DECISÃO ARBITRAL
Suzana Fernandes da Costa, designada pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formar Tribunal Arbitral, vem proferir a seguinte:
1. Relatório
No dia 04-10-2019, A..., residente fiscal na ..., n.º..., ..., ..., ..., São Paulo, Brasil, contribuinte n.º..., cujo representante fiscal em Portugal é o Sr B..., contribuinte n.º..., apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, com vista, de forma mediata, à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), no valor de 15.581,64 €, e de forma imediata a pedir a declaração de ilegalidade das decisões que indeferiram a reclamação graciosa deduzida sobre o mesmo ato.
O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Ex.mo Senhor Presidente do CAAD no dia 07-10-2019 e notificado à Requerida na mesma data.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 6º n.º 2 alínea a) do RJAT, foi designada como árbitro, pelo Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, em 27-11-2019, a Doutora Suzana Fernandes da Costa, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.
Na mesma data foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos do disposto no artigo 11º, nº 1, alíneas a) e b) do RJAT, conjugado com os artigos 6º e 7º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído em 30-12-2019.
Em 30-12-2019, foi proferido despacho a ordenar a notificação da Requerida para, no prazo de 30 dias, apresentar resposta e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional e remeter ao tribunal arbitral cópia do processo administrativo dentro do prazo de apresentação da resposta.
Em 30-01-2020, a Requerida apresentou requerimento a solicitar a prorrogação do prazo para a presentar resposta e juntar o processo administrativo, por um período não inferior a 15 dias.
No dia 03-02-2020, foi proferido despacho a prorrogar o prazo para apresentação de resposta por 15 dias.
Em 18-02-2020, a Requerida apresentou a sua resposta, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral. Na mesma data, juntou aos autos o processo administrativo.
No dia 14-04-2020, foi proferido despacho a dispensar a reunião prevista no artigo 18º do RJAT e a apresentação de alegações, ao abrigo dos princípios da autonomia do Tribunal Arbitral na condução do processo, da celeridade, da simplificação e informalidade processuais. No mesmo despacho foi também indicado o dia 30-06-2020 para a prolação da decisão arbitral, devendo até essa data a Requerente juntar aos autos o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
Em 20-04-2020, a Requerente juntou aos autos o comprovativo do pagamento da taxa arbitral subsequente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas (artigos 4º e 10º n.º 1 e 2 do RJAT e artigo 1º da Portaria n.º 112-A/2011 de 22 de março).
O pedido arbitral é tempestivo, nos termos do artigo 10º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 10/2011 de 20 de janeiro e do artigo 102º n.º 1 alínea a) do Código do Procedimento e do Processo Tributário.
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas questões prévias, com exceção da cumulação de pedidos que de seguida se decidirá.
DA CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
A Requerente pede a cumulação de pedidos relativamente às dez decisões de indeferimento (uma para cada imóvel) da reclamação graciosa apresentada, uma vez que todas as decisões têm a mesma fundamentação, pronunciam-se sobre os mesmos factos e aplicam as mesmas normas legais.
Na resposta a AT refere que por constrangimentos do sistema informático foram abertos 10 procedimentos de reclamação graciosa, um por cada bem imóvel, e foram tramitados um por cada diferente prédio enquadrado na reclamação enquadrada.
Dúvidas não há que deveria ter sido proferida uma única decisão no procedimento de reclamação graciosa. No entanto, e porque a Requerente opta por requerer a cumulação de pedidos e pedir ao tribunal que conheça em simultâneo os vícios de que padece a liquidação que antecede as referidas reclamações, admite-se a cumulação de pedidos já que esta é admissível, nos termos dos artigos 104º do CPPT e 3º do RJAT.
2. Posição das partes
A Requerente afirma que é filha de C... e D... juntamente com E..., contribuinte n.º..., e F..., contribuinte n.º 294.643.010.
Segundo a Requerente, o seu pai, C..., faleceu, em 13-10-2017, em São Paulo, Brasil, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, tendo como residência habitual a ..., ..., ..., ..., ..., São Paulo, Brasil.
A Requerente alega que, na data do seu falecimento, o seu pai era co-titular de bens e direitos localizados em território português, concretamente imóveis, veículos automóveis, uma quota, crédito por suprimentos, valores em contas bancárias, e unidades de participação - adquiridos já após o matrimónio. Ditos bens, depois de retirada a meação do cônjuge, foram objeto de partilha entre os herdeiros, por documento particular celebrado pelo solicitador G..., em 18/07/2018, partilha essa regulada pela lei brasileira. Na sequência da referida partilha, foi apresentado um requerimento ao Serviço de Finanças de Ansião, em 18/03/2019, para que procedesse à liquidação do IMT e do Imposto do Selo relativo aos bens partilhados. A Requerente foi notificada da demonstração de liquidação provisória de IMT, tendo cada um dos seus irmãos sido notificado de documento semelhante.
Na demonstração de liquidação provisória de IMT a AT indicou como facto tributário a existência de um alegado «excesso da quota parte de imóveis em divisões ou partilhas» sendo usada a mesma fundamentação para as decisões de indeferimento da reclamação graciosa.
Na sequência de requerimento apresentado por seu irmão, em 28-03-2019, foi emitida certidão contendo a liquidação de IMT. Não concordando com a liquidação, a Requerente apresentou reclamação graciosa que foi objeto de dez decisões de indeferimento (uma por cada imóvel).
Para a Requerente, a fundamentação da AT é violadora do dever de fundamentação que assiste à AT, não tendo a Requerente conseguido entender o fundamento da liquidação de IMT notificada.
A Requerente parte de vários cenários alternativos para tentar chegar às contas feitas pela AT. Num deles, supõe que a AT partiu do valor que foi atribuído aos imóveis, e considerou apenas 50%, tendo esses 50% sido divididos pela AT em três partes iguais (uma para cada um dos filhos do falecido) e os outros 50% tendo sido imputados ao cônjuge.
A Requerente refere que crê, mas sem certezas, que o problema, para a AT, estará no facto de os herdeiros terem partilhado entre si 100% do bem, quando alegadamente apenas teriam direito a 50% - desconhecendo as regras que decorrem da aplicação da lei substantiva brasileira.
Para a Requerente, como na partilha realizada houve bens imóveis que foram adjudicados por inteiro à herança do Senhor C...- e consequentemente divididos pelos seus três filhos, herdeiros universais, na proporção de 1/3 para cada um, a AT terá considerado ter existido um excesso de partilha, porque conclui que cada herdeiro, bem vistas as coisas, apenas poderia ter recebido 1/6 de cada bem (ou 1/3 da metade supostamente afeta à herança do Senhor C...).
Outro erro que poderá ter estado por detrás das correções da AT, segundo a Requerente, no plano das conjeturas, é a convicção que a meação da D. D... teria que integrar necessariamente bens imóveis – o que não aconteceu. Quando os bens foram atribuídos exclusivamente aos filhos a AT terá calculado em excesso de meação.
Quanto ao vício de fundamentação alegado pela Requerente, esta refere que a AT apenas indicou estar subjacente à liquidação um «excesso da quota parte de imóveis em divisões ou partilhas», sem qualquer outra fundamentação – o que consubstanciaria uma fundamentação obscura e pouco evidente. Refere verificar-se assim o vício de falta de fundamentação.
Mais refere que nos atos de indeferimento da reclamação graciosa, a AT limitou-se a, muito resumidamente, mencionar a celebração da escritura de partilha, a adjudicação em compropriedade dos bens nela contemplados à Requerente e aos seus dois irmãos, e a transcrever as disposições legais.
Por fim, a Requerente pede a restituição do imposto indevidamente pago.
Já a Requerida, Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), na sua resposta, apresentou defesa por impugnação, referindo, em suma, que não se verifica qualquer vício de fundamentação e que a liquidação de IMT em questão não enferma de qualquer ilegalidade.
Para a AT, o excesso em bens imóveis foi apurado segundo a lei brasileira, e resulta da consideração de uma quota de ½ para o cônjuge sobrevivo e de quotas de 1/6 para cada um dos três filhos. Partindo dessa premissa, a AT refere que se apurou um excesso correspondente a 1/6, uma vez que a atribuição dos imóveis se fez unicamente a favor dos filhos na proporção de 1/3 para cada.
3. Matéria de facto
3. 1. Factos provados:
Analisada a prova documental produzida e a posição das partes constante das peças processuais, consideram-se provados e com interesse para a decisão da causa os seguintes factos:
1. A Requerente é filha de C... e D...;
2. Em 13/10/2017, faleceu no Brasil C..., sem testamento ou qualquer outra disposição e última vontade;
3. O falecido era casado em comunhão de adquiridos e deixou 3 filhos.
1. Em 18/07/2018, foi efetuada em Lisboa, pelo solicitador G..., por documento particular, a partilha da meação e da herança dos bens sitos em território nacional, conforme documento 8 junto ao pedido arbitral;
2. Dessa partilha faziam parte dos seguintes bens imóveis:
a) Fracção autónoma designada pela letra “P” do prédio urbano sito na Rua ..., n.°..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.° ... da união de freguesias de ... e ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.°..., com o valor patrimonial tributário de € 230.310,00:
b) Fracções autónomas designadas pelas letras “E”, “G”, “H”, “I” e “N” do prédio urbano sito na ..., n.°... e..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.° ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.°..., cada uma com o valor patrimonial tributário de € 14.212,75 (com exceção da fracção autónoma designada pela letra “N”, cujo valor patrimonial tributário era de € 15.398,85);
c) Prédio rústico situado na ..., ..., freguesia de ..., Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.°... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial rústica sob o artigo n.°..., com o valor patrimonial tributário de € 48,98;
d) Prédio urbano sito no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.° ... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.°..., com o valor patrimonial tributário de € 78.200,00;
e) Prédio rústico denominado “...”, situado no ..., freguesia de ..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.°... da freguesia de ..., inscrito na correspondente matriz predial urbana sob o artigo n.°..., com o valor patrimonial tributário de € 30,80;
f) Prédio rústico denominado “...”, situado no ..., freguesia de ..., concelho de Ansião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ansião sob o n.° ... da mesma freguesia, inscrito na correspondente matriz predial rústica sob o artigo n.°..., com o valor patrimonial tributário de € 2,71;
3. O valor da meação do conjugue sobrevivo é de € 2.649.088, conforme consta no referido documento de partilha;
4. O valor do quinhão hereditário de cada um dos três filhos é de € 883.029,33, conforme consta do documento de partilha;
5. Foi adjudicado, a título de meação, ao cônjuge sobrevivo parte do crédito de suprimentos sobre a sociedade H..., Lda, no valor de €2.649.088, conforme documento de partilha junto como documento 8 ao pedido arbitral;
6. Aos três filhos foram adjudicados, em compropriedade e em partes iguais, todos os restantes bens e direitos e ainda a parte remanescente do crédito de suprimentos, no valor total de €2.649.088, conforme documento de partilha junto como documento 8 ao pedido arbitral;
7. A Requerente foi notificada de uma demonstração de liquidação de IMT provisória com o n.º de registo 2018/..., junta ao pedido arbitral como documento 2;
8. O irmão da Requerente, E..., requereu ao Serviço de Finanças de Ansião, certidão contendo os números, valores e data limite de pagamento das liquidações de IMT e Imposto do Selo, emitidas na sequência da partilha efetuado por óbito de seu pai, C..., juntando ao pedido o documento particular de partilha.
9. Em 28-03-2019, foi emitida certidão, assinada pela TAT I..., do Serviço de Finanças de Ansião, onde se certifica que “(…) foram efetuadas as seguintes liquidações: (…) - Liquidação IMT n.º..., no montante de € 15.581,64, data limite de pagamento 2018/11/30; Liquidação Imposto de selo n°2018..., no montante de € 2.156,68, data limite de pagamento 2018/11/12, em nome de A..., NIF ...”.
10. A Requerente deduziu reclamação graciosa da liquidação de IMT.
11. A reclamação graciosa foi objeto de dez decisões de indeferimento, em 03/07/2019, conforme documento 6 junto ao pedido arbitral;
12. As decisões de indeferimento contêm a seguinte fundamentação:
“FACTOS:
No dia dezoito de julho de 2018, foi, no Escritório do Solicitador G..., elaborado um documento particular de Partilha de Meação e da Herança, pelo qual o reclamante procedeu à partilha dos bens e direitos nela identificados, com os outros outorgantes, no caso a sua mãe e os seus dois irmãos.
Nessa partilha, foram adjudicados, em compropriedade e, partes iguais, ao reclamante e a os seus dois irmãos, os bens imóveis descritos na referida escritura.
- O DIREITO;
Dispõe o n° 5o do art° 2o do CIMT (Código do Imposto Municipal Sobre as transmissões Onerosas de Imóveis) que “Em virtude do n° 1, são também sujeitas a IMT, designadamente:”, alínea c) (disposição legal, aliás transcrita pelo reclamante no ponto 89°) “O excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em ato de divisão ou partilhas sendo que, conforme dispõe o art.° 4°/alínea a)/CIMT, “Nas divisões ou partilhas, o imposto é devido pelos adquirentes dos bens imóveis cujo valor exceda o da sua quota nesses bens”.
Dispõe, ainda, a regra 11” do n° 4 do art.° n° 12° do mesmo código que “Nas partilhas judiciais ou extrajudiciais, o valor do excesso de imóveis sobre a quota-parte do adquirente, nos termos da alínea c) do n° 5a do artº 2a, é calculado em face do valor patrimonial tributário desses bens adicionado do valor atribuído aos imóveis não sujeitos a inscrição matricial ou, caso seja superior, em face do valor que tiver servido de base à partilha. ”
Na liquidação do IMT reclamado foram observadas todas as normas legais referenciadas”.
13. A Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral em 04-10-2019.
Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.
3.2. Factos não provados
Não se verificaram quaisquer factos que não tenham sido provados.
3.3. Fundamentação da matéria de facto provada:
A convicção do árbitro fundou-se nos documentos juntos aos autos pela Requerente, designadamente o processo administrativo e na posição das partes demonstrada nas peças processuais produzidas.
4. Matéria de direito:
4.1. Objeto e âmbito do presente processo
A questão essencial de direito que se coloca neste processo é a de saber se se verificam os seguintes vícios imputados à liquidação de IMT em causa:
- falta de fundamentação das liquidações de IMT;
- vício de fundamentação na decisão que pôs termo às reclamação graciosa
A questão que é levantada nos presentes autos já foi tratada no processo 666/2019-T, respeitante a factos muito semelhantes.
A Requerente começa por assacar ao ato de liquidação a ilegalidade resultante da alegada falta de fundamentação do ato de liquidação do IMT, vício que alegadamente se repetirá no(s) indeferimento(s) do(s) pedido(s) de reclamação graciosa do mesmo imposto.
Como se diz no processo 666/2019-T “só uma vez decidido se são conhecidos – e quais - os fundamentos factuais e jurídicos em que se estribou a liquidação se poderá aferir se tais pressupostos de facto e de direito tidos por errados sofrem ou não da ilegalidade imputada”.
O artigo 77.º da Lei Geral Tributária (que é uma densificação normativa da injunção constitucional que consta do art.º 268.º, n.º 3 da CRP) contém um dever expresso de fundamentação dos atos tributários. Segundo este artigo:
“1 – A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária.
2 – A fundamentação dos atos tributários pode ser efetuada de forma sumária, devendo sempre conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo”.
Como vem afirmando a jurisprudência e a doutrina, o ato tributário encontra-se suficientemente fundamentado quando dele é possível extrair qual o percurso cognoscitivo seguido pelo agente para a sua prática.
Ponto é que a fundamentação responda às necessidades de esclarecimento do contribuinte informando-o do itinerário cognoscitivo e valorativo do ato de liquidação, permitindo-lhe conhecer as razões, de facto e de direito, que determinaram a sua prática.
Estes atos podem conter uma fundamentação sumária, que, no entanto, não pode deixar de conter as disposições legais aplicáveis, a qualificação e quantificação dos factos tributários e as operações de apuramento da matéria tributável e do tributo.
Como decorre da matéria de facto provada (pontos 7 e 9) a demonstração provisória de liquidação e a certidão contendo os valores de liquidação em IMT e não contém factos ou referências normativas que permitam conhecer como é que Autoridade Tributária chegou ao cálculo de IMT correspondente ao alegado excesso de meação da Requerente.
Como se lê no acórdão do STA no processo 01173/14 “é sabido que a falta ou insuficiência de fundamentação do acto, vício de natureza formal (e não substancial), se verifica quando o respectivo acto não exterioriza de modo claro, suficiente e congruente, as razões por que apresenta determinado conteúdo decisório. Sendo que a falta ou insuficiência de fundamentação não se confunde com o vício decorrente de erro sobre os pressupostos (este ocorre quando, apesar de o autor do acto ter dado a conhecer as razões em que suporta a decisão, tais razões não são, todavia, apropriadas ou suficientes ou demandavam diversa solução). Este direito à fundamentação, relativamente aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, decorria já do art. 1º, nº 1, als. a) e c) do DL nº 256-A/77, de 17/6 e tem hoje consagração constitucional de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da parte 1ª da CRP - art. 268º (Vejam-se a abundante jurisprudência do STA atinente a esta matéria bem como Gomes Canotilho e Vital Moreira, «Constituição da República Portuguesa Anotada», 1993, pp. 936 e Vieira de Andrade, «O Dever de Fundamentação Expressa dos Actos Administrativos», 1990, pp. 53 e ss.) - tendo o respectivo princípio constitucional sido densificado nos arts. 124º e 125º do CPA, no art. 21.º do CPT (em vigor à data dos factos) e, posteriormente, nos arts. 77º nºs. 1 e 2 da LGT ( acto administrativo tributário).
E dado que este dever legal de fundamentação tem, «a par de uma função exógena - dar conhecimento ao administrado das razões da decisão, permitindo-lhe optar pela aceitação do acto ou pela sua impugnação -, uma função endógena consistente na própria ponderação do ente administrador, de forma cuidada, séria e isenta.» (ac. deste STA, de 2/2/2006, rec. nº 1114/05), então, essa fundamentação deve ser contextual e integrada no próprio acto (ainda que o possa ser de forma remissiva), expressa e acessível (através de sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito da decisão), clara (de modo a permitir que, através dos seus termos, se apreendam com precisão os factos e o direito com base nos quais se decide), suficiente (permitindo ao destinatário do acto um conhecimento concreto da motivação deste) e congruente (a decisão deverá constituir a conclusão lógica e necessária dos motivos invocados como sua justificação), equivalendo à falta de fundamentação a adopção de fundamentos que, por obscuridade, contradição ou insuficiência, não esclareçam concretamente a motivação do acto.
(…)
Assim, utilizando a linguagem da jurisprudência, o acto só está fundamentado se um destinatário normalmente diligente ou razoável - uma pessoa normal - colocado na situação concreta expressada pela declaração fundamentadora e perante o concreto acto administrativo (que determinará consoante a sua diversa natureza ou tipo uma maior ou menor exigência da densidade dos elementos de fundamentação) fica em condições de conhecer o itinerário funcional (não psicológico) cognoscitivo e valorativo do autor do acto, sendo, portanto, essencial que o discurso contextual lhe dê a conhecer todo o percurso da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que suportam a decisão ou os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro. Ela visa «esclarecer concretamente as razões que determinaram a decisão tomada e não encontrar a base substancial que porventura a legitime, já que o dever formal de fundamentação se cumpre “pela apresentação de pressupostos possíveis ou de motivos coerentes e credíveis, enquanto a fundamentação substancial exige a existência de pressupostos reais e de motivos correctos susceptíveis de suportarem uma decisão legítima quanto ao fundo”. O discurso fundamentador tem de ser capaz de esclarecer as razões determinantes do acto, para o que há-de ser um discurso claro e racional; mas, na medida em que a sua falta ou insuficiência acarreta um vício formal, não está em causa, para avaliar da correcção formal do acto, a valia substancial dos fundamentos aduzidos, mas só a sua existência, suficiência e coerência, em termos de dar a conhecer as razões da decisão.» (Cfr. Vieira de Andrade – ob. cit. pag. 239, na citação do ac. do STA, de 11/12/2002, rec. 01486/02.)”
Tal como se conclui no processo 666/2019-T, também no caso sub judicio, se constata inexistir nos autos qualquer ato ou decisão da AT da qual constem, segundo os critérios supra enunciados, os factos e as razões de direito com base nos quais se concluiu que a Requerente era sujeito passivo de IMT na expressão quantitativa expressa no ato de liquidação. Na verdade, em face do constante do ponto 7 e 9 do Probatório, a enunciação dos factos relativos à liquidação é feita, no procedimento, de forma esparsa, sob a epígrafe de “demonstração de liquidação provisória” e depois na certidão de liquidação (que não contém qualquer fundamentação). A AT não invoca qualquer razão jurídica para relevar os valores que aí descreve para efeitos de liquidação do IMT, o que consubstancia, no mínimo, uma insuficiência de fundamentação que equivale à falta de fundamentação, por não dar a conhecer o percurso racional cognitivo-valorativo dos elementos e valores que aí menciona.
Do mesmo vício padece a decisão da reclamação graciosa apresentada pelo Requerente, a que alude o probatório. Mesmo admitindo que esta decisão administrativa tenha por subjacentemente adquiridos os factos reportados na referida “demonstração da liquidação provisória”, sempre é impossível distrair o resultado da liquidação a partir da simples consideração desses factos e das disposições legais que nela são mencionadas – o n.º 5 do art.º 2.º do CIMT e a regra 11.ª do n.º 4 do art.º 12.º do mesmo diploma. Com efeito, na sua fundamentação – que consta do ponto 12 do probatório - nenhuma alegação é feita pela Administração no sentido de demonstrar como se chegou, por via dos preceitos legais citados, aos valores apurados à Requerente.
Nestes termos, tal decisão padece de falta de enunciação das razões jurídicas pelas quais os factos apontados conduzem racionalmente ao resultado tido como excesso na quota parte dos bens imóveis, tendo em conta o valor dos mesmos e a sua consideração dentro do valor da quota ideal.
Assim contrariamente ao sustentado na Resposta da AT, pode afirmar-se que a Requerente se viu privada de vislumbrar os elementos pertinentes na determinação dos fundamentos de facto e de direito que pudessem justificar o resultado do ato de liquidação.
E tanto é assim que a Requerente desenvolveu a sua defesa em função de diversos quadros de facto possíveis e da eventualidade de aplicação de diversos regimes jurídicos.
Como afirmam Serena Cabrita Neto e Carla Castelo Trindade in Contencioso Tributário, Almedina, volume I, pág. 194, a consequência da falta de fundamentação é a ilegalidade do ato por vício de forma.
Nesses termos tem que se tem de concluir pela procedência da causa de pedir da falta de fundamentação e, consequentemente, pela ilegalidade e anulabilidade da liquidação.
Face a este juízo, fica prejudicado o conhecimento das outras causas de pedir, sendo que a possibilidade do seu conhecimento apenas se revelaria possível na presença de uma decisão de fundamentação que explicitasse, nos termos atrás referidos, o percurso racional cognitivo-valorativo efetivamente prosseguido pela AT.
5. Juros indemnizatórios
A Requerente pede que seja condenada a Requerida no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43º n.º 1 da LGT.
O artigo 43º n.º 1 da LGT determina que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”, estatuindo o n.º 4 do art. 61.º do CPPT que “se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea”.
Nos presentes autos, verifica-se que a ilegalidade da liquidação controvertida é imputável à AT.
Assim, a Requerente tem direito, em conformidade com o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, ao reembolso do montante de imposto indevidamente pago e aos juros indemnizatórios, nos termos do estatuído nos arts. 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT, calculados desde a data do pagamento do imposto, à taxa resultante do n.º 4 do art. 43.º da LGT, até à data do processamento da respetiva nota de crédito, em que serão incluídos.
6. Decisão
Em face do exposto, determina-se:
a) Julgar procedente o pedido formulado pela Requerente no presente processo arbitral, quanto à declaração de ilegalidade do ato de liquidação de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), no valor de 15.581,64 €.
b) Julgar procedente o pedido de condenação da AT no reembolso do imposto pago, acrescido de juros indemnizatórios;
c) Condenar a Requerida no pagamento das custas do presente processo.
7. Valor do processo:
De acordo com o disposto no artigo 306º, n.º 2, do CPC e 97º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 3º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se o valor da ação em 15.581,64 €.
8. Custas:
Nos termos do artigo 22º, n.º 4, do RJAT, e da Tabela I anexa ao Regulamento das Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o montante das custas em 918 €, a cargo da Requerida de acordo com o artigo 22º n.º 4 do RJAT.
Notifique.
Lisboa, 7 de julho de 2020.
Texto elaborado por computador, nos termos do artigo 138º, n.º 5 do Código do Processo Civil (CPC), aplicável por remissão do artigo 29º, n.º 1, alínea e) do Regime de Arbitragem Tributária, por mim revisto.
A Juiz-Árbitro
(Suzana Fernandes da Costa)