DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. A..., LIMITADA, contribuinte n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... ..., apresentou, em 20-09-2019, pedido de constituição do tribunal arbitral, nos termos dos artigos 2º e 10º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, doravante apenas designado por RJAT), em conjugação com o artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), em que é requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada apenas por Requerida).
2. A Requerente pretende, com o seu pedido, a declaração de ilegalidade dos actos tributários de liquidação do Imposto sobre o Valor Acrescentado, relativos ao ano de 2015 que resultaram nas notas de cobrança n.º 2019... e 2019... .
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 23-09-2019.
3.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico designou o signatário como árbitro do tribunal, o qual comunicou a aceitação da designação dentro do respectivo prazo.
3.2. Em 13-11-2019 as partes foram notificadas da designação do árbitro, não tendo sido arguido qualquer impedimento.
3.3. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11º do RJAT, o tribunal arbitral foi constituído em 13-12-2019.
3.4. Nestes termos, o Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído para apreciar e decidir o objeto do processo.
4. Com o pedido de pronúncia arbitral defende a Requerente, em suma:
a) Ser uma sociedade cujo actividade consiste no domínio da indústria e comércio de madeiras e produtos derivados, nomeadamente material para a construção civil, artigos de decoração, mobiliário, comércio de ferragens, representações, remodelações, construção civil, compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos para esse fim.
b) Que relativamente a algumas das facturas em que a AT sustenta haver falta de liquidação de IVA, independentemente dos dizeres constantes das facturas, os serviços foram efectivamente realizados e inserem-se no âmbito dos trabalhos de construção civil, constituindo uma fase da respectiva construção ou reparação de imóveis, devendo, por essa razão, ser efectuada a liquidação do imposto pelos adquirentes.
c) Uma vez que a autoliquidação do imposto foi instituída em benefício do prestador de serviços apenas se justificaria a liquidação adicional do IVA se, em manifesto prejuízo dos cofres públicos, os adquirentes não tivessem procedido à liquidação do imposto, situação que não se verificou no caso em concreto
d) Recai sobre a Administração Tributária o ónus de demonstrar a falta de liquidação do imposto, inclusive pelos adquirentes, bem como o prejuízo que daí resultou para o Estado, sendo erto que não ficou evidenciada nem uma coisa nem outra.
e) No que se refere a facturas emitidas a outros clientes, e que consta nos pontos III.3.1.D e E e III.3.2.C e D, não corresponde à realidade o que consta do RIT, já que a generalidade das operações da impugnante está sujeita o regime da autoliquidação, o que significa que a diferença apurada, ainda que sujeita a IVA, não implicava a obrigatoriedade de proceder a liquidação.
f) O IVA eventualmente em falta terá sido autoliquidado pelos adquirentes, competindo à Autoridade Tributária verificar junto de tais operadores económicos se o imposto foi ou não liquidado e se foi ou não entregue nos cofres do Estado
Com tais fundamentos, pretende que as liquidações sejam anuladas e a Requerida condenada no pagamento de juros indemnizatórios.
5. A Autoridade Tributária e Aduaneira apresentou resposta, invocando em síntese:
a) Da liquidação adicional de IVA efectuada, no montante total de 9.498,02 €, apenas 8.919,48 € foram impugnados nos presentes autos, aí não se incluindo imposto indevidamente deduzido e e falta de autoliquidação de imposto numa transacção intracomunitária.
b) A Requerente não alega qualquer facto susceptível de consubstanciar uma ilegalidade das referidas liquidações, apenas impugnando genericamente, existindo falta de causa de pedir.
c) Contrariamente ao defendido pela Requerente no PPA, o ónus da prova do direito à não liquidação de imposto é da Requerente, incumbindo-lhe provar os pressupostos da não aplicação de imposto (o que decorre da aplicação dos artigos 74º da LGT e 2º, n.º1, j) do CIVA).
d) Relativamente aos alegados serviços de construção civil foi o descritivo das facturas que permitiu aferir não haver lugar à aplicação da regra de inversão.
e) Para que haja inversão do sujeito passivo, cabendo ao adquirente a liquidação e entrega do imposto que se mostre devido, é necessário que, cumulativamente, se esteja na presença de aquisição de serviços de construção e que o adquirente seja sujeito passivo do IVA em Portugal e aqui pratique operações tributáveis
f) Analisado o argumentário aduzido pela Requerente, conclui-se que repousa o mesmo em dissidências de subsunção e interpretação jurídicas, não sendo sindicado qualquer vício passível de inquinar as liquidações controvertidas, as quais são corolário lógico das correcções efectuadas pelos Serviços de Inspecção Tributária.
Conclui a Requerida pela legalidade dos actos de liquidação contestados pela Requerente que deverão, assim, ser mantidos.
6. Por despacho de 03-02-2020 foi dispensada a realização a reunião prevista no art. 18º do RJAT e, com a anuência das partes, a apresentação de alegações.
II – SANEAMENTO
7.1. O tribunal é competente e encontra-se regularmente constituído.
7.2. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (artigos 4º e 10º, n.º 2, do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
7.3. O processo não enferma de nulidades.
7.4. Não foram suscitadas excepções que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
III – MATÉRIA DE FACTO E DE DIREITO
III.1. Matéria de facto
Tendo presente que o Tribunal não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar a que interessa para a decisão - levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado (art.º 596.º, nº 1 e 607º, n.º 2 a 4, do NCPC), e consignar se a considera provada ou não provada (art.º 123.º, n.º. 2 do CPPT) - consideram-se, com relevo para apreciação e decisão das questões suscitadas, provados os seguintes factos:
a) A Requerente é uma sociedade cujo objecto social é a indústria e comércio de madeiras e produtos derivados, nomeadamente material para a construção civil, artigos de decoração, mobiliário, comércio de ferragens, representações, remodelações, construção civil, compra e venda de imóveis e a revenda dos adquiridos para esse fim, estando inscrita com o CAE principal 41200 e como secundários 46731, 68100 e 68200.
b) Para efeitos fiscais está registada, em sede de IRC, no regime geral de tributação e de IVA no regime normal de periodicidade trimestral.
c) Credenciada pela Ordem de Serviço OI2016..., a Administração Tributária realizou um procedimento de inspecção tributária externo, de carácter geral, relativamente ao ano de 2015.
d) Do referido procedimento inspectivo resultaram correcções em sede de IVA no montante de 9.498,02 €.
e) Consta do respectivo RIT, para o que ao presente processo releva:
- “Descrição sucinta das conclusões da ação
Para os efeitos previstos no artigo 62° do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (RCPITA) aprovado pelo DL n°413/98 de 31 de Dezembro e do artigo 77° da Lei Geral Tributária (LGT) aprovada pelo DL n°398/98 de 17 de De zembro foi preenchido o impresso RELATÓRIO DE CONCLUSÕES DA ACÇÃO DE INSPECÇÃO que normaliza em síntese a informação sobre a fiscalização realizada, constituindo por sua vez a capa do presente relatório a fornecer ao sujeito passivo em causa.
A análise desenvolvida no âmbito deste procedimento inspetivo encontra-se circunstanciada no capítulo III deste relatório, permitindo concluir que foi proposta matéria tributária desfavorável ao sujeito passivo (SP), em sede de IRC e IVA, no caso, por omissão de rendimentos de €16.439,20, gastos não aceites de €993,01, bem como por dedução indevida de IVA €540,04 e por falta de liquidação de imposto e de entrega na importância de €8957,98 €.
(…)
III.3.1.D – Quanto ao cliente 211110229 – B..., Lda. deparamo-nos com a seguinte situação:
Foi emitida a fatura n.º 38 datada de maio de 2015 na importância de €13.074,90. O cliente trazia um saldo devedor de €410,82 de 2014.
Perante as transferências bancárias consideradas como recebimentos pela A..., apurou-se um saldo credor de €309,18 a 31 de dezembro de 2015, isto é, o total dos recebimentos é superior ao valor da fatura emitida.
Perante este facto, foi efetuado o seguinte registo contabilístico, conforme lançamento de diário 120.256-regularizações, movimento a crédito na subconta de rendimentos 7878- Outros Rendimentos e ganhos, sem existência de faturação emitida como suporte desse mesmo registo.
Assim, foram praticadas duas irregularidades: sendo a primeira, a falta de emissão de fatura pela A..., Lda e a segunda, encontra-se em falta a liquidação de IVA sobre o rendimento de €309,18, na importância de €71,11.
III.3.1.E – Com este cliente 211110262 – C... deparamo-nos com a seguinte situação: O movimento contabilístico que consta no extrato de conta corrente desta subconta, datado de dezembro de 2015 com a refª 120.233 diz respeito a depósito bancário na importância de €549,81, que serviu de pagamento à fatura n.º 70 de outubro do mesmo ano, No entanto, tendo em conta o documento de suporte, no caso um talão de depósito de valores, o cheque depositado com a ref.ª ... cifra-se em €1.071,33. Assim, não foi registada na contabilidade a diferença entre ambos os montantes, de €521,52.
Perante tal irregularidade, encontra-se omisso nos rendimentos de 2015 a importância de €521,52, bem como a falta de emissão de fatura e consequentemente a falta de liquidação de IVA de €119,95.
III.3.1.F - De seguida, foi apurada nova irregularidade, desta feita na subconta de clientes 211110255 – D... .
De acordo com a análise dos estratos bancários do E..., verificámos a existência das seguintes transferências para a A..., Lda, em nome de F..., esposa do Sr. D... .
Quadro II – Transferência bancárias de F...
02-mar Trf F... 2.000,00
21-abr Trf F... 2.000,00
05-jun Trf F... 1.282,00
06-nov Trf F... 2.000,00
25-nov Trf F... 1.000,00
8.282,00
Tendo por base o extrato de conta corrente de D..., constatamos pela análise do extrato de conta que tais transferências não constam do mesmo, apurando-se saldo devedor de € 8.514,47, no final do ano de 2015.
Esta irregularidade na contabilidade, constitui infração ao disposto no artigo 123º nºs. 1 e 2 do CIRC.
(…)
III.3.2.C- Cliente 211110267 – G..., Lda
Sem qualquer faturação emitida em 2015, vemos que no dia 4 de dezembro de 2015 houve uma transferência bancária na importância de € 2.500,00 para a conta da A..., Lda, não tendo sido registada a crédito da conta a título de recebimento.
Como a faturação de 2016, num total de € 6.538,00, encontra.se saldada pela emissão dos recibos emitidos nº 5 e nº 31, de fevereiro e maio de 2016, consideramos que o montante de € 2.500,00 corresponde a rendimentos omissos na contabilidade de 2015 e por sua vez, falta de emissão de fatura e respetiva liquidação de IVA de € 575,00.
III.3.2.D- Cliente 211110267 – G..., Lda
Sem qualquer faturação emitida em 2015, vemos que no dia 4 de dezembro de 2015 houve uma transferência bancária na importância de € 2.500,00 para a conta da A..., Lda, não tendo sido registada a crédito da conta a título de recebimento.
Como a faturação de 2016, num total de € 6.538,00, encontra.se saldada pela emissão dos recibos emitidos nº 5 e nº 31, de fevereiro e maio de 2016, consideramos que o montante de € 2.500,00 corresponde a rendimentos omissos na contabilidade de 2015 e por sua vez, falta de emissão de fatura e respetiva liquidação de IVA de € 575,00.
III. 3.2.D- H...
Alega o gerente da A..., Lda que a transferência bancária de dezembro de 2015, oriunda de I..., diz respeito ao pagamento da fatura nº 29, de abril de 2016 emitida a H... . Refere o mesmo que essa transferência é o primeiro de dois pagamentos sendo o outro de € 2.496,30, datado de 22 de fevereiro de 2016.
O certo é que tais movimentos bancários não constam do extrato de conta de cliente, sendo que a anulação da dívida apenas foi registada em setembro de 2016, movimento de diário, 90.140, pelo recibo 26.
Em 2016, foi emitida a fatura e correspondente recibo.
À semelhança da situação anterior, de G..., Lda, como a faturação encontra-se saldada pela emissão do recibo, não tendo existido mais nenhum movimento contabilístico a justificar pagamentos pelo cliente, consideramos que o montante de € 3.075,00 corresponde a rendimentos omissos na contabilidade e por sua vez, a falta de emissão de fatura e de liquidação de IVA de € 707,25.
III.3.3- FATURAÇÃO/RENDIMENTOS e CLIENTES
Neste capítulo incidiremos a nossa análise sobre a faturação emitida pelo sujeito passivo em 2015, conjugada com a análise efetuada às transferências bancárias não identificadas nos extratos bancários da A..., Lda de 2015, recolhidas para o Quadro III.
Incidiremos a nossa verificação sobre a subconta 721102 – Serviços – IVA devido pelo adquirente, na qual o sujeito passivo regista a faturação emitida a clientes, onde estes, como adquirentes do serviço (no caso, serviços de construção civil) são os responsáveis pela liquidação de IVA da operação.
Per imp Nº Diário Descrição Cliente Descrição dos trabalhos Crédito IVA em falta
1503T 20.106 F 10 J..., Lda Fornecimento e montagem
de chuveiro e dobradiças 314,00 72,22
1503T 30.003 F 20 J..., Lda Fornecimento e montagem
de cabeceira de cama,
mesinha e secretária 766,00 176.18
1503T total 1.080,00 248,40
1506T 40.032 F 32 J..., Lda Fornecimento de porta e
desmontagem da existente 140,00 32,20
1506T total 140,00 32,20
1509T 80.005 F 57 K..., Lda Fornecimento de material 1.530,00 351,50
1509T total 1.530,00 351,50
1512T 120.003 F77 D... Fornecimento de material e
transporte – Obra do Cercal 7.000,00 1.610,00
1512T 120.004 F79 D... Fornecimento e montagem de
material de cozinha – Obra
Areeiro 8.320,00 1.913,60
1512T 120.005 F80 D... Adjudicação de trabalhos
vossa obra da Arruda dos
Vinhos 3.962,00 911,26
1512T total 19.282.00 4.434,86
Total Geral 22.032,00 5.067,36
Consultadas as faturas emitidas pela sociedade e atrás elencadas, no que diz respeito à descrição dos trabalhos realizados, verificamos tratar-se de dois tipos de rendimentos os que não dizem respeito a serviços de construção civil e também os emitidos a particulares.
As três primeiras faturas, referem-se a trabalhos de reparação e montagem de bens móveis (portas, cabeceiras de cama e mesas). Nessas faturas emitidas, o sujeito passivo não liquida Iva, estando averbada nas faturas a menção (IVA-autoliquidação)”.
f) Na sequência da notificação do RIT, subsequente ao Projecto de Relatório, a Requerente foi notificada dos acto de liquidação de IVA, relativos a 2015 e respectvos juros compensatórios, reflectidos nas notas de cobrança n.º 2019... e 2019....
Fundamentação da matéria de facto:
A matéria de facto dada como provada assentou no exame crítico da prova documental apresentada, que, no caso, consta exclusivamente do processo administrativo juntos aos autos, designadamente, do relatório de inspecção, que aqui se dá por reproduzido
Não foram dados como não provados factos com relevo para a decisão da causa.
III.2. Matéria de Direito
Está causa nos presentes autos a aferição da legalidade das liquidações de IVA, referentes ao ano de 2015, que a Requerente expressamente delimitou às operações relativas ao fornecimento de bens e serviços aos seguintes clientes: J..., B..., C..., G..., H... e D... . Ficam, por isso, excluídas do âmbito do presente processo, os fornecimentos aos demais clientes, bem como a apreciação da legalidade das liquidações de IVA por alegadas dedução indevida de imposto e falta de liquidação de imposto numa aquisição intracomunitária.
No que toca aos fornecedores identificados, pese embora a invocada falta de liquidação tenha origem em factos distintos: inexistência de factura, nuns casos e falta de liquidação em facturas emitidas, noutros, a Requerente reconduze-as todas à mesma factualidade e razões de direito.
No caso da pretensa falta de liquidação de imposto nas facturas que emitiu, justifica a sua falta dizendo que “independentemente dos dizeres constantes das faturas, os serviços foram efetivamente realizados e inserem-se no âmbito dos trabalhos de construção civil … devendo, por essa razão, ser efetuada a liquidação do imposto pelos adquirentes”.
Mais dizendo – isto relativamente a todos os casos - que, “à semelhança do que sucede com as demais operações em que a AT exigiu imposto por falta de emissão de factura, em que apenas se justificaria a liquidação do IVA se, em manifesto prejuízo dos cofres públicos, os adquirentes dos serviços em causa não tivessem procedido à liquidação do imposto, situação que não se verificou no caso concreto em apreço”.
Para concluir que “recai sobre a Autoridade Tributária o ónus de demonstrar a falta de liquidação do imposto, inclusive pelos adquirentes, bem como o prejuízo que daí resultou para o Estado, sendo certo que não ficou evidenciada nem uma coisa nem outra … o IVA eventualmente em falta terá sido autoliquidado pelos adquirentes, competindo à Autoridade Tributária verificar junto de tais operadores económicos se o imposto foi ou não liquidado e se foi ou não entregue nos cofres do Estado”.
Diga-se, desde já, que o raciocínio da Requerente assenta em manifesto vício.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 74º da LGT “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoca”.
Ora, está em causa o imposto sobre o valor acrescentado em que o acto de liquidação não resulta, como regra, de intervenção da administração, mas do próprio sujeito passivo. Com efeito, é a este que compete proceder à liquidação do imposto com base nas facturas que emite e que posteriormente faz reflectir nas declarações periódicas que apresenta perante a AT.
Daí resulta que, como regra, o fundamento da liquidação do IVA consta da própria documentação e declarações do contribuinte, apenas competindo à AT assegurar que a liquidação de imposto está em conformidade com as mesmas, as quais, nos termos do art.º 75.º, n.º 1, da LGT, se presumem verdadeiras.
Como se diz no Ac. STA, de 27-06-2012 – Proc. 0982/11: “No processo de impugnação judicial o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque” e, ainda, que “no caso dos autos a situação é diversa: estando em causa uma autoliquidação é o contribuinte que vem discordar da própria declaração, impugnando a sua veracidade e até a sua autenticidade, (...) Assim, cabia à recorrente demonstrar o facto por si alegado”.
No que ao caso interessa, temos que a Requerente emitiu facturas não tendo procedido à liquidação de IVA, delas tendo feito constar a menção: “IVA autoliquidação”. Sustenta a Requerente que não foi liquidado imposto por estarem em causa situações de reversão de liquidação, havendo lugar a autoliquidação pelo adquirente, por estarem em causas serviços de construção civil. Todavia, das facturas que a Requerente emitiu não é feita referência a quaisquer serviços de construção civil.
Tal circunstância seria irrelevante para a Requerente, dizendo que “independentemente dos dizeres constantes das faturas, os serviços foram efetivamente realizados e inserem-se no âmbito de construção civil”. Ora, como se disse, à AT apenas compete aferir e assegurar que, com base nos próprios elementos elaborados pelo sujeito passivo – no caso as facturas - a liquidação do imposto foi efectuada e de modo correcto. Ora, sendo a Requerente um sujeito passivo de IVA, a regra é que todas as prestações de serviços que efectua estão sujeitas a IVA impendendo sobre si a obrigação de proceder à liquidação do imposto (art. 1º, n.º1, a), art. 2º, n.º 1 do CIVA), emitindo a respectiva factura dela fazendo constar, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 36º do mesmo código, designadamente, os seguintes elementos:
- a quantidade e denominação usual dos bens transmitidos ou dos serviços prestados, com especificação dos elementos necessários à determinação da taxa aplicável [alínea b)];
- o motivo justificativo da não aplicação do imposto, se for caso disso [alínea b)].
Ora, com base nos elementos constantes da facturas, outra coisa não poderia a AT fazer do que considerar estar-se perante uma situação de não liquidação indevida de imposto, por não estar em causa – de acordo com a própria factura – a prestação de serviços de construção civil.
Por outro lado, em todas as demais situações, o RIT fundamenta de forma clara, suficiente e inequívoca, os motivos pelos quais considera estar em causa imposto que deveria ter sido liquidado e não o foi.
Diz a Requerente que, pese embora assim seja, estavam efectivamente em causa serviços de construção civil. Não curando agora de saber se, face à discrepância que a própria Requerente criou, ainda assim seria de admitir a aplicação do regime de inversão aplicável àqueles serviços, é indiscutível que o ónus da prova e da alegação dos respectivos factos impendia exclusivamente sobre a Requerente. Esta limita-se a alegar tal circunstância, nada mais tendo feito, notando-se, uma vez mais, que não está em causa, na situação sub iudice, a aferição da legalidade de qualquer correcção operada pela AT, mas da liquidação da própria Requerente (no caso, de não liquidação por lhe ter aplicado o regime da reversão).
Do mesmo modo, não alegou, e muito menos provou, qualquer facto impeditivo ou extintivo que abalasse a fundamentação inserta no RIT justificando a falta de liquidação de IVA nas restantes situações.
Pelo que o pedido da Requerente tem necessariamente de soçobrar.
O mesmo se diga da sua pretensão que, relativamente à falta de liquidação do imposto, ainda que devida: “apenas se justificaria a liquidação do IVA se, em manifesto prejuízo dos cofres públicos, os adquirentes dos serviços em causa não tivessem procedido à liquidação do imposto, situação que não se verificou no caso concreto em apreço … recaindo sobre a Autoridade Tributária o ónus de demonstrar a falta de liquidação do imposto, inclusive pelos adquirentes”.
Independentemente de se apurar serem assertivas tais considerações que, diga-se, de qualquer modo se nos afiguram insustentadas, o certo é que, mais uma vez, o ónus da prova de tal factualidade, ou seja, que a liquidação do imposto teria sido feito pelos adquirentes do serviço, impenderia necessariamente sobre a Requerente.
Pelo contrário, pretende a Requerente pretende que tal ausência de prova seja valorada contra a Requerida, imputando-lhe o ónus da correspondente prova. Não obstante, como se viu, é sobre ela que tal ónus impende, sendo contra ela que a ausência de prova deve ser resolvida, nos termos do art.º 414.º do Código de Processo Civil.
Quer dizer, não assiste à AT qualquer ónus probatório, que não o constante do RIT, suficientemente fundamento e não contraditado factualmente pela Requerente.
Assim, e face a todo o exposto, dúvidas não restarão que não poderá obter acolhimento a pretensão da Requerente, devendo, por isso, o pedido arbitral improceder integralmente
IV. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral:
a) Julgar totalmente improcedente o pedido arbitral formulado, dele se absolvendo a Administração Tributária e Aduaneira.
b) Condenar a Requerente nas custas do processo.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em 9.498,02 €, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária e do n.º 2 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em 918,00 €, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, e artigo 4.º, n.º 4, do citado Regulamento.
Lisboa, 03 de Julho de 2020
O Árbitro
(António Alberto Franco)