Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 580/2019-T
Data da decisão: 2020-09-20  IRC  
Valor do pedido: € 18.590,30
Tema: IRC - Inspeção Tributária – Caducidade do Direito à liquidação.
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SUMÁRIO

 

1. O procedimento interno de inspecção, cujos actos de inspecção são efectuados exclusivamente nos serviços da administração tributária, tem na sua base uma análise formal e de coerência dos documentos. Ou seja, trata-se de um procedimento de análise de conformidade entre documentos/ elementos que estão na disponibilidade da Administração. Daí que os respectivos actos, neste caso, possam ser exclusivamente praticados nos serviços da AT.

2.Havendo toda uma actividade da iniciativa da AT destinada à obtenção de elementos que não estavam na sua disponibilidade, realizada com um claro fito investigatório, tal implica que o procedimento de inspecção tributário se deva classificar de externo.

3. O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação e não tenha sido legalmente alargada.

 

DECISÃO ARBITRAL

 

O árbitro Dr. Henrique Nogueira Nunes designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 22 de Novembro de 2019, acorda no seguinte:

 

I – Relatório

 

1.1. A..., Lda, titular do NIPC ... e com sede na Rua ..., .../..., ..., Gondomar, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).

 

1.2. O pedido de pronúncia arbitral, tal como inicialmente configurado, tem por objecto a anulação do acto de liquidação de legalidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), n.º 2019..., no valor de € 10.807,74, respeitante ao exercício de 2014, e o estorno da Liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2015..., no valor de € 7.782,56, tudo consubstanciado na demonstração de acerto de contas n.º 2019..., no valor global de € 18.590,30.

               

1.3. A fundamentar o seu pedido imputa a Requerente, em síntese, os seguintes vícios:

 

(i) Começa por dizer que a liquidação impugnada é a consequência direta da correção operada pela AT aos elementos constantes da sua contabilidade e da declaração de rendimentos no que se refere ao gasto relevado como imparidade em dívidas a receber, pois que tendo registado um gasto, no valor de €180.703,58, respeitante à imparidade considerada relativamente à totalidade do crédito sobre o seu cliente B..., veio a AT a desconsiderar a mesma para efeitos de apuramento do resultado fiscal do exercício de 2014, transformando o prejuízo fiscal que havia sido declarado, no montante de € 110.998,96, num lucro tributável de € 69.704,62.

 

(ii) Entende que incorre em erro a decisão da AT em considerar a imparidade havida no exercício fiscal de 2013, ao abrigo do que dispõe o artº 28º-B do CIRC, designadamente na alínea a) do seu n.º 1.

(iii) Invoca a caducidade do direito à liquidação, pois diz que para tanto bastará atentar na continuidade dos “dois” procedimentos, já que, encerrando-se o procedimento interno a 29/11/2017, cuidou a AT de diligenciar as tarefas internas que levaram, apenas 5 dias úteis depois (06/12/2017), à emissão da ordem de serviço externa que permitiu prosseguir com a investigação das mesmas matérias que vinham sendo objeto de análise e investigação no procedimento interno.

 

(iv) O que no seu entender implicou uma sequência e continuidade dos atos de inspeção, iniciados com a credencial interna e concluídos ao abrigo da credencial externa, que terá que arrastar como consequência legal o entendimento de que só subsistiu um único procedimento de inspeção, ao contrário do que pugna a AT.

 

(v) Ou seja, entende que o procedimento de inspeção se prolongou por mais de 6 meses, pelo que, no que se refere à apreciação do instituto de caducidade, inexiste o efeito suspensivo determinado pelo nº 1 do artº 46º da Lei Geral Tributária.

 

(vi) E, assim sendo, alega que o prazo para liquidar o IRC relativo ao exercício de 2014 caducou em 31/12/2018, uma vez que a liquidação a que se referem os Docs. n.º s 1 a 3 por si juntos nos autos apenas foram notificados em meados de Março de 2019.

 

(vii) Invoca igualmente a existência de um erro de Direito quanto ao princípio da especialização dos exercícios em sede de Imparidades de créditos de cobrança duvidosa e, bem assim, a inexistência de fundamentação da liquidação.

 

(viii) Entende que a liquidação viola o conjunto normativo composto pelo art.º 18.º do CIRC e pela alínea a) do nº 1 do actual artº 28º-B / anterior art. 36º do CIRC, atendendo a que o actual art.º 28º-B do CIRC (aditado pela Lei n.º 2/2014 de 16 de janeiro), nesta parte com exacta correspondência com o anterior art. 36º do CIRC, (em ambos os casos) na alínea a) do seu nº 1, trata de meras expectativas e, por isso, não especializa a imparidade no exercício em que é declarada a insolvência do cliente devedor, porquanto é a “pendência “ do processo de insolvência, e não o decretamento da insolvência, que preenche a previsão legal de crédito de cobrança duvidosa.

 

(ix) Ainda que assim não se entendesse, vem dizer que do seu comportamento não resultou qualquer prejuízo para a economia do imposto (IRC), mesmo que se considerasse violado o princípio da especialização do exercícios, quando, por força dos princípios da boa-fé e da justiça e tendo em atenção o interesse público que deve reger a ação da AT, o mesmo não é suscetível de aplicação em todos os casos em que não se verifica efetivo prejuízo para os cofres do Estado.

 

(x) Por último, invoca que caso não se entenda que é ilegal a liquidação pelos motivos invocados, deverá ser declarada a inconstitucionalidade do bloco normativo composto pelo art.º 18º do CIRC e na alínea a) do nº 1 do actual art.º 28º-B / anterior art. 36.º do CIRC, para efeitos de Imparidades de créditos de cobrança duvidosa, quando interpretado no sentido de que a correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios encerra “um poder vinculado, porquanto tal interpretação conduz a uma situação flagrantemente injusta” e por isso violadora do “princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT”.

 

(xi) Pugna, assim, pela procedência do pedido de pronúncia arbitral.

 

1.4. A Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante designada por “Requerida” ou “AT”, respondeu, em síntese, como segue:

 

(i)           Vem defender-se por excepção e por impugnação.

 

(ii) Por excepção invoca a incompetência material do Tribunal Arbitral para declarar a inconstitucionalidade de normas, pois diz que o Tribunal Arbitral é incompetente em razão da matéria para apreciar o pedido de declaração da inconstitucionalidade do bloco normativo composto pelo art.º 18º do CIRC e na alínea a) do nº 1 do art.º 28º-B do CIRC para efeitos de imparidades de créditos de cobrança duvidosa, tal como peticionado pelo Requerente.

 

(iii) O que no seu entendimento dita a incompetência absoluta em razão da matéria configurando uma exceção dilatória que obsta ao prosseguimento do processo, conducente à absolvição da instância quanto ao pedido respetivo, de acordo com o previsto nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a) e 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, alínea e) do RJAT.

 

(iv) Por impugnação vem dizer que em 2012, o risco de incobrabilidade estava devidamente justificado, face à legislação fiscal, tendo sido relevado contabilisticamente um gasto (imparidade), não da totalidade dos créditos em mora, mas apenas no montante de €123.761,36, valor que foi considerado para efeitos fiscais, ou seja, para efeitos de apuramento do lucro tributável desse período de imposto (ano de 2012).

 

(v) E que apesar do reconhecimento da perda por imparidade, no período de tributação de 2012, a Requerente em 2013 não seguiu o mesmo procedimento, isto é, não deu qualquer relevância contabilística ao risco de incobrabilidade deste crédito, mesmo tendo tido conhecimento da insolvência do credor, facto que se comprova pelo pedido de certidão que, em 2013, solicitou junto do Tribunal.

 

(vi) Conclui pela não aceitação das perdas por imparidade contabilizadas no exercício de 2014, nos termos do n.º 1 do artigo 28.º-A do CIRC, porquanto invoca que estão relacionadas com créditos de cobrança duvidosa cujo risco de incobrabilidade já era manifestamente conhecido, em períodos de tributação anteriores

 

(vii) Em suma, ao não reconhecer perdas por imparidade quando o risco de incobrabilidade já estava devidamente justificado alega que a Requerente não observou o disposto no n.º 1 do artigo 28.º-B do CIRC, como, diz, também não seguiu o regime de periodização económica no apuramento do lucro tributável, previsto no artigo 18.º do CIRC, ao imputar ao exercício de 2014 perdas que já eram manifestamente previsíveis e conhecidas na data de encerramento das contas de períodos de tributação anteriores.

 

(viii) Sobre a invocada caducidade do direito à liquidação, vem dizer que o procedimento interno visou apenas a consulta e recolha de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo, conforme se pode perceber pelo oficio n.º 2016..., de 04/10/2016, da Direção de Finanças do Porto, a notificar a Requerente para apresentação de elementos e esclarecimentos e porque o procedimento externo de inspeção tributária, efetuado a coberto da ordem de serviço n.º 0I2017..., apenas teve início no dia 01/10/2018, na sede da sociedade, com a assinatura, por parte do sócio-gerente, da credencial, em conformidade com o determinado no n.º2 do art.º 51.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

 

(ix) Alega que o procedimento externo de inspeção – OI2017... - não foi uma mera continuação do procedimento interno de inspeção (OI2016...), ao contrário do que a Requerente defende.

 

(x) E que no que tange ao procedimento externo de inspeção tributária, em causa nos autos, efetuado a coberto da ordem de serviço n.º OI2017..., este teve início no dia 01/10/2018, na sede da Requerente, com a assinatura, por parte do sócio-gerente, da referida credencial, em conformidade com o determinado no n.º 2 do art.º 51.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

 

(xi) E que com a assinatura da credencial – OI2017... – dá-se início ao procedimento externo de inspeção pelo que a partir desta data, e desde que o procedimento de inspeção decorra dentro dos 6 meses, factualidade que diz que se verificou, a contagem do prazo de caducidade suspende-se.

 

(xii) Conclui que a conclusão do procedimento de inspeção tributário externo, que foi contínuo, terminou no dia 26/03/2019 (data de assinatura do aviso de receção), com a notificação do representante legal da Requerente, do relatório de inspeção tributária, conforme disposto no n.º 2 do art.º62.º do RCPITA e que tendo o procedimento de inspeção externa terminado nesse dia, com a notificação do representante legal da sociedade, do relatório de inspeção tributária, e a liquidação do IRC de 2014 validamente notificada dentro do prazo de 4 anos, o direito à liquidação do IRC do período de tributação de 2014 não caducou em 31/12/2018, como invoca a Requerente.

 

(xiii) Sobre as perdas por imparidade em créditos de cobrança duvidosa, invoca diversa jurisprudência, sustentando que só podem ser reconhecidas como custo fiscal no período em que o risco de incobrabilidade é constatado.

 

(xiv) E que é inegável o facto de a Requerente já ter conhecimento, em 2013, da pendência de um processo de insolvência em nome da B..., e que se já em 2012 tinha constatado e relevado contabilisticamente o risco de incobrabilidade dos créditos da B... (ainda que parcialmente no que toca ao montante deduzido fiscalmente), em 2013, com a declaração de insolvência, deveria ter dado expressão contabilística e fiscal a esse gasto se dele se quisesse aproveitar.

 

(xv) Pelo que não o tendo feito no período em que a incobrabilidade foi constatada não pode, no seu entender, no período de 2014, vir a fazê-lo, sob pena de estar a violar o preceituado nos n.ºs 1 e 2 do art.º 18 do CIRC e n.º1 do art.º41.º do CIRC.

 

 (xvi) Pugna, assim, pela total improcedência do presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica o acto tributário de liquidação impugnado, absolvendo-se, em conformidade, a Requerida da instância e do pedido, tudo com as devidas e legais consequências.

 

                1.5. Entendeu o Tribunal dispensar a realização da primeira reunião do Tribunal Arbitral e inquirição de testemunhas arroladas pelas partes conforme despacho arbitral notificado às partes de acordo com o disposto no artigo 18.º do RJAT.

               

                Ambas as partes foram igualmente notificadas para apresentar Alegações, querendo, tendo ambas optado por fazê-lo, mantendo a sua argumentação inicial.

 

                Foi fixado prazo para o efeito de prolação da decisão arbitral no termo do prazo legal, após duas sucessivas e fundamentadas prorrogações nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 21.º do RJAT.

 

* * *

                1.6. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.

 

                As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

 

                Não foram identificadas nulidades no processo.

 

2. QUESTÕES A DECIDIR

 

Vem a Requerente suscitar:

 

1- A caducidade do direito à liquidação;

 

2- A violação do princípio da especialização de exercícios - art.º 18º e alínea a) do nº 1 do atual art.º 28º-B do CIRC;

 

3 - A título subsidiário peticiona no sentido de “(…) ser declarada a inconstitucionalidade do bloco normativo composto pelo art.º 18º do CIRC e na alínea a) do nº 1 do art.º 28º-B do CIRC para efeitos de Imparidades de créditos de cobrança duvidosa, quando interpretado no sentido de que a correcção da matéria colectável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios encerra um poder vinculado, porquanto tal interpretação conduz a uma situação flagrantemente injusta e por isso violadora do princípio da justiça, consagrado nos arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, o que deverá ser declarado.”

 

A Requerida, por excepção, vem invocar a incompetência material do Tribunal Arbitral, questão que importa apreciar em primeiro lugar.

 

3.            MATÉRIA DE FACTO

 

Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:

 

A) A Requerente foi sujeita a um procedimento de inspeção externa, em cumprimento da ordem de serviço n.º 0I2017... de âmbito parcial de IRC com início a 1 de outubro de 2018 (com a assinatura da credencial) e conclusão no dia 26 de março de 2019 (data da assinatura do aviso de recepção do RIT por parte da Requerente), o qual determinou a realização de procedimento externo e com âmbito parcial em IRC, tendo como objeto o controlo declarativo nomeadamente: a) Imparidades de dívidas a receber; b) Divergências resultantes do cruzamento dos anexos recapitulativos de clientes e fornecedores e c) Reclassificação e regularização de inventários, relativamente ao exercício de 2014. Cfr. RIT.

 

B) A Requerente foi notificado pela AT, através do Ofício n.º 2016..., datado de 04/10/2016, então ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI2016..., no âmbito de um procedimento designado por inspectivo interno, com âmbito em IRC e extensão ao exercício de 2014, para, entre outros pontos, justificasse os valores declarados de “Imparidade de dívidas a receber” no montante de € 180.703, 58, de “Clientes” e de “Reclassificação e regularização de inventários” e prestasse um conjunto de esclarecimentos, incluindo justificações técnicas, e juntasse documentação em seu poder. Cfr. Documento n.º 4 junto pela Requerente.

 

C) A Requerente respondeu ao ofício identificado no ponto antecedente no dia 18/10/2016, por email. Cfr. Documento n.º 5 junto pela Requerente.

 

D) A Requerente foi notificada da liquidação adicional em crise nos autos em Março de 2019 (sem precisar a data) Cfr: Documentos 1 a 3 juntos pela Requerente e facto invocado pela Requerente no seu pedido arbitral e não contestado pela Requerida.

 

E) A Requerente é uma sociedade que se encontra inscrita no cadastro da Autoridade Tributária para o exercício da atividade de "Comércio por Grosso Relógios Artigos Ourivesaria Joalharia" (CAE Principal 046480) e de "Fabricação de Artigos de Joalharia e Outros Artigos de Ourivesaria" (CAE Secundário 032122), estando enquadrada, para efeitos de IRC, no regime geral de determinação do lucro tributável. Cfr. RIT.

 

F) A Requerente no período de 2014 evidenciou, nas demonstrações financeiras, um gasto com perdas por imparidade, no montante de € 180.703,58, verificando-se na contabilidade que a conta “SNC 6511 - Perdas por imparidade - Dívidas de Clientes” foi movimentada, a débito, no período de 2014, pelo montante de € 180.703,581. Cfr. RIT.

 

G) Este gasto, que contribuiu para o apuramento da matéria coletável do período de 2014, está relacionado com um crédito detido sobre a sociedade B..., Lda. (“B...”). Cfr. RIT.

 

H) Na origem deste crédito esteve o fornecimento de diversos artigos de ourivesaria, nos anos de 2011 e 2012, decorrente do desenvolvimento normal da atividade da Requerente.

 

I) A Requerente relevou contabilisticamente, já em 2012, o risco de incobrabilidade do crédito, que ascendia, conforme saldo em conta-corrente, a 31/12/2012, ao montante de € 304.416,94: para o efeito creditou a conta “SNC 211 – Clientes c/c” da B... por contrapartida da conta “SNC 217 – Clientes cobrança duvidosa”. Cfr. RIT.

 

J) No ano de 2013, e por sentença de 13 de Março, a B... foi declarada insolvente no âmbito do processo de insolvência n.º.../13...TJCBR, que correu termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal da Comarca de Coimbra.

 

K) Em 2013 a Requerente não constituiu qualquer perda por imparidade (gasto) relacionada com os créditos da B... pois do crédito inicial em crise de € 304.416,94, identificado como de cobrança duvidosa, não tinham ainda sido relevados contabilisticamente como gasto (imparidade) o montante de € 180.655,58 (€ 304.416,94 - € 123.761,36). Cfr. RIT

 

L) Em 07/01/2019, os Serviços de Inspeção Tributária solicitaram ao Tribunal de Comércio de Coimbra (Instância Local - Secção Cível J2) certificação, relativamente ao credor A..., Lda., NIF..., ora Requerente, da data do pedido de certidão para fins fiscais, da data de passagem da referida certidão e da data em que foi tomado conhecimento da emissão da mesma Cfr. RIT

 

M) Em resposta o referido Tribunal informou a AT que a certidão foi solicitada em 01/11/2013, que foi passada a 13/11/2013 e que o credor foi notificado, na pessoa da sua mandatária, Dr.ª C..., a 13/11/2013. Cfr. RIT - anexos 54 e 59.

 

N) Em resultado da ação inspetiva foi proposto um acréscimo de € 180.703,58, relativo à perda por imparidade considerada sobre o cliente B..., tendo como consequência que o prejuízo fiscal que havia sido declarado, no montante de € 110.998,96, fosse corrigido para um lucro tributável de €69.704,62. Cfr. RIT

 

O) Foi emitida a liquidação de IRC nº 2019... e da nota de cobrança n.º 2019..., no valor de € 18.590,30, a qual foi integralmente paga pela Requerente. Cfr. RIT.

 

4.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Não existem outros factos com relevo para a decisão de mérito dos autos que não se tenham provado.

 

5.            FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais (oficiais) juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes.

 

 De referir que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa (ou causas) de pedir que fundamenta(m) o pedido formulado pela Requerente enquanto autor (cfr. artºs.596º, nº.1 e 607º, nºs. 2 a 4, do C.P.Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei 41/2013, de 26/6) e consignar se a considera provada ou não provada (cfr.artº.123.º, nº.2, do CPPT).

 

Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr. artº. 607º, nº.5, do C.P.Civil, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 41/2013, de 26/6). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na Lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371º, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.

 

6. DO DIREITO

 

Da matéria de Excepção: Da Incompetência do Tribunal Arbitral

 

Importa, antes de tudo, apreciar a excepção dilatória da incompetência material do tribunal deduzida pela AT, no entendimento de que a competência da jurisdição arbitral está taxativamente enumerada no artigo 2º nº 1 do RJAT, o qual não inclui “a declaração de inconstitucionalidade de normas peticionada pela Requerente”.

 

Conforme reconhece a AT, os tribunais arbitrais são competentes para declarar a “ilegalidade dos actos de liquidação de tributos”, de acordo com o nº 1 do artigo 2.º de RJAT.

 

São ilegais os actos que apliquem normas desconformes com a lei fundamental, o que desde logo resulta do nº 2 do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa.

 

Portanto, quando um cidadão recorre ao tribunal arbitral para obter a declaração de ilegalidade de um acto tributário de liquidação, acusando-o de se ter baseado em lei inconstitucional, esse tribunal é competente.

 

Não é, bem se vê, para declarar a inconstitucionalidade da norma com força obrigatória geral, pois tal é da competência exclusiva do Tribunal Constitucional (artigo 281.º n.º 2 da CRP), mas para censurar o acto assente em norma inconstitucional, eliminando-o da ordem jurídica, conforme é obrigação sua, imposta pelo artigo 204.º da CRP, não podendo os tribunais aplicar normas inconstitucionais, não podem também manter os actos administrativos que lhes são submetidos e que tenham por base normas violadoras da Constituição.

 

Ora, o pedido da Requerente é, neste ponto o seguinte: “A Requerente pretende que seja declarada pelo CAAD a inconstitucionalidade do bloco normativo composto pelo artº 18º do CIRC e na alínea a) do no 1 do Artº 28º-B do CIRC para efeitos de imparidades de créditos de cobrança duvidosa, quando interpretado no sentido de que a correção da matéria coletável em face de uma violação do princípio da especialização dos exercícios encerra um poder vinculado, porquanto tal interpretação conduz a uma situação flagrantemente injusta e por isso violadora do princípio da justiça, consagrado nos Arts. 266º, nº 2, da CRP e 55º da LGT.”.

 

Como referiu em sede de resposta à excepção apresentada: “Não é, e bem se vê, para declarar a inconstitucionalidade das normas com força obrigatória geral, que isso só ao Tribunal Constitucional efectivamente compete, mas sim para censurar a atuação da AT assente numa interpretação inconstitucional das normas em questão.”.

 

Ou seja, a Requerente não pretende obter do Tribunal a declaração de inconstitucionalidade material de nenhuma norma jurídica, mas a verificação da legalidade, face à CRP, dos actos de liquidação de um tributo.

 

O que patenteia a competência do tribunal e a consequente improcedência da excepção deduzida pela Requerida.

 

Da Matéria de Impugnação:

 

Na apreciação dos vícios imputados ao acto cuja declaração de ilegalidade é pedida deverá começar-se pelos «vícios cuja procedência determine, segundo o prudente critério do julgador, mais estável ou eficaz tutela dos interesses ofendidos» [artigo 124.º, n.º 2, do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT], já que «a arbitragem tributária visa reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes» (artigo 124.º, n.º 3, da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril).

 

Começando por apreciar o pedido de caducidade do direito à liquidação invocado primeiramente pela Requerente.

 

 A Requerente sustenta que como a AT emitiu duas ordens de serviço para investigar a situação relativa à matéria que deu origem à correção que está na base da liquidação impugnada, designadamente, a Ordem de Serviço nº OI2016..., que deu origem ao procedimento de inspeção interna, e a nº OI2017..., que deu origem ao procedimento de inspeção externa a que se refere o RIT em causa nos autos, tais procedimentos de inspecção têm de ser considerados como estando inseridos num único procedimento.

 

E que como o RCPIT estabelece que o procedimento de inspecção deve ser contínuo e que deve ser concluído no prazo de 6 meses por via da regra, é seu entendimento que in casu terá havido uma ficção (nas suas palavras) de dois procedimentos de inspecção quando na realidade apenas existiu um só procedimento de inspecção iniciado em 2016/10/04 aquando da notificação do Ofício n.º 2016... que foi por si respondido em 18/10/2016 e que a AT não mais fez desde então até à data em que iniciou o procedimento de inspecção externa.

 

Para concluir que esse único procedimento de inspeção teve o seu início, pelo menos, na data em que foi remetida a notificação de 04/10/2016 e a sua conclusão em 19 de Março de 2019, aquando da notificação do RIT à Requerente, o que tem como consequência que o procedimento de inspeção se tenha prolongado por mais de 6 meses, pelo que, no que se refere à apreciação do instituto de caducidade, não lhe assiste o efeito suspensivo determinado pelo nº 1 do artigo 46.º da Lei Geral Tributária (LGT) e que assim sendo, como diz que é, o prazo para liquidar o IRC relativo ao exercício de 2014 caducou em 31/12/2018.

 

Ora, considerando, neste itinerário por si proposto, que a liquidação adicional em crise nos autos foi notificada em Março de 2019 (sem precisar a data, no que não é contestado pela Requerida) tal significa que se encontrava caducado o direito à liquidação do IRC de 2014, em causa nos autos, desde 31/12/2018, o que deverá ser declarado.

 

Já a Requerida vem dizer que a ordem de serviço interna em causa nos autos foi encerrada em 29/11/2017, porque os elementos enviados e justificações apresentadas pela aqui Requerente não permitiram aquilatar, de forma clara e inequívoca, a correta consideração, para efeitos fiscais, do custo em crise (imparidade).

 

E que em 06/12/2017, foi emitido um procedimento de caráter externo, de âmbito parcial, que teve como objetivo verificar o correto apuramento do IRC do período de 2014 (OI2017...).

 

E que no âmbito do procedimento externo de inspeção – OI 2017... - foram realizadas diligências externas que não se circunscreveram apenas à análise das imparidades de créditos.

 

E que neste ponto é relevante referir que mesmo em sede de procedimento externo, e no que toca a esta questão das imparidades, foi necessário, no âmbito das prerrogativas da inspeção tributária, recorrer a diligências junto do Tribunal, dado que alega que a Requerente não facultou todos os elementos e documentos solicitados com vista à validação do gasto para efeitos fiscais.

 

Alega que o procedimento interno visou apenas a consulta e recolha de documentos destinados à confirmação da situação tributária do sujeito passivo, conforme se pode perceber pelo Oficio n.º 2016..., de 04/10/2016, da Direção de Finanças do Porto, a notificar a Requerente para apresentação de elementos e esclarecimentos, sustentando que não houve continuidade no procedimento, porque o procedimento externo de inspeção tributária, efetuado a coberto da ordem de serviço n.º 012017..., apenas teve início no dia 01/10/2018, na sede da sociedade, com a assinatura, por parte do sócio-gerente da Requerente, da referida credencial, em conformidade com o determinado no n.º 2 do art.º 51.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

 

No que tange ao procedimento externo de inspeção tributária, efetuado a coberto da ordem de serviço n.º OI2017..., alega que este teve início no dia 01/10/2018, na sede da sociedade, com a assinatura, por parte do sócio-gerente, da referida credencial, em conformidade com o determinado no n.º2 do art.º51.º do Regime Complementar de Procedimento da Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) e que com a assinatura da credencial – OI2017... – dá-se início, conforme referido, ao procedimento externo de inspeção pelo que, a partir desta data, e desde que o procedimento de inspeção decorra dentro dos 6 meses, factualidade que se verificou, a contagem do prazo de caducidade suspende-se, pelo que tendo a conclusão do procedimento de inspeção tributário externo, que foi contínuo, terminado antes desse período de 6 meses, com a notificação do representante legal da sociedade, do relatório de inspeção tributária, conforme disposto no n.º 2 do art.º 62.º do RCPITA, a liquidação do IRC de 2014 em crise nos autos foi validamente notificada dentro do prazo de 4 anos, improcedendo o vicio alegado pela Requerente.

 

Apreciando.

 

Nos termos do disposto no artigo 54° n.º 1 da LGT: “O procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declarado de direitos tributário”, aí se compreendendo, designadamente, as acções preparatórias ou complementares de informação e fiscalização tributária” - (alínea a) do referido preceito).

 

Procedimento e exercício de direitos esses que, sem prejuízo do disposto naquela lei (LGT), consta do diploma regulamentar próprio, conforme previsão e remissão efectuado no n.º 6 do mesmo artigo e diploma e que deve ser entendida como sendo feita para o Decreto-Lei n.°413/98, de 31/12 (“RCPIT”).

 

Por seu turno, o n°4 do artigo 63° da LGT, determina que:

 

“O procedimento da inspeção e os deveres de cooperação são os adequados e proporcionais aos objetivos a prosseguir, só podendo haver mais de um procedimento externo de fiscalização respeitante ao mesmo sujeito passivo ou obrigado tributário, imposto e período de tributação mediante decisão, fundamentada com base em factos novos, do dirigente máximo do serviço, salvo se o procedimento visar apenas a consulta, recolha de documentos ou elementos ou a confirmação dos pressupostos de direitos que o contribuinte invoque perante a administração tributária e sem prejuízo do apuramento da situação tributária do sujeito passivo por meio de inspeção ou inspeções dirigidas a terceiros com quem mantenha relações económicas.”.

 

Dispõe o artigo 13.º do RCPIT, quanto ao “Lugar do procedimento de inspecção”, que este pode ser:

“a) Interno, quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos;

b) Externo, quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso.”.

 

É hoje pacífico e tem suporte jurisprudencial e doutrinal que o procedimento interno é uma espécie de “inspecção cadastral efectuada dentro dos próprios serviços de inspecção, com recurso aos elementos declarados pelos sujeitos passivos, e engloba actividades de mera constatação em que a Administração se limita a verificar o cumprimento por parte dos sujeitos passivos dos seus deveres declarativos. Nestes casos a Administração Tributária limita-se particularmente a confrontar, através do cruzamento de informação disponível nas suas bases de dados, se o sujeito passivo cumpriu ou não com os seus deveres e se os elementos declarados coincidem com os elementos fornecidos pelas declarações entregues (…) Não se trata portanto de uma actividade propriamente fiscalizadora, em sentido estrito, trata-se de uma actividade de comprovação formal para verificação da exactidão do formalmente declarado pelo sujeito passivo.

In Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária Anotado e Comentado – Joaquim Freitas da Rocha | João Damião Caldeira – Coimbra Editora - páginas 81 e 82.

 

(…)

 

Diversamente o procedimento será externo quando “os actos de inspecção sejam praticados, total ou parcialmente, nas instalações ou dependências dos sujeitos passivos (…) nesta actividade, já de cariz investigatório visa-se verificar a exactidão dos valores declarados em função dos elementos que constam na sua contabilidade e documentos (…). Sempre que o procedimento de inspecção vise a análise ou verificação da contabilidade, dos livros de escrituração ou outros documentos relacionados com a actividade do sujeito passivo inspecionado, o procedimento de inspecção deve classificar-se sempre como sendo de natureza externa e realiza-se, regra geral, nas instalações ou dependências onde aqueles elementos estejam ou devam estar localizados.”.

In Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária Anotado e Comentado – Joaquim Freitas da Rocha | João Damião Caldeira – Coimbra Editora - páginas 81 e 82.

 

Por outro lado, como é sabido, apenas o procedimento externo tem a virtualidade de suspender o prazo de caducidade do direito à liquidação, não tendo o procedimento interno esse efeito.

 

 Conforme decidiu o Tribunal Central Administrativo - Sul, no Processo n.º 05674/12, datado de 14-04-2015 :

 

“O mesmo resulta do disposto no n.°1 do artigo 34.° do RCPIT, nos termos do qual «quando o procedimento de inspeção envolver a verificação de contabilidade, livros de escrituração ou outros elementos relacionados com a actividade da entidade a inspecionar, os atos de inspeção realizam-se nas instalações ou dependências onde estejam ou devam legalmente estar localizados os elementos».

 

No que tange em especial à recolha de elementos, o artigo 56.° n.°1 do RCPIT expressa que as fotocópias e extractos serão efectuados nas instalações ou dependências onde se encontram os livros.

 

Acresce que, em conformidade com o artigo 51.º n.°2 do RCPIT, «o sujeito passivo ou obrigado tributário ou o seu representante deve assinar a ordem de serviço indicando a data da notificação, a qual, para todos os efeitos, determina o início do procedimento externo de inspeção», do qual também se conclui que o procedimento inspetivo destinado à consulta, recolha e cruzamento de informação constitui um procedimento externo.

 

Por último, importa salientar que o artigo 46.º n.º 7 do RCPIT que «as ações de inspeção que visem a mera consulta, recolha e cruzamento de elementos junto do sujeito passivo, de qualquer área territorial, com quem o sujeito passivo inspecionado mantenha relações económicas são efetuadas mediante entrega, por parte do funcionário da nota de diligência que indica a tarefa executada.». O que significa que, nos procedimentos inspectivos que visam a consulta, recolha e cruzamento de informação, não há lugar à elaboração de relatório dirigido ao contribuinte visado.

 

Em suma, face ao preceituado no Regulamento a que vimos fazendo referência, o procedimento de inspecção tanto pode ter em vista a averiguação da situação tributária do sujeito passivo e, sendo caso disso, alterar os elementos declarados, como a mera recolha de elementos. Porém, se tais fins implicarem a análise da contabilidade ou elementos desta, o procedimento corre nas instalações de contribuinte inspeccionado ou no local onde tais elementos se devam encontrar, ou seja, em tais situações o procedimento é, necessariamente, externo.”.

 

Itálico e Negrito do Tribunal.

 

Por seu turno o Tribunal Central Administrativo Norte, no processo n.º 01854/10.8BEBRG , datado de 13-11-2014, veio a considerar, posição com o qual concorda este Tribunal Arbitral que:

 

“Assim, antes de mais, importa apurar se a acção inspectiva efectuada pela Administração Tributária ao IVA de 2007 12T constitui acto de procedimento externo ou interno de fiscalização.

O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos extrai-se do artigo 13.º do RCPIT, como já havíamos adiantado, em que se esclarece que o procedimento é interno «quando os actos de inspecção se efectuem exclusivamente nos serviços da administração tributária através da análise formal e de coerência dos documentos» e é externo «quando os actos de inspecção se efectuem, total ou parcialmente, em instalações ou dependências dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários, de terceiros com quem mantenham relações económicas ou em qualquer outro local a que a administração tenha acesso».

O critério de distinção entre procedimentos de inspecção internos e externos assenta, assim, na existência ou não de actos praticados fora dos serviços da Administração Tributária para obtenção dos elementos relevantes: se os actos se praticaram exclusivamente nesses serviços, está-se perante um procedimento interno; se algum ou alguns actos necessários para apurar os factos tributários foram praticados fora desses serviços, «total ou parcialmente», está-se perante um procedimento externo. O que permite concluir que a análise de documentos que foram obtidos pela Administração Tributária com base em actos praticados fora dos seus serviços é de qualificar como acto de procedimento de inspecção externa, pois, independentemente de a actividade de análise se ter efectuado nas instalações da Administração Tributária, não se baseou exclusivamente na análise formal e de coerência dos documentos de que a administração tributária dispunha sem ter praticado os actos de inspecção externa. A inspecção só será qualificável como interna quando foi efectuada com base em documentos não obtidos através de actos inspectivos exteriores aos serviços.

À face desta classificação das inspecções, a actividade da Administração Tributária

subjacente ao acto impugnado assume as características de procedimento de inspecção

externo, pois não se baseou em mera «análise formal e de coerência dos documentos» de que a administração tributária dispunha sem ter efectuado actos de inspecção externa, mas sim em resultado de uma deslocação feita às instalações do técnico oficial de contas da Recorrente, a coberto da OI2008..., isto é, em elementos que chegaram ao conhecimento da Administração Tributária no âmbito de uma inspecção externa, como se refere no ponto 1. da matéria de facto apurada. Só nesse momento foi possível apurar que estavam na base da solicitação do reembolso do IVA de 2007 12T facturas de substituição referentes ao mesmo IVA que já havia sido corrigido nos períodos de 2006 12T e 2007 03T, tendo sido facultados os respectivos documentos à AT pelo responsável pela contabilidade da Recorrente.

 

Assim, não obstante no relatório de inspecção se qualificar a acção inspectiva relativa ao IVA de 2007 12T de interna, a classificação adequada dos actos inspectivos consubstanciados por tal análise baseada em elementos obtidos numa inspecção externa é a de actos de um procedimento de inspecção externa – cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 01/10/2014, proferido no âmbito do processo n.º 4817/11.

 

Como se sabe, “a qualificação dada pela Administração a um procedimento não tem carácter vinculativo, se vier a revelar-se que o conteúdo dos actos praticados for contrário à qualificação dada, isto é, a classificação formal do procedimento será, posteriormente, validada, ou não, pelos actos que a Administração praticar” – cfr. Joaquim Freitas da Rocha, in RCPIT, anotado e comentado, Coimbra Editora, 1ª Edição, pág. 83.

Como aponta este autor, “o procedimento interno é uma espécie de inspecção cadastral, efectuada dentro dos próprios serviços de inspecção, com recurso aos elementos declarados pelos sujeitos passivos, e engloba actividade de mera constatação em que a Administração se limita a verificar o cumprimento por parte dos sujeitos passivos dos seus deveres declarativos. Nestes casos a Administração limita-se particularmente a confrontar, através do cruzamento de informação disponível nas suas bases de dados, se o sujeito passivo cumpriu ou não com os seus deveres e se os elementos declarados coincidem com os elementos fornecidos pelas declarações entregues por outros obrigados tributários com quem o sujeito passivo mantém ou manteve relações. Não se trata portanto de uma actividade propriamente fiscalizadora, em sentido estrito, trata-se de uma actividade de comprovação formal para verificação da exactidão do formalmente declarado pelo sujeito passivo. No quadro desse procedimento interno pode a inspecção tributária solicitar informações e esclarecimentos aos sujeitos passivos, podendo ser feitas correcções em resultado do que for apurado”.

 

(…)

 

Concluindo-se, como se concluiu, que a actividade levada a cabo pela AT não constitui uma mera acção de recolha de informação, antes se traduzindo no início de uma acção de inspecção externa, parece claro que a AT não observou as exigências legais que o RCPIT lhe impõe, concretamente no que toca à notificação prévia (cfr. artigos 49.º, n.º 1 e 50.º, n.º 1, alínea a) do RCPIT), à ordem de serviço n.º OI2008..., de 28/11/2008.

A violação destas normas constitui vício de violação de lei, não podendo deixar de traduzir vício determinante da anulabilidade da liquidação de IVA e juros compensatórios que resultou de tal procedimento, nos termos do artigo 135.º do Código do Procedimento Administrativo, aplicável por força do disposto na alínea c) do artigo 2.º da LGT.”.

 

Itálico do Tribunal.

 

Ora, tal como se retira do citado artigo 13.º do RCPIT, o procedimento interno, cujos actos de inspecção são efectuados exclusivamente nos serviços da administração tributária, tem na sua base uma análise formal e de coerência dos documentos. Ou seja, trata-se de um procedimento de análise de conformidade entre documentos/ elementos que estão na disponibilidade da Administração. Daí que os respectivos actos, neste caso, possam ser exclusivamente praticados nos serviços da AT.

 

Descendo ao caso sub judicio verificamos que resultou da matéria de facto dado como provada – Documento n.º 4 junto pela Requerente com o seu pedido arbitral e ponto B) da matéria de facto dado como provada - que a AT notificou a Requerente através do Ofício n.º 2015..., de 2016/10/04, para que esta lhe remetesse um conjunto alargado de elementos e esclarecimentos que se consubstanciavam em pedido de elementos de natureza contabilística e fiscal, em ficheiros contabilísticos e até pedindo que a Requerente justificasse tecnicamente um conjunto de valores por si declarados em diversas declarações fiscais e procurando que esta esclarecesse alegadas divergências resultantes do cruzamento de diversa documentação, pedindo-lhe que juntasse os documentos comprovativos das alegadas divergências por si detetadas.

 

Esta iniciativa da AT, embora naturalmente legítima, não afasta que se determine se a mesma decorreu no âmbito de um procedimento externo de inspecção ou no âmbito de um procedimento interno de inspecção, ou se o facto de os pedidos de esclarecimentos e documentação formulados poderem ser remetidos por correio postal ou por correio electrónico, ou seja, sem que a AT se tenha deslocado fisicamente às instalações da Requerente ou do seu contabilista, implica, por si só, que tal procedimento seja reputado de interno.

 

Convocado novamente a doutrina de Joaquim Freitas da Rocha | João Damião Caldeira in Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária Anotado e Comentado - Coimbra Editora, a páginas 83:

 

“Na questão da classificação do procedimento de inspecção como interno ou externo importa sublinhar o que denominamos de “aparência de procedimentos”. Esta “aparência de procedimentos” traduz-se nas situações que embora os procedimentos sejam formalmente classificados pela Administração Tributária de determinada forma, na realidade e materialmente, em função dos actos praticados, os mesmos não correspondem à classificação que lhe foi atribuída. Esta desconformidade pode e deve ter efeitos quanto ao resultado final do procedimento, devendo os efeitos ser valorados contra a própria Administração, uma vez que esta se encontra vinculada ao princípio da legalidade.

 

(…)

 

Numa situação em que os actos materialmente praticados revelam a existência de um procedimento distinto daquele que foi formalmente indicado pela Administração, ou seja, um procedimento externo “de facto” embora formalmente qualificado como interno, os vícios referentes à falta de notificação prévia ao sujeito passivo exigida pelo artigo 49.º, n.º 1 do RCPIT (…) devem ter como consequência a invalidade de uma eventual liquidação, nomeadamente devem levar à sua anulação.”.

 

Voltando ao caso sub judicio concordamos com a Requerente quando esta sustenta que existiu apenas um procedimento de inspecção, e que no entendimento deste Tribunal, face à prova produzida, esse procedimento só pode ser classificado como se tratando de um procedimento de inspecção externo, porquanto houve toda uma actividade da iniciativa da AT destinada à obtenção de elementos que não estavam obviamente na sua disponibilidade, realizada com um claro fito investigatório. Toda esta actividade de investigação ocorreu em momento anterior ao do início do período que corresponde àquele durante o qual, segundo a AT, decorreu a acção inspectiva externa e tal não é afastado pela constatação que terá decorrido exclusivamente nas instalações da AT, pois, como se viu, tratou-se de uma mera aparência da existência de um procedimento interno, o qual não vincula o contribuinte, pois o simples facto de os pedidos de esclarecimento, junção de documentação diversa, e até pedidos de justificação técnica, serem susceptíveis de ser respondidos por carta ou por correio electrónico pelo contribuinte, não permite afastar a conclusão a que chega este Tribunal que nesse momento já decorria, ipso facto, um procedimento de investigação alargado à Requerente pedindo-lhe documentação que só esta teria, além de justificações designadas pela AT de “técnicas”, o que, como vimos, implica que deve o procedimento ser classificado de externo e não de interno como pretende a Requerida.

 

Resta, assim, saber quando se iniciou o mesmo. Para a Recorrida teve o seu início em 06/12/2017, com a notificação à Requerente de um procedimento de caráter externo, de âmbito parcial, que teve como objetivo verificar o correto apuramento do IRC do período de 2014, titulado pela OS com o número OI2017... . Para a Requerente, ao invés, teve o seu início com a notificação do ofício 2016..., de 2016-10-04, com o pedido de apresentação de elementos e esclarecimentos titulado pela OS com o número OI2016... .

 

Uma vez que a notificação da liquidação adicional em crise nos autos apenas foi notificada à Requerente em Março de 2019, no que não é questionado por nenhuma das partes, caso se entenda que o procedimento de inspecção externa teve o seu início em 04/10/2016, o prazo para liquidar o IRC do exercício de 2014 terminou no dia 31/12/2018, pois segundo o previsto no n.º 1 do art.º 45.º da LGT o direito de liquidar os tributos caduca se a liquidação não for validamente notificada ao contribuinte no prazo de quatro anos, sendo que nos termos do disposto no seu o n.º 2, o prazo de caducidade conta-se, nos impostos periódicos, como é o caso do IRC, a partir do termo do ano em que se verificou o facto tributário, o que, tratando-se do exercício de 2014, terminou, como vimos, no dia 31/12/2018.

 

Por seu turno o n.º 1 do art.º 46.º da LGT refere que : “ (…) O prazo de caducidade suspende-se com a notificação ao contribuinte, nos termos legais, da ordem de serviço ou despacho no início da ação de inspeção externa, cessando, no entanto, esse efeito, contando-se o prazo desde o seu início, caso a duração da inspeção externa tenha ultrapassado o prazo de seis meses após a notificação (...) ”.

É entendimento do Tribunal, pela prova produzida e face à natureza das diligências levadas a cabo pela AT e consubstanciadas no seu Ofício n.º 2016..., de 2016-10-04, com o pedido de apresentação de elementos e esclarecimentos titulado pela OS com o número OI2016..., que o procedimento desencadeado pela AT teve carácter externo a partir dessa mesma notificação ainda que a Requerente só tenha sido notificada para tanto e como tal no dia 06/12/2017 e ter assinado a credencial em 01/10/2018. Considerando que o RIT lhe foi notificado no dia 26 de Março de 2019, conforme o ponto A da matéria de facto dado como provada, então, entre 04/10/2016 e 26/03/2019, decorreu bem mais do que os 6 meses impostos pelo artigo 36.º, n.º 2 do RCIPT para a conclusão do procedimento de inspecção externa, não resultando dos autos que o mesmo tenha sido ampliado para os efeitos previstos no n.º 3 do mesmo normativo.

 

Pelo que tem a Requerente razão quando invoca a caducidade do direito à liquidação, razão pela qual, sem necessidade de mais fundamentação para além da já exaustivamente aduzida ao longo do presente aresto, se reconhece a caducidade da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), n.º 2019..., no valor de € 10.807,74, respeitante ao exercício de 2014, e o estorno da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2015..., no valor de € 7.782,56, tudo consubstanciado na demonstração de acerto de contas n.º 2019..., que ditou o valor global a pagar de € 18.590,30, devendo a mesma ser anulada por ilegal.

 

Procedendo o pedido de pronúncia arbitral com base no vício de caducidade do direito de liquidação, que assegura efectiva e estável tutela dos direitos da Requerente, fica prejudicado o conhecimento dos outros vícios imputados.

 

Na verdade, como está ínsito no estabelecimento de uma ordem de conhecimento de vícios, no citado artigo 124.º do CPPT, julgado procedente um vício que obste à renovação do acto impugnado, não há necessidade de se apreciar os outros que lhe sejam imputados.

 

7.            DECISÃO

 

                Em face do exposto, acorda este Tribunal Arbitral Singular em:

 

- Julgar improcedente a excepção invocada pela Requerida;

 

– Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), n.º 2019..., no valor de € 10.807,74, respeitante ao exercício de 2014, e o estorno da liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) n.º 2015..., no valor de € 7.782,56, tudo consubstanciado na demonstração de acerto de contas n.º 2019..., que ditou o valor global a pagar pela Requerente de € 18.590,30.

 

* * *

 

                Fixa-se o valor do processo em Euro 18.590,30, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC. 

 

                Condena-se a Requerida em custas no montante de Euro 1.224,00 ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.

             

Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de Setembro de 2020.

 

O Árbitro,

(Henrique Nogueira Nunes)

 

 

Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.