Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 848/2019-T
Data da decisão: 2020-07-22  ISV  
Valor do pedido: € 1.222,80
Tema: ISV – Prazo de impugnação; Caducidade.
Versão em PDF

DECISÃO ARBITRAL

 

RELATÓRIO

 

1.            A..., com o NIF..., residente no ..., n.º..., ..., ...-... ... (Requerente), apresentou, no dia 11 de Dezembro de 2019 , requerimento de constituição de tribunal arbitral, nos termos do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 10.º, n.º 1, al. a), do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária - RJAT).

2.            Pretendia que fosse declarada a ilegalidade e se procedesse à consequente anulação parcial do acto de liquidação de Imposto sobre Veículos (ISV) n.º 2019/..., da Delegação Aduaneira da Figueira da Foz, no montante total de € 16.273,02, consubstanciado na Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2019/...com data de “2019-09-19” , com “Termo do prazo” em “2019-08-26”, e com “Data Cobrança” de “2019-09-18”, e no Documento Único de Pagamento (DUC) n.º 2019/....

3.            Aceite o pedido em 12 de Dezembro, foi nomeado o presente árbitro, que aceitou a designação no prazo aplicável, e, não tendo a Requerente, nem a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT ou Requerida), suscitado qualquer objecção, ficou o Tribunal arbitral constituído em 5 de Março de 2020.

4.            Seguindo-se os normais trâmites, em 30 de Março a AT apresentou resposta em que, entre o mais, suscitou a excepção de caducidade do direito de acção e juntou o processo administrativo (PA).

5.            Em 4 de Junho, depois de cessar a suspensão dos prazos para prática de actos processuais decorrente da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, a dispensar a produção de alegações – sujeita à não oposição das Partes – e a fixar o dia 15 de Julho como data previsível para a pronúncia da decisão arbitral em caso de não oposição a essa dispensa. 

6.            Como as Partes nada dissessem no prazo fixado, foi notificada o Requerente, em 6 de Julho, para se pronunciar sobre excepção suscitada pela Requerida.

7.            No prazo fixado, o Requerente apresentou a sua resposta.

8.            No dia 15 de Julho foi proferido novo Despacho, adiando para o dia 22 de Julho a data previsível para ser proferida a decisão final.

 

I.             PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS

 

9.            O tribunal arbitral foi regularmente constituído e o pedido de pronúncia contém-se no âmbito das suas atribuições.

10.          As Partes gozam de personalidade e de capacidade judiciárias, são legítimas, e encontram-se regularmente representadas.

11.          A AT, porém, invocou uma excepção de “Caducidade do direito de ação” com fundamento em que “o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral era de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, que, no caso vertente, ocorreu, relativamente à liquidação em causa, em 26.08.2019, conforme foi, expressamente, notificado ao contribuinte.”

12.          Isto porque, acrescentava, “Nos termos do artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Regime da Arbitragem Tributária, em conjugação com o n.º 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o prazo para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral era de 90 dias, contados a partir do termo do prazo para pagamento da prestação tributária, que, no caso vertente, ocorreu, relativamente à liquidação em causa, em 26.08.2019, conforme foi, expressamente, notificado ao contribuinte.”

13.          De facto:

- nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 10.º do RJAT

1 - O pedido de constituição de tribunal arbitral é apresentado:

a)            No prazo de 90 dias, contado a partir dos factos previstos nos n.os 1 e 2 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, quanto aos actos susceptíveis de impugnação autónoma e, bem assim, da notificação da decisão ou do termo do prazo legal de decisão do recurso hierárquico;

(…)

 

e

- nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário [CPPT] (o n.º 2 foi revogado e as demais alíneas desinteressam ao caso),

1 - A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:

a)            Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

(…)

 

14.          Como o Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) do Requerente só deu entrada no CAAD em 11 de Dezembro de 2019, para lá desse prazo de 90 dias, teria entretanto caducado o seu direito de acção.

15.          Retorquiu o Requerente, juntando um documento, que o seu Pedido de Pronúncia Arbitral (PPA) foi tempestivo, porque, nas suas palavras, “reclamou dos valores cobrados a título de ISV, por considerar ter sido aplicado erradamente o método de cálculo”, e porque só procedeu ao pagamento do montante de imposto no dia 19 de Setembro de 2019, como a própria DAV junta aos autos comprova.

16.          Vejamos então, em face do que consta dos documentos juntos aos autos e do que já ficou estabelecido no Relatório:

17.          Quanto à data de pagamento é verdade o que o Requerente invoca, como indubitavelmente resulta quer da Informação produzida pela AT no âmbito dessa Reclamação (com o n.º ...2019...) – em que se escreve, com data de 18 de Setembro de 2019, que “verifica-se que, até à presente data, o DUC encontra-se por pagar.”) –, quer da (2.ª versão da) Declaração Aduaneira de Veículo (DAV) n.º 2019/..., com data de “2019-09-19”, junta aos autos – onde, no campo “T - Liquidação”, muito embora conste “2019-08-26” como “Termo do prazo”, consta igualmente “2019-09-18” como “Data Cobrança”.

18.          Dá-se o caso, porém, de – ao invés do invocado pelo Requerente – a Reclamação apresentada nada ter tido a ver com um qualquer erro da AT, ou com qualquer desconformidade das disposições legais aplicáveis com as normas da União, mas sim com um erro do Requerente: o fundamento da Reclamação era um erro seu na determinação do referente para a tributação (o sistema WLTP, em vez do sistema NEDC, que julgara aplicável), e o que pedia era a anulação da (1.ª versão da) DAV. Segundo referido na Informação que sustentou o indeferimento da Reclamação , o interessado “requer a anulação da DAV e declara que vai proceder à devolução do veículo ao fornecedor.”

19.          Essa anulação do DAV veio a ser indeferida, tendo o Requerente sido notificado, para audição prévia, por Ofício com data de 23 de Outubro de 2019, já depois de ter efectuado o pagamento em causa nos autos.

20.          De resto, se bem se entende, não é tanto com base na decisão dessa Reclamação que o Requerente alega estar em tempo para obter pronúncia arbitral, mas sim com base na efectiva data de cobrança (2019-09-18), e na inadmissibilidade de uma espécie de venire contra factum proprium da AT: “ao ter sido efetivamente pago em 18.09.2019 e a Autoridade Tributária ter permitido esse pagamento posterior, terá forçosamente que se considerar ser esta a data na qual se inicia a contagem para apresentação do pedido de constituição do tribunal arbitral” (destaque aditado).

21.          Uma vez que resulta expressamente da lei que o prazo para pedir a constituição de tribunal arbitral é de 90 dias , uma vez que é indiscutível que se trata de prazo substantivo, a contar nos termos do artigo 279.º do Código Civil , e uma vez que é indesmentível que a data de efectivo pagamento ocorreu depois do termo do prazo fixado para o pagamento,

22.          o que divide as Partes só pode estar na resposta à questão de saber se o pagamento aceite pela AT depois do termo do prazo notificado para pagamento ainda se pode considerar “pagamento voluntário”.

23.          Se for pagamento voluntário, o dies a quo conta-se da data desse pagamento e o PPA estava em tempo; se não for pagamento voluntário, o dies a quo conta-se da data fixada para o pagamento e o PPA foi apresentado depois de caducado o direito de acção .

24.          Acontece que o próprio DUC emitido com 2019-08-26 como “Data Limite de Pagamento” continha a seguinte advertência: “Caso não seja observado o referido prazo, pode ainda efetuar o pagamento nos 30 dias seguintes, acrescido dos respectivos juros de mora.”

25.          O facto de tais juros de mora terem ou não terem sido pagos irreleva, porquanto, nos termos do artigo 79.º do CPPT, “Constitui pagamento voluntário de dívidas de impostos e demais prestações tributárias o efectuado dentro do prazo estabelecido nas leis tributárias.”

26.          E, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, são sujeitos a juros de mora “Contribuições, impostos, taxas e outros rendimentos quando pagos depois do prazo de pagamento voluntário;”

27.          Como, aliás, a jurisprudência há muito vem entendido: “pagamento voluntário” é o que é “efectuado dentro do prazo estabelecido nas leis tributárias, sem juros de mora.” 

28.          Assim sendo, tem de se concluir que quando o pagamento foi feito estava já sujeito ao pagamento de juros de mora e, portanto, não podia ser considerado “voluntário”.

29.          Não sendo considerado voluntário, não pode contar-se a partir dele o prazo de 90 dias previsto na norma combinada das alíneas a) dos ns. 1 dos artigos 10.º do RJAT e 102.º do CPPT.

30.          A invocada, pelo Requerente, aceitação do pagamento por parte da AT não incorpora, portanto, qualquer alteração tácita do prazo de pagamento: incorpora um efeito legalmente previsto que modifica a natureza do pagamento original (deixa de ser um pagamento voluntário) e dá origem a um efeito novo (a dívida de juros de mora).

31.          Contado então do prazo limite de pagamento, conclui-se que o PPA foi interposto quando já tinha caducado o direito. Como se escreveu no Acórdão arbitral proferido no Processo n.º 713/2016-T,

Dado que a caducidade do direito à ação consubstancia uma exceção peremptória, impeditiva do conhecimento do mérito da causa, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 576.º, do CPC [alínea e) do artigo 2.º do CPPT e alíneas a) e e) do n.º 1 do (ex vi artigo 29.º do RJAT)] deve, em consequência, ser a Requerida absolvida do pedido, uma vez que a caducidade do direito de ação obsta à produção dos efeitos jurídicos pretendidos pela Requerente.

 

III.          DECISÃO

Termos em que decide este Tribunal arbitral singular julgar procedente a excepção de caducidade do direito à acção e, em consequência, absolver a Requerida do pedido de pronúncia arbitral, condenando o Requerente nos encargos do presente processo.

 

IV.          VALOR DO PROCESSO

Competindo ao Tribunal fixar o valor da causa (artigo 306.º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável por força do artigo 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT) e devendo ele, correspondendo à utilidade económica do pedido, equivaler à importância cuja anulação se pretende (alínea a) do n.º 1 do artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, ex vi da alínea a) do artigo 6.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária - RCPAT), fixa-se o valor do processo em €1.222,80 (mil duzentos e vinte e dois euros e oitenta cêntimos) por ter sido o valor peticionado pelo Requerente e não contestado pela AT.

 

V.           CUSTAS

Custas a cargo do Requerente, no montante de € 306,00 (trezentos e seis euros), nos termos da Tabela I do RCPAT e do disposto no seu artigo 4.º, n.º 5, e nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, dado que, ainda que no cumprimento da lei, deu causa ao presente processo (nos termos das regras gerais dos ns. 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT).

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de Julho de 2020

 

O Árbitro Singular

 

Victor Calvete

A redacção da presente decisão segue a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990 excepto em transcrições que o sigam.