelece que os "impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes", acompanhando a doutrina e jurisprudência dominantes concluímos que do preceito constitucional resultam limites impostos ao legislador (reserva de lei formal) e ao intérprete (tipicidade). Impõe, nomeadamente, o respeito pelos limites expressos constantes da norma de incidência objetiva.
Não é aceitável, assim, um resultado interpretativo que, ao arrepio dos elementos da interpretação, frontalmente contrarie o quadro legal delimitador das situações sujeitas a imposto, tributando uma realidade que se encontra claramente fora da zona de abrangência da norma de incidência. Tal ofende a lei e a Constituição.
O caso dos autos consubstancia uma dessas situações, pois que, tudo visto e analisado todo o conteúdo do artigo 101º do CIEC, concluímos que há um elemento base, expressamente contido na letra da lei, sem o qual não há incidência de imposto: tabaco ou mistura de tabaco com glicerol, no caso específico do tabaco para cachimbo de água.
Quanto ao disposto no nº 12 do artigo 101º e à equiparação nele contida, conclui-se que a remissão para os critérios contidos nos nºs 4 a 9, reforçam, mais uma vez, a incidência de imposto apenas opera na presença de algum dos tipos de tabaco mencionados ao longo dos normativos, pois que em todos eles (nºs 4 a 9) se pressupõe a presença de tabaco / nicotina.
Não se acompanha, pois, o alegado pela AT segundo a qual “para que um produto seja tributado em IT por enquadramento no n.º 12 do artigo 101.º do CIEC, não tem necessariamente de ser composto por tabaco. “
Pelo contrário, a remissão para o disposto nos nºs 4 a 9 exige, como vimos, que o produto cumpra os critérios aí contidos, nos quais está sempre presente um qualquer tipo de tabaco.
Por outro lado, ao contrário do que defende a AT os produtos destinados a serem fumados em cachimbo de água, que não contenham tabaco ou nicotina, não desempenham a mesma função, nem se pode dizer que produzem o mesmo efeito que os produtos que contêm tabaco. Basta ter em conta que o IT é um imposto com finalidades predominantemente extrafiscais (antitabágicas e proteção da saúde) não estão presentes nos produtos sem nicotina. Saber se estes novos produtos podem ter efeitos nocivos à saúde, como alega a AT, é mera especulação e irrelevante no âmbito da aplicação rigorosa da norma de incidência. Cabe ao legislador a tarefa de resolução dessa questão se e quando entender oportuno e adequado.
Em conclusão, o “alargamento” ou extensão da incidência de IT aos produtos em causa nos autos, alvo de tributação pela liquidação adicional impugnada, viola a lei e ofende o princípio da legalidade fiscal, pois não é admissível, em matéria de incidência extravasar a moldura objetiva das normas de incidência tributária. Pelo que, ao contrário do que defende a AT, não estamos perante uma mera aplicação direta do disposto no n.º 12 do artigo 101.º do CIEC.
Nesta conformidade, a liquidação impugnada é ilegal por violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito geradores de incidência de imposto sobre o Tabaco, pelo que deve ser anulada.
Uma última nota sobre o argumento aduzido pela AT a propósito do acórdão do Tribunal de Justiça da UE, de 6 de abril de 2017, proferido no âmbito do processo C 638/15, para referir que o entendimento vertido neste Acórdão do TJUE é claro, visa que a tributação sobre o setor dos tabacos manufaturados não falseie a livre concorrência no mercado interno, mas dele nada se extrai que possa justificar a liquidação impugnada ou o entendimento que lhe está subjacente.
Face a tudo o que vem exposto resulta que a liquidação é ilegal por vicio de violação de lei por erro sobre os pressupostos de facto e de direito e ofende o princípio da legalidade fiscal, na vertente de tipicidade da norma de incidência.
Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento dos restantes vícios invocados pela Requerente.
Quanto aos juros indemnizatórios
No seu pedido a Requerente peticiona a anulação total da liquidação impugnada e, consequentemente, o reembolso do valor de imposto indevidamente pago, “acrescido de juros indemnizatórios como é de lei”.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”.
O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT. Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
O ato anulado enferma de ilegalidade por erro imputável à AT, pelo que, a reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do ato tributário, impõe o reembolso do imposto indevidamente pago e ao pagamento de juros indemnizatórios, contabilizados desde a data de pagamento do imposto até ao seu efetivo reembolso.
***
C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente procedente o pedido arbitral e anular a liquidação adicional de Imposto sobre o Tabaco impugnada nos autos, com o nº..., no valor de €29.746,00;
b) Condenar a AT na restituição do imposto indevidamente pago pela Requerente, por força da liquidação anulada, acrescido de juros indemnizatórios a contabilizar desde a data do pagamento do imposto até à data de efetivo pagamento;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em €29.746,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 1.530,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela Requerida, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 23 de Setembro de 2020
O Tribunal arbitral
(Maria do Rosário Anjos)