Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 506/2019-T
Data da decisão: 2020-07-30  ISP  
Valor do pedido: € 868.041,39
Tema: ISP – regime das operações de importação de produtos petrolíferos – declaração de introdução no consumo.
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DECISÃO ARBITRAL  (consultar versão completa no PDF)

 

Os árbitros Dra. Fernanda Maçãs (árbitro presidente), Prof. Doutor Carlos Lobo e o Prof. Doutor Sérgio Vasques (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o presente Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., com sede na ..., ..., ..., ..., ...-... ..., pessoa coletiva n.º..., Serviço de Finanças de Vila Franca de Xira–..., requereu a constituição de tribunal arbitral em matéria tributária tendo em vista a anulação do ato de liquidação oficiosa n.º 2019/... de 08 de maio de 2019, no montante de € 866.756,62, incluindo juros compensatórios.

Em 29 de julho de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação à Autoridade Requerida (“AT”, ou “Requerida”), a 2 de agosto de 2019.

Notificada a Requerida do Pedido de constituição do Tribunal Arbitral, veio informar, a 17 de setembro de 2019, nos termos e para os efeitos do artigo 13.º, n.º 1, do RJAT, que, por despacho do Senhor Subdiretor-Geral da AT, de 28 de agosto, fora ordenada a revogação parcial do ato de liquidação (no montante  total de €866.756,62, incluindo juros compensatórios), praticado pelo Diretor-Geral da Alfândega de Alverca, considerando-se que os montantes da dívida total apurada deviam ser corrigidos nos seguintes termos: - dívida total de €641.739,48, correspondendo €472.101,76 a Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos e energéticos, €147.030,86 a Contribuição do Serviço Rodoviário, e €22.606,86 ao Adicionamento sobre as emissões de CO2, nos termos dos artigos 92.º e 92.º -A do CIEC e do artigo 4.º da Lei n.º 55/2007, de 31 de Agosto.

Notificado daquele despacho, veio a Requerente, em 23 de setembro, comunicar o seu interesse no prosseguimento do procedimento.

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável. As partes, notificadas dessa designação, não se opuseram, nos termos dos artigos 11.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 8.º do RJAT, 6.º e 7.º do Código Deontológico do CAAD.

O Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído em 7 de outubro de 2019.

                A argumentação da Requerente assenta, em primeiro lugar, na alteração da natureza do seu estatuto fiscal durante o período analisado pela AT (atuação através de despachante oficial, primeiro, como operador temporário, depois, e, por fim, como operador definitivo) que esta não teve na devida conta na imputação de omissões que só o seriam se o seu estatuto não tivesse sofrido alterações. Em segundo lugar, invoca uma imputação de errada identificação de facturas. Em terceiro lugar, junta documentos comprovativos do infundado de todas as alegadas irregularidades declarativas. Em quarto lugar, imputa aos próprios serviços da AT – no caso, à Alfândega de Alverca do Ribatejo

– a origem das deficiências resultantes do pré-preenchimento de campos que os serviços da AT – no caso, à Direção Operacional do Sul – depois consideraram mal preenchidos. Em quinto lugar, alega a não verificação – ou não solicitação prévia – dos documentos juntos aos autos. Em sexto lugar, demonstra que as alegadas duplicações de faturas decorreram da anulação de uma delas, juntando os documentos comprovativos. Em sexto lugar, mostra a confusão da AT no recurso às unidades de medida “litros” (em singelo) e “litros em graus”. Em sétimo lugar, esclarece que, por lapsos administrativos, algumas faturas suas foram emitidas no ano seguinte ao da transação respetiva, juntando comprovativos. Em oitavo lugar, sustenta que houve equívocos na imputação de faturas aos e-DIC (Declaração de Introdução no Consumo Eletrónica). Finalmente, invoca ainda dificuldade de comunicação entre a equipa de inspeção e a sócia espanhola da empresa que por ela foi interpelada.

Concluiu pedindo a anulação da liquidação oficiosa n.º 2019/... de 8 de maio de 2019, no valor de €866.756,62, a condenação da Requerida na restituição do valor pago, a condenação da Requerida em todas as despesas que teve que suportar na obtenção, junto da Requerida, de documentos que foram juntos aos autos, no valor total de €1.284,77, a condenação da Requerida no pagamento dos juros de mora, até integral pagamento, acrescidas dos juros indemnizatórios devidos, e a condenação da Requerida de todas as taxas devidas ao Centro de Arbitragem Administrativa.

A Requerente juntou 98 documentos e requereu a produção de prova testemunhal.

                Na sua Resposta, a AT começou por suscitar a questão prévia do valor da causa, uma vez que, na sequência do pedido arbitral da Requerente, tendo exercido a faculdade prevista no n.º 1 do artigo 13.º do RJAT, comunicara ao tribunal arbitral, em 17 de setembro de 2019, a decisão de proceder à revogação parcial do ato de liquidação objeto do pedido e executara já o reembolso da quantia que entendia ter sido indevidamente paga.

                Quanto ao fundo, sustentou, primeiro, que as deficiências de registo e falta de documentação comprovativa não tinham sido supridas durante a vigência do processo inspetivo, altura própria para fazer controlos cruzados, e que “a documentação agora junta à PI não foi apresentada no decurso da ação inspetiva, nem em sede de audiência prévia, nem mesmo quando a Requerente foi especificamente notificada para o fazer”. Depois, admitiu que, onde a documentação tinha permitido identificar situações de introdução regular no consumo ou situações irregulares anteriormente regularizadas, tinha sido revogado parcialmente o ato de liquidação. Em terceiro lugar, alegou que, no remanescente, permaneciam incongruências, inconsistências e insuficiências das explicações e da documentação. Em quarto lugar, invocou que a sócia-gerente da Requerente fora notificada para, em três dias, juntar documentos comprovativos de aquisições, e revendas, de combustíveis no mercado nacional, e que, não o tendo feito, o procedimento inspetivo foi encerrado no pressuposto de que todas as aquisições tinham ocorrido em Espanha. Em quinto lugar, questionou a suficiência dos documentos juntos pela Requerente, uma vez que não foram acompanhados de CMR’s ou Guias de Transporte e comprovativos dos respetivos pagamentos, invocando jurisprudência que se refere a um “acrescido grau de exigência probatória” a cargo dos sujeitos passivos.

Em exercício de contraditório à exceção do valor da causa suscitada pela Requerida veio a Requerente, em abuso de contraditório, produzir considerações e alheias à matéria de exceção e juntar 29 documentos. Por despacho de 30 de Novembro o Tribunal ordenou o desentranhamento do referido documento esclarecendo que o contraditório se devia circunscrever à matéria de exceção.

Em 22 de janeiro, o Tribunal proferiu despacho com o seguinte conteúdo:

“1.Atento o disposto no artigo 16.º, alíneas c) e e), do RJAT, conjugado com o disposto no artigo 516.º, n.º1, do CPC, indefere-se o requerimento do SP para comparecerem em tribunal como testemunhas o Dr. B..., a Drª C... e os inspectores D... e E..., porquanto, além de ser o próprio SP a admitir expressamente que no caso em apreço tais testemunhas não tiveram qualquer conhecimento da factualidade indicada, trata-se de matéria que, a ser controvertida e relevante, a prova seria sempre documental ou pericial.

2. Defere-se o requerimento da Requerida quanto à substituição da testemunha Drª F... pela testemunha Drª G... pelos fundamentos indicados.

Do presente despacho, notifiquem-se ambas as partes.”

No dia 3 de fevereiro de 2020, pelas 14h:30, teve lugar no CAAD a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, tendo-se procedido à audiência das testemunhas arroladas pelas partes, bem como à tomada de declaração de parte, solicitada pela Requerente, nos termos da Ata elaborada e que se dá por reproduzida para todos os efeitos legais. As partes foram notificadas para produzirem alegações escritas, no prazo de quinze dias e concedendo à Requerida a faculdade de juntar as suas alegações com carácter sucessivo relativamente às produzidas pela Requerente. O Tribunal designou o dia 7 de Abril de 2020 para o efeito da prolação da Decisão Arbitral, data prorrogada por despachos devidamente fundamentados, tendo-se fixado o dia 6 de agosto, como data limite de prolação da Decisão Arbitral, por despacho de 4 de junho de 2020.

 

Ambas as partes produziram alegações, reiterando as posições anteriormente assumidas.

A AT acrescentou uma referência a uma decisão superveniente do CAAD que considerou que “os erros que afetem as liquidações relativas ao caso concreto, não podem considerar-se imputáveis à AT, quando a prova que justifica a sua anulação apenas foi apresentada no próprio processo arbitral”.

 

II.            SANEAMENTO

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, atenta a conformação do objeto do processo (cf. artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 5.º do RJAT).

No entanto, a Requerente pede a condenação da Requerida no pagamento de despesas que teve junto da Requerida, para obtenção de documentos, no valor total de €1.284,77. Depois de notificada a Requerente para exercer, querendo, contraditório, por o Tribunal ter suscitado oficiosamente a questão da incompetência quanto a este pedido, importa realçar que, consubstanciando o contencioso tributário um contencioso de mera anulação, os poderes dos tribunais arbitrais são ainda mais limitados, prevendo-se apenas a possibilidade de declaração de ilegalidade de atos (cfr. o artigo 2.º, n.º1, do RJAT).O que aponta no sentido de que as decisões se deveriam limitar à mera apreciação da legalidade sem produção de efeitos condenatórios. No entanto, a jurisprudência e a doutrina são unânimes no sentido de essa competência abranger apenas atos condenatórios respeitantes a juros indemnizatórios e a fixação de indemnização por garantia indevida.

Termos em que se julga este tribunal incompetente para conhecer do pedido de condenação da Requerida no pagamento de despesas, que teve junto da Requerida, para obtenção de documentos, no valor total de €1.284,77.

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

                Como vimos, na Resposta veio a Requerida suscitar questão prévia quanto ao valor da causa, uma vez que havia procedido à revogação parcial do ato de liquidação e corrigido os valores inicialmente liquidados, tendo já sido executado o reembolso à Requerente do montante de € 206.196, 32, em 9 de outubro de 2019.

Assim sendo, tendo em conta que o valor da causa deve corresponder ao montante a anular e que, na sequência da decisão de revogação parcial do ato de liquidação nº 2019/..., a Requerente foi reembolsada do montante de € 206.196,32, o valor atendível para atribuir o valor à causa devia ser o correspondente a € 660.560,30, liquidado a título de Imposto Sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), Contribuição do Serviço Rodoviário (CSR), ao adicionamento sobre as emissões de C02 e juros compensatórios.

                  Vejamos.

Na determinação do valor da causa deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, nos termos do artigo 299.º, n.º 1, do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.

Por aplicação adaptada ao processo arbitral do artigo 259.º, n.º 1, do CPC, a instância inicia-se pela propositura da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente, logo que seja recebida na secretaria do CAAD o pedido de constituição do Tribunal Arbitral.

Assim sendo, nas palavras de Jorge Lopes de Sousa, “são irrelevantes as modificações de valor que possam advir da revogação, ratificação, reforma ou conversão do ato tributário cuja ilegalidade foi suscitada ou de desistência ou redução de pedidos”.

Segundo o mesmo Autor, “Da mesma forma não implicarão alteração ao valor da causa, eventuais ampliações do pedido primitivo que se considerem admissível, por serem, desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (artigo 265.º, n.º2, do CPC), como, por exemplo, aumento derivado de juros indemnizatórios ou de indemnização por garantia indevida” (Cfr. Guia da Arbitragem Tributária, 3ª ed., Almedina, Coimbra, p. 155).

Em face do exposto, não assiste razão à Requerida, mantendo-se o valor da causa tal como indicado no Pedido Arbitral.  

Não existem nulidades.

Cumpre apreciar e decidir.

 

III.           FUNDAMENTAÇÃO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO

1.1.        FACTOS PROVADOS

Com relevo para a decisão da causa, atendendo às posições assumidas pelas partes, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

a.            A A... (Requerente) tem como atividade principal o comércio a retalho de combustível para veículos a motor, em estabelecimentos especializados. Tem o estatuto de destinatário registado com o número IEC PT..., mas não armazena combustíveis.

 

b.            Durante o período em causa, a Requerente teve diversos estatutos fiscais no que concerne ao estatuto que tinha como operador:

i.             Depois de, desde o início de 2017, ter tido um despachante oficial a tratar do apuramento dos impostos, desde fevereiro de 2017 a 28 de julho de 2017 a Requerente teve o estatuto fiscal de operador temporário, tendo de solicitar vias à Alfândega de Alverca do Ribatejo para adquirir combustíveis em Espanha em quantidade superior a 32.000 litros, sendo esta a proceder à emissão de toda a documentação. Só após o pagamento de todos os impostos era autorizado e efetuado o transporte.

ii.            Desde 28 de julho de 2017 a Requerente é um Operador definitivo e registado, pelo que faz a entrega das declarações na plataforma da AT, procedendo ao pagamento dos impostos no final de cada mês.

 

c.            Em 17 de outubro de 2018 a Direção Operacional do Sul iniciou uma ação de natureza inspetiva junto da A..., visando a verificação do cumprimento das obrigações tributárias em sede de Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP), no período compreendido entre 1 de janeiro de 2017 e 17 de outubro de 2018.

 

d.            Através do ofício n.º 213, de 9 de março de 2019, a A... foi notificada para se pronunciar sobre o projeto de conclusões da ação inspetiva e exerceu o seu direito de audição por escrito.

 

e.            O Relatório Final deu origem à notificação da liquidação oficiosa na importância total de €866.756,62.

 

f.             Notificada do relatório final da ação inspetiva e para proceder ao pagamento da dívida apurada, através do ofício n.º..., de 9 de maio de 2019, da Alfândega de Alverca, veio a Requerente a proceder ao pagamento voluntário em 27 de maio de 2019.

 

g.            Apresentado o pedido de constituição e pronúncia do tribunal arbitral, a AT aceitou parte da argumentação e documentação apresentada ex novo pela Requerente, dando lugar à correção do montante da dívida de imposto apurada para €641.739,48, acrescido de juros.

 

h.            Na sequência da reunião prevista no artigo 18.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, a Requerente juntou o seguinte Quadro-Síntese das situações em que a AT descortinou irregularidades, bem como dos elementos de prova que, em sua opinião, devem demonstrar a sua inexistência:

 

i.             Dão-se como provados os factos mencionados no quadro supra por os mesmos terem sido confirmados pelas testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, tal como consignado na respetiva ata.

j.             Na sequência da revogação parcial do ato de liquidação a Requerida procedeu ao reembolso à Requerente de €206.196,32.

 

1.2.        FACTOS NÃO PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa não se provaram outros factos relevantes.

 

1.3.        Fundamentação da matéria de facto

 

Os factos dados como provados baseiam-se essencialmente nos documentos juntos aos autos pela Requerente, na documentação constante do processo administrativo, na apreciação pelo tribunal da posição das partes e na prova testemunhal.

Todos os documentos identificados no quadro referido no ponto h) dos Factos Provados foram juntos aos autos, são autênticos, e comprovam o alegado pela Requerente, quer no que diz respeito ao pagamento do imposto, quer no que diz respeito aos movimentos contabilísticos a que correspondem.

Por sua vez, a prova testemunhal produzida em audiência serviu essencialmente para explicar e contextualizar os procedimentos que deram origem aos documentos juntos aos autos e as diferenças interpretativas que sobre eles se estabeleceram entre a AT e a Requerente. Em particular a testemunha H... explicou todo o percurso burocrático da mesma, nomeadamente o significado e a importância do “Albarran” nos meios de controlo fiscal europeu, expondo as diversas explicações sobre as diferenças entre litros de combustíveis e litros em graus que estiveram na origem do desreconhecimento pela AT de alguns documentos comprovativos.

A prova testemunhal foi também relevante para esclarecer e demonstrar ante o tribunal que, no que concerne às operações de importação, os erros verificados se deram nomeadamente ao nível do lançamento contabilístico. Isto é, a mesma fatura do fornecedor, foi lançada, por erro, por duas vezes na contabilidade, sem que a tal erro corresponda qualquer introdução no consumo para a qual falte a declaração prevista no CIEC. Houve também situações em que foi emitida uma primeira fatura, anulada por meio de fatura a negativo, a que se seguiu emissão de segunda fatura devidamente retificada. Ao nível das operações internas foram igualmente esclarecidos lapsos e deficiências já corrigidas referentes, por exemplo, a situações em que a Requerente procedeu à venda dos produtos no mercado interno, com o imposto previamente pago, dando-se a devolução do produto à Requerente por dificuldades de pagamento do cliente e a sua posterior revenda. 

Finalmente importa realçar que as testemunhas demonstraram conhecimento dos factos relatados e aparentaram depor com isenção. 

 

2.            DO DIREITO

               

2.1. Da ilegalidade da liquidação

 

Como vimos, a Requerida procedeu à revogação parcial do ato de liquidação e corrigiu os valores inicialmente liquidados, tendo já sido executado o reembolso à Requerente do montante de € 206.196, 32, em 9 de outubro de 2019. Ocorre assim inutilidade superveniente da lide quanto a esta parte da liquidação, pelo que dela não se toma conhecimento [artigo 130.º do CPC, subsidiariamente aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º1, alínea e), do RJAT].

 

2.1.1. Mecânica do ISP

 

Em correspondência com a Directiva 2008/118, o Código dos IEC distingue entre o momento em que nasce a obrigação tributária e aquele em que a obrigação se torna exigível. O facto gerador da obrigação tributária dos IEC está logo no fabrico ou importação, ao passo que a sua exigibilidade ocorre mais tarde, aquando da introdução dos produtos tributáveis no consumo. O fabrico ou importação dos produtos tributáveis podem coincidir com a sua introdução no consumo. Regra geral, porém, não é isto que sucede, existindo uma dilação temporal entre uma e outra coisas. É no período que medeia entre o facto gerador e a exigibilidade que o imposto se diz suspenso.

O legislador português, seguindo de perto as directivas europeias, não define materialmente a introdução no consumo, limitando-se a fixar no artigo 9º do Código que se considera como tal:

a) A saída, mesmo irregular, desses produtos do regime de suspensão do imposto;

b) A detenção fora do regime de suspensão do imposto desses produtos sem que tenha sido cobrado o imposto devido;

c) A produção desses produtos fora do regime de suspensão do imposto sem que tenha sido cobrado o imposto devido;

d) A importação desses produtos, a menos que sejam submetidos, imediatamente após a importação, ao regime de suspensão do imposto;

e) A entrada, mesmo irregular, desses produtos no território nacional fora do regime de suspensão do imposto;

f) A cessação ou violação dos pressupostos de um benefício fiscal;

g) O fornecimento de electricidade ao consumidor final, o autoconsumo e a aquisição de electricidade por consumidores finais em mercados organizados.

h) O fornecimento de gás natural ao consumidor final, incluindo a aquisição de gás natural diretamente por consumidores finais em mercados organizados, bem como a importação e a receção de gás natural de outro Estado membro diretamente por consumidores finais.

 

Assim, podemos dizer que a introdução no consumo corresponde à livre disponibilização dos produtos tributáveis. A introdução no consumo não se confunde com o consumo efectivo dos produtos tributáveis, que pode ocorrer, e geralmente ocorre, apenas em momento posterior. Não se confunde tão pouco com a sua comercialização, que pode até ocorrer mais cedo, pois que os produtos se podem transaccionar em suspensão de imposto. A introdução no consumo corresponde simplesmente à livre disponibilização dos produtos, isto é, à sua disponibilização para um aproveitamento económico livre dos condicionalismos que integram o regime de suspensão. Dito de outro modo, a introdução no consumo é o ato pelo qual os bens sujeitos a imposto ingressam no mercado livre, o ato pelo qual se convolam de produtos em mercadorias.

Enquanto imposto especial de consumo, o ISP assenta nesta mecânica muito particular. A obrigação de pagar o ISP nasce e torna-se exigível em virtude dos factos tipificados no CIEC, não estando de algum modo dependente dos factos que tornam devidos impostos como o IVA ou o IRC, relativamente aos quais o ISP surge com inteira autonomia. O mesmo se pode dizer no tocante à Contribuição de Serviço Rodoviário e ao Adicionamento sobre as emissões de CO2 que, mantendo ligação estreita com o ISP, constituem figuras tributárias distintas deste.

 

A exigibilidade do ISP resulta por regra da introdução no consumo dos produtos tributáveis e essa introdução é feita de modo distinto consoante o tipo de sujeitos passivos em causa.

Nos termos do artigo 28º do Código dos IEC, constitui destinatário registado a pessoa singular ou colectiva autorizada pela autoridade aduaneira, no exercício da sua profissão e nas condições estabelecidas nesse Código, a receber, não podendo deter nem expedir, produtos sujeitos a IEC que circulem em regime de suspensão do imposto. Daqui decorre a possibilidade dos operadores receberem produtos sujeitos a imposto provenientes de entrepostos sitos no próprio território nacional ou noutro estado-membro. Como resulta dos artigos 28º a 35º do CIEC, logo que recebam os produtos tributáveis considera-se produzida a introdução no consumo. Nessa medida, assim que se esgota o regime de suspensão torna-se exigível o imposto, devendo a declaração ser processada nos termos do artigo 9º, nº1, alínea a), e nº2 alínea b) do CIEC.

Os destinatários registados podem receber também produtos que não estejam em regime de suspensão, mas que já tenham sido introduzidos no consumo noutro estado-membro. São produtos que estão sujeitos a um aproveitamento económico condicionado, devendo circular ao abrigo do documento de acompanhamento. Também nestes casos a introdução no consumo se produz aquando da sua recepção, mostrando aí autonomia a alínea b) do nº2 do artigo 9º.

Sempre que um agente económico pretenda, a título ocasional apenas, receber produtos sujeitos a IEC, em regime de suspensão, pode fazê-lo, hoje, servindo-se da figura do destinatário registado temporário. Em vez de requerer autorização, estes operadores económicos devem registar-se na estância aduaneira competente, indicando, para o efeito, o período de validade, o expedidor e a quantidade dos produtos que pretendem receber. Este registo visa permitir às autoridades fazer o acompanhamento devido daquela que é uma remessa apenas esporádica de produtos em regime suspensivo, dirigida a um agente económico com o qual os serviços não mantêm uma relação duradoura. Para além deste registo, o destinatário registado temporário deve prestar uma garantia que cubra os riscos inerentes à introdução no consumo dos produtos sujeitos a IEC que lhe sejam destinados, e no termo da circulação, cumprir as formalidades de introdução no consumo em território nacional. As obrigações legais inerentes ao estatuto de destinatário registado temporário são semelhantes às do destinatário registado, com excepção do valor da garantia devida que, neste caso, deve ser de montante igual ou superior ao imposto resultante de cada recepção efectuada, nos termos do artigo 56º, nº2, do CIEC.

 

2.1.2. Operações de importação

 

No essencial, as operações que deram origem à liquidação levada a cabo por parte da AT dividem-se em dois grupos. O primeiro é constituído por operações de importação de produtos petrolíferos com origem em Espanha — compras efectuadas pela Requerente — relativamente às quais se encontram registadas facturas do fornecedor na contabilidade da Requerente sem que, no entanto, lhes corresponda qualquer declaração de introdução no consumo.

É isso que sucede com as operações descritas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1- reproduzido no ponto h) dos factos provados], no grupo identificado por “facturas registadas na conta corrente do fornecedor I... SL no ano de 2018 para as quais não foram apresentadas e-DIC”, identificadas pelo descritor “2 lançamentos contabilísticos, apenas um fornecimento” e devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.

Tal como ficou demonstrado em tribunal, na maior parte destes casos sucedeu que, por erro, uma mesma factura foi objecto de duplo lançamento na contabilidade da Requerente. Não ocorreram, nestes casos, duas operações; nem houve lugar sequer à emissão de duas facturas. Verificou-se, simplesmente, que a mesma factura do fornecedor, por erro, foi lançada por duas vezes na contabilidade.

Esse erro viria a ser suprido pela Requerente no próprio ano, tendo havido lugar à rectificação da sua contabilidade para efeitos da apresentação da declaração de IRC. Ao duplo lançamento das facturas na contabilidade não se pode dizer, por conseguinte, atenta a prova apresentada — e atento, muito em concreto, o depoimento testemunhal trazido ao tribunal — que corresponda qualquer introdução no consumo para a qual falte a declaração prevista no CIEC.

Marginalmente, e ainda no tocante a este grupo de operações de importação com origem em Espanha, existem casos em que houve lugar à emissão de uma primeira factura, anulada por meio de factura a negativo, a que se seguiu emissão de segunda factura devidamente rectificada.

 

É isso que sucede com as operações descritas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1- reproduzido no ponto h) dos factos provados], no grupo identificado por “facturas registadas na conta corrente do fornecedor I... SL no ano de 2018 para as quais não foram apresentadas e-DIC”, identificadas pelo descritor “foi emitida uma factura a positivo, posteriormente outra a negativo, anulando-a e por fim, uma nova factura final correcta” e devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.

Como demonstrado em tribunal, estas anulações devem-se a erros de valor ou a erros de pedido por parte do fornecedor espanhol e a emissão de “facturas a negativo” deve-se à impossibilidade de o fornecedor emitir notas de crédito com base no sistema que tem em uso em Espanha.

Estão em causa situações em que houve lugar a um único fornecimento apenas, ao qual correspondeu a devida e-DIC, ou em que não houve fornecimento sequer. Mais uma vez, na contabilidade da empresa, e também para efeitos de IRC, foi dado pela Requerente o tratamento devido a estas operações.

Em suma, inexiste em todos estes casos o facto tributável e a condição de exigibilidade do ISP; e falecer, por isso, o fundamento legal para a liquidação a que procedeu a AT.

 

2.1.3. Operações internas

 

Um segundo grupo de operações que deram origem à liquidação levada a cabo por parte da AT é constituído por operações internas às quais, no entanto, não corresponde qualquer declaração de introdução no consumo.

É isso que sucede com as operações descritas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1 - reproduzido no ponto h) dos factos provados], nos grupos identificado por “facturas registadas no SAFT no ano de 2017 para as quais não foi apresentada a e-DIC” e “facturas registadas no SAFT no ano de 2018 para as quais não foi apresentada a e-DIC”, devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.

Em primeiro lugar, estão aqui em causa situações em que a Requerente procedeu à venda dos produtos no mercado interno, com o imposto previamente pago, dando-se a devolução do produto à Requerente por dificuldades de pagamento do cliente e a sua posterior revenda.

É o que ocorre com as operações identificadas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1- reproduzido no ponto h) dos factos provados] pelo descritor “combustível adquirido novamente pela A... por dificuldades de pagamento” ou expressão semelhante, operações aí devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.

Nestes casos, anulada a primeira factura por meio de nota crédito, ocorre em seguida a revenda a novo cliente nacional, com emissão de segunda factura. É certo, porém, que o fornecimento dos produtos aos clientes nacionais é feito com o imposto previamente pago, pelo que não se encontra aqui uma introdução irregular no consumo com imposto em falta.

Em segundo lugar, houve situações em que há lugar à importação dos produtos de Espanha, com devida liquidação e pagamento do imposto, dando-se depois o fornecimento a clientes nacionais com a emissão de factura tardia.

É isso que sucede com as operações identificadas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1- reproduzido no ponto h) dos factos provados] pelo descritor “facturação ao cliente efectuada com atraso por lapso” ou expressão semelhante, operações aí devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.

Nestes casos, sendo embora tardia a emissão de factura pela Requerente, está em causa o fornecimento a clientes nacionais de produtos com imposto previamente pago no momento da importação, pelo que não se encontra aqui uma introdução irregular no consumo com imposto em falta.

Em terceiro lugar, houve situações em que houve lugar à compra de produtos a fornecedores nacionais, com imposto pago pelo fornecedor, com revenda pela Requerente, em certos casos incorrendo em prejuízo por razões de ordem comercial.

É o que se passa com as operações identificadas no quadro junto às alegações finais da Requerente [DOC 1- reproduzido no ponto h) dos factos provados] pelo descritor “fornecimento nacional”, operações aí devidamente reportadas aos concretos artigos da “petição inicial”.  Nestes casos, a revenda da Requerente é feita com imposto já pago a montante pelo fornecedor, pelo que não se encontra aqui uma introdução irregular no consumo com imposto em falta.

 

2.2. Quanto aos juros indemnizatórios

         

Como referido, a Requerente, apesar de não concordar com o valor de imposto apurado, procedeu ao respectivo pagamento, solicitando agora juros indemnizatórios.

O regime dos juros indemnizatórios está previsto no artigo 43.º da LGT, que estabelece o seguinte, no que aqui interessa:

Artigo 43.º

Pagamento indevido da prestação tributária

1. São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2. Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

Como se conclui destas normas, o direito a juros indemnizatórios depende da existência de erro imputável aos serviços.

A Autoridade Tributária e Aduaneira defende que não são devidos juros indemnizatórios por os erros que afetam as liquidações não lhe serem imputáveis, porque a prova que justifica a sua anulação apenas foi apresentada no próprio processo arbitral, fundamentando-se para tanto na jurisprudência vertida na Decisão Arbitral proferida no processo n.º 319/2019-T.

Na verdade, nesta Decisão arbitral ficou consignado, entre o mais, que “os erros que afetam as liquidações relativas à questão das “...” não podem considerar-se imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois a prova que justifica a sua anulação apenas foi apresentada no presente processo.

Por outro lado, quanto à anulação parcial das liquidações efetuada por via administrativa, os documentos que a justificam apenas foram apresentados no presente processo arbitral, pelo que os erros que afetam as referidas liquidações não são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira.“(…)

Pelo exposto, improcede o pedido de juros indemnizatórios.”

Ora, no caso em apreço, além da argumentação da Requerente no Pedido Arbitral e da respetiva documentação apresentada, foi também fundamental a prova feita na audiência de julgamento e a explicação fornecida pelas testemunhas quando confrontadas comos mesmos. Ficou demonstrado em Tribunal, como resulta dos factos dados como provados, designadamente no que respeita às operações de importação de produtos petrolíferos, que ficou claro que, por erro, em muitas situações, uma mesma fatura foi objeto de duplo lançamento na contabilidade da Requerente.  Por outro lado, no que se refere às operações internas são também reportadas situações em que a Requerente, por exemplo, procedeu à venda dos produtos no mercado interno, com o imposto previamente pago, dando-se a devolução do produto à Requerente por dificuldades de pagamento. Tais situações foram devidamente clarificadas e demonstradas como corretas em Tribunal, através da exibição da respetiva documentação retificadora e do depoimento testemunhal, mas afiguram-se adequadas a induzir em erro a Requerida. Por outro lado, quanto à anulação parcial das liquidações efetuadas por via administrativa os documentos que a justificaram apenas foram também apresentados no presente processo arbitral.

Assim sendo, afigura-se podermos concluir que, no caso em apreço, e no seguimento da jurisprudência vazada na Decisão Arbitral 319/2019-T, os erros que afetam a liquidação não podem imputar-se à Requerida, uma vez que a prova que justifica a sua anulação apenas foi apresentada no presente processo, quer através dos pertinentes documentos, quer dos testemunhos.

Termos em que improcede o pedido de juros indemnizatórios.

 

IV. DECISÃO

 

Termos em que se acorda neste Tribunal Arbitral:

a.            Não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente da lide, da questão das liquidações parcialmente anuladas por via administrativa;

b.            Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral da liquidação oficiosa n.º 2019/... de 8/5/2019, com a consequente anulação parcial;

c.            Julgar improcedente o pedido de juros indemnizatórios;

d.            Julgar o tribunal incompetente para conhecer do pedido de condenação da Requerida no pagamento de despesas que teve junto da Requerida, para obtenção de documentos, no valor total de €1.284,77.

 

V. VALOR DO PROCESSO

De harmonia com o disposto nos artigos 296.º, n.º 1, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento Geral de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de €866.756, 62.

 

VI. CUSTAS

Conforme o disposto no artigo 24.º do RJAT, fixa-se o montante das custas em 12 240,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processo de Arbitragem Tributária, a cargo da Requerente, por ter dado causa à ação, conforme explicitado no ponto 2.2.

 

Notifique-se.

Lisboa, 30 de julho de 2020.                                                  

 

Os árbitros,

 

Fernanda Maçãs (presidente)

Sérgio Vasques (vogal)

Carlos Lobo (vogal)