Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 670/2019-T
Data da decisão: 2020-08-27  Selo  
Valor do pedido: € 2.156,68
Tema: Imposto do Selo – Excesso de quota parte de bens imóveis – Falta de fundamentação.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

I.             RELATÓRIO

 

1.            A..., doravante “Requerente”, contribuinte fiscal número ..., com residência fiscal na Rua ... n.º..., ..., ..., ..., São Paulo, Brasil, com representante fiscal nomeado na pessoa de G..., contribuinte fiscal número ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Singular, ao abrigo do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2 do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março, com vista à declaração de ilegalidade e anulação da liquidação de Imposto sobre o Imposto do Selo (“IS”), no valor de € 2. 156,68, referente ao ano de 2018, identificada com o n.º 2018..., bem como os despachos de indeferimento proferidos pelo Serviço de Finanças de Ansião, sobre o antedito ato de liquidação, a 7 de julho de 2019, referentes a cada um dos bens que integravam a herança partilhada através dos processos

n.º ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019... e ...2019... .

 

2.            É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

 

3.            Em 7 de outubro de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT nessa mesma data.

 

4.            Em conformidade com os artigos 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou como árbitro do Tribunal Arbitral Singular a Exma. Sra. Dra. Susana Constantino, que comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável. As Partes, notificadas dessa designação em 27 de novembro de 2019, não manifestaram vontade de a recusar, nos termos dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

 

5.            O Tribunal Arbitral Singular ficou constituído em 30 de dezembro de 2019.

 

6.            A Requerida foi notificada através de despacho arbitral, de 6 de janeiro de 2019, para os efeitos previstos no artigo 17.º da RJAT.

 

7.            A Requerida, a 30 de janeiro de 2019, requereu a prorrogação do prazo para apresentação de Resposta e a junção do Processo Administrativo.

 

8.            O Tribunal Arbitral, por despacho datado de 9 de março de 2019, deferiu o requerimento da AT (conforme ponto anterior) e prorrogou o prazo para apresentação de Resposta e a junção do Processo Administrativo até 24 de março de 2019.

 

9.            A Requerida apresentou, a 17 de março de 2019, a Resposta juntando, de igual modo, cópia do Processo Administrativo.

 

10.          O Tribunal Arbitral, por despacho datado de 25 de março de 2019, tendo em consideração que não foram arroladas testemunhas nem requeridas diligências probatórias adicionais, questionou ambas as Partes sobre a necessidade de realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e forma de alegações.

 

11.          A 27 de março de 2019 veio o Requerente pronunciar-se no sentido de prescindir de realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT preferindo, contudo, manter a apresentação de alegações escritas.

 

12.          Da parte da Requerida não houve qualquer resposta pelo que não foi possível desenvolver a tramitação processual. Nesta medida, o Tribunal Arbitral, por despacho datado de 7 de junho de 2019, veio prorrogar o prazo para prolação e notificação da decisão arbitral pelo período de 2 meses a contar de 30 de junho de 2019.

 

13.          A Requerida, em 8 de junho de 2019, veio pronunciar-se no sentido de também prescindir de realizar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT preferindo, não obstante, manter a apresentação de alegações escritas.

 

14.          O Tribunal Arbitral, por despacho de 17 de junho de 2019, notificou ambas as Partes para apresentarem alegações simultâneas por escrito no prazo de 10 dias.

 

15.          As alegações foram apresentadas a 30 de junho quer pelo Requerente quer pela Requerida.

 

16.          De acordo com as alegações apresentadas, a posição do Requerente é, em resumo, a seguinte:

 

16.1.      O Requerente invoca o vício por falta de fundamentação do ato de liquidação uma vez que a Requerida se limita a afirmar a existência de um “alegado” excesso de quota parte de imóveis em divisões ou partilhas, sem qualquer indicação adicional, não sendo sequer possível aferir qual o entendimento da AT aquando da emissão da antedita nota de liquidação.

16.2.      Numa tentativa de aferir o entendimento que conduziu à liquidação em causa, o Requerente admitiu equacionar um de dois cenários: i) num primeiro cenário, a Sr.ª D.ª B... deveria ter também sido considerada como herdeira dos bens do Sr. C..., ao lado dos seus três filhos; ou, ii) num segundo cenário, a meação da Sr.ª D.ª B... teria de, obrigatoriamente, ter integrado metade de todos os bens que compunham o património do casal, aqui incluindo os bens imóveis.

16.3.      O primeiro cenário terá que ser afastado, uma vez que, caso contrário, estar-se-ia a incorrer numa contradição direta com os regulamentos e leis aplicáveis à sucessão.

16.4.      Por outro lado, no que se refere ao segundo cenário equacionado, considera o Requerente incompreensível tal entendimento uma vez que parece indicar que o problema, para a AT, está no facto de os herdeiros terem partilhado entre si 100% de todos os bens quando, alegadamente, apenas teriam direito a 50%.

16.5.      Contudo, no entendimento do Requerente, “o legislador não pretendeu que cada bem (individualmente tratado) que integrasse a comunhão fosse detido em 50% por um dos cônjuges, e em 50% pelo outro; desde logo porque, na constância do matrimónio, nenhum dos cônjuges tem direito a (qualquer) bem individualizado, mas antes a uma quota – abstrata, indeterminada – correspondente a metade do valor do património (conjugal) total.”.

16.6.      Face ao exposto, nem o Requerente nem nenhum dos herdeiros recebeu bens de valor superior à sua quota-parte na herança, tendo cada um recebido, enquanto herdeiro do Sr. C..., justamente o que lhe competia a título de quinhão hereditário.

16.7.      Não tendo existido um "excesso da quota parte de imóveis em divisões ou partilhas", a tributação imposta pela liquidação subjacente aos atos de indeferimento da reclamação graciosa afigura-se ilegal.

16.8.      Nestes termos, devem os referidos atos de indeferimento, respeitantes a cada um dos bens imóveis, ser anulados com todos os efeitos legais, e, consequentemente, deve ser ordenada a anulação da liquidação de imposto do selo que lhes está subjacente, com os respetivos efeitos legais, designadamente a restituição do valor pago pelo Requerente.

17.          Por seu turno, de acordo com as alegações apresentadas, a posição da Requerida é, em síntese, a seguinte:

 

17.1.      A liquidação de IS aqui impugnada resulta do procedimento de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), nos termos do artigo 1 n.º 1 do Código do IMT, bem como do artigo 1 n.º 1 do Código do IS acrescido da verba 1.1 da Tabela Geral do Imposto do Selo (TGIS). Assim, para que haja lugar a tributação em sede deste imposto, é necessário que a alguns dos interessados seja adjudicado bens imóveis em valor que exceda a sua quota ideal nesses bens.

17.2.      A quota ideal é determinada em função da totalidade dos bens imóveis a dividir ou a partilhar, nos termos estabelecidos na regra 11.ª, do n.º 4, do artigo 12.º do CIMT, correspondendo o valor tributável ao respetivo valor patrimonial tributário, ou, caso seja superior, ao valor que serviu de base à partilha.

17.3.      Mas é importante salientar que, para efeitos de cálculo de imposto, a referência é a quota ideal nos bens imóveis e não da quota hereditária referida pela Requerente sendo que, para efeitos de IMT e da verba 1.1 da TGIS releva apenas a transmissão de bens imóveis (nos termos do Artigo l., n.º 1 do Código do IMT, artigo 1., n.º 1 do Código  do  IS e verba  1.1  da TGIS). 

17.4.      Nesta medida, no entendimento da Requerida, daqui resulta que “para chegar à quota ideal apenas concorrem os bens imóveis, razão pela qual, importa verificar se se revela correto o excesso em bens imóveis, apurado na liquidação efetuada ao sujeito passivo.”.

17.5.      No que respeita à liquidação controvertida, o excesso em bens imóveis apurado, resulta da consideração de uma quota de 1/2 para o cônjuge sobrevivo e de quotas de 1/6 para os herdeiros.

17.6.      Partindo dessa premissa, uma vez que a atribuição dos imóveis na partilha se fez unicamente a favor dos filhos na proporção de 1/3 para cada, apurou-se um excesso correspondente a metade, ou seja, a 1/6.

17.7.      Contrariamente ao alegado pelo Requerente é facto assente que a partilha celebrada é, sem dúvida uma transmissão onerosa, na medida em que a partilha de bens imóveis gerará imposto na medida em que uma das partes fique com bens imóveis em valor superior ao da respetiva quota-parte na totalidade dos imóveis objeto da partilha.

17.8.      A transmissão é onerosa, porque conforme se consagrou na partilha, foram adjudicados ao Requerente bens imóveis em valor que excedeu a sua quota ideal nesses bens imóveis.

17.9.      Por esse facto fica imediatamente verificado o pressuposto constante da alínea c) do referido n.º 5 do artigo 2.º do Código do IMT por ter ficado determinado na partilha que foram adjudicados bens imóveis em valor que excedeu a sua quota ideal nesses bens, concluindo, por conseguinte, a Requerida que a liquidação impugnada nos autos é legal, nos termos dos artigos 2.º n.º 1 do Código do IMT, 1.º n.º 1 do Código do IS e verba 1.1 da TGIS, razão pela qual deve ser mantida.

17.10.    Relativamente à alegada falta de fundamentação da liquidação de IS, o Requerente não tem razão nos argumentos invocados, desde logo, porque dos documentos juntos aos autos, verifica-se que a liquidação em causa cumpre todos os requisitos, nomeadamente contém as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos atos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo, conforme estabelece o artigo 77.º da LGT. Acresce, que se considera que o ato está devidamente fundamentado sempre que o destinatário do ato revele ter compreendido os seus fundamentos.

17.11.    Ora, no caso em apreço, e do teor da petição inicial ficou devidamente comprovado que o Requerente compreendeu todas as razões que fundamentaram o ato visado, não tendo demonstrado qualquer incompreensão quanto aos fundamentos da liquidação impugnada.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos liquidação de IS, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

A cumulação de pedidos é admissível, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, atendendo a que os atos tributários, apesar de se reportarem a 10 processos de reclamação graciosa, respeitam a IS e derivam de idênticas circunstâncias de facto e estão sujeitos aos mesmos princípios e regras de direito.

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A)           A 13 de outubro de 2017, no Brasil, ocorreu o óbito do Sr. C...,

B)           O Requerente assumiu a posição de herdeiro legítimo, juntamente com a sua mãe e os seus dois irmãos, (conforme cópia da escritura de Habilitação de Herdeiros, de 31 de janeiro de 2018, que consta como Documento n.º 7 anexo ao pedido de pronúncia arbitral, que se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);

C)           A 18 de julho de 2018, mediante escritura de partilha, foi reconhecido que o falecido - Sr. C...– faleceu em São Paulo, Brasil, se qualquer testamento ou outra disposição de vontade, no estado de casado, em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão de adquiridos com C..., com última residência habitual na ..., ..., ..., ..., ..., São Paulo, Brasil;

D)           Sucederam ao falecido, como seus únicos herdeiros legítimos:

a)            A sua mulher, C...;

b)           Os três únicos filhos do casal, D..., E... e A... .

E)            À data da abertura da sucessão o valor total do património, constituído por bens e direitos adquiridos na constância do matrimónio, correspondia a €5.298.175,99 (cinco milhões duzentos e noventa e oito mil cento e setenta e cinco euros e noventa e nove cêntimos);

F)            Conforme se comprova pela antedita cópia da escritura de partilha, foi adjudicada à viúva, a título de meação no património comum, o valor de €2.649.088.00 (dois milhões seiscentos e quarenta e nove mil e oitenta e oito euros), constituído por parte do crédito de suprimentos detido sobre a sociedade F... Lda.;

G)           O património remanescente no valor de €2.649.088,00 (dois milhões seiscentos e quarenta e nove mil e oitenta e oito euros) reportado na antedita escritura de partilha sob as verbas 1 a 20, 22 a 26 e, ainda, a parte remanescente do crédito de suprimentos descrito sob a verba 21, foi adjudicado em compropriedade e em partes iguais ao Requerente e aos seus dois irmãos;

H)           Foi requerida por B... – esposa do falecido e mãe do ora Requerente – junto do Serviço de Finanças de Ansião a liquidação em sede de IMT e IS;

I)             Na sequência da Certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Ansião, relativamente à partilha em causa, foram efetuadas as seguintes liquidações:  

a)            Liquidação de IMT n.º ... no montante de € 15.581,64;

b)           Liquidação de IS n.º 2018..., no montante de € 2.156,68.

J)            O IS liquidado foi pago a 12 de novembro de 2018, conforme documento 10 da petição inicial cujo teor se considera integralmente reproduzido.

K)           O Requerente apresentou, a 12 de março de 2019, reclamação graciosa contra a liquidação de IS acima identificada nos termos e para os efeitos dos artigos 68.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT);

L)            A apresentação da antedita reclamação graciosa deu origem, por parte da AT, a dez processos de reclamação graciosa (um processo por cada um dos bens imóveis que integrantes da herança partilhada) com os seguintes números de identificação de processos: ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019... e ...2019...;

M)          Pelos Ofícios n.º..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ..., veio a AT notificar o Requerente para, nos termos do artigo 60º da Lei Geral Tributária (“LGT”), querendo, exercer o direito de audição prévia;

N)           Através do Ofício..., de 4 de julho de 2019, foi o Requerente notificado do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada replicando-se para os restantes 9 processos o teor da comunicação da AT ao Requerente (através dos Ofícios n.º..., ..., ..., ..., ..., ..., ..., ... e ...).

 

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

Com relevo para a decisão da causa não existem factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

Assim, os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual foi estabelecida tendo em conta as questões de Direito suscitadas. Tendo em consideração as posições assumidas pelas partes e a prova documental, junta aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

A principal questão que importa apreciar e decidir respeita ao vício por falta de fundamentação relativamente ao ato tributário de liquidação de IS e aos atos de indeferimento da reclamação graciosa.

 

Por outro lado, também importa decidir sobre a ilegalidade e anulação da liquidação impugnada e a possibilidade de cumulação de pedidos.

 

2.            ANÁLISE

 

O processo arbitral tributário, como meio alternativo ao processo de impugnação judicial (n.º 2 do artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril), é, como este último, um meio processual de mera legalidade, que visa a declaração de ilegalidade de atos dos tipos indicados no artigo 2.º do RJAT e a eliminação dos efeitos jurídicos por eles produzidos, anulando-os, através de uma pronúncia constitutiva e cassatória, ou declarando a sua nulidade ou inexistência [artigos 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º daquele diploma].

 

Por isso, sendo o objeto de apreciação do Tribunal Arbitral o ato praticado, a sua legalidade tem de ser apreciada à face do seu teor, tal como foi praticado, não podendo o Tribunal, perante a constatação da invocação de um fundamento ilegal como suporte da decisão administrativa, apreciar se a sua atuação poderia basear-se noutros fundamentos .

 

Por outro lado, e em essência, sendo o ato impugnado o objeto do processo, não está em causa apreciar se os argumentos invocados pelo Requerente representam a correta aplicação da Lei aos factos, mas apurar se a correção efetuada pela Autoridade Tributária e Aduaneira tem suporte legal. Assim, e enquadrado pelos argumentos invocados pelo Requerente, importa analisar o ato de liquidação que constitui o objeto dos presentes autos de forma a determinar se o mesmo respeita os princípios e normas jurídicas aplicáveis.

 

Para tanto é necessário que o Tribunal possa perceber qual iter volitivo da Requerida na prática do ato. Ou seja, perceber os factos subjacentes e quais as disposições legais aplicáveis. Esta análise revela-se fundamental na justa medida em que o requerente invoca, entre o mais, a falta de fundamentação do ato de liquidação cuja legalidade aqui se aprecia.

 

                De acordo com os factos dados como provados, o Requerente foi notificado do ato de liquidação de IS. Do referido ato de liquidação resulta apenas a menção a 33 – excesso de quota parte de imóveis em divisões ou partilhas. Nada mais é referido, ou qualquer disposição legal invocada (apenas é feita referência a verba 1.1, que se assume, porque nenhuma referência é feita, da Tabela Geral do Imposto do Selo).

 

                Ora, o artigo 77.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária dispõe que, mesmo quando efetuada de forma sumária, a fundamentação dos atos tributários deve, sempre, “conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos atos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.

 

Ou seja, impende sobre a Requerida o dever legal de fazer referência expressa às disposições legais aplicáveis, sendo que a fundamentação que não contenha esta referência é sempre insuficiente.

 

Só fazendo expressa referência aos elementos elencados no referido artigo 77.º da Lei Geral Tributária se dará devido cumprimento à lei, não podendo, por consequência a Requerida omitir os elementos de facto e as disposições legais aplicáveis. Ao fazê-lo não só resultam prejudicadas as possibilidades de defesa do sujeito passivo, como se impede o Tribunal de efetuar um juízo crítico sobre a legalidade do ato de liquidação. Com efeito, embora a Requerida refira que o Requerente compreendeu a motivação subjacente ao ato, a verdade é que este é explícito no Requerimento Inicial no sentido de que irá alvitrar cenários possíveis. E, perante tais cenários a Requerida, em sede própria, apresentou a sua argumentação aplicando a Lei aos factos. Não obstante, em face do teor do ato de liquidação e atos que o instruem é impossível saber se algum dos cenários conjeturados pelo Requerente e contra-argumentados pela Requerida corresponde ao percurso cognoscitivo seguido na emissão do ato de liquidação. Ou seja, não é possível ao Tribunal saber se toda a argumentação expendida por cada uma das partes se relaciona com a motivação do ato de liquidação. Desde logo porque nenhuma norma legal é invocada e a descrição factual se limita a um lacónico e conclusivo excesso de quota parte

 

O dever de motivação ou de fundamentação de qualquer ato administrativo ou tributário tem associadas duas finalidades: (i) por um lado, inteirar o respetivo destinatário das razões ou dos motivos que conduziram à tomada de decisão em determinado sentido; e (ii) por outro lado, permitir que se faça um controlo sobre a legalidade da decisão e sobre a validade dos motivos que subjazem a determinada decisão concreta.

 

Como ensina Vieira de Andrade, “o imperativo de fundamentação expressa (...) desempenha, assim, tipicamente, um papel de garantia funcional, com a pretensão de assegurar a racionalidade e a controlabilidade dos momentos característicos da função administrativa, daqueles em que os órgãos da Administração tomam decisões de autoridade que produzem modificações jurídicas no mundo externo” (cfr. ANDRADE, JOSÉ CARLOS VIEIRA; O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Coimbra, 1992, p. 215).

 

Contudo, a liquidação em apreço é omissa quanto à necessária fundamentação de direito e conclusiva quando à fundamentação de facto.

 

Também neste sentido, o Supremo Tribunal Administrativo se pronunciou no sentido de “(…) A Administração Tributária tem o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268º da CRP e acolhido nos arts. 125º do CPA e 77 º da LGT. (…) O acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487º nº 2 do Código Civil – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de impugnação, e de molde a que, nesta última circunstância, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual. (…) Significa isto que a fundamentação, ainda que feita por remissão ou de forma muito sintética, não pode deixar de ser clara, congruente e encerrar os aspectos, de facto e de direito, que permitam conhecer o itinerário cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração para a determinação do acto.”, em sede do Processo n.º 01690, de 23 de abril de 2014.

 

O respeito pelos mais elementares direitos dos contribuintes obriga a que a fundamentação seja contemporânea e contextual e não se presuma, devendo resultar de forma clara, expressa e inequívoca do próprio ato.

 

O mesmo entendimento é perfilhado pelo Supremo Tribunal Administrativo onde, em sede do Processo n.º 0512717, de 14 de março de 2018, refere que “(…) o dever legal de fundamentação do acto administrativo cumpre uma dupla função: endógena, ao exigir ao decisor a expressão dos motivos e critérios determinantes da decisão, assim contribuindo para a sua ponderação e transparência; exógena, ao permitir ao destinatário do acto uma opção esclarecida entre a conformação e a impugnação graciosa ou contenciosa (cfr. o ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05). Daí que essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto. Ou seja, a fundamentação formal do acto tributário é distinta da chamada fundamentação substancial, devendo esta exprimir a real verificação dos pressupostos de facto invocados e a correcta interpretação e aplicação das normas indicadas como fundamento jurídico.”.

 

Em face do que se deixa indicado, não sendo possível ao Tribunal perceber o iter cognoscitivo da Autoridade Tributária e Aduaneira na prática do ato de liquidação conclui-se que o mesmo viola o disposto nos artigos 268.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e 77.º da Lei Geral Tributária, devendo ser declarado ilegal e anulado.

 

Em face do que se deixa exposto parece curial que se conclua que o ato de liquidação impugnado não se mostra fundamentado nos termos legalmente adequados, impondo-se, a respetiva anulação por violação do disposto nos artigos 103.º, n.º 2, 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e 77.º da Lei Geral Tributária.

 

* * *

 

Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, decide o árbitro deste Tribunal Arbitral em julgar totalmente procedente o pedido arbitral, conforme se refere e:

 

a)            Anular o ato de liquidação de Imposto do Selo 2018..., no montante de € 2.156,68, por vício de falta de fundamentação;

b)           Anular os despachos do Chefe do Serviço e Finanças de Ansião de indeferimento das reclamações graciosas n.ºs ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019..., ...2019... e ...2019...;

c)            Condenar a Requerida nas custas arbitrais

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 2.156,68, indicado pelo Requerente e não contestado pela Requerida, correspondente ao valor da liquidação de IS cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                O montante das custas é fixado em €612,00 (seiscentos e doze euros) a cargo da Requerida, nos termos da Tabela I do RCPAT, em cumprimento do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, bem como do disposto no artigo 4.º, n.º 4, do RCPAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 27 de agosto de 2020

 

O Árbitro,

Susana Constantino de Carvalho Furtado