DESPACHO ARBITRAL
Na sequência do Acórdão n.º 55/2022 proferido pelo Tribunal Constitucional, em 20 de janeiro de 2022, já transitado em julgado, que determinou a reforma da decisão proferida nos presentes autos, profere-se nova decisão arbitral.
Lisboa, 29 de Março de 2022
A árbitro presidente, com a concordância de todos os árbitros,
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Dra. Alexandra Coelho Martins, árbitro presidente, Dr. Ricardo da Palma Borges, designado pela Requerente, e Professor Henrique Fiúza, designado pela Requerida, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A…, S.A., sociedade dominante do “B…”, doravante “Requerente”, pessoa colectiva número …, com sede na Av. …, … Lisboa, veio, na sequência da notificação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada em relação à liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (”IRC”) e dos juros compensatórios inerentes, relativos ao exercício de 2013, no valor de € 729.607,80, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, bem como da liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios a que aquela respeita. Pretende ainda ser indemnizada pelos prejuízos decorrentes da prestação de garantia indevida, de acordo com o disposto no artigo 53.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
Em 18 de Março de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 25 de Março de 2019.
A Requerente designou como árbitro o Dr. Ricardo da Palma Borges, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), e n.º 3 do RJAT, e dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, a dirigente máxima do serviço da AT designou como árbitro o Professor Henrique Fiúza.
Na sequência do requerimento apresentado pelo Professor Henrique Fiúza para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 27 de Maio de 2019, do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), II.ª parte do RJAT.
Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação em 28 de Maio de 2019, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT.
Em 18 de Junho de 2019, não tendo as partes manifestado oposição, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído.
POSIÇÃO DA REQUERENTE
Em 2013, a Requerente passou a reconhecer as variações de valor (de cotação) dos activos financeiros mensurados ao justo valor apenas em capitais próprios, sem as reflectir em resultados, contrariamente ao que vinha a registar até então, alteração que, por via da apresentação de declarações de substituição, produziu efeitos retroactivos aos anos 2010, 2011 e 2012.
A Requerente não discute a posição da AT, que recusou esta mudança alicerçada no princípio da consistência e coerência da política contabilística.
Discorda, no entanto, que o reconhecimento em resultados preconizado pela AT, em relação às variações de cotação dos activos da sua carteira de investimentos no exercício de 2013, ano em que essas variações foram globalmente positivas, não tenha em conta os prejuízos fiscais acumulados do grupo que resultam, de forma consistente, da aplicação do mesmo critério aos anos antecedentes, 2011 e 2012, cujas variações foram negativas.
Para a Requerente, a AT emprega critérios contraditórios, pois ao mesmo tempo que rejeita a alteração de política contabilística por forma a concluir pelo acréscimo do lucro tributável em relação ao exercício de 2013, invoca as declarações de substituição que reduziram de forma significativa os seus prejuízos fiscais com origem nos exercícios de 2011 e 2012, em concretização dessa alteração de política contabilística, pelo expurgo das variações de cotação dos resultados.
Segundo a Requerente, tendo a inspecção tributária fundamentado que a contabilização em 2010, 2011 e 2012 das variações de cotação através de resultados (do exercício) já não permite a alteração, em 2013, do modo de contabilização destas variações (de forma que apenas tivessem reflexo em contas de capitais próprios), então, a reposição da política contabilística do reconhecimento das variações de cotação em resultados (e no lucro a tributar), sustentada pela AT, também tem de implicar a consideração dos prejuízos fiscais vindos de trás, derivados da variação para menos do valor das acções nos anos 2011 e 2012. Prejuízos que foram declarados inicialmente pela Requerente, antes da entrega das declarações de substituição verificada em 2013.
Considera, ainda, a Requerente que a questão dos prejuízos fiscais disponíveis para utilização em 2013, apesar de originada nos resultados fiscais (prejuízos) de 2011 e 2012, não é alheia à apreciação do imposto devido em 2013 e ao procedimento que culminou no respectivo apuramento e no acto de liquidação contestado. Negar à Requerente o direito a discutir esta questão com referência ao exercício de 2013 (dos prejuízos disponíveis para utilização nesse exercício gerados em 2011 e 2012) representa, em seu entender, a violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, com amparo nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
Neste contexto, invoca o disposto nos artigos 266.º da CRP, 3.º, 4.º, 6.º, 8.º, 9.º, e 10.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), 55.º da LGT e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e os princípios da legalidade, da imparcialidade, da isenção, da igualdade, da justiça e da boa fé, todos com assento constitucional.
Acrescenta que não está em causa uma questão de caducidade (artigo 45.º da LGT) na correcção simétrica de sentido favorável ao contribuinte, pois a AT devia proceder a essa correcção como pura consequência do entendimento de que “as variações de valor dos ativos em causa vão a resultados e em consequência entram no cômputo da base tributável”, para o que cita jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”) e um Ofício-Circulado . Defende também que as declarações modelo 22 de substituição de 2011 e 2012 foram entregues em Janeiro de 2015, pelo que em 2018, ano da inspecção e da liquidação de IRC controvertida, ainda estava em curso o prazo de revisão de 4 anos contado das citadas autoliquidações.
Noutra linha de argumentação, a Requerente invoca que o valor dos prejuízos fiscais do Grupo Fiscal B… em 2011 e 2012 (reportado nas declarações modelo 22 iniciais, antes da entrega das declarações de substituição) apenas inclui 50% das variações negativas de justo valor, de acordo com o entendimento da AT publicado sobre este assunto à data, com suporte no artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, quando deveriam ter sido consideradas na totalidade, como veio a ser confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) e arbitral. Propugna que não se podem tributar 100% os ganhos de cotação e considerar em apenas 50% as perdas de cotação, sob pena de tributação de lucros inexistentes e de tratamento desigual de contribuintes com idênticos resultados económicos.
Por fim, alega ser ilegal que as reduções de justo valor, na “veste de prejuízos fiscais”, só relevem contra 75% do lucro tributável dos anos seguintes, pois este lucro (de 2013) foi gerado pela mera reversão de cotação dos activos que tinham sido desvalorizados em anos anteriores.
Reforça que em 2013 não se teria produzido lucro tributável se não fosse o aumento de justo valor dos activos pela recuperação da cotação que, porém, apenas anula uma parte das perdas de justo valor dos exercícios anteriores – 2010, 2011 e 2012 – não podendo admitir-se que seja gerado imposto sobre o valor [dessa recuperação] quando o Grupo Fiscal B… está ainda em posição de perda, e muita, relativamente aos activos financeiros em causa.
As reduções de justo valor de exercícios anteriores que ainda não foram abatidas à matéria colectável devem sê-lo, em 2013, sem restrições, até à concorrência do valor da recuperação de justo valor das acções em causa ocorrida nesse exercício [2013] de € 6.322.078,36. O que é suficiente e até excede, reduzindo a zero, a matéria colectável desse ano, pois o lucro tributável apurado pela AT foi menor, de € 5.644.645,93.
Os ajustamentos decorrentes do justo valor representam empobrecimento ou enriquecimento meramente potenciais e a sua medição (seja como gasto ou como rendimento) é, por definição, provisória, o que torna especialmente desadequada a interferência do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, que estabelece aquele limite [de 75%] à dedução de prejuízos fiscais, na redacção contemporânea aos factos. Esta norma deve ser interpretada, à semelhança do entretanto revogado artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, como não abrangendo prejuízos/lucros meramente potenciais e não realizados decorrentes de variações de justo valor de acções cotadas.
Considera a Requerente que sustentar o contrário será defender a tributação de ganhos inexistentes e inventados, com violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição de soluções arbitrárias, da proporcionalidade ou da justa medida, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da propriedade, para o que invoca os artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 104.º, n.º 2, e 62.º da CRP.
Apela adicionalmente ao princípio da tutela da confiança e da boa fé, em virtude de a norma de restrição da utilização de prejuízos fiscais transitados de anos anteriores, prevista no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, só ter sido introduzida em 30 de Dezembro de 2011, pela Lei n.º 64-B/2011, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2012. Donde, a sua aplicação aos prejuízos gerados em exercícios anteriores, designadamente de 2010 e 2011, determinada pelo artigo 116.º, n.º 2, da citada Lei, viola o artigo 2.º da CRP – Estado de Direito.
A Requerente juntou 23 documentos e não requereu a produção de prova testemunhal. Considera que os factos não são controvertidos, suscitando-se somente questões de direito.
POSIÇÃO DA REQUERIDA
Em 9 de Setembro de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por excepção e por impugnação.
Por excepção, invoca que o Tribunal Arbitral é parcialmente incompetente para apreciar o pedido de reconhecimento do direito a deduzir prejuízos fiscais de € 6.032.522,18 provenientes dos exercícios de 2011 e 2012, pois a decisão jurisdicional tem de limitar-se à apreciação da legalidade da liquidação, de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, cabendo à AT, em caso de procedência da acção, a realização dos correspondentes actos de execução (artigos 100.º da LGT e 24.º do RJAT).
Para este efeito, suporta-se em jurisprudência do TCAS e arbitral, na natureza facultativa da jurisdição arbitral e na primazia da interpretação estrita da competência material dos Tribunais Arbitrais, concluindo que as únicas correcções passíveis de serem apreciadas são as que respeitam ao direito de reporte de prejuízos fiscais apurados e declarados pela Requerente (ou seja, os que constam das declarações de substituição apresentadas em 2015 na sequência da alteração da política contabilística), à luz do regime legal consagrado nos artigos 52.º e 71.º do Código do IRC.
A Requerida suscita uma segunda excepção, de litispendência parcial, em relação à acção administrativa de condenação à prática de acto devido que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual a Requerente peticiona a condenação da AT a aceitar e repor as (segundas) declarações modelo 22 de substituição apresentadas em 30 de Outubro de 2018 após a acção inspectiva, para os exercícios fiscais de 2011 e 2012.
Para a Requerida, o efeito jurídico pretendido pela Requerente é o reconhecimento do direito de deduzir os prejuízos fiscais provenientes dos exercícios de 2011 e 2012, de € 6.032.522,18, pelo que a decisão daquela acção produzirá a alteração da matéria colectável da Requerente, por referência às declarações apresentadas, o que, na perspectiva da primeira, pode implicar a prolação de decisões judiciais contraditórias, quanto ao pedido de reconhecimento do direito a deduzir os prejuízos fiscais mencionados, em relação ao qual conclui pela litispendência.
Se o Tribunal assim não o entender, considera a Requerida que se verifica uma relação de prejudicialidade ou dependência entre a acção administrativa e a acção arbitral, dado que o montante dos prejuízos fiscais a utilizar no exercício de 2013 depende da decisão a proferir sobre o pedido de processamento das declarações modelo 22 de substituição apresentadas em 30 de Outubro de 2018, nas quais se quantificam esses prejuízos.
Na defesa por impugnação, a Requerida sustenta e reproduz os fundamentos aduzidos, quer no Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), quer na decisão da Reclamação Graciosa, salientando que a Inspecção Tributária não procedeu à correcção de quaisquer prejuízos fiscais dos exercícios de 2011 e 2012, tendo, sim, considerado os valores dos prejuízos fiscais apurados nas declarações modelo 22 de substituição entregues em 2015, pelo que os valores dos resultados fiscais de 2011 e 2012 não fazem parte do seu objecto. Foram apurados pela Requerente e esse apuramento não foi corrigido pela AT.
Quanto ao prazo de caducidade previsto no artigo 45.º da LGT, a Requerida afirma que que o mesmo não é fundamento da decisão, mas antes a inobservância do regime dos artigos 52.º e 71.º do Código do IRC, para além de não concordar que a caducidade seja apenas aplicável aos actos desfavoráveis aos contribuintes.
Refere que o prazo para apresentação de declarações de substituição em situação de reporte de prejuízos fiscais se deve considerar expirado em conformidade com a jurisprudência do STA.
Relativamente à alegada violação da tutela jurisdicional efectiva, a Requerida pugna pela sua não verificação, pois as decisões que sejam proferidas em relação aos pedidos de revisão oficiosa pendentes sobre a matéria tributável dos exercícios de 2011 e 2012, se forem de indeferimento, podem ser impugnadas.
Sustenta também que o Ofício Circulado invocado pela Requerente (n.º 14 da Direcção de Serviços do IRC, de 23 de Novembro de 1993) não tem aplicação ao caso vertente, pois respeita ao tratamento de custos e proveitos e não a prejuízos.
Em relação aos princípios constitucionais, lembra que o Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 85/2010, já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade do regime de dedutibilidade em 50% das perdas decorrentes das reduções do justo valor.
Por fim, a Requerida pronuncia-se no sentido da procedência das excepções invocadas, ou, caso assim não se entenda, pela suspensão da instância e, a final, pela improcedência do pedido por não provado, com a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos.
TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE
Por despacho de 18 de Setembro de 2019 foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção e juntar a petição da acção administrativa em relação à qual foi deduzida a questão da litispendência.
Em 24 de Setembro de 2019, a Requerente deu satisfação ao requerido, manifestando-se no sentido de não existir fundamento para as excepções suscitadas. No caso da incompetência (parcial) por ser claro que, sem prejuízo da causa de pedir complexa que lhe subjaz, o pedido é meramente anulatório da liquidação de IRC. No tocante à litispendência (também parcial), por falta de identidade do pedido e da causa de pedir. Considera de igual modo inexistente uma relação de prejudicialidade por serem autónomos e independentes os pedidos e fundamentos das duas acções.
Em 30 de Setembro de 2019, o Tribunal Arbitral decidiu dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e não suspender a instância por entender que não se verifica a relação de prejudicialidade ou dependência alegada pela AT nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”), relegando o conhecimento das excepções para a decisão a proferir a final.
Em 1 de Outubro de 2019, a Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (“PA”).
As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas sucessivas e fixada a data para prolação da decisão arbitral.
A Requerente apresentou alegações finais em 25 de Outubro de 2019, nas quais mantém a sua posição. A Requerida contra-alegou em 13 de Novembro de 2019, reiterando os argumentos de facto e de direito constantes da Resposta.
Por despacho de 30 de Janeiro de 2020 foi prorrogado por dois meses o prazo de prolação da Decisão Arbitral, atenta a complexidade das questões suscitadas, prorrogação que foi renovada por despacho de 13 de Abril de 2020 por mais dois meses.
Em 17 de Junho de 2020, foi prolatada a decisão arbitral, tendo o Ministério Público interposto recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, por requerimento recepcionado em 26 de Junho de 2020.
Em 20 de Janeiro de 2022, o Tribunal Constitucional proferiu Acórdão, de que se transcreve o seguinte segmento decisório:
“
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 52.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, na redação dada pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, quando limita o reporte de prejuízos fiscais – incluindo aqueles que decorram de ajustamento de ativos financeiros mensurados por justo valor e reconhecidos através de resultados nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo Código – a 75% do lucro tributável do ano reportado, também quando os prejuízos decorram de ajustamentos de ativos financeiros mensurados por justo valor e reconhecidos através de resultados nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do mesmo diploma;
b) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 52.º, n.º 2 da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, na parte em que determina a aplicação da nova redação do artigo 52.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Coletivas a prejuízos fiscais apurados em exercícios passados, incluindo os resultantes de mensurações a justo valor;
c) Julgar procedente o recurso, determinando a remessa dos autos ao Tribunal arbitral, a fim de que este reforme a decisão em conformidade com o presente juízo sobre as questões de inconstitucionalidade.”
II. SANEAMENTO
1. DA EXCEPÇÃO DE INCOMPETÊNCIA MATERIAL (PARCIAL)
Em primeiro lugar, importa conhecer a excepção de incompetência material (parcial) invocada pela Requerida que é de ordem pública e cujo conhecimento precede o de qualquer outra matéria (cf. artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi dos artigos 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e 2.º, alínea c), do CPPT).
A competência dos Tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo Tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa .
Os Tribunais Arbitrais estão previstos no artigo 209.º, n.º 2, da CRP, sendo o âmbito da jurisdição arbitral tributária recortado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os correspondentes critérios de repartição material. Aí se determina competir a esta “espécie” de Tribunais a apreciação das seguintes pretensões :
“a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.”
A Requerida suscita a excepção de incompetência por considerar que está em causa, nos presentes autos, o pedido de reconhecimento do direito a deduzir prejuízos fiscais de exercícios anteriores (2011 e 2012) àquele que foi inspeccionado (2013), ao qual respeita o acto de liquidação impugnado, devendo o Tribunal Arbitral cingir-se à apreciação da legalidade dessa liquidação.
Afigura-se que a Requerida não tem razão, pois submete-se à apreciação do Tribunal um acto tributário proprio sensu, que define de forma unilateral e impositiva uma prestação de imposto . O pedido deduzido pela Requerente e, em consequência, o objecto do processo, é precisamente e apenas o da ilegalidade e anulação do acto tributário de liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios com respeito ao exercício de 2013, matéria que cabe na competência da jurisdição arbitral tributária e que, por essa razão, este colectivo pode conhecer, nos termos do disposto no citado artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT .
A admissibilidade ou não da pretensão da Requerente em relação a serem atendíveis prejuízos fiscais derivados das reduções de justo valor dos anos 2011 e 2012 no apuramento do imposto [IRC] relativo ao exercício de 2013, é questão que se prende com a apreciação do mérito, com a procedência da causa, não enquadrável como pressuposto processual. Soçobra, desta forma, a excepção de incompetência material parcial suscitada pela Requerida.
2. DA EXCEPÇÃO DE LITISPENDÊNCIA
A Requerida vem também arguir a excepção de litispendência (parcial), ao abrigo do artigo 580.º do CPC, entendendo que está em causa no presente processo arbitral e, em simultâneo, no processo que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º 361/19.8BELRS, o mesmo efeito jurídico, que é o do reconhecimento do alegado direito da Requerente a deduzir os prejuízos fiscais no concreto montante de € 6.032.522,18 provenientes dos exercícios de 2011 e 2012. Pelo que a decisão que vier a ser proferida pelo Tribunal Tributário na ação administrativa é passível de alterar a matéria tributável da Requerente nos mesmos termos da pretensão deduzida na acção arbitral, implicando a possível prolação de decisões judiciais contraditórias.
A litispendência visa impedir a repetição de uma causa anterior que está em curso e evitar, dessa forma, que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Para que se constate este pressuposto são exigidas três condições, que implicam uma tripla identidade: de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cf. artigos 89.º do CPTA, 577.º, alínea i), 580.º e 581.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT e do artigo 1.º CPTA).
Resulta do probatório que está efectivamente pendente uma acção administrativa de condenação à prática de acto devido, sendo os sujeitos os mesmos do ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Peticiona aí a Requerente a condenação da AT a “aceitar e repor as declarações de rendimento (IRC) modelo 22 de substituição apresentadas em 30.10.2018 para os exercícios fiscais de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016, pela A… S.A. (na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal) e pela sociedade integrante do Grupo Fiscal C… SGPS S.A.” e a anular “o ato que deu sem efeito e anulou as referidas declarações individuais e agregadas referentes do Grupo Fiscal B…, notificado através do e-balcão em 4 de Dezembro de 2018 (Doc. n.º 1).”.
Este pedido e causa de pedir não têm correspondência com os da presente acção anulatória (de um acto de liquidação relativo ao exercício de 2013), pelo que a excepção arguida quanto ao segmento dos prejuízos fiscais com origem nos exercícios de 2011 e 2012 é improcedente.
Acresce que, para além da falta de tripla identidade que constitui requisito da excepção de litispendência e que aqui, como assinalado, não se verifica, a decisão da presente acção não depende da aceitação ou não das declarações de substituição submetidas em 2018, posteriormente à acção inspectiva e ao acto de liquidação cuja invalidade está em discussão nestes autos. Nesta matéria, o que o Tribunal Arbitral é chamado a conhecer é a necessária consideração dos prejuízos fiscais de 2011 e 2012 apurados de acordo com a política de reconhecimento das variações de justo valor em resultados, cujo montante corresponde ao das declarações iniciais modelo 22 de IRC submetidas pela Requerente, independentemente da aceitação ou não daquelas declarações de substituição apresentadas em 2018.
* * *
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos actos de liquidação de IRC e inerentes juros compensatórios controvertidos, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, contado da notificação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do CPPT.
Não foram identificadas outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
A. A A…, S.A., aqui Requerente, é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B…, o qual inclui a sociedade dominada C… SGPS, S.A. (C… SGPS), tendo optado pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), previsto nos artigos 69.º a 71.º do Código do IRC – cf. RIT.
B. Com a introdução do Sistema de Normalização Contabilística em 2010, a sociedade dominada C… SGPS começou por contabilizar as variações nas participações financeiras que detinha nas sociedades D… SGPS, S.A. (detenção de 4,97%) e na E… SGPS, S.A. (detenção de 0,42%), através de resultados, em variações de justo valor nas contas de gastos ou rendimentos (contas 66 ou 77) – cf. RIT.
C. Porém, no exercício de 2013, a C… SGPS alterou esse procedimento, passando a reconhecer directamente essas variações em contas de capital próprio, sem afectar resultados. O lucro tributável da C… SGPS declarado em relação a 2013, de € 1.469.167,70, foi, desta forma, apurado sem que para o mesmo tivessem concorrido as variações de justo valor das referidas participações financeiras (instrumentos de capital próprio) – cf. RIT.
D. Em Janeiro de 2015, a C… SGPS e a Requerente submeteram declarações modelo 22 de substituição das autoliquidações dos exercícios de 2010, 2011 e 2012, na sequência da alteração da política contabilística relativa às variações de justo valor, que retroagiram a esses anos. Estas declarações de substituição reflectem o facto de essas variações terem deixado de afectar resultados e, por conseguinte, de já não serem tidas em conta no cômputo do lucro tributável do IRC declarado, reduzindo os prejuízos fiscais que haviam sido inicialmente declarados para 2011 e 2012, nos termos do quadro seguinte:
– cf. documentos 8 a 13, 15 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) e RIT.
E. A C… SGPS foi sujeita a uma acção de inspecção externa de âmbito parcial, incidente sobre o IRC do exercício de 2013, na sequência da ordem de serviço n.º OI2017…, de 31 de Julho de 2017, com o objectivo de verificar se a valorização das acções ao justo valor estava reflectida nos resultados – cf. RIT.
F. No âmbito da acção inspectiva à C…SGPS, o lucro tributável por esta declarado em 2013, de € 1.469.167,70, foi corrigido. Com efeito, a AT efectuou correcções à matéria colectável de € 6.415.340,36, correspondente a um ganho de justo valor de € 6.508.602,36, deduzido de 50% da perda de justo valor cifrada em € 93.262,00 (€ 186.524,00*50%). Assim, o lucro tributável da C… SGPS em 2013, conforme corrigido pela AT, passou a ser de € 7.884.508,06 – cf. RIT.
G. Como fundamento das correcções em causa, refere o Relatório de Inspecção o seguinte:
“III DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1. Fundamentos das correções meramente aritméticas ao lucro tributável:
III.1.1. Metodologia de Análise
[…]
III.1.2. Contabilização dos ganhos e perdas com instrumentos financeiros valorizados ao justo valor
Atento aos elementos remetidos pelo sujeito passivo verifica-se que detêm as seguintes participações financeiras:
[…]
Quando confrontado o balancete analítico a 31/12/2013 com o mapa enviado pela sociedade C… SGPS, SA, o qual indicava o valor da sua participação financeira na sociedade D… SGPS, SA (NIF: …) em 01/01/2013 e em 31/12/2013, verificou-se que o ganho, proveniente da alteração do justo valor, não se encontrava refletido numa conta SNC de rendimentos, nomeadamente, numa 77 – Ganhos por aumentos de justo valor em investimentos financeiros.
Aquando do início do procedimento inspetivo questionou-se o sujeito passivo acerca da situação acima descrita, ao que o mesmo veio informar que «Com a introdução do SNC em 2010, a B…, SGPS, começou por contabilizar as variações nas referidas participações através de resultados, em variações de justo valor – contas 66 ou 77. No entanto em 2013, foi decidido alterar a forma de contabilização destas variações, passando a ser contabilizada essa variação através de capitais próprios – conta 5721. Foi ainda decidido efetuar correções as declarações fiscais dos anos de 2010, 2011 e 2012, tanto nas modelos 22 da B…, SGPS, como nas modelo 22 da empresa mãe, dado a empresa integrar o RETGS.»
Para o efeito apresentou um quadro demonstrativo com as variações anuais existentes entre os anos de 2009 a 2016, conforme print abaixo:
[…]
Constata-se, assim, que no ano de 2013 o sujeito passivo alterou a forma de contabilização dos ganhos e perdas provenientes da alteração no justo valor respeitantes às participações financeiras detidas nas sociedades D… SGPS, SA E a F….
Nos exercícios de 2010, 2011 e 2012 eram contabilizados, pelo sujeito passivo, através de resultados (lucros ou prejuízos na aceção da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 27). Com a alteração da metodologia de contabilização, os ganhos / perdas passaram a ser reconhecidos diretamente em capital próprio, nos termos da norma internacional de contabilidade IAS 39.
No entanto, segundo o § 17 da NCRF 27 «Uma entidade não deve alterar a sua política de mensuração subsequente de um ativo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse método. São situações de exceção quando deixar de estar disponível uma mensuração fiável do justo valor para um instrumento de capital próprio de uma outra entidade mensurado ao justo valor ou quando passar a estar disponível uma mensuração fiável de justo valor para um instrumento de capital próprio de uma outra entidade mensurado ao custo».
No mesmo sentido a IAS 39, refere, na alínea b) do parágrafo 50, que uma entidade «não deve reclassificar um instrumento financeiro, retirando-o da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos se, aquando do reconhecimento inicial, tiver sido designado pela mesma entidade como pertencendo à categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos».
Assim, conclui-se da interpretação das Normas que uma entidade não deve alterar a política de mensuração de um instrumento financeiro ou não deve reclassificá-lo, enquanto o mesmo for detido ou estiver disponível uma mensuração fiável de justo valor.
Este procedimento não foi efetuado pela sociedade C… SGPS, SA, em 2013. Uma vez que com a introdução do SNC (2010), o sujeito passivo contabilizou os ganhos e perdas em resultados, estava legalmente obrigado a seguir a mesma metodologia, até deixar de deter as participações ao invés de passa-las a contabilizar diretamente em capital próprio.
Conclui-se desta forma, de acordo com os normativos contabilísticos, que o ganho obtido com a alteração do justo valor da participação financeira detida na D… SGPS, SA, no exercício de 2013, no montante de € 6.508.602,36, deveria ter sido reconhecido na conta 772 – Ganhos por aumentos de justo valor em investimentos financeiros; e a perda obtida, no montante de € 186.524,00, com a alteração do justo valor da participação financeira detida na sociedade E… deveria ter sido contabilizada na conta 662 – Perdas por redução de justo valor em instrumentos financeiros, ao invés de terem sido ambos contabilizados na conta 5721 – Ajustamentos do justo valor – CMVM.
Se a alteração efetuada pelo sujeito passivo não é legalmente permitida pelo direito da contabilidade não poderá ser, concomitantemente, acolhida fiscalmente, em sede de IRC, uma vez que o apuramento do lucro tributável das pessoas coletivas é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade, que deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor, nos termos do artigo 17.º do CIRC.
Assim nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gasto no período de tributação quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social.
No que concerne aos ajustamentos negativos tem de se conjugar o disposto na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º com a parte final do n.º 3 do artigo 45.º, ambos do CIRC (em vigor à data dos factos), isto é, apenas concorre para a formação do lucro tributável 50% da perda verificada com a alteração do justo valor da participação detida na sociedade F….
Face ao exposto o sujeito passivo deveria ter feitio concorrer para o apuramento do lucro tributável o ganho de justo valor no montante de € 6.508.602,36 e 50% da perda de justo valor no montante de € 93.262,00 (€ 186.524,99*50%). […]”.
H. Estas correcções na esfera individual da C… SGPS tiveram repercussão no lucro tributável do Grupo Fiscal B…, calculado na esfera da sociedade dominante, aqui Requerente, para o que foi emitida a ordem de serviço OI201705133 a fim de reflectir os ajustamentos efectuados na declaração de rendimentos Modelo 22 do Grupo relativa ao exercício de 2013 – cf. Relatório de Inspeção Tributária da Requerente (“RIT-1”).
I. Nesta sequência, o resultado declarado do Grupo Fiscal B… no exercício de 2013 foi alterado de um prejuízo fiscal de € 770.694,43 para o lucro tributável de € 5.644.645,93 – cf. RIT-1.
J. E os prejuízos dedutíveis gerados em anos anteriores foram corrigidos pela AT de € 9.366.833,57 para € 4.748.161,35, na sequência consideração, nesse momento, das declarações de substituição de IRC que tinham sido apresentadas pela Requerente em Janeiro de 2015 e que, com referência aos anos 2011 e 2012, reduziram esses prejuízos fiscais do Grupo B… constantes das declarações modelo 22 de IRC originariamente submetidas, em virtude da eliminação do impacto das variações do justo valor por alteração da política contabilística operada no exercício de 2013 na C… SGPS – cf. documentos 8 a 16 juntos com o PPA, RIT e RIT-1.
K. Dos prejuízos fiscais gerados em anos anteriores, corrigidos para € 4.748.161,35, foi determinada pela AT a dedução ao lucro tributável de 2013 do Grupo C… da importância de € 4.233.484,45, correspondente a 75% do lucro tributável apurado nesse ano de € 5.644,645, conforme disposto no artigo 52.º, n.º 2 do Código do IRC na redacção vigente em 2013 – cf. RIT-1.
L. A Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2018 …, de 2 de Abril de 2018, referente ao exercício de 2013, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018 …, da mesma data, originando o valor total a pagar de € 729.607,80, com data limite de pagamento de 9 de Maio de 2018 – cf. demonstração de liquidação de IRC, demonstração de liquidação de juros e demonstração de acerto de contas juntas com PPA.
M. A Requerente prestou garantia bancária até ao montante de € 922.254,06, para suster o processo de execução fiscal n.º …, instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa … para cobrança das dívidas de IRC e juros compensatórios constantes dos actos tributários acima identificados – cf. documento 23 junto com o PPA.
N. Inconformada com a liquidação, a Requerente apresentou, em 24 de Julho de 2018, Reclamação Graciosa (constante do PA) alegando, em síntese, como no PPA, que:
Devem ser considerados os prejuízos fiscais reportados nas Declarações Modelo 22 originais relativas a 2011 e 2012, ou seja, mais € 6.032.522,18 do que os considerados pela AT (sendo € 5.393.703,22 de 2011 e € 638.818,96 de 2012) - artigo 20.º da RG;
Devem ser consideradas adicionalmente as reduções de justo valor que foram afastadas, em 50%, do cômputo do lucro tributável numa errada aplicação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC à situação vertente, i.e., mais € 6.032.522,18, com referência aos exercícios 2011 e 2012 - artigos 21.º e 22.º da RG;
Assim sendo, os prejuízos do Grupo C… nos exercícios 2011 e 2012 devem ascender a, respectivamente, € 11.915.345,63 e € 2.539.278,49 - artigo 23.º da RG;
É inaceitável que os prejuízos fiscais gerados por reduções de justo valor só relevem em 75% do valor do lucro tributável gerado em anos seguintes por aumentos de justo valor dos mesmos activos, nos termos do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, e que esta norma seja aplicada com efeitos retroactivos (a prejuízos gerados em anos anteriores) – artigos 24.º e 121.º da RG;
Extrai-se que deve também ser deduzida ao lucro tributável do próprio exercício (2013) a quantia de € 93.262,00, correspondente a 50% do montante de € 186.524,00, da perda de valor da participação financeira detida na E… SGPS, S.A., por ser inaplicável o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC.
O. Em 30 de Outubro de 2018, a Requerente submeteu declarações modelo 22 de substituição das autoliquidações dos exercícios de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016 respeitantes à C… SGPS e também ao Grupo Fiscal – cf. PA.
P. As declarações de substituição submetidas em nome do Grupo não foram validadas pela AT, com fundamento em erros de validação central. As declarações da sociedade C… SGPS foram validadas centralmente, permanecendo na situação de não liquidáveis pelas seguintes razões: «(i) Respeita ao relatório de inspeção efetuada ao período de 2013, (ii) Não cumpre os requisitos do nº 3 do artº, 122º do CIRC» – cf. PA.
Q. A Requerente e a sociedade dominada C… SGPS, S.A. deduziram acção administrativa de condenação à prática de acto devido, que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º …/19….BELRS, deduzindo o seguinte pedido – cf. cópia da p.i. junta pela Requerente:
“a) deve o Ministério das Finanças e o órgão AT nele integrado, autor do ato administrativo que desencadeou a presente ação, ser condenado a aceitar e repor as declarações de rendimento (IRC) modelo 22 de substituição apresentadas em 30.10.2018 para os exercícios fiscais de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016, pela A… S.A. (na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal) e pela sociedade integrante do Grupo Fiscal C… SGPS S.A.;
b) deve reflexamente ser anulado o ato que deu sem efeito e anulou as referidas declarações individuais e agregadas referentes do Grupo Fiscal B…, notificado através do e-balcão em 4 de Dezembro de 2018 (Doc. n.º 1).”
R. A Reclamação Graciosa foi indeferida por despacho datado de 27 de Dezembro de 2018, notificado em 3 de Janeiro de 2019, com base na fundamentação que parcialmente se transcreve:
“2 – A reclamante não discute a correção efetuada no que respeita à tributação dos resultados decorrentes das variações do justo valor das ações em questão no exercício de 2013, mas pretende que o valor da dedução de prejuízos fiscais ao lucro tributável corrigido, no que respeita aos prejuízos fiscais reportados dos exercícios de 2011 e 2012, seja o que resulta da contabilização dessas variações de justo valor em resultados do exercício, no lugar do que resulta de contabilização nos capitais próprios.
Pretende que os valores dos resultados para efeitos fiscais apurados nas declarações mod. 22 de substituição do grupo relativas aos exercícios de 2011 e 2012, entregues em 13-01-2015 (cf. quadro acima no ponto II-5), assim como as da C… SGPS entregues em 2012-01-2015, sejam reduzidos em €10.787.406,45 e €1.277.637,92 em cada um desses exercícios, respetivamente, conforme cálculos constantes no quadro entregue durante a ação de inspeção e incluído na folha 6 do relatório (fl. 58 dos presentes autos).
É de referir que em 30-10-2018 foram submetidas duas declarações mod. 22 pela C… SGPS relativas aos exercícios de 2011 e 2012 (fls.341 e 344) nas quais são inscritos os valores dos prejuízos fiscais dessa sociedade resultantes da alteração pretendida:
a) Exercício 2011: € 9.725.121,74 (= € 1.062.284,71 - € 10.787.406,45), sendo o valor de € 1.062.284,71 o lucro tributável antes declarado, a repercutir no resultado fiscal do grupo pelo mecanismo do artº 70º do CIRC.
b) Exercício de 2012: € 240.571,64 (= € 1.037.066,28 - € 1.277.637,92), sendo o valor de € 1.037.066,28 o lucro tributável antes declarado, a repercutir no resultado fiscal do grupo.
Dessas alterações não resultaram quaisquer liquidações corretivas pela AT, quer por se tratar de declarações de uma sociedade incorporada num grupo tributado de acordo com o RETGS (artº 120º nº 6 al. b) do CIRC), quer porque não foram entregues declarações com a repercussão dessas alterações no resultado fiscal do grupo (artº 70º do CIRC), quer, ainda, porque se o tivessem sido não seriam liquidadas pelos Serviços por se encontrar ultrapassado o prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no artº 45º da LGT.
Dado que, nos termos do artº 52º nº 1 do CIRC, aqui aplicável em conjugação com o artº 71º do CIRC, a dedução de prejuízos fiscais a efetuar nos termos do artº 16º nº 1 al. a) do CIRC toma por base os prejuízos fiscais declarados nos prazos legais, não tendo esses resultados fiscais, no caso em apreço, sido objeto de alteração posterior pela AT, e, por outro lado, dado que os valores dos resultados fiscais dos exercícios de 2011 e 2012 apurados pela C… SGPS não se incluem no objeto da reclamação graciosa em análise, não parece que haja razão para considerar dedutíveis ao lucro tributável corrigido de 2013 valores diferentes dos declarados em 2015 e que já foram considerados no cálculo da matéria coletável corrigida o grupo ao exercício de 2013.
3 – A reclamante alega que não está correto o procedimento de considerar apenas em 50%, no cálculo do lucro tributável do exercício, o montante do ajustamento negativo do justo valor das ações em questão (da E… SGPS, S.A. e da F…, S.A.) porque o nº 3 do artº 45º do CIRC não é aplicável aos ajustamentos de justo valor previstos na al. a) do nº 9 do artº 18º do CIRC.
O nº 3 do artº 45º (Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais) do CIRC, norma revogada pelo artº 13º da Lei 2/2014 de 16/1, com efeitos nos períodos de tributação iniciados em 01-01-2014, teve, até à sua revogação, a seguinte redação que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 (como artº 42º, posteriormente renumerado para artº 45º do DL 159/2009) «A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.»
Alega, também, que os ajustamentos negativos decorrentes do justo valor não correspondem a menos-valias previstas na referida norma legal, por não se enquadrarem no disposto no artº 46º nº 1 al. b) do CIRC e porque a utilização pelo legislador do termo «perdas» referido no nº 3 do artº 45º implica que ocorreu a respetiva realização (e não apenas variações de valor) e no artº 23º nº 1 al. i) do CIRC, o legislador optou por lhes chamar «gastos resultantes da aplicação do justo valor», e não «perdas…».
Quanto a essas questões é de referir que a expressão na norma «variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital» parece ser suficiente para acomodar as reduções verificadas no justo valor das ações em questão.
É de referir, ainda, que na al. f) do artº 8º do DL 159/2009, diploma que procede à adaptação do Código do IRC ao SNC, esclarece-se que o conceito «custos e perdas» é substituído pelo conceito «gastos». Assim o conceito de gastos inclui o de perdas, tendo este, de resto, continuado a ser utilizado no Código do IRC, como é o caso do artº 45º.
4 – A reclamante alega ainda que os ajustamentos decorrentes do justo valor, aqui em causa, não se enquadram na categoria das variações patrimoniais negativas, porque os ajustamentos reconhecidos através de resultados (artº 18º nº 9 al. a) do CIRC) não abrangem variações patrimoniais inscritas diretamente em capitais próprios.
Quanto a essa questão é de referir que as reduções no justo valor das ações em questão verificadas num determinado período representam variações patrimoniais negativas, quer a contabilização se tenha feito diretamente em capitais próprios, quer indiretamente através de resultados.
A reclamante discorda, ainda, da aplicação às variações do justo valor das ações em questão do disposto no nº 2 do artº 52º do CIRC (Dedução de prejuízos fiscais), na redação então vigente, segundo a qual «A dedução a efetuar em cada um dos períodos de tributação não pode exceder o montante correspondente a 75 % do respetivo lucro tributável, não ficando, porém, prejudicada a dedução da parte desses prejuízos que não tenham sido deduzidos, nas mesmas condições e até ao final do respetivo período de dedução.»
No entanto, não consta na lei qualquer exceção à aplicação da norma no caso de prejuízos fiscais que resultam dessas variações negativas.
5 – Dado que, conforme exposto acima nos pontos 2 a 4, não assiste razão à reclamante, propõe-se o indeferimento do pedido, mantendo-se a liquidação adicional objeto de reclamação.
Acrescenta-se, ainda, que por não se verificarem in casu os pressupostos do artº 53º da LGT, não assiste ao reclamante o direito a indemnização por prestação da garantia […]”.
S. Em 12 de Dezembro de 2018, a Requerente apresentou pedidos de revisão oficiosa do IRC dos exercícios de 2011, 2012, 2014 e 2015, que se encontram pendentes de decisão, nos quais peticiona o acréscimo dos prejuízos fiscais reportáveis, com fundamento no entendimento da AT sobre os ajustamentos do justo valor previstos no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC – cf. pedidos de revisão oficiosa constantes do PA.
T. Em 15 de Março de 2019, por não se conformar com as liquidações de IRC e de juros compensatórios acima identificadas e, bem assim, com o indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra esses actos tributários, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que não são controvertidos.
IV. DO DIREITO
1. QUESTÕES DECIDENDAS
Foram submetidas à apreciação do Tribunal as seguintes questões, de que importa conhecer:
a) A consideração no apuramento da matéria colectável do exercício de 2013 dos prejuízos fiscais determinados em relação a 2011 e 2012, de acordo com a política contabilística imposta pela AT de reconhecimento das variações de cotação de activos financeiros, in casu de instrumentos de capital próprio, em contas de resultados (gastos e rendimentos), no valor de € 6.032.522,18;
b) A inaplicabilidade do regime do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, em vigor à data dos factos, aos gastos derivados de variações de activos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor, quer no tocante às reduções de justo valor de 2011 e 2012, de € 6.032.522,18 (€ 12.065.044,36*50%), quer em relação às do exercício de 2013, de € 93.262,00 (€ 186.524,00*50%);
c) A inaplicabilidade do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, na sua nova versão vigente a partir de 2012, a prejuízos/lucros meramente potenciais derivados de variações de justo valor de acções cotadas e, em qualquer caso, a sua inaplicabilidade aos prejuízos de exercícios anteriores ao da sua entrada em vigor [como os gerados em 2011];
d) O pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.º da LGT.
2. A CONSIDERAÇÃO NO APURAMENTO DA MATÉRIA COLECTÁVEL DO EXERCÍCIO DE 2013 DOS PREJUÍZOS FISCAIS DETERMINADOS EM RELAÇÃO A 2011 E 2012
A título de enquadramento, importa fazer algumas precisões.
A Requerente não contesta a correcção de acréscimo ao lucro tributável. No entanto, contesta a correcção ao montante de prejuízos dedutíveis em 2013 que também está na origem do acto tributário sindicado. Embora a Requerente afirme ser criticável a posição da Requerida de impor a mensuração ao justo valor em resultados, abstém-se de contestar a correcção, exigindo apenas a coerência no que respeita à correcção do montante de prejuízos fiscais dedutíveis, concomitantemente realizada pela AT.
Apesar de não estar em discussão a actuação da AT ao promover o aludido acréscimo ao lucro tributável, cumpre atentar na fundamentação do acto tributário nesta parte pois é relevante para aferir da legalidade da correcção atinente aos prejuízos fiscais.
A correcção ao lucro tributável é alicerçada na consistência contabilística e impossibilidade de operar alterações no modo de contabilização. Estavam em causa variações de cotação de acções detidas em duas empresas, sendo uma delas o principal cliente do Grupo. Foram as acções desta última empresa que registaram uma variação positiva em 2013, depois da desvalorização registada nos anos anteriores e seguida de desvalorização nos anos subsequentes. O sujeito passivo alterou o modo de contabilização das acções por entender que não eram detidas para negociação, mas sim investimentos de longa duração. Essa reclassificação contabilística implicava que as variações de justo valor seriam registadas nos capitais próprios e não nos resultados. A AT corrigiu o impacto fiscal de tal alteração, por esta não ser permitida.
O acolhimento parcial e circunscrito do modelo de justo valor no Código do IRC foi efectuado pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho. Encontra-se consagrada no n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC a regra da irrelevância dos ajustamentos de justo valor, para efeitos fiscais. Excepcionalmente, porém, confere-se aquela relevância fiscal quando esteja em causa determinado tipo de instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados. Assim, a primeira condição para que seja conferida a aludida relevância fiscal é a de que os instrumentos estejam reconhecidos, contabilisticamente, pelo justo valor em resultados. A norma fiscal não define quando isso deva suceder nem se sobrepõe à normação contabilística a esse respeito. Simplesmente, verificando-se o reconhecimento contabilístico em resultados, é igualmente conferida relevância fiscal, desde que preenchidos os demais pressupostos, designadamente o da formação de preço em mercado regulamentado.
Neste caso, as variações de justo valor de 2010, 2011 e 2012 encontravam-se originariamente reflectidas em contas de resultados. Já quanto às variações de justo valor de 2013, registadas em capitais próprios, a AT entendeu que era aplicável o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, uma vez que considerou existir uma infracção às regras contabilísticas. Assim, o mencionado preceito é aplicado àqueles instrumentos financeiros que deveriam estar reconhecidos contabilisticamente pelo justo valor em resultados.
A mensuração ao justo valor de instrumentos financeiros pode ocorrer por contrapartida de resultados mas também pode ocorrer por contrapartida de capitais próprios: categoria FVPL (“Fair Value Through the Statement of Profit or Loss”) ou categoria FVOCI (“Fair Value through Other Comprehensive Income”). Ambas as categorias estavam previstas na norma contabilística então aplicável - IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração -, actualmente substituída pela IFRS 9 – Instrumentos Financeiros.
Impunha-se a classificação na categoria FVPL se estivessem em causa instrumentos detidos para negociação. Um activo financeiro é classificado como detido para negociação se for: (i) adquirido ou incorrido principalmente para a finalidade de venda ou de recompra num prazo muito próximo; (ii) parte de uma carteira de instrumentos financeiros identificados que sejam geridos em conjunto e para os quais exista evidência de terem recentemente proporcionado lucros reais.
Refere a AT no relatório de inspecção o seguinte: “Se a alteração efetuada pelo sujeito passivo não é legalmente permitida pelo direito da contabilidade não poderá ser, concomitantemente, acolhida fiscalmente, em sede de IRC (…)”.
Sempre se dirá, a título de obiter dicta, que não é absolutamente linear o acerto desta afirmação. Estar-se-ia a admitir uma interpretação da palavra “reconhecidos”, no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, como significando “reconhecíveis”, ou seja, abdicando-se de averiguar a concreta contabilização. Nessa linha de entendimento, nas situações em que a mensuração ao justo valor em resultados decorresse obrigatoriamente do direito contabilístico e em que também estivessem verificadas as condições adicionais para relevância fiscal, o modelo em causa seria igualmente obrigatório para efeitos fiscais, independentemente do concreto critério seguido na contabilidade. Por outro lado, nas situações de opção conferida pelo direito contabilístico, já não se poderia perfilhar o mesmo entendimento [obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados para efeitos fiscais]. Nessas situações, pelo menos, a palavra “reconhecidos” teria que ser entendida nesse sentido preciso.
Ora, a afirmação transcrita, de que a incorrecta contabilização autoriza a correcção fiscal por aplicação do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, afigura-se problemática em situações de duvidosa interpretação das regras contabilísticas. Com efeito, embora estas questões não estejam aqui em discussão, não é líquido que tenha sido intenção do legislador tributário conferir relevância fiscal a ajustamentos de justo valor não reflectidos contabilisticamente em resultados.
Também se dirá, a título de obiter dicta, que parece assistir razão à Requerente quando menciona que a norma contabilística então vigente autorizava, em certas e determinadas situações, a reclassificação dos instrumentos financeiros, designadamente no que respeita à “participação com relação directa com a sua actividade operacional”, isto é, a participação de 4,97% no capital da sociedade principal cliente do Grupo. A AT não chega a referir que aquelas acções eram de facto detidas para negociação. Afirma apenas que a alteração do modo de contabilização era proibida pelo direito de contabilidade.
Tal como alude a Requerente, aplicava-se à data a alteração operada pelo Regulamento (CE) n.º 1004/2008, da Comissão, de 15 de Outubro de 2008, à versão originária da IAS 39, alteração que veio permitir reclassificar certos instrumentos financeiros, retirando-os da categoria “detidos para negociação”, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2008. Assim, contrariamente ao afirmado pela AT no relatório de inspecção, a alteração de política contabilística de FVPL para FVOCI não estava liminarmente proibida, desde que os instrumentos obedecessem às características da diferente categoria e não se tratasse de discricionariedade da própria entidade. Como sublinha a Requerente, a norma previa a possibilidade de reclassificar um activo financeiro que já não fosse detido para efeitos de venda ou recompra a curto prazo, designadamente tendo a entidade intenção e capacidade de o deter no futuro previsível.
Actualmente, à luz da IFRS 9, é também assente que os instrumentos de capital detidos no âmbito de um investimento estratégico de longo prazo podem ser designados ao FVOCI. A intenção do investimento será estabelecer ou manter um relacionamento operacional a longo prazo com a entidade na qual o investimento é feito e não tanto a intenção de aumento do valor do investimento propriamente dito.
Atento todo este excurso preambular, extraem-se duas conclusões relevantes: (i) a Requerente e Requerida estão de acordo quanto à aplicação do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC às participações em questão; (ii) embora sem aflorar as características dos investimentos, a AT funda a correcção ao lucro tributável na obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados por decorrência do princípio contabilístico da consistência.
A acção inspectiva foi aberta com vista a proceder à análise do tratamento fiscal dos referidos activos e concluiu a AT que deveriam estar reconhecidos contabilisticamente, em 2013, pelo justo valor em resultados. Cumpre agora dilucidar se assiste razão à Requerente quando afirma que a AT, ao fundar-se no princípio da consistência para proceder ao acréscimo ao lucro tributável, fica vinculada a aceitar os prejuízos dedutíveis em decorrência da mesma aplicação do disposto artigo 18, n.º 9, alínea a), do Código do IRC.
Para determinar a correcção do valor dedutível de prejuízos, a AT baseia-se na circunstância de o contribuinte ter apresentado, em Janeiro de 2015, declarações de substituição que alteravam os prejuízos precisamente na medida em que eram expurgadas as mencionadas variações de justo valor em resultados. A fundamentação expendida é a seguinte: “os prejuízos dedutíveis declarados pela sociedade G… EMPREENDIMENTOS gerados em anos anteriores totalizam o montante de € 9,366.833,67 (valor inscrito pelo sp no campo 303 do quadro 09 da declaração Modelo 22 de IRC). No entanto, o sujeito passivo, no exercício de 2015, procedeu à entrega de declarações Modelo 22 de substituição, relativas aos anos de 2011 e 2012, o que alterou os prejuízos fiscais dedutíveis. (…).” Em sede de decisão da reclamação graciosa, a AT afirma que as declarações de substituição apresentadas em 2015 não são passíveis de correcção por estar ultrapassado o prazo de caducidade do direito à liquidação. Acrescenta, ainda, que, nos termos do artigo 52.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 71.º do Código do IRC, a dedução de prejuízos fiscais a efectuar nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do mesmo Código, toma por base os prejuízos fiscais declarados nos prazos legais, não tendo esses resultados fiscais, no caso em apreço, sido objecto de alteração posterior pela AT.
Assim, a Requerida reconhece na sua resposta que os prejuízos dedutíveis gerados em anos anteriores foram corrigidos, alterando-se o valor declarado no campo 303 do quadro 09 da declaração Modelo 22 de IRC de exercício de 2013. Ora, o facto de ter sido efectuada essa correcção constitui motivo mais do que suficiente para que se impusesse analisar a consistência na aplicação dos preceitos legais que motivaram a própria acção inspectiva, conforme invocado pela Requerente.
De facto, na relevação dos prejuízos dedutíveis de exercícios anteriores deveria ter sido dada aplicação ao disposto no artigo 18, n.º 9, alínea a), do Código do IRC. Se a AT propugna a obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados por decorrência do princípio contabilístico da consistência, não pode alhear-se dessa obrigatoriedade por aproveitamento de erro declarativo do sujeito passivo.
De acordo com a AT, não lhe cabia tomar qualquer posição de fundo sobre se os prejuízos dedutíveis existiam e qual o respectivo montante, estando nesse ponto vinculada pela declaração do sujeito passivo. A tese da AT é a de que prevalece a autoliquidação entretanto efectuada para 2011 e 2012 como fundamento suficiente e rígido para corrigir a autoliquidação de 2013 do mesmo sujeito passivo.
Ora, antecipamos desde já que esta posição da Requerida não pode proceder.
Note-se que a dedução dos prejuízos é, ao menos para a AT, um regime regra do Código do IRC e não um benefício fiscal ou uma opção que esteja na estrita dependência da conduta concreta do contribuinte e arredada da análise da AT. Nenhuma regra obriga a AT a tomar por base prejuízos fiscais declarados de montante inferior ao que decorra da lei, em situações em que disso tenha conhecimento. A norma a que a Requerida faz apelo – artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRC – dispõe: “A matéria colectável é, em regra, determinada com base em declaração do sujeito passivo, sem prejuízo do seu controlo pela administração fiscal”. Nenhuma regra impedia, pois, a AT de, no apuramento do imposto do exercício, escrutinar se era correcto o valor de prejuízos dedutíveis inscrito na declaração Modelo 22.
Efectivamente, decorre de doutrina da AT que não está na esfera exclusiva do sujeito passivo decidir da dedução de prejuízos quanto ao momento ou quando ao quantitativo de dedução. A prioridade do reporte de prejuízos até à concorrência do lucro tributável aplicase sempre e a sua dedução deverá concretizarse logo no primeiro exercício em que seja apurado lucro tributável, por ordem cronológica de antiguidade e respeitando o limite temporal definido (cf. Informação Vinculativa, Processo 962/2008, Despacho do Subdirector–Geral, de 9.07.2008, proferido por subdelegação de competências).
Além disso, se é detectada uma discrepância nas declarações apresentadas pelo sujeito passivo, o princípio do inquisitório determinaria que, ao corrigir o declarado, a AT se orientasse pela satisfação do interesse público e pela descoberta da verdade material, com a quantificação do imposto efectivamente devido. Ora, se o tivesse feito, não teria desconsiderado o montante de prejuízos fiscais que dizia respeito às variações de justo valor negativas daquelas participações.
Vejamos, pois, se a vinculação às regras invocadas pela Requerida (artigo 45.º da LGT e artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRC) impede a consideração de prejuízos dedutíveis com inclusão das reduções de justo valor, em aplicação do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC.
Trata-se de determinar, em boa hermenêutica, qual a leitura correcta daquelas normas e é neste âmbito que intervêm os princípios invocados pela Requerente, designadamente os princípios da justiça e da boa fé.
Tem razão a Requerida quando alega que não está em causa nos autos uma situação de especialização de gastos a que se aplicaria o Ofício-Circulado 14, de 23 de Novembro de 1993 – Direcção de Serviços do IRC. Também não se aplica directamente ao caso a jurisprudência dos Tribunais superiores sobre a articulação da regra de especialização dos exercícios com o princípio da justiça.
A jurisprudência e a doutrina têm de facto entendido que o princípio da especialização de exercícios não pode ser aplicado às cegas se, da sua aplicação, resultar uma flagrante injustiça para o contribuinte, especialmente quando a administração fiscal se furte a efectuar “correcções simétricas”, ou seja, quando, ao desconsiderar um gasto erradamente contabilizado e deduzido em determinado exercício, acrescendo o respectivo valor ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo, não efetuar a correcção de sinal contrário, acrescendo-o aos gastos do exercício em que deveria ter sido contabilizado. E que, não sendo a correcção simétrica possível, v. g., por motivos de tempestividade, o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, pois, de outro modo, o sujeito passivo seria, por motivos de índole formal, sujeito a uma tributação por um lucro que efectivamente não obteve. Nesses casos “(…) não se verifica sequer qualquer interesse público na atuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a atividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de atuar (…)” (cf. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, in Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, pp. 452 e ss.).
No caso sub judice, não tratamos de correcções simétricas em diferentes exercícios. Porém, é também uma situação de aplicação das regras do Código do IRC de forma conjugada com os mencionados princípios constitucionais da justiça e da boa fé.
Apesar da omissão da referência no artigo 55.º da LGT ao princípio da boa fé, a sua aplicação é imposta pelo n.º 2 do artigo 266.º da CRP. A própria LGT supõe a sua observância no âmbito do princípio da colaboração entre a AT e os contribuintes (artigo 59.º) e concretiza a sua aplicação ao estabelecer o regime das informações vinculativas (artigo 68.º) e a vinculação pelas orientações publicadas (artigo 68.º-A). A inclusão deste princípio na LGT estava, aliás, prevista na lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para a aprovar (n.º 10 do artigo 2.º da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto). Aquele princípio consta igualmente do artigo 10.º do CPA, o qual a Requerente também invoca.
O dever de actuar de harmonia com o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente prevêem a actuação da administração A administração tributária deverá abster-se de concretizar os comandos legais quando, em face das particularidades do caso, não se verifiquem as razões de interesse público que justificam a sua actuação ou quando se produza um resultado manifestamente injusto, devendo, em qualquer caso, limitar-se, na restrição dos direitos individuais, ao estritamente necessário para assegurar os fins que visa, não tratar discriminatoriamente os administrados, nem frustrar as expectativas que a sua actuação nestes tenha gerado.
A violação do princípio da legalidade, entendido globalmente com as limitações decorrentes dos referidos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé, constituirá vício autónomo de violação de lei. Assim tem entendido o STA, tendo-o por diversas vezes afirmado (cf. Acórdão de 2.04.2008, processo n.º 0807/07, de 25.06.2008, processo n.º 0291/08, de 19.11.2008, processo n.º 0325/08, de 28.10.2009, processo n.º 0477/09, de 06.07.2011, processo n.º 0589/11, de 21.9.2011, processo n.º 0753/11 e de 15.02.2012, processo n.º 089/12).
No caso sub judice, determina a ilegalidade parcial da liquidação a presença de correcções de sentido oposto por parte da AT. Não se lhe impunha reliquidar o IRC dos anos anteriores, nem dos anos seguintes, mas tinha que levar em consideração, ao corrigir os prejuízos declarados, a sua própria posição que entendeu ser conforme ao princípio da legalidade.
De facto, o acréscimo de variação positiva foi acompanhado de posição oposta a propósito da fixação dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores disponíveis para utilização em 2013.
Este Tribunal está ciente que o princípio da justiça não opera como critério normativo autónomo e alternativo ao princípio da legalidade para reparar incongruências respeitantes a elementos determinantes do facto tributário que se repetem entre exercícios, mas que não são comunicáveis inter-exercícios (cf. Acórdão do STA, de 9.10.2019, no processo n.º 01278/12.2BELRS 0574/18).
Na situação sub judice, não é desse tipo de incongruências que tratamos. Não propugna a Requerente a impossibilidade de a AT corrigir o resultado fiscal de 2013 por não ter efectuado semelhantes correcções nos demais exercícios, anteriores e ulteriores. É perfeitamente possível que a AT perfilhe interpretações normativas contraditórias em exercícios fiscais distintos relativamente a elementos determinantes do facto tributário que se repetem entre exercícios, sem que isso acarrete, em si mesmo, um motivo de invalidação dos actos tributários. Porém, uma situação em que a AT aplica o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, por ser um preceito obrigatório e por imperar a consistência com os exercícios imediatamente anteriores e depois recuse atender ao correcto valor de prejuízos dedutíveis naquele exercício, em negação da aplicação da mesma norma, já configura uma violação do princípio da legalidade em sentido amplo.
Estamos diante de uma incongruência intrínseca ao próprio apuramento do imposto do exercício de 2013, uma contradição na relevação das várias componentes que entram em linha de conta no apuramento do imposto (acréscimo ao lucro e dedução de prejuízos reportados). A própria AT, que faz apelo à consistência inter-exercícios como “leitmotif” da correcção, não pode prevalecer-se da declaração que, a seu ver, não respeita essa consistência e não respeita a obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados. Ao corrigir a quantificação do facto tributário por errada qualificação de um elemento, não pode ignorar, ainda que isso lhe seja recaudatoriamente mais favorável, esse mesmo elemento, erradamente qualificado, noutra vertente em que ele também influi na quantificação do facto tributário. Estando a AT vinculada ao princípio da legalidade em sentido amplo, não pode desconsiderar num erro total que detectou a mera parte em que ele a beneficia.
Refere a Requerida que, por estarem em causa prejuízos, uma diferença entre determinado montante de proveitos e de custos, desconhecia por completo os valores que compunham qualquer uma dessas rubricas.
Porém, a Requerida não pode afirmar que desconhecia se os prejuízos fiscais dedutíveis estavam ou não a ser influenciados pelas variações de justo valor uma vez que decorre do RIT que o sujeito passivo informou, em detalhe, sobre o procedimento que seguiu. Consta do RIT, igualmente, o quadro demonstrativo das variações nos anos 2011 e 2012, podendo verificar-se, de forma aritmética simples, que as declarações de substituição nada mais alteraram para além do expurgo daquelas variações de cotação das duas acções. O próprio contribuinte pôs de imediato à disposição da AT os meios necessários ao correcto apuramento da matéria colectável, com base no acertado valor dos prejuízos fiscais reportados.
Não são, pois, atendíveis as alegações da Requerida de que apenas actuou no exercício de poderes vinculados. Nenhuma vinculação existe a tomar por base prejuízos fiscais de montante inferior ao que decorra da lei, em situações em que a AT disso tenha conhecimento. A jurisprudência invocada pela Requerida a este respeito (Acórdão do STA de 15.11.2017, no processo n.º 0544/16) não tem aplicação no caso vertente, quer porque aqui não tratamos de uma situação em que se desconhecesse e não houvesse forma de comprovar o correcto montante dos prejuízos dos exercícios anteriores, quer porque diferentemente da situação tratada naquele aresto aqui a AT procedeu a uma correcção ao montante de prejuízos dedutíveis, para além da diferença assinalável de que as autoliquidações datadas de 2015 não se encontravam definitivamente consolidadas à data da inspecção realizada.
Relevante no entender deste Tribunal é que, de modo algum, estariam tais liquidações de 2011 e 2012 “cristalizadas” no sentido de precludirem o escrutínio dos resultados aí apurados para efeitos da correcta determinação dos prejuízos dedutíveis em 2013, a favor do contribuinte, e correcta liquidação referente ao exercício de 2013.
Esta conclusão sai reforçada numa situação, como a dos autos, em que há comunicação entre exercícios por força do fundamento da correcção de acréscimo ao lucro. Não esquecendo que a AT se sustenta na consistência relativamente aos exercícios anteriores não pode em simultâneo alegar uma preclusão de escrutínio dos exercícios anteriores, naquilo que é estritamente relevante.
Defende a Requerida na sua resposta que “o que violaria a confiança e segurança jurídica seria permitir a correcção do montante dos prejuízos fiscais fixados em determinado exercício durante todo o período de tempo em que esses prejuízos pudessem vir a ser reportados”. Sem razão, todavia.
Entende certa doutrina que existe de facto uma grande margem para a alteração de prejuízos fixados em exercícios anteriores, nos seguintes termos:
“O prazo de caducidade referido no presente artigo [artigo 45.º da LGT], porque é apenas de caducidade do direito à liquidação, não prejudica o direito de a Administração Tributária corrigir liquidações efectuadas dentro desse prazo, com base na inexistência de prejuízos reportáveis apurados em períodos de tributação anteriores.
A Administração não pode, pois, proceder a qualquer liquidação respeitante a esses períodos anteriores, mas essa proibição não prejudica, no entanto, o seu direito de impedir a dedução dos prejuízos que nestes períodos tenham sido apurados, quando esta for efectuada dentro de períodos de tributação relativamente aos quais ainda não se tenha extinto o direito de liquidação (despacho do Director-Geral dos Impostos de 5 de Dezembro de 1969, proc. 11/A, E.G. 7169/69)” (cf. ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária – anotada, Rei dos Livros, Lisboa, 2000, p. 216).
Este Tribunal inequivocamente entende que é permitido, sem com isso bulir com situações jurídicas já estabilizadas na ordem jurídica, corrigir o montante de prejuízos abatíveis ao lucro tributável num determinado exercício, em consonância com o montante superior efectivamente correcto, quando a AT disso tenha conhecimento e esteja em prazo para o fazer.
Note-se que isto não faz perigar a segurança jurídica pois essa possibilidade de atender ao correcto valor dos resultados dos exercícios anteriores tem efeitos circunscritos. Não significa que a AT esteja a todo o tempo obrigada, ex officio, a rever e anular liquidações dos exercícios anteriores, quando nelas detecte erros, ou que deva a todo o momento reembolsar imposto liquidado superior ao devido. Todavia, já se afigura diferente desconsiderar, como desconsiderou no caso vertente, nos prejuízos dedutíveis a relevar no âmbito do apuramento do exercício por si inspeccionado [2013], um valor de prejuízos que a própria AT entendia ser fiscalmente atendível. Ao menos nos casos de inspecção tem a AT tal dever de acção, e correcção.
Este entendimento é compatível com jurisprudência do TCAS, designadamente nos Acórdãos do TCAS, de 9 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 02859/09 e de 22 de Janeiro de 2013, no processo 02857/09.
Como se refere no primeiro acórdão mencionado “a caducidade do direito à liquidação impli[ca] a caducidade à prática de um qualquer outro acto tributário que corporize a referida situação subjacente, se e ao menos na medida em que se traduza no acto tributário desfavorável e agressivo da esfera jurídica do contribuinte. Tal é o que sucede, exactamente, com as situações de correcção da matéria colectável, por referência a exercícios em que não tenha sido apurado lucro tributável e, por isso, não tenha dado origem a qualquer liquidação, em que se não entende possível o operar tal correcção por forma reflectir-se em exercícios subsequentes, por efeitos do exercício do direito ao reporte de prejuízos, se tal correcção não fosse possível, por intempestividade, no caso de, ao invés, ter ocorrido um acto tributário de liquidação naquele referido exercício pretendido corrigir” (cf. Acórdão do TCAS, de 9 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 02859/09, destaque nosso).
No mesmo sentido afirma o TCAS que a AT não pode corrigir os prejuízos reportados de anos anteriores (alterar a expressão numérica dos resultados dos exercícios anteriores) quando o faça “em desfavor da contribuinte, sob pena de, encapotadamente, levar a efeito liquidação abrangendo exercício protegido pela caducidade” (cf. Acórdão do TCAS, de 22 de Janeiro de 2013, no processo n.º 02857/09, destaque nosso).
À luz da referida jurisprudência, não fica vedado à AT, portanto, corrigir o valor de prejuízos reportados, em benefício do contribuinte, para efeitos de correcta liquidação do imposto no correspondente prazo de caducidade.
Ao corrigir o montante de prejuízos dedutíveis impunha-se à AT a necessária consideração dos prejuízos fiscais de 2011 e 2012 apurados de acordo com a política de reconhecimento das variações de justo valor em resultados, cujo montante corresponde ao das declarações iniciais modelo 22 de IRC submetidas pela Requerente. Deste modo, a correcção de diminuição do valor dedutível de prejuízos é uma actuação incongruente de duplicação arbitrária de uma qualificação tributária desfavorável ao contribuinte (inclusão das valorizações e simultânea desconsideração de desvalorizações de justo valor reportadas dos exercícios anteriores) quando estão em causa elementos integrantes da completude normativa do mesmo facto tributário.
Consequentemente, o acto tributário de liquidação de IRC praticado pela AT com respeito ao exercício de 2013, na medida em que desconsidera prejuízos fiscais provenientes de 2011 e de 2012 num total de € 6.032.522,19, é ilegal e deve, nessa medida, ser anulado.
3. A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 45.º, N.º 3, DO CÓDIGO DO IRC
A questão da aplicabilidade ou não do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor tem sido decidida no sentido da não aplicabilidade em várias decisões arbitrais, tendo a Requerente enumerado 17 na sua petição. Acompanhamos aqui, por concordância com os respectivos fundamentos, o sentido das referidas decisões arbitrais, bem como do Acórdão proferido pelo STA, de 6.06.2018, no recurso n.º 582/17.
O entendimento da AT enferma de uma errónea interpretação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, e consequente vício de violação de lei, uma vez que aos gastos decorrentes da aplicação do modelo do justo valor não se aplica a restrição fiscal de indedutibilidade de metade do valor.
Da errónea interpretação face aos elementos literal e histórico
Na interpretação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC deverá atender-se desde logo, conforme impõe o artigo 9.º do Código Civil, ex vi do artigo 11.º, n.º 1, da LGT, à letra da lei, assim como às circunstâncias em que a mesma foi elaborada, isto é, aos elementos literal e histórico. Importa, assim, desde já enquadrar o momento em que os preceitos legais relevantes foram aditados ao Código do IRC.
Com efeito, o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC foi aditado ao Código do IRC pela Lei do Orçamento do Estado para 2003 (Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro), dispondo, na sua redacção original que “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”. Esta redacção foi alterada pela Lei do Orçamento do Estado para 2006, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, a qual estendeu o âmbito da restrição a “(…) outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares (…)”.
Visou-se, assim, com aquela alteração legislativa abranger, ou explicitar que se encontravam abrangidas, as transmissões de outras componentes do capital próprio que não estritamente partes sociais.
No mesmo sentido refere TOMÁS CANTISTA TAVARES, quanto ao fito da alteração legislativa ao preceito legal sub judice, que “(…) A regra ínsita no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, restringia-se, inicialmente, à limitação fiscal das perdas económicas em partes de capital. No entanto, por superveniente alteração legal, essa estatuição estendeu-se também às variações patrimoniais negativas de capital próprio (…)” (cf. IRC e Contabilidade – da Realização ao Justo Valor, Almedina, Coimbra, 2011, p. 246).
Na ausência de qualquer alteração ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, concomitante com a adopção limitada, em 2010, do modelo do justo valor, aquela norma não comportou uma interpretação diferente da que vinha sendo aplicada pelo intérprete até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.
Assim, aquela norma continuou a aplicar-se à diferença negativa entre as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que houvesse “realização”.
O facto de o legislador não ter diferenciado, aquando da introdução do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, norma entretanto revogada, entre perdas e variações patrimoniais realizadas e perdas e variações patrimoniais não realizadas, para efeito de subtrair estas à restrição consagrada, não pode ser logicamente valorado como qualquer manifestação de vontade, ainda que meramente implícita, no sentido de os gastos resultantes da aplicação do justo valor serem abrangidos por essa limitação à dedutibilidade. Tais gastos apenas com o Decreto-Lei n.º 159/2009 e a consequente adaptação do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade, passaram a concorrer para a formação do lucro tributável, operando assim a reconstituição do pensamento legislativo em sentido contrário: o legislador não manifestou, ainda que tacitamente, qualquer vontade de incluir no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, os gastos resultantes da aplicação do justo valor aos instrumentos financeiros.
Na verdade, embora a letra da lei aparente autorizar a interpretação abrangente sustentada pela AT, é também a análise atenta e rigorosa do elemento literal que permite apreciar o sentido próprio e distinto dos conceitos ali em causa. Segue-se, na análise desta questão, a fundamentação do acórdão arbitral proferido no processo n.º 108/2013-T.
Com efeito, “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” são conceitos não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto. Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do Código do IRC, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009. Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do Código do IRC referiam, respectivamente, que: – “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”; – “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.
Verifica-se, deste modo, que, aquando da consagração da redacção do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC vigente em 2011 e 2012, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:
a) Custos;
b) Perdas;
c) Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.
A previsão do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC (predecessor do artigo 45.º, n.º 3, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009), dever-se-á considerar, assim, reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redacções anteriores a este Decreto-Lei. Deste modo, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos a partes sociais.
A alteração normativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do Código do IRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Da errónea interpretação face ao elemento sistemático
Em segundo lugar há que interpretar o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC “(…) tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)”, isto é, tendo presente o complexo de regras em que se insere (cf. artigo 11.º, n.º 1, da LGT e artigo 9.º do Código Civil). Ora, a limitação prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC não se aplica aos gastos por justo valor previstos na alínea a) do n.º 9 ao artigo 18.º do Código do IRC, na medida em que esta constitui uma norma excepcional–particular, que não é nem pode considerar-se ab initio derrogada pelo artigo 45.º, n.º 3, norma excepcional-comum pré-existente àquela.
Com efeito, o artigo 23.º do Código do IRC prevê a dedutibilidade, para efeitos fiscais, da generalidade dos gastos contabilísticos, desde que observados determinados critérios formais e substanciais, designadamente, que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, determinando a alínea i) do n.º 1 deste preceito a dedutibilidade fiscal dos gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros. Assim, o artigo 23.º do Código do IRC afigura-se, pois, uma norma geral, porquanto aplicável à generalidade das situações em que se apurem gastos.
Pelo contrário, o corpo do n.º 9 do artigo 18.º consagra uma excepção comum à dedutibilidade dos referidos gastos e a alínea a) do mesmo número estabelece, por sua vez, uma excepção particular à excepção comum, voltando a repor a regra de dedutibilidade quanto aos instrumentos de capital próprio mensurados ao justo valor através de resultados.
Note-se que não estão em causa na referida alínea todos e quaisquer instrumentos financeiros.
Por último, o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC limita, em contradição com a regra geral prevista no artigo 23.º do mesmo diploma legal, a dedutibilidade de certos gastos fiscais, quais sejam, as perdas geradas com a transmissão de todas e quaisquer partes de capital.
A aludida norma consubstancia, pois, uma norma excepcional-comum e por isso, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que não derroga a norma excepcional-particular introduzida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC.
Efectivamente, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC consagra um regime excepcional particular aplicável aos gastos por justo valor, sendo que o artigo 45.º, n.º 3, do mesmo Código estabelece apenas uma limitação à regra geral da dedutibilidade de certos gastos fiscais prevista no artigo 23.º do Código do IRC. De facto, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor quanto aos identificados títulos concorrem, nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, para a formação do lucro tributável e pela totalidade do seu valor pois se o legislador pretendesse que, quando negativos, apenas concorressem em metade do seu valor, tê-lo-ia que dizer expressamente, não sendo a norma particular aditada derrogada pela norma comum pré-existente.
Na verdade, se a lei passou a prever que as variações de valor daqueles concretos títulos são sempre ganho ou perda fiscal, quer interinamente, quer quando vendidos (não relevando como mais e menos-valia), então tais ganhos e perdas potenciais, que constituem excepção à consagração da regra geral de irrelevância de perdas e ganhos de justo valor, vão sendo custo ou proveito fiscal, ano a ano, até à venda, sem que operem nesse caso quaisquer correcções fiscais ao resultado contabilístico.
Por sua vez, nos demais instrumentos financeiros, uma vez que não foi acolhido de forma mais ampla o modelo do justo valor, mantém-se a regra anterior a 2010 de que as variações de justo valor positivas e negativas são totalmente anuladas do resultado contabilístico e, apenas na venda, com perda efectiva, existe uma tributação em 50%, tal como o ganho efectivo será tributado em metade do respectivo valor caso ocorra reinvestimento nos termos do n.º 4 do artigo 48.º do Código do IRC.
Em suma, interpretando o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, tendo também presente o sistema jurídico em que este se insere, conclui-se que não pode o mesmo aplicar-se às reduções de justo valor em apreço.
Da errónea interpretação face ao elemento teleológico
Por último, deverá levar-se ainda em linha de conta o elemento teleológico, o qual consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma (cf. artigo 11.º, n.º 1, da LGT e artigo 9.º do Código Civil). Ora, atendendo ao elemento teleológico, conclui-se que outra não pode ser a interpretação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC que não a de que o mesmo se não aplica aos gastos por justo valor. Com efeito, o aludido normativo estabelece uma censura ao apuramento de certas perdas em partes de capital.
Sucede que o desincentivo à obtenção de certas perdas em partes de capital só faz sentido nos casos em que a vontade do sujeito passivo seja determinante do momento e do montante da perda. De facto, a restrição fiscal prevista no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC tem como propósito evitar uma manipulação do resultado pelo sujeito passivo através da gestão do momento e/ou do quantum da perda com a transmissão de partes de capital.
Sobre a razão de ser do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, em conjugação com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, vejam-se os Acórdãos do STA, de 17.02.2016, no recurso n.º 01401/14, e de 6.06.2018, no recurso n.º 582/17.
Como se refere neste último “(…) à posição financeira negativa resultante do Justo Valor, não lhe …subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo…cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 1144.
Portanto, o legislador com a norma do artigo 18º, n.º 9, al. a), para casos como o dos autos, afastou o princípio da realização e aproximou, ainda mais, a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do Justo Valor, cfr. artigos 20.º, n.º 1, alínea f) e 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC.
Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação –ao Justo Valor- do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos activos – a posição financeira acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo (…)”.
De facto, no que respeita aos presentes valores mobiliários e correspondentes desvalorizações, não é possível qualquer controlo ou prática do tipo “wash sales"” e, a aplicar-se a limitação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, seria inequívoca a assimetria de tratamento entre ganhos, tributados na totalidade pelo artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, e perdas aceites apenas em metade do valor.
Citando novamente a mencionada jurisprudência do STA “A norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, na medida em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal. (…)
A existência desta norma visou, portanto, de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.
Nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), como as acções com as características do caso sub judice, passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do Código do IRC) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do Código do IRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC).
Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada. Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.
Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.
É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC ao regime do princípio da realização.
Como se refere no acórdão proferido no processo n.º 393/2016-T, “Tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
O desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Para além disso, o direito tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (como patenteia a existência de decisões arbitrais contraditórias), ter de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT), que, em situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento.
O que permite concluir que, ao contrário do que se terá entendido no processo arbitral n.º 90/2016-T, citado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na interpretação em matéria tributária, os Tribunais têm de atender ao «mérito das normas» que aplicam, numa dupla aceção, pelo menos: não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil; nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes, porque tal não se compagina com as diretrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3, e dos princípios que lhe estão subjacentes, da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), que têm suporte constitucional em princípios basilares do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP).
Assim, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”.
Acresce, ainda, que também pela ratio legis do aditamento do n.º 9 ao artigo 18.º do Código do IRC se descortina que não é aplicável a correcção fiscal vertente, pois que, na adaptação do Código do IRC às regras de normalização contabilística vigentes, o legislador tributário não acolheu generalizadamente o justo valor como modelo de valorização dos instrumentos financeiros, mantendo, nesse âmbito, alguma disparidade entre a normação contabilística e fiscal. Na verdade, consagrou expressamente no corpo do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC um princípio geral de irrelevância do justo valor para de seguida acolher uma excepção quanto a um particular tipo de instrumentos financeiros, a qual consubstancia uma confluência entre normação contabilística e fiscal.
Ora, a ratio da excepção, que consubstancia tal confluência entre normação contabilística e fiscal é a que subjaz às demais normas adaptadoras da fiscalidade à contabilidade, ou seja, a redução dos custos de cumprimento e administrativos. Como salientado no Relatório do Grupo de Trabalho para a Análise do Impacto Fiscal da Adopção das Normas Internacionais de contabilidade (cf. Relatório do Grupo de Trabalho criado por Despacho de 23 de Janeiro de 2006 do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 200, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 2006, p. 99), no caso de activos adquiridos com o objectivo de venda num prazo muito curto, em que o número de transacções tende a ser muito elevado, a existência de tratamentos distintos a nível fiscal e contabilístico implicaria encargos administrativos bastante elevados, razão pela qual se acolheu aí a regra do justo valor vigente em termos contabilísticos. Que sentido faria, pois, aditar-se a alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC para efeitos de uniformizar o tratamento fiscal ao contabilístico naquela específica situação se, ao mesmo tempo, se cumulasse de imediato uma correcção fiscal repondo a disparidade? Nesse caso, o razoável seria que o legislador tributário se abstivesse de adaptar, ainda que parcialmente, conservando o status quo ante de expurgar do resultado contabilístico as variações de justo valor de qualquer espécie de instrumentos financeiros. Com efeito, nesse caso, o legislador tributário nem teria por que agir no âmbito do Decreto-Lei n.º 159/2009, bastando-lhe que não aditasse qualquer norma de acolhimento do justo valor e mantivesse a existência de tratamentos distintos a nível fiscal e contabilístico, com a relevação da perda em metade do valor.
Não se encontra, pois, preenchida a ratio legis do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC no que respeita às desvalorizações do justo valor, razão pela qual aquele preceito não se lhes aplica, sendo as mesmas fiscalmente dedutíveis na totalidade.
No caso dos autos, tal interpretação significa que o montante de € 93.262,00 referente a reduções de justo valor no ano de 2013 não podia ter sido desconsiderado pela AT, determinando-se a anulação do imposto correspondente, incluindo as componentes de derrama.
Significa igualmente que os prejuízos de 2011 e de 2012 dedutíveis em 2013 compreendem os montantes de € 5.392.703,23 e € 638.818,96, num total de € 6.032.522,19, correspondentes a 50% dos gastos de justo valor das acções verificadas nesses exercícios. Ou seja, a totalidade das reduções de justo valor de € 12.065.044,38 devem ser relevadas, e não apenas a sua metade, contrariamente ao veiculada na doutrina da AT.
4. A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 52.º, N.º 2, DO CÓDIGO DO IRC A PREJUÍZOS/LUCROS MERAMENTE POTENCIAIS DERIVADOS DE VARIAÇÕES DE JUSTO VALOR DE ACÇÕES COTADAS
Passamos à pretensão da Requerente de deduzir à matéria colectável no seu todo os prejuízos fiscais reportados, sem limites quantitativos, designadamente o limite que decorre do disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC.
Nesta parte, o pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação de IRC tem como causa de pedir a ilegalidade por vício de violação de lei e, subsidiariamente, a ilegalidade por inconstitucionalidades do mencionado artigo.
De acordo com o pedido de pronúncia arbitral, não se conforma a Requerente com o entendimento da AT (e respectivas consequências na tributação) de que as recuperações de justo valor de uns anos para outros (reduções em 2010, 2011 e 2012, e recuperação parcial em 2013, objecto de tributação pela AT) podem ser tributadas sem ter em conta a totalidade das antecedentes baixas de valor por abater à matéria colectável. De acordo com a Requerente, é inaceitável a leitura da lei subscrita pela AT de que os prejuízos fiscais gerados pelas reduções de justo valor dos activos só relevariam contra 75% do lucro tributável gerado em anos seguintes pela recuperação da cotação (reversão das perdas anteriores nos mesmos activos).
A Requerente salienta que o lucro tributável apenas tem a sua origem na recuperação ocorrida no ano de 2013 do justo valor anterior das acções. Sublinha que essa valorização das acções neste ano de 2013 reverte apenas parcialmente desvalorizações ocorridas nos anos anteriores de 2010 a 2012 (recuperação parcial que foi novamente revertida nos anos seguintes). Ou seja, insiste a Requerente que não é despiciendo o facto de o contribuinte se manter em situação de perda com respeito àquelas acções. Nessa situação em que a recuperação parcial ainda não fez o contribuinte sair de um agregado de perdas, entende o contribuinte que a oscilação positiva do justo valor nenhuma matéria colectável e consequente tributação deveria originar.
À cautela e sem prescindir, entende que é inconstitucional a norma constante do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC quando interpretada (conforme pretendido pela AT) no sentido de abranger o confronto entre lucros (valorizações) e prejuízos (desvalorizações) decorrentes de ajustamentos de justo valor de acções cotadas, isto é, quando aplicada sem expurgar os lucros e prejuízos decorrentes de ajustamentos de justo valor de acções cotadas, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, de proibição de soluções arbitrárias, da proporcionalidade ou da justa medida, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da propriedade (artigos 2.º - Estado de Direito – 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 104.º, n.º 2, e 62.º, da CRP).
Acresce, ainda, o princípio da tutela da confiança e da boa fé: a norma de que se pretende servir a AT, qual seja a restrição à utilização de prejuízos fiscais transitados de anos anteriores prevista no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, só foi introduzida no ordenamento jurídico em 30 de Dezembro de 2011, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2012), com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2012 (cf. o artigo 215.º da referida lei). Na medida em que se interprete a restrição prevista no n.º 2 do artigo 52.º do Código IRC, na redacção em vigor em 2013 e introduzida em 2012, como aplicando-se ao encontro de prejuízos e de lucros mensurados ao justo valor, será inconstitucional, no entender da Requerente, a abrangência por essa restrição de prejuízos mensurados ao justo valor nos anos anteriores de 2010 e 2011, por violação dos princípios constitucionais da tutela da confiança e da boa fé (artigo 2.º - Estado de Direito – da CRP).
A Requerente invoca a inconstitucionalidade quer da norma do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC na redacção em vigor em 2013 (introduzida em 2012), mas também do artigo 116.º, n.º 2, da citada Lei do Orçamento do Estado para 2012, no segmento normativo em que impõe a aplicação da nova redacção do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC a prejuízos apurados no passado (anteriores a 2012), incluindo prejuízos resultantes de mensurações ao justo valor.
De acordo com a posição expressa pela Requerente, a invocada inconstitucionalidade das normas decorre igualmente do facto de não assistir escolha ao contribuinte. Esta imperatividade da mensuração ao justo valor mais reforça a desproporção, a violência da agressão à real capacidade contributiva, caso se veja na introdução em 2012 da restrição que até hoje vigora no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC, uma restrição aplicável também fora do sistema-regra de relevação fiscal apenas de ganhos e perdas realizados, isto é, uma restrição extensível ao desvio ao sistema-regra de realização que é a tributação por mensuração ao justo valor.
Começando por analisar a questão interpretativa, antes de prosseguirmos para a apreciação das inconstitucionalidades, importa desde já referir que esta questão decidenda apresenta muitos pontos próximos da questão apreciada na secção anterior relativa ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC.
Isso mesmo ilustra a Requerente quando tece as suas considerações. Caso seja aplicável o n.º 2 do artigo 52.º do Código IRC aos prejuízos de justo valor (com a recusa fiscal de relevação da totalidade dos mesmos), a Requerente será tributada como se tivesse tido um acréscimo patrimonial que não teve. Isso gera resultados totalmente arbitrários, que tratam de modo desigual contribuintes com idênticos resultados económicos pelo simples facto de ter havido mais, ou menos, oscilações, durante um período mais ou menos alargado, na cotação do activo mensurado ao justo valor, no período que medeia entre a aquisição do ativo e a realização (fixação definitiva) do ganho (ou perda) na venda. De facto, a aleatoriedade que acima se referiu também é resultado inerente à restrição agora analisada.
Entende a Requerente que, à semelhança do que se passou com o, entretanto revogado (em 2014) artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, deve entender-se igualmente que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, não se aplica ao relacionamento tributário entre ganhos e perdas resultantes de oscilações de partes de capital detidas contabilístico-fiscalmente mensuradas ao justo valor.
No entanto, adianta-se desde já que não será no plano interpretativo que se poderá chegar a uma solução de adequada compatibilização de valorações normativas entre o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), e o disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC (tal como foi relativamente ao confronto de normas anteriormente apreciado).
Com recurso aos elementos da interpretação afigura-se que não se consegue chegar, tal como pretende a Requerente, a uma conclusão de prevalência do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), em relação ao disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC ou a uma conclusão de restrição do campo de aplicação deste último preceito por referência às variações de justo valor.
No plano da aplicação do disposto no artigo 52.º do Código do IRC já só entram em linha de conta os conceitos de “lucro tributável” e de “prejuízos”. Não assistem dúvidas que os ganhos e gastos de justo valor estão aí compreendidos, naquilo que é o campo circunscrito de acolhimento do modelo de justo valor.
A interpretação da lei traduz-se na determinação do seu sentido jurídico-normativo em ordem a obter, por referência ao caso, um critério jurídico adequado à justa resolução de um determinado problema jurídico concreto. Impor-se-á, a esse propósito, considerar a intencionalidade prático-normativa da norma, para além do elemento literal.
Na interpretação das normas em referência são atendíveis os princípios da especialização e da solidariedade dos exercícios, os princípios da mensuração ao justo valor em resultados por confronto com o princípio da realização e os princípios da capacidade contributiva e da igualdade em articulação com os princípios da praticabilidade e da prevenção do abuso e evasão fiscais.
O princípio da especialização dos exercícios é muitas vezes referenciado como uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada. A actividade das empresas é continuada, ainda que exista a necessidade de, artificialmente, a cindir, calculando-se os resultados em relação a cada exercício. Este princípio é o “informador material”, i. e., o pressuposto legitimador das opções normativas e das operações administrativas – baseadas no pressuposto rígido da necessidade de efectuar um corte temporal (anual) na sequência dinâmica que é o fluxo económico empresarial, tendo em vista o apuramento da situação económica do sujeito passivo para efeitos de liquidação do imposto sobre o rendimento – que hão-de permitir a imputação dos elementos positivos e negativos a quantificar no contexto da determinação do lucro tributável em IRC.
O legislador consagra em paralelo outras regras legais que, substancialmente, constituem matizes ao princípio da especialização dos exercícios, tendo em vista harmonizar, em abstracto, a segurança jurídica necessária à fixação dos critérios que presidem à determinação da base tributável do IRC com o princípio constitucional da tributação das empresas segundo o rendimento real.
O reporte de prejuízos enquadra-se nessas regras. O rendimento real das empresas decorre da consideração dos sucessivos resultados anuais, os quais são meramente parcelares. O apuramento de resultados anuais positivos pode assim não traduzir um verdadeiro enriquecimento, mas antes a mera recuperação de perdas pretéritas.
Importa a este respeito recordar o que se encontra referido no último parágrafo do ponto 7 do preâmbulo do Código do IRC: “A periodização do lucro é origem de outros complexos problemas, estando o principal relacionado com o facto de cada exercício ser independente dos restantes para efeitos de tributação. Essa independência é, no entanto, atenuada mediante certas regras de determinação da matéria colectável, especialmente através do reporte de prejuízos. Consagra-se, assim, a solidariedade dos exercícios, o que se faz em moldes idênticos aos que vigoravam no sistema anterior, ou seja, na modalidade de reporte para diante até um máximo de cinco anos”.
A solidariedade dos exercícios assenta, pois, na continuidade e plurianualidade da actividade empresarial. Em comentário ao então artigo 46.º, actual artigo 52.º do Código do IRC, refere a administração tributária o seguinte:
“O estudo do imposto sobre o rendimento, mais concretamente sobre o rendimento das pessoas colectivas, tem dado um lugar de destaque ao princípio da especialização dos exercícios. Basicamente, pela necessidade de estabelecer períodos anuais de apuramento de resultados para efeitos fiscais e de precisar a qual dos exercícios é que se imputa certo facto ou relação jurídica ou económica que tenha elementos de conexão com os vários exercícios.
Frente a uma postura inicial de aplicação rígida do princípio, tem-se progressivamente atenuado os efeitos de injustiça que em alguns casos leva tal aplicação, quer através da aceitação de critérios de imputação temporal mais flexíveis no apuramento de resultados, quer admitindo a compensação dos prejuízos em posteriores exercícios que evidenciem resultados positivos.
Esta última faculdade é o reconhecimento de que os exercícios económicos são independentes entre si e que, fluindo o rendimento das sociedades em continuidade, a sua qualificação em períodos anuais, resultando de um imperativo legal, não obsta à solidariedade entre os diversos exercícios”. (cf. Código do IRC – Comentado e Anotado, Direcção-Geral dos Impostos [DGCI], 1990, p. 207).
Fica, pois, bem expresso que a dedução dos prejuízos fiscais não é um “favor” ou “benesse” concedida às empresas, mas sim o reconhecimento de que a sua actividade não se esgota no final de cada período de tributação. Não se trata de “benefício fiscal”, de “isenção”, de excepção à tributação regra. Os custos não recuperados de um exercício devem comunicar-se ao lucro de outros exercícios como forma de o imposto sobre os lucros da actividade ser equilibrado e justo, através de uma postura de neutralidade temporal. O reporte é pois um aspecto estrutural ao sistema fiscal uma vez que tem como objectivo adaptar o sistema de tributação anual à real situação contributiva do contribuinte. Esta ponderação inter-temporal é essencial para salvaguardar o princípio da capacidade contributiva.
Note-se que o prazo de reporte dos prejuízos fiscais aplicável à data dos factos é extremamente exíguo quando comparado com os padrões internacionais. O prolongamento do prazo de reporte de prejuízos fiscais introduzido com a Reforma do Código do IRC em 2014 visou trazer alguma competitividade do regime face a outros países como a Espanha, com prazo prolongado até 18 anos, ou como a Alemanha, Áustria, França, Itália, Hungria, Bélgica, Chipre, Dinamarca, Eslovénia, Irlanda, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Reino Unido e Suécia, sem quaisquer limites temporais de reporte fiscal.
Apreciada a natureza e razão de ser do princípio da solidariedade dos exercícios, cumpre ainda atentar nas razões da compressão a este princípio – artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC – introduzida com a Lei do Orçamento do Estado para 2012.
Tais razões terão sido relacionadas com o imperativo de consolidação orçamental e prevenção do abuso, sendo relevante o contexto da introdução daquela medida.
O Relatório do Orçamento do Estado para 2012 é sucinto a este respeito. Refere-se o seguinte: “As empresas portuguesas passam a beneficiar do alargamento do prazo de reporte de prejuízos de quatro para cinco anos, fruto da renegociação do compromisso previsto no PAEF, favorecendo-se assim o investimento produtivo e criando-se condições para o reforço da competitividade das empresas. Por outro lado, introduz-se uma limitação à dedução de prejuízos fiscais, a qual corresponderá a 75% do lucro tributável do período em que se procede à dedução. Desta forma, as empresas que apresentem lucros tributáveis serão sempre sujeitas ao pagamento de IRC, ainda que detenham prejuízos fiscais reportáveis de anos anteriores” (p. 47 do Relatório).
No ano imediatamente anterior, as medidas de condicionamento da dedução de prejuízos fiscais apresentavam as seguintes justificações:
“III.2.2.2. Alargamento da Base e Combate à Evasão no IRC - A Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 faz uma aposta forte no alargamento da base de incidência e no combate ao planeamento e evasão em sede de IRC. Assenta esta aposta na consciência de que o IRC se mostra distribuído de forma desequilibrada em Portugal, quer no topo, onde preponderam taxas efectivas de tributação inferiores à média, quer na base, onde a evasão se mostra em níveis socialmente não aceitáveis. Sendo verdade que estas deficiências do nosso sistema fiscal não se resolvem facilmente e se é verdade que nem todas elas passam por intervenções de natureza legislativa, é certo, porém, que o Código do IRC continua a conceder um tratamento favorável a matérias como a distribuição de lucros, o reinvestimento de mais-valias ou a dedução de prejuízos, impelindo o legislador a procurar adequar estas situações em que a base de incidência deste imposto se mostra tão estreita. Em conformidade, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 introduz um conjunto largo de medidas tendentes ao alargamento da base do IRC, assim como ao combate a práticas de natureza evasiva.
(…)
III.2.2.2.3. Condicionamento da Dedução de Prejuízos Fiscais - Com o propósito de reforçar o combate à fraude e evasão fiscal, nomeadamente através da manipulação dos registos contabilísticos das empresas, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 vem subordinar a dedução de prejuízos fiscais à certificação legal das contas por Revisor Oficial de Contas. Trata-se de uma solução que visa pôr termo a eventuais aproveitamentos abusivos de prejuízos fiscais, reforçando o escrutínio sobre as empresas e a responsabilização na elaboração das suas contas. Assim de uma solução que exige modelação e filtragem, estando fora de causa a sua aplicação universal. Pelo que a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 remete a concretização desta regra para Portaria do membro do governo responsável pela área das finanças, garantindo-lhe aplicação eficaz mas ponderada, combinando a preocupação do combate à fraude com a de evitar custos de contexto para as empresas” (´cf. pp. 69 e ss. do Relatório do Orçamento do Estado para 2011).
Neste ponto, verifica-se que a razão de ser da norma agora em análise é bastante próxima da razão de ser da norma analisada na secção anterior.
Por outro lado, a derrogação ao princípio da realização com a introdução do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo Código, teve subjacente as razões acima aludidas.
Importa relembrar que o Código do IRC acolhe um princípio de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade para efeitos de apuramento do lucro tributável. Este princípio determina ou conduz a soluções diferentes quando se trate de externalizar de forma padronizada (tendo em vista a comparabilidade) a situação financeira de uma entidade económica (a empresa) – sendo essa a finalidade a que se destinam as normas de contabilidade e relato –, ou antes de apurar o rendimento líquido do exercício, ou seja, aquilo que expressa a efectiva capacidade contributiva do sujeito passivo.
Assim, não é porque as regras da contabilidade e do relato financeiro impõem a contabilização no balanço e o respectivo reconhecimento como resultados do exercício de determinados ganhos ou perdas potenciais ou latentes, que essas variações potenciais têm de ser imputadas para efeitos do apuramento do lucro tributável.
Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter a aplicação do princípio da realização, inclusive relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5% do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.
Como já mencionado, a ratio da excepção foi a redução dos custos de cumprimento e administrativos.
Note-se que o próprio Direito da Contabilidade não impõe a mensuração FVPL acima referenciada em todas e quaisquer situações mas apenas naquelas em que se considera que essa é a forma mais correcta de reflectir a criação de valor ao longo do tempo, o que se compreende pela necessidade de o balanço ilustrar anualmente a situação económico-financeira da empresa. Em todo o caso, a motivação para a fiscalidade acolher de forma circunscrita a mencionada regra de relevância de mais e menos-valias não realizadas foi uma razão de praticabilidade e não uma consideração de que as mais-valias não realizadas constituíssem índice mais adequado de capacidade contributiva.
Atendendo a todas estas razões que presidiram à edificação das normas fiscais em presença, cumpre verificar da sua conciliação.
A Requerente propõe que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC não se aplique aos ajustamentos de justo valor. O limite da dedutibilidade de prejuízos teria a seguinte leitura: a percentagem de 25% do lucro tributável é insusceptível de abatimento por prejuízos fiscais reportados, com excepção da componente do lucro que se reconduza a mais-valias não realizadas de instrumentos financeiros. Ora, tal interpretação restritiva não se afigura possível.
É certo que não se vê motivo para qualquer assimetria no tratamento fiscal de rendimentos e gastos de justo valor e esta conduziria a resultados económicos e fiscalmente inaceitáveis, como já se demonstrou amplamente na jurisprudência proferida a respeito do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC. Aí se erige a teleologia do preceito como elemento central e se desvaloriza a pura literalidade em virtude de poder conduzir a resultados jurídico-fiscais incomportáveis (haver imposto a pagar com rendimento nulo) e frontalmente contrários a princípios da tributação empresarial legalmente consagrados.
De facto, ao justo valor negativo (e ao prejuízo fiscal em que este se traduza) nunca subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte.
Como se referiu, designadamente nos acórdãos arbitrais n.os 148/2013-T, 108/2013-T, 85/2018-T, a assimetria de tratamento dos ganhos e gastos de justo valor tem efeitos perniciosos e contrários ao próprio modelo de justo valor. Citando o primeiro dos mencionados acórdãos, “(…) o contribuinte apenas pode aceitar que aumentos e diminuições do justo valor funcionem como duas faces da mesma moeda. De outro modo, quando ele ainda nada ganhou nem perdeu em termos definitivos, já teria sofrido um dano fiscal irreparável: a tributação díspar de uma diferença de 25 quando ainda não logrou uma valorização sequer superior ao custo da aquisição (cenário aliás bem provável, se atendermos à evolução das bolsas mundiais, em particular da portuguesa, no período 2008-2014)”.
No entanto, como se havia adiantado já, nada no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC autoriza a distinguir componentes dos lucros ou dos prejuízos. A interpretação propugnada pela Requerente de que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC tem o seu campo de aplicação restringido ao plano da “realização” não é possível. Está já fora do domínio interpretativo; situa-se no domínio integrativo. Postula-se a necessidade de superar o elemento literal de forma a que a solução concreta esteja adequada ao concreto escopo da norma tal como este foi previsto pelo legislador.
Ora, pese embora se tenha vindo a admitir a prevalência do elemento teleológico em situações similares à decidenda (veja-se, por exemplo, o Acórdão arbitral proferido no processo n.º 351/2016-T, em que se admite a extensão teleológica num contexto de contornos semelhantes), entende este Tribunal que não é aqui permitido romper as amarras do teor literal ainda que em obediência à máxima “cessante ratione legis, cessat lex ipsa”.
A norma em causa – artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC - está redigida em termos tais que a posição defendida pela Requerente corresponderia, na prática, a uma interpretação correctiva ou ab-rogante, porquanto contrariaria abertamente a letra do preceito em causa (elemento gramatical da interpretação).
Será possível em matérias como as de que nos ocupamos ir para além do significado literal possível? Este seria efectivamente um exemplo de manual de uma lacuna oculta. O caso em apreço terá especificidades não consideradas pela letra da lei e que deviam tê-lo sido, pois justificam um tratamento diferente (cf. BAPTISTA MACHADO, J., Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, Almedina, 1993, p. 196).
Nas situações em que a lei fixa um regime que entra em contradição com o sistema ou com a própria finalidade do preceito, a doutrina e a jurisprudência civilística vêm admitindo a redução teleológica (cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2012, pp. pp. 746-747, 782 e ss.). Pressupõe-se que o fim da lei está claramente averiguado pelo intérprete e que, sem essa redução, esse fim não seria atingido em parte dos casos, gerando uma grave contradição de valoração. Para evitar essas situações, o intérprete reduz ou exclui do campo de aplicação de uma norma casos que estão abrangidos, inclusive pelo seu texto, com fundamento na teleologia imanente a essa mesma norma (cf. BRONZE, Fernando José, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 922, CASTANHEIRA NEVES, António, “Interpretação Jurídica”, Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 364-368).
Não obstante, uma vez que na determinação do sentido das normas fiscais de incidência resulta proibida a analogia, também uma proibição de redução teleológica deve nelas ser extraída, obrigando o interesse preponderante de segurança jurídica a manter o limite do sentido literal possível.
Da mesma forma, não é possível atingir o resultado pretendido pela Requerente através de uma interpretação em conformidade com a CRP, designadamente em conformidade com os princípios constitucionais da igualdade e da tributação do rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP), por falta de um sentido possível conforme. No dizer de JORGE MIRANDA, “A interpretação conforme com a Constituição não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja o mais conforme com a Constituição quanto a discernir o limite - na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental” e “Não pode, no entanto, deixar de estar sujeita a um requisito de razoabilidade: implica um mínimo de base na letra da lei” (cf. Manual de Direito Constitucional – Tomo II, Coimbra Editora, 2001, pp. 267-269).
Por outro lado, da leitura dos preceitos em presença também não se pode concluir que estejamos diante de uma verdadeira presunção de abuso que consentiria, em sintonia com o artigo 73.º da LGT (“As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”), que o contribuinte desencadeasse o procedimento contraditório para ilidir a presunção de abuso subjacente à norma.
Resta, pois, aferir da constitucionalidade das normas em presença.
Sobre esta matéria veio o Tribunal Constitucional pronunciar-se, no âmbito do presente processo (v. Acórdão n.º 55/2022, de 20 de Janeiro de 2022, acima citado), concluindo que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC não é inconstitucional, quando limita a 75% do lucro tributável do ano reportado, a dedução de prejuízos fiscais, incluindo aqueles que decorram de ajustamento de activos financeiros mensurados por justo valor e reconhecidos através de resultados, nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo Código.
Para tanto, fundamenta o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
“2.2. Capacidade Contributiva e Tributação pelo Rendimento Real
[…]
2.2.2. Regressando ao caso dos autos, o primeiro suporte para o juízo de inconstitucionalidade firmado pelo Tribunal arbitral respeita ao facto de as variações inerentes à valorização de ativos financeiros detidas nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC serem tributadas sob periodização anual em função do modelo de rendimento-acréscimo e não aguardarem pela sua realização (v. g., pela venda em mercado) para concorrerem ao apuramento como mais (ou menos) -valia. Pretende-se que a despesa financeira gerada por esta disciplina normativa reclame pela inconstitucionalidade do limite ao reporte estabelecido pelo artigo 52.º, n.º 2 do CIRC, por da assimetria entre aquele tratamento de ganhos e este tratamento quanto a perdas resultar, segundo se afirma, uma desfiguração da real capacidade económica da empresa.
No entanto e desde logo, a solução legal em causa atende a dois específicos dos ativos a que respeita que afastam as objeções colocadas sobre a sua sujeição a tributação periódica. De facto, e repescando o que dissemos, a norma reporta-se a instrumentos de capitais próprios admitidos a mercado regulamentado e representativos de menos de 5% do capital social da participada (cfr. artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC): isto caracteriza os ativos como dotados de elevada liquidez, já que em qualquer altura pode ser realizado o seu produto pela venda em mercado aberto, obtendo a sua conversão em disponibilidades de tesouraria. Por outro lado, o facto de a sua mensuração ser efetuada mark to market (que é dizer, pela aplicação da sua cotação em mercado), significa que o valor de realização possui urna ligação de identidade directa com a valorização presente nas contas, emprestando grande segurança ao critério valorimétrico.
O exposto justifica, por si só, um tratamento destes ativos financeiros em sede tributária muito diferente do que seria oferecido, v. g., a ativos imobiliários ou a partes de capital em sociedades não-cotadas, já que nestas situações a realização do valor depende da reunião de circunstancialismos específicos e de um processo de valorização pelo comprador que pode, ou não, confluir com o método de mensuração aplicado. Estas incertezas justificam que se aguarde a sua realização para aferir da mais (ou menos) -valia, necessariamente de registo algo conjetural antes da realização efetiva da operação. Nestes casos, está-se nos antípodas da situação a que reporta a norma previsiva do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC.
Mais se diga, para além do exposto, a Lei impõe ainda um outro requisito para se impor a tributabilidade das variações (positivas) destes ativos: o sujeito passivo terá de ter optado por urna política de reconhecimento dos ajustamentos (variações) por justo valor através da conta de resultados (cfr. artigo 18.º, n.º 9, alínea a), 2.ª parte, do CIRC) e não através da conta de capitais próprios.
É que, quando as variações sejam reconhecidas pela conta de capitais próprios, o sujeito passivo opta por circunscrever os ganhos decorrentes da valorização dos ativos à internalidade da empresa, meramente reforçando a respetiva aptidão para absorver perdas e apenas garantindo maior solvabilidade. Ao contrário, quando os ajustamentos sejam reconhecidos através da conta de resultados, eles impactam directamente na performance económica da empresa em cada exercício, ampliando os lucros distribuíveis a investidores e adquirindo uma função remuneratória do capital.
Ora, em essência e sem querer entrar em divagações, o IRC constitui um instrumento jurídico de tributação de capitais, cuja carga fiscal completa resulta da (dupla) tributação (económica) sucessiva de lucros empresariais e dividendos distribuídos (duplo encargo que não enfrenta qualquer obstrução constitucional — v. CASALTA NABAIS, op. cit. O Dever..., pp. 511-512). Na pureza dos princípios, a relação jurídico-fiscal seria estabelecida apenas com as pessoas singulares da República, que com esta mantêm o competente vínculo de cidadania, já não com empresas, que não são mais do que instrumentos para obtenção de proveitos. No entanto, cingir a tributação de capitais a factos qualificáveis como percepção de rendimentos por investidores constituiria um espartilho demasiado apertado para obter uma carga fiscal ajustada, encorajando outras fórmulas de transferência dos ganhos. A ser assim, a tributação de capitais resultaria virtualmente impossível, por não ser viável a antecipação dos esquemas possíveis para obter esse resultado económico e de proceder à respectiva consagração legal de incidência nos termos exigidos pelo princípio da legalidade tributária (artigo 103.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa).
Ciente dessa dificuldade e compelido pelos citados princípios de praticabilidade fiscal (na angariação da receita) e de igualdade tributária e capacidade contributiva (na proibição de não-discriminação entre classes de rendimentos), o legislador constitucional desde logo consagrou um modelo de tributação de capitais que compreende o imposto sobre empresas (cfr. artigo 104.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), impondo que se levem em conta as considerações que subjazem a esse modelo no juízo de compaginação de normas infraconstitucionais para com a Lei Fundamental.
Pois bem, caso não existisse incidência sobre ativos financeiros com periodização por exercício nos termos estatuídos no artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, o reflexo dos ajustamentos na conta de resultados das variações mark to market destes ativos levaria a que existissem lucros distribuíveis isentos de IRC nas empresas que os titulassem, erodindo a carga tributária sobre rendimentos gerados por aplicações de capitais sem que se discernisse causa bastante para o tratamento discriminatório. Por outras palavras, a empresa titular de uma carteira de acções cotadas registaria ganhos na conta de resultados não-tributáveis, mas distribuíveis pelos investidores. Este fenómeno subsistiria todos os anos até que a empresa se resolvesse a colocar as participações em mercado, equivalendo a uma forma de financiamento público gratuito, ou, até, caso não existisse mais-valia à data da venda dos ativos, a uma efetiva erosão da base de tributação discriminatória.
Assim e à guisa de sumário, nada se observa no regime legal que comprometa o princípio da igualdade fiscal ou da capacidade contributiva, antes se observando urna concretização adequada (senão constitucionalmente reclamada) desse quadro normativo com foro de constitucionalidade, mesmo supressora de uma lacuna de base de incidência que, de outra forma, não se compreenderia.
2.2.3. Abordando agora o problema do regime legal de reporte de prejuízos (artigo 52.º do CIRC), este conforma uma abrogação do princípio de especialização dos exercícios (artigo 18.º do CIRC) e tem por escopo normativo maximizar o espectro de alcance prático dos princípios da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento real, a que acima fizemos alusão.
No âmbito do IRC, do agasalho constitucional dos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva resultou, como já ficou implícito ao exposto supra, a consagração do arquétipo de rendimento-acréscimo como modelo primário. Este paradigma assenta na consideração, como base de incidência, de todos os incrementos patrimoniais verificados num único exercício no sujeito passivo, ou seja, num juízo concreto de aferição da variação líquida do poder económico operada entre o início e o fim do ano fiscal: o modelo é, pois, inclusivo de todos os aumentos líquidos de valor numa esfera patrimonial no período, independentemente de destino, origem ou da atividade que os gerou e abarca os referentes a ativos não-transacionados nem consumidos.
Sucede, porém, que da especialização de exercícios decorre um efeito de penalização das empresas cuja atividade apresente oscilações por hiatos mais longos que o exercício anual. Assim, um operador económico que enfrente condições que importem anos muito produtivos e anos de atividade deficitária, sofrem maior carga fiscal relativa face a outros que, beneficiando de outras condições sectoriais ou de contexto, exibam resultados médios mais consistentes. Dito de outra forma, caso o imposto seja apurado levando em conta ganhos e perdas de apenas um ano fiscal, empresas com grandes flutuações de resultados entre exercícios enfrentarão encargos fiscais tendencialmente mais elevados, produto do facto de o lucro ser apurado anualmente e por, nesse esquema, as perdas verificadas nuns anos não poderem ser chamadas a abater os ganhos noutros.
O reporte de prejuízos fiscais consagrado no artigo 52.º do CIRC pretendeu condicionar o alcance desta torção no juízo comparativo de capacidade económica entre operadores, admitindo que prejuízos fiscais verificados em certo ano possam ser repercutidos noutros, obtendo-se, pois, uma visão de conjunto da situação da empresa mais adequada para efeitos de incidência e ampliando o alcance do princípio da capacidade contributiva enquanto fundamento de tributação.
Seria tarefa impossível, porém, pretender que o reporte de prejuízos pudesse eliminar em absoluto as distorções relativas que decorrem de flutuações da produtividade das atividades económicas. A única forma seria aguardar pela dissolução e liquidação de uma empresa, para, através de uma visão integrada de todos os exercícios em que desenvolveu atividade, apenas então a Lei se permitir aferir do imposto adequado aos seus ganhos e perdas acumulados.
Assim, sem que se entenda o reporte de prejuízos como uma “benesse” ou um tratamento de favor a entidades empresariais (como bem refere o acórdão arbitral recorrido), mas como um meio de aprofundar a justiça fiscal do sistema, a existência e disciplina regulamentar do instituto do reporte acha-se inserida no espaço de ampla latitude concedida ao legislador infraconstitucional pelo princípio da igualdade tributária a que acima fizemos referência.
Este espaço de liberdade à iniciativa e modulação infraconstitucional é tanto mais vasto quando o reporte de prejuízos importa, sem nenhuma dúvida, intensa erosão da base de incidência tributária de IRC, o que assume decisiva relevância quando nos localizamos num domínio particularmente permeável a evasão e elisão fiscal (a fiscalidade empresarial). Sinaliza-se por isso a presença de outro valor constitucionalmente relevante no problema, este respeitante às necessidades financeiras do Estado a que o imposto atende (artigo 103.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) e que confere ao legislador ordinário grande espaço de manobra e dever de ponderação ao procurar equilibrar os interesses em confronto na fixação das condições para o trânsito de prejuízos fiscais entre exercícios.
Está bom de ver, ainda que se possa entender materialmente mais justo, economicamente aconselhável e politicamente avisado (de manter presente o contexto de competitividade fiscal entre Estados que se acha instalado), não existe princípio constitucional que imponha a consagração legal do instituto de reporte de prejuízos fiscais entre exercícios, tanto menos que estabelecesse uma concreta fórmula para o efeito. Como já decidiu este Tribunal Constitucional:
«o reporte de prejuízos, previsto no artigo 52.º, do CIRC, justifica-se em razão de uma lógica de solidariedade dos exercícios. Ou seja, não obstante a regra ser a da periodização do lucro acompanhada da correspondente anualidade do imposto, os efeitos fiscais desta periodização tendem a ser minimizados através de algumas medidas, entre as quais se integra o reporte de prejuízos (para a frente e para trás). Permite-se, assim, a comunicação dos prejuízos de um exercício aos lucros de outro exercício, "como forma de o imposto sobre lucros ser equitativo e respeitar, afinal, a capacidade contributiva dos sujeitos sobre que incide" (. . .) e o princípio da tributação segundo o lucro real. Fácil é de ver, porém, que o reporte de prejuízos, apesar de mais adequado ao modo como flui o rendimento das empresas, é fator de erosão de receitas fiscais, pelo que a previsão do reporte bem como os limites a que se acha sujeito (v.g., reporte para a frente e/ou para trás, limitação temporal do reporte, prioridade da dedução dos prejuízos fiscais mais antigos) hão-de compatibilizar-se com o desiderato dos impostos, que passa pela satisfação das necessidades financeiras do Estado (cfr. artigo 103.º, n.º 1, da CRP) (...)
Não há, porém, uma conexão suficientemente forte entre os princípios da igualdade tributária e da tributação das empresas pelo lucro real, por um lado, e a figura do reporte de prejuízos fiscais, por outro, ao ponto de se poder afirmar que a assunção do lucro tributável como matéria coletável de um dado imposto frustra o respetivo conteúdo normativo. Indubitavelmente, havendo reporte de prejuízos, verifica-se uma maior adequação da tributação à vida económica das empresas, mas isso não basta para que se afirme, na ausência daquela faculdade, uma violação daqueles princípios.» (acórdão n.º 197/2013 in www.tribunalconstitucional.pt)
Concluímos, então, que a consagração, de uma parte, e a definição concreta, de outra, do regime legal de reporte de prejuízos fiscais não são produtos de imposições constitucionais, antes são consequência de preocupações sentidas pelo legislador ordinário em insuflar o IRC de maior equidade fiscal e em promover a avaliação da capacidade económica dos operadores de forma mais rigorosa, tudo no interior do perímetro de liberdade legislativa concedido pelo quadro constitucional e na presença (e sacrifício relativo) de outros valores constitucionais relevantes.
2.2.4. No caso dos autos e repescando o que dissemos, o Tribunal arbitral entendeu inconstitucional a norma do artigo 52.º, n.º 2 do CIRC na redacção conferida pela LOE2012 ao capear a dedutibilidade dos prejuízos a 75% dos lucros libertados no exercício de reporte. Por outras palavras, a norma admite o reporte de prejuízos fiscais de um ano em qualquer um dos cinco exercícios subsequentes, mas, por contrapartida, impõe que 25% do lucro libertado pela empresa em cada um destes cinco anos se conserve tributável nas condições gerais de acordo com o princípio de matriz, de especialização dos exercícios. Recorde-se que esta solução modifica a que vigorava anteriormente- em resultado da redação dada ao mesmo artigo pela Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril – segundo a qual o reporte de prejuízos fiscais era admitida, sem teto máximo, apenas nos quatro exercícios posteriores.
Levando em conta o que já dissemos, nada se divisa de inconstitucional naquele regime, observando-se uma saudável promoção do princípio da capacidade contributiva: a Lei protege uma parte minoritária do resultado líquido do exercício dos efeitos de anos anteriores deficitários, é bem verdade, mas trata-se de urna disciplina legal em que nada impunha diferente solução normativa do ponto de vista constitucional. Não obstante, há que acrescentar que a Lei nem sequer prejudica o direito do sujeito passivo de deduzir o remanescente (não-utilizado) de prejuízos nos lucros gerados em exercícios posteriores, desde que respeitada a conexão temporal de cinco anos e o limite percentual fixado para cada ano (artigo 52.º, n.º 2, última parte, do CIRC). Também por aqui se reforça o carácter integrado da avaliação do poder económico da empresa ao longo do período.
Relativamente à dedutibilidade como prejuízos fiscais das variações negativas de ativos financeiros nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC, em especial, existe um equívoco de essência no aresto recorrido ao delimitar o juízo de inconstitucionalidade da norma sindicada.
De facto, ao contrário do que sugere o acórdão arbitral, não é possível divisar um regime específico de tratamento presente no artigo 52.º, n.º 1 e 2 do CIRC para um tipo específico de perdas (fossem as decorrentes de ajustamentos de ativos financeiros, fossem quaisquer outras), já que o que é admitido a reporte nos termos do citado articulado legal é o resultado apurado no exercício, quando seja negativo (cfr. também o artigo 15.º, n.º 1, do CIRC). A operatividade da norma depende, sendo assim, de um cômputo global compreendendo todos os ganhos e perdas, todos os proveitos e gastos, na conclusão do ano fiscal, não apenas os que sejam produto de variações negativas de instrumentos financeiros.
Porque o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC estabelece a participação dos ajustamentos por justo valor de ativos financeiros na formação do lucro tributável, caso estes sejam negativos, concorrerão para a geração de prejuízos fiscais reportáveis, à semelhança de qualquer encargo fiscalmente dedutível (cfr. artigo 23.º, n.º 1, al. j), do CIRC). É assim para a A…, SA e quanto às perdas nestes ativos, como é assim para qualquer outro operador em território português, independentemente da tipologia específica de perdas ou gastos que hajam sido determinantes para a situação negativa do exercício (menos-valias, custos operacionais, imparidades, etc.).
Por outro lado, se já vimos que o regime de tributação dos ajustamentos em ativos financeiros nos termos do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do CIRC não possui o pretenso carácter penalizador que lhe foi atribuído, vemos agora que não se colocam questões peculiares no que respeita ao reporte de prejuízos fiscais que tenham por fonte esses ajustamentos. O acórdão arbitral pretende existir uma moldura constitucional que impusesse um tratamento (favoravelmente) discriminatório quanto a certas categorias de ganhos e, ao mesmo tempo, quanto a certas categorias de perdas. Esse entendimento não conforma, está bom de ver, qualquer corolário lógico associável aos princípios da igualdade tributária e da capacidade contributiva, muito pelo contrário.
Concluímos o presente subtítulo rematando com a negação do juízo de inconstitucionalidade do artigo 52.º, n.º 2 (e artigo 18.º, n.º 9, alínea a)) do CIRC, por não estar sinalizada qualquer violação dos princípios da igualdade tributária, da capacidade contributiva ou da tributação das empresas essencialmente pelo rendimento real (artigo 13.º, 103.º, n.º 1 e 104.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa).”
No que respeita à retrospectividade, no sentido de ser inadmissível a limitação da dedutibilidade de prejuízos apurados em exercícios anteriores à entrada em vigor da norma, também não assiste razão à Requerente. De acordo com o entendimento do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 116.º, n.º 2, da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, na parte em que determina a aplicação da nova redacção do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC a prejuízos fiscais apurados em exercícios passados, incluindo os resultantes de mensurações a justo valor, não é inconstitucional.
Salienta a este respeito o Tribunal Constitucional:
“2.3. O Princípio da Confiança
2.3.1. Como segunda questão colocada na presente instância de recurso, o acórdão arbitral entendeu inconstitucional a norma do artigo 116.º, n.º 2 da LOE2012, ao conferir aplicabilidade à norma limitativa do reporte de prejuízos constante do artigo 52.º, n.º 2 do CIRC, na nova redacção, quanto a prejuízos fiscais apurados em exercício anteriores à sua entrada em vigor. De facto, até à alteração operada pela LOE2012, não existia qualquer limite imposto ao reporte em relação ao resultado líquido dos exercícios em que era realizado, admitindo a Lei que absorvessem 100% dos lucros gerados nesses anos.
O Tribunal arbitral entendeu que a disciplina de vigência, porque aplicável a prejuízos fiscais gerados em anos anteriores à entrada em vigor da LOE2012 se acha em violação do princípio "da tutela da confiança" ou em "violação do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança (ínsito no princípio de Estado de Direito consagrado no arrigo 2.º da CRP." (cfr. fls. 36-37).
2.3.2. Não está em causa qualquer pretensa retroatividade (autêntica) da norma do artigo 52.º, n.º 2 do CIRC, conquanto o que se questiona é a admissibilidade constitucional da limitação ao reporte de prejuízos fiscais realizado depois da sua entrada em vigor (em 01.01.2012), pelo que se dispensa uma análise à proibição do artigo 103.º, n.º 3, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, o caso dos autos respeita ao apuramento de imposto no ano de 2013, assim depois da entrada em vigor da LOE2012. No entanto, porque os prejuízos de reporte foram gerados antes da vigência do diploma, a norma limitativa da dedutibilidade dos prejuízos patenteada no respectivo artigo 116.º, n.º 2, a que temos vindo a aludir, impõe a necessidade de avaliar a existência de lesão de expetativas de particulares que se pudessem dizer acobertadas pelos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança que dimanam do princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, ora pelas novas condicionantes introduzidas no artigo 52.º, n.º 2 do CIRC (v. CASALTA NABAIS, Direito.. ., pp. 223-226).
Ora, cabe lembrar a este propósito, porém, que o princípio geral é o da revisibilidade da legislação, não existindo qualquer princípio constitucional que imponha, sem outras considerações, imobilismo ou estaticidade ao legislador e que pudesse sedimentar expectativas jurídicas na imutabilidade de certo regime legal (v. acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 287 / 90 e 285/2010). Este princípio, porém, conhece limites importantes, já que a alteração da disciplina legal súbita, dramática e inesperada pode, com efeito, importar um impacto na esfera de particulares passível de conduzir a situações de ruína. O mesmo princípio que impõe prospetividade nos efeitos da legislação fiscal (artigo 103.º, n.º 2, 2.ª parte, da Constituição da República Portuguesa), reclama por moderação e por tutela quando ações passadas, potencialmente de efeitos irreversíveis, tenham sido orientadas por uma razoável perspetivação de estabilidade conjuntural do ordenamento.
Este problema é especialmente candente em matéria de fiscalidade empresarial. Atendendo à importância que os encargos fiscais (maxime, sobre o rendimento) representam, nenhum projecto de investimento pode dispensar um juízo de projeção sobre custos de instalação sem levar em conta os encargos fiscais previsíveis. As alterações profundas ao ordenamento que incidam sobre institutos jurídicos de vigência prolongada e consolidada, podem implicar uma clivagem entre a organização do investimento e a realidade com que o operador vem a ser confrontado, reclamando pela sua inviabilidade económica ou mergulhando-o numa espiral de queda financeira irrecuperável.
Um bom exemplo será a instalação de uma empresa (start up) que conta com o benefício tributário (estrutural e permanente) inerente à dedutibilidade fiscal de amortizações (artigo 23.º, n.º 1 e 2, alínea g) do CIRC e Decreto Regulamentar n.º 25/2009 de 14.09) para projetar a sua necessidade de capitais aquando do investimento. Porque a Lei admite a dedução como custo fiscal de amortizações aquém do tendencial período de vida útil dos equipamentos (assim, em valores anuais mais altos que os da real depreciação verificada), o operador espera poder beneficiar dessa forma de financiamento público ao organizar as suas necessidades de capitais, bem como ao realizar projeções sobre rendibilidade, maxime quanto ao momento em que atingirá o break even.
Depois de realizada a instalação, caso o operador venha a ser surpreendido com uma violenta alteração da Lei tributária que imponha muito maior diluição das amortizações para efeitos de consideração como custo fiscal, a empresa enfrentará carga fiscal muito mais elevada do que era esperado nos seus primeiros anos. A ser assim, é possível que, em setores de investimento de capital intensivo, a alteração legislativa represente a inviabilidade económica global do projecto.
Nesta situação, pois claro, será conjeturável estarmos perante uma expetativa fundada na estabilidade do ordenamento jurídico-tributário que se viu violada pelo caráter retrospetivo (retroatividade inautêntica) da Lei nova, impondo a circunscrição dos seus efeitos e a tutela da situação material do particular, ora por tributo ao princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança do sujeito passivo perante a República, que dimana da própria conceção de Estado de Direito constitucionalmente consagrada (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa).
Como se disse no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 175/2018 (v., também, acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 287 /90 e 128/2009, aí citados):
«Apesar de não se encontrar sob incidência da proibição da retroatividade fiscal consagrada no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição – e de não ser, por isso, sancionável de forma automática, nos termos em que o são as situações de retroatividade autêntica –, a norma (…) apenas poderá ser considerada constitucionalmente conforme se, em face dos elementos que integram a relação jurídico-tributária atingida, for de concluir que a aplicação da nova disciplina jurídica a factos iniciados sob a vigência da lei antiga é compatível com as exigências que, em caso de mutação da ordem jurídica, o legislador ordinário é obrigado a respeitar por força do princípio da proteção da confiança»
A Jurisprudência constitucional, neste domínio e tendo em vista não desprover de alcance aquele estatuto-regra de revisibilidade da legislação e da disciplina normativa – que deriva da própria existência constitucional em permanência de órgão legislativo – impõe que a situação de expetativas fundadas cuja tutela se reclama resista a um conjunto de quatro testes:
«Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário o que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão n.º 287/90 – e importa ter este dito presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, «não há (...) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente realizados» (v. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 285/2010)
Cabe-nos, pois, sindicar a alteração legislativa na aceção colocada, tendo em vista divisar se existe, ou não, uma lesão de expetativas jurídicas, sedimentadas de forma justificada e de conteúdo atendível, cuja proteção se imponha pelo estatuto constitucional de tutela material da confiança.
2.3.3. A primeira questão que desde logo cumpre assinalar é que, se a LOE2012 limitou a dedutibilidade de prejuízos fiscais a 75% do lucro libertado em cada um dos nos anos de reporte, por contrapartida aumentou o período em que esse reporte é possível de quatro para cinco anos. A Lei nova permite também que a parte dos prejuízos não-utilizados no ano "1" por força da limitação anual transite para os exercícios subsequentes de acordo com o hiato alargado, admitindo o seu abatimento a lucros em idênticos termos (cfr. artigo 52.º, n.º 2 do CIRC).
Assim e em bom rigor, ao abrigo da Lei nova os prejuízos fiscais são passíveis de ser reportados em condições económicas semelhantes às que se observavam na legislação antiga, apenas se impondo uma receita mínima de IRC, periódica/anual, durante o período de reporte de prejuízos. Logo por aqui, pois claro, observamos que nenhuma expetativa legítima de A… SA, ou de qualquer outro operador, foi ferida de forma significativa pela nova legislação tributária.
Em segundo lugar, cabe relembrar, uma vez mais, que o juízo de inconstitucionalidade do Tribunal arbitral respeita ao reporte de prejuízos fiscais decorrentes de ajustamentos do valor de ativos financeiros detidos pelo sujeito passivo nas condições do artigo 18.º, n.º 9, alínea a) do CIRC. Porque se reportam a variações (negativas) da cotação bolsista (mensuração por justo valor), as perdas ou o direito a reportá-las em lucros de exercícios subsequentes em nada se referem a atividades de investimento do sujeito passivo ou a qualquer fenómeno por ele controlado ou perspetivado. Os prejuízos são consequência, pura e simplesmente, de oscilações do preço de negociação das participações financeiras em mercado, sem que o sujeito passivo as pudesse controlar ou, por inerência, sem que pudesse esperar que resultassem em ganhos ou perdas.
Dito de outro modo, os prejuízos decorrentes das variações de valor de ações cotadas, se verificados, não conformam um resultado que fosse decorrência de uma decisão de investimento ou de qualquer outra forma de empenho de recursos do operador económico. Tanto menos os prejuízos se podem entender verificados na perspetiva de o ordenamento jurídico-fiscal se manter estável e permitir a sua dedução pela totalidade do lucro da empresa em anos subsequentes.
No hemisfério oposto, o fenómeno é puramente incidental e alheio às ações-atuações organizadas do sujeito passivo, pelo que a expetativa de poder vir a abater as perdas a 100 % dos lucros de um ano futuro, se pode ter orbitado pela mente dos administradores em alguma altura, não se pode dizer juridicamente fundada ou apta a reclamar por tutela jurídica autónoma em face da nova redação atribuída ao artigo 52.º, n.º 2 do CIRC.
O fundamento do Tribunal arbitral é, em última aceção, intrigante: o acórdão parece pressupor que as participações financeiras foram detidas e as perdas geradas em A…, SA por força de uma decisão intencional de gestão de gerar perdas assente na expetativa de, sob a continuidade do regime fiscal então vigente, no futuro virem a ser reportadas, absorvendo 100% dos proveitos e ganhos de atividade de um dado ano, para, por essa via, eliminarem in toto a dívida de IRC relativa a esse exercício específico.
A criação propositada de prejuízos – que não se afigura ter sido sequer possível, ressalvamos, em face do caráter externo das perdas por oscilação de cotação bolsista –, teria de ser qualificada neste contexto como um ato de governação profundamente irracional e achar-se-ia radicalmente desenquadrado do escopo lucrativo que é próprio das sociedades comerciais (cfr. artigo 980.º do Código Civil). Assim e por inerência, esse facto nunca seria apto a constituir causa de expetativas jurídicas legítimas que pudessem impor a inaplicabilidade da Lei nova por cobertura do princípio da segurança jurídica: nos antípodas, a única utilidade programática deste desenho no contexto de gestão da empresa radicaria na erosão artificial da base de incidência de IRC, nada mais, o que, associado à sua irracionalidade enquanto ato de administração, poderia até conduzir ao âmbito de aplicação da cláusula geral antiabuso patenteada no artigo 38.º da Lei Geral Tributária, por sinalizar intrínseca reprovação jurídica no domínio tributário.
Finalmente, vale a pena relembrar que a LOE2012 surgiu num cenário de grande esforço financeiro do país, que impôs medidas de diminuição de despesa e de adequação da receita, tendo mesmo conduzido à redução de direitos retributivos prima facie protegidos pelo princípio da proteção da confiança tendo por referente legitimador essa situação de contingência. A lesão do âmbito de efetividade de direitos e interesses tutelados mereceu mesmo aprovação pelo Tribunal Constitucional (v., por exemplo, acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2011, que procedeu à fiscalização dos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei n.º 55-A/2010 de 31.12 — Lei do Orçamento de Estado para 2011). É certo que o juízo de constitucionalidade da regressão de direitos remuneratórios se estribou, em grande parte, no carácter aparentemente transitório das soluções legislativas, mas não é menos certo que, in casu, o reporte localiza-se em 2013 e que está em causa o momento da entrada em vigência do diploma (2012), o que admite a contextualização do juízo de constitucionalidade a esse tempo.
Pois bem, um quadro legal como o ora sindicado, que, se garantiu a não-afectação de 25% do lucro tributável em cada exercício do período de reporte, alargou o período em que a repercussão de prejuízos é admitida até 75% daquele lucro, cinge-se à proteção de um mínimo de receita fiscal periódica. Por esse motivo, não apenas a alteração legislativa configura uma modificação pouco significativa do regime legal pregresso e pode melhor compreender-se como uma medida legislativa de resposta às necessidades financeiras correntes da República no interior daquele grave cenário de emergência, que a justificam também do ponto de vista constitucional de acordo com a pauta de proporcionalidade lato sensu imposta pelo artigo 18.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.
Merece aqui transcrição o acórdão n.º 304/2001 deste Tribunal, também chamado à colação no aresto supracitado:
"Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam "tocadas" relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte."
Nesse pressuposto, o juízo de inconstitucionalidade reprova também no quarto dos testes que a Jurisprudência constitucional tem definido como condição de operatividade do princípio da tutela da confiança: localizada em 2012 e produzindo efeitos nos reportes de prejuízos produzidos nesse ano e no ano de 2013, a alteração legislativa, assegurando um mínimo de receita, justifica-se por interesses coletivos e de ordem pública num contexto de esforço de recuperação financeira das contas públicas, o que igualmente reforça o juízo de compaginação com a Constituição da norma de vigência da alteração ao artigo 52.º, n.º 2 do CIRC constante do 116. º, n.º 2 da LOE2012.
Resta concluir, portanto, que: (i) não se observa uma alteração radical da Lei que tivesse modificado substancialmente o quadro fiscal de reporte de prejuízos, (ii) não se observa que existissem expetativas juridicamente atendíveis do sujeito passivo de que a alteração legislativa não se verificasse, (iii) não se observa que o sujeito afetado tenha empenhado recursos próprios sob essas legítimas expetativas, sofrendo urna situação de dano irreversível por força da alteração legislativa, e (iv) não se afigura que a alteração se mostre infundada ou como uma lesão desproporcionada de interesses particulares, também face às razões de interesse público que a determinaram.
Concluímos, enfim, que a alteração legal e o seu regime de entrada em vigor (retrospetivo) não entrou em ruptura, em nenhuma dimensão equacionável, com o princípio do Estado de Direito democrático constitucionalmente recenseado ou com o princípio da segurança jurídica e de tutela da confiança que dele dimana (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), cumprindo decidir em conformidade.”
Conclui-se, assim, que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC é aplicável a prejuízos/lucros derivados de variações de justo valor de activos financeiros mensurados por justo valor e reconhecidos através de resultados, com a consequente aplicação do limite de dedução aí previsto, à data dos factos, de 75% do respectivo lucro tributável. E, bem assim, que essa limitação se aplica a prejuízos fiscais apurados em exercícios passados.
Pelo que, neste âmbito, improcede a pretensão deduzida pela Requerente.
5. QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), nem se tendo verificado quaisquer outras inconstitucionalidades além da acima identificada.
6. EM CONCLUSÃO - ANULAÇÃO PARCIAL DO ACTO TRIBUTÁRIO
A. SOBRE A CONSIDERAÇÃO NO APURAMENTO DA MATÉRIA COLECTÁVEL DE 2013 DOS PREJUÍZOS FISCAIS RELATIVOS A 2011 E 2012 NO MONTANTE TOTAL DE € 12.065.044,36
Este Tribunal Arbitral conclui pela ilegalidade da não consideração de prejuízos fiscais reportados pela Requerente em 2011 e 2012, no montante total de € 12.065.044,36, resultantes da política contabilística imposta pela AT, de reconhecimento das variações de cotação de activos financeiros, in casu de instrumentos de capital próprio, em contas de resultados (gastos e rendimentos), tendo em conta as reduções de justo valor na sua totalidade (por inaplicabilidade do artigo 45.º, n.º 3, em vigor à data dos factos).
Porém, tendo em conta a limitação vigente à data, prevista no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, da dedução de prejuízos fiscais a 75% do valor do lucro tributável, não existem correcções a fazer ao acto tributário de liquidação de IRC aqui impugnado, referente ao período de tributação de 2013.
Com efeito, o valor de prejuízos fiscais aceite pela AT, de € 4.748.161,35, embora significativamente inferior ao apurado pela Requerente e confirmado por este Tribunal, esgotou o limite de dedutibilidade imposto pelo artigo 52.º, n.º 2 do Código do IRC, que, por referência ao lucro tributável oficiosamente fixado de € 5.644.645,93, se cifrou em € 4.233.484,45. Não podem, deste modo, ser deduzidos prejuízos fiscais além do montante em que o foram, de € 4.233.484,45, não enfermando, por essa razão, o acto tributário e o valor de imposto liquidado da ilegalidade que lhe é apontada. Isto, não obstante o valor dos prejuízos fiscais na esfera da Requerente dever corresponder aos por esta preconizados, o que, porém, não tem repercussões práticas no exercício de 2013 e só pode produzir efeitos em liquidações subsequentes, conquanto os prejuízos não estejam caducados, dado o esgotamento assinalado.
B. SOBRE A NÃO CONSIDERAÇÃO EM 50% DA REDUÇÃO DE JUSTO VALOR DO PERÍODO (2013) € 93.262,00
O lucro tributável corrigido pela Requerida ao nível do Grupo (e, portanto, na esfera da sociedade mãe, aqui Requerente), que, como acima dito, se cifrou em € 5.644.645,43, não teve em conta metade da desvalorização das acções da ESFG, S.A. em 2013. Assim, do valor total dessa redução de justo valor, de € 186.524,00, a Requerida apenas considerou dedutível a quantia de € 93.262,00, por errónea aplicação do direito (artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC).
Deste modo, deve ser subtraído ao lucro tributável da Requerente o valor de € 93.262,00, correspondente à metade da redução de justo valor não considerada pela AT, devendo o lucro tributável fixar-se em € 5.551.383,93 (€ 5.644.645,43 - € 93.262,00), e não como defende a AT em € 5.644.645,93, com a consequente redução do valor proporcional do IRC e juros compensatórios liquidados.
C. SOBRE A NÃO APLICAÇÃO DO LIMITE PREVISTO NO ARTIGO 52.º, N.º 2 DO CÓDIGO DO IRC
Pelas razões acima expendidas, improcede esta pretensão da Requerente.
7. JUROS COMPENSATÓRIOS
O artigo 35.º, n.º 1, da LGT dispõe que os juros compensatórios são devidos “quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Dado que a procedência parcial desta acção arbitral, implica a anulação parcial do acto tributário apenas na medida em que não foi deduzido o valor de € 93.262,00 ao lucro tributável da Requerente do período de 2013 – que por essa via deve passar de € 5.644.645,43 para € 5.551.383,93 –, a liquidação de juros compensatórios deve subsistir, excepto quanto aos juros que incidam sobre essa parte que padece de vício de violação de lei e vai parcialmente anulada.
8. INDEMNIZAÇÃO POR PRESTAÇÃO DE GARANTIA INDEVIDA
A Requerente, ancorada no artigo 53.º da LGT, peticiona o pagamento de uma indemnização, uma vez que, conforme ficou provado, prestou garantia bancária para suspender o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva das quantias de IRC e de juros compensatórios liquidadas.
O artigo 171.º do CPPT estabelece que a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda (n.º 1) e que a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência (n.º 2).
O processo de impugnação judicial abrange, desta forma, a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.
Assumindo-se o processo arbitral como um meio processual alternativo à impugnação judicial, no qual é discutida a legalidade do acto(s) tributário(s) subjacente(s) à dívida exequenda, sempre que os contribuintes optarem pela via arbitral, é neste processo que deve ter lugar o pedido de indemnização por garantia indevida.
Neste sentido se pronuncia a jurisprudência consolidada dos Tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD que afirmam ser a acção arbitral o meio próprio para conhecer e apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida (decisões arbitrais proferidas em 04.11.2013, no processo n.º 66/2013-T, em 18.05.2016, no processo n.º 695/2015-T, em 02.01.2017, no processo n.º 220/2016-T e em 28.06.2017, no processo n.º 508/2016).
Dispõe o artigo 53.º da LGT, que rege o direito a indemnização por garantia indevida, nos seguintes moldes:
“Artigo 53.º da LGT
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”
A situação vertente é enquadrável no n.º 2 deste artigo, dependendo o direito à indemnização por prestação de garantia indevida da constatação de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, como pressuposto constitutivo.
Conforme preconiza o Acórdão do STA, de 21.11.2007, no processo n.º 633/07: “o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal atuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua atuação, não teria sido necessária prestar”.
Resultou provado nos autos que a Requerente prestou garantia bancária para sustação da execução. No entanto, conforme acima salientado, a procedência da acção arbitral é apenas parcial e refere-se à redução do lucro tributável em € 93.262,00 e ao IRC e juros compensatórios correspondentes, pelo que só nessa medida é anulável o acto tributário controvertido. Deste modo, o pedido de condenação da AT ao pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida até ao respectivo cancelamento procede apenas na parte proporcional à anulação do acto, com a limitação do quantum indemnizatório estatuída no artigo 53.º, n.º 3, da LGT.
* * *
Em consequência, mantém-se o acto tributário impugnado, com excepção da parte em que liquida IRC e juros compensatórios sobre a importância de € 93.262,00, que nesse segmento é anulada (v. o disposto no artigo 135.º do CPA, com correspondência no actual artigo 163.º, n.º 1, do novo CPA, por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT).
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
(a) Julgar improcedentes as excepções de incompetência e litispendência (em ambos os casos parciais) suscitadas;
(b) Julgar parcialmente procedente o pedido de pronúncia arbitral, na medida em que o acto tributário liquidou IRC e juros compensatórios sobre um lucro tributável que considerou em excesso o montante € 93.262,00, relativo a 50% da redução de justo valor de activos financeiros mensurados por justo valor reconhecidos através de resultados e, nos mesmos termos, invalidar parcialmente a decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa que confirmou o acto tributário;
(c) Julgar parcialmente procedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de uma indemnização à Requerente por prejuízos decorrentes da prestação de garantia indevida, até ao respectivo levantamento, a liquidar em execução da presente decisão, com o limite do quantum indemnizatório estatuído no artigo 53.º, n.º 3, da LGT, apenas na parte proporcional que respeite ao IRC e juros liquidados em excesso, por desconsideração no cômputo do lucro tributável, do mencionado valor parcial de € 93.262,00;
tudo com as legais consequências.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 729.607,80 (setecentos e vinte e nove mil seiscentos e sete euros e oitenta cêntimos) indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, correspondente ao valor da liquidação de IRC e juros cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 29 de Março de 2022
O Tribunal Arbitral Colectivo,
Alexandra Coelho Martins
Ricardo da Palma Borges
Henrique Fiúza
(vencido, nos termos da declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Como ponto prévio para a elaboração da presente Declaração de Voto, entendo ser de destacar a seguinte passagem da Decisão Arbitral, que considero relevante para o devido enquadramento e permite a redução da fundamentação a efectuar.
“A Requerente não contesta a correcção de acréscimo ao lucro tributável. No entanto, contesta a correcção ao montante de prejuízos dedutíveis em 2013 que também está na origem do acto tributário sindicado. Embora a Requerente afirme ser criticável a posição da Requerida de impor a mensuração ao justo valor em resultados, abstém-se de contestar a correcção, exigindo apenas a coerência no que respeita à correcção do montante de prejuízos fiscais dedutíveis, concomitantemente realizada pela AT.”
De facto, a Requerente não põe em causa a correcção a acrescer ao lucro tributável do exercício de 2013 referente à valorização de um lote de acções detidas em 31 de Dezembro de 2013 por efeito da aplicação do modelo do justo valor através de resultados ao valor das acções cotadas em bolsa.
Embora dizendo não concordar com a lei aplicável, a Requerente não contesta a correcção ao lucro tributável feita pela AT, resultante da necessária aplicação do modelo do justo valor às acções em carteira no dia 31 de Dezembro de 2013, por, tratando-se de acções cotadas em bolsa de valores, no reconhecimento inicial ter usado esse modelo de valorização e, nos termos da normalização contabilística, não ser permitida a alteração de modelo de valorização das respectivas acções.
A correcção fiscal efectuada pela AT, ao lucro tributável do exercício de 2013, tem por base a lei fiscal aplicável: o artigo 20º, nº 1, alínea f) e o artigo 23º, nº 1, alínea i), conjugados com as alíneas a) e b) do nº 9 do artigo 18º do Código do IRC (CIRC).
Artigo 20.º - Rendimentos
1 — Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:
a) ...
...
f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
...
Artigo 23.º - Gastos
1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:
a)...
i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
Artigo 18.º - Periodização do lucro tributável
...
9 — Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.
O lucro tributável assim apurado, está de acordo com a legislação atrás citada, bem como com o artigo 17º do CIRC, sendo a matéria colectável apurada nos termos do artigo 15º do mesmo código.
Artigo 17.º - Determinação do lucro tributável
1 — O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.
2 — Para efeitos do disposto no número anterior, os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do período.
3 — De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
Artigo 15.º - Definição da matéria colectável
1 — Para efeitos deste Código:
a) Relativamente às pessoas colectivas e entidades referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, a matéria colectável obtém-se pela dedução ao lucro tributável, determinado nos termos dos artigos 17.º e seguintes, dos montantes correspondentes a:
1) Prejuízos fiscais, nos termos do artigo 52.º;
2) Benefícios fiscais eventualmente existentes que consistam em deduções naquele lucro;
...
Por sua vez, a dedução de prejuízos fiscais é efectuada dos termos do artigo 52º do CIRC a que é também aplicável o artigo 71º do referido código.
Artigo 52.º - Dedução de prejuízos fiscais
1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação, nos termos das disposições anteriores, são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores.
2 - A dedução a efectuar em cada um dos períodos de tributação não pode exceder o montante correspondente a 75 % do respectivo lucro tributável, não ficando, porém, prejudicada a dedução da parte desses prejuízos que não tenham sido deduzidos, nas mesmas condições e até ao final do respectivo período de dedução.
3 - Nos períodos de tributação em que tiver lugar o apuramento do lucro tributável com base em métodos indirectos, os prejuízos fiscais não são dedutíveis, ainda que se encontrem dentro do período referido no n.º 1, não ficando, porém, prejudicada a dedução, dentro daquele período, dos prejuízos que não tenham sido anteriormente deduzidos.
4 - Quando se efectuarem correcções aos prejuízos fiscais declarados pelo sujeito passivo, devem alterar-se, em conformidade, as deduções efectuadas, não se procedendo, porém, a qualquer anulação ou liquidação, ainda que adicional, de IRC, se forem decorridos mais de cinco anos relativamente àquele a que o lucro tributável respeite.
Artigo 71.º - Regime específico de dedução de prejuízos fiscais
1 — Quando seja aplicável o regime estabelecido no artigo 69.º, na dedução de prejuízos fiscais prevista no artigo 52.º, observa-se ainda o seguinte:
a) ...
b) Os prejuízos fiscais do grupo apurados em cada período de tributação em que seja aplicado o regime só podem ser deduzidos aos lucros tributáveis do grupo, nos termos e condições previstos no n.º 2 do artigo 52.º;
c) ...
No seguimento da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) pelo Decreto-Lei nº 158/2009 de 13 de Julho, o legislador publicou também o decreto-Lei nº 159/2009 da mesma data, para introduzir diversas alterações ao Código do IRC de modo a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC).
Entre as diversas normas contabilísticas que entraram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010 com relevo para os temas em apreço, é de destacar a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 27.
Norma contabilística e de relato financeiro 27
Instrumentos financeiros
Esta Norma Contabilística e de Relato Financeiro tem por base as Normas Internacionais de Contabilidade IAS 32 — Instrumentos Financeiros: Apresentação, IAS 39 — Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração e IFRS 7 — Instrumentos Financeiros — Divulgação de Informações, adoptadas pelo texto original do Regulamento (CE) n.o 1126/2008 da Comissão, de 3 de Novembro.
Sempre que na presente norma existam remissões para as normas internacionais de contabilidade, entende-se que estas se referem às adoptadas pela União Europeia, nos termos do Regulamento (CE) n.o 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de Julho e, em conformidade com o texto original do Regulamento (CE) n.o 1126/2008 da Comissão, de 3 de Novembro.
...
Definições (parágrafo 5)
5 — Os termos que se seguem são usados nesta Norma com os significados especificados:
Activo financeiro: é qualquer activo que seja:
(a) Dinheiro;
(b) Um instrumento de capital próprio de uma outra entidade;
(c) Um direito contratual:
(i) De receber dinheiro ou outro activo financeiro de outra entidade;
ou
(ii) De trocar activos financeiros ou passivos financeiros
...
Mensuração (parágrafos 11 a 22)
11 — Nos termos da presente norma, todos os activos e passivos financeiros são mensurados, em cada data de relato, quer:
(a) Ao custo ou custo amortizado menos qualquer perda por imparidade; ou
(b) Ao justo valor com as alterações de justo valor a ser reconhecidas na demonstração de resultados.
12 — Uma entidade deve mensurar os seguintes instrumentos financeiros ao custo ou ao custo amortizado menos perda por imparidade:
(a) Instrumentos que satisfaçam as condições...
...
(c) Instrumentos de capital próprio que não sejam negociados publi- camente e cujo justo valor não possa ser obtido de forma fiável, bem como contratos ligados a tais instrumentos que, se executados, resultem na entrega de tais instrumentos, os quais devem ser mensurados ao custo menos perdas por imparidade.
...
15 — Uma entidade deve mensurar ao justo valor todos os instrumentos financeiros que não sejam mensurados ao custo ou ao custo amortizado nos termos do parágrafo 12 com contrapartida em resultados.
16 — Exemplos de instrumentos financeiros que sejam mensurados ao justo valor através de resultados:
(a) Investimentos em instrumentos de capital próprio com cotações divulgadas publicamente, uma vez que o parágrafo 12 (c) define a mensuração ao custo apenas para os restantes casos;
...
17 — Uma entidade não deve alterar a sua política de mensuração subsequente de um activo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse método.
18 — Se deixar de estar disponível uma mensuração fiável do justo valor para um instrumento de capital próprio mensurado ao justo valor, a quantia escriturada do justo valor torna-se, à data da transição, a quantia de custo para efeitos da adopção do modelo do custo amortizado.
...
Imparidade (parágrafos 23 a 29)
Reconhecimento (parágrafos 23 a 26)
23 — À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os activos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objectiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.
...
Data de eficácia (parágrafo 60)
60 — Uma entidade deve aplicar esta Norma a partir do primeiro período que se inicie em ou após 1 de Janeiro de 2010.
Feita a descrição das principais normas aplicáveis ao processo, quer de carácter tributário quer de carácter contabilístico, passamos à análise da DECISÃO ARBITRAL e das questões que importa decidir.
1. A consideração no apuramento da matéria colectável do exercício de 2013 dos prejuízos fiscais determinados em relação aos exercícios de 2011 e de 2012
Com referência aos exercícios de 2010, de 2011 e de 2012, a Requerente seguiu o estipulado nas normas contabilísticas e tributárias acima transcritas, isto é, contabilizou em rendimentos e/ou em gastos as diferenças dos valores das cotações das acções, cotadas em mercados regulamentados (bolsa), apuradas nos primeiros e nos últimos dias de cada período de tributação, de acordo com o modelo do justo valor através dos resultados.
Os resultados apurados pela utilização do modelo do justo valor em partes de capital, para além dos respectivos efeitos nos resultados contabilísticos, tiveram também efeitos nos respectivos resultados fiscais.
Porém, em 2013 a Requerente alega ter alterado o modo de contabilização das valorizações/desvalorizações das acções.
Como se pode verificar pela leitura da NCRF 27 acima parcialmente transcrita, tal alteração não lhe era permitida, conforme dispõe o seu parágrafo 17.
A mudança de modelo de valorização do modelo do justo valor através de resultados para outro modelo de valorização, só poderia ser para o modelo do custo ou do custo amortizado menos qualquer perda por imparidade, única alternativa possível dentro da NCRF 27, que só seria viável se as acções em causa tivessem deixado de estar cotadas em bolsa de valores, nos termos do parágrafo 18 da referida NCRF 27 e também da alínea c) do parágrafo 12 da mesma norma.
Ora, tal não aconteceu, pelo menos no exercício de 2013.
Na DECISÃO ARBITRAL é feita a afirmação que de seguida se transcreve na qual são incluídas a IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração e a IFRS 9 – Instrumentos Financeiros
“A mensuração ao justo valor de instrumentos financeiros pode ocorrer por contrapartida de resultados mas também pode ocorrer por contrapartida de capitais próprios: categoria FVPL (“Fair Value Through the Statement of Profit or Loss”) ou categoria FVOCI (“Fair Value through Other Comprehensive Income”). Ambas as categorias estavam previstas na norma contabilística então aplicável - IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração -, actualmente substituída pela IFRS 9 – Instrumentos Financeiros.”
Não se entende o motivo pelo qual o Tribunal inclui na fundamentação da decisão as referidas normas internacionais de contabilidade (NIC) que não foram usadas pela Requerente na sua defesa nem foram aplicadas nos exercícios de 2011 e de 2012, nem sequer no exercício de 2013, conforme se pode verificar das Demonstrações Financeiras apresentadas anualmente, nas quais em 2011 e em 2012 a Requerente mencionou no Anexo que:
2.1. As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...
2.2. Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.
3.4 As participações financeiras ao justo valor: estão os activos e passivos financeiros não incluídos nas categorias do “custo” ou “custo amortizado”, sendo que as variações no respectivo justo valor são registadas em resultados como perdas por reduções de justo valor e ganhos por aumento de justo valor.
14. Activos ao justo valor – Na rubrica de “participações financeiras – outros métodos” estão valorizados ao Justo Valor, os quais as suas variações em 31 de Dezembro... são detalhadas conforme seguinte:
Relação das acções detidas: D… SGPS, SA e F…...
As passagens do Anexo às Demonstrações Financeiras do exercício de 2013 de igual teor às apresentadas em 2011 e 2012, foram apresentadas como segue:
2.1. As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...
2.2. Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.
3.4 As participações financeiras ao justo valor: estão os activos e passivos financeiros não incluídos nas categorias do “custo” ou “custo amortizado”, sendo que as variações no respectivo justo valor são registadas em capitais próprios.
14. Activos ao justo valor – Na rubrica de “Outros Instrumentos Financeiros” estão valorizadas ao Justo Valor, os activos detalhados da seguinte forma:
Relação das acções detidas: D… SGPS, SA e F…..
...
Os ajustamentos de valor das acções da D…, SGPS, SA e da F…, SA foram reflectidos directamente na rúbrica de ajustamentos em activos financeiros, em capitais próprios, tendo sido reajustados os comparativos das demonstrações financeiras.
Como se pode ver, a Requerente, para além de em 2011 e em 2012, também em 2013 aplicou o SNC na preparação das suas demonstrações financeiras; também em 2013 não existiram quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC; também em 2013 os instrumentos financeiros foram valorizados ao justo valor; e, finalmente, em 2013 é dito que os ajustamentos de valor das acções da D…, SGPS, SA e da F…, SA foram reflectidos directamente na rúbrica de ajustamentos em activos financeiros, em capitais próprios (ao invés de os reflectir em resultados como fez em 2011 e em 2012), tendo sido reajustados os comparativos das demonstrações financeiras.
Resumindo, em 2013 todos os procedimentos contabilísticos e fiscais foram iguais aos de 2011 e de 2012, à excepção de serem considerados em resultados as variações do valor das acções da D… e da F…, levando naquele exercício essas variações aos capitais próprios.
Porém, nenhuma justificação foi dada pela Requerente nas suas Demonstrações Financeiras (Anexo) para essa mudança de política contabilística.
De facto, a Requerente usou em 2013 o mesmo modelo de valorização que usou em 2010, em 2011 e em 2012, sendo a única diferença o facto de ter contabilizado nos capitais próprios a valorização ocorrida nesse ano (2013) nas acções cotadas em bolsa, quando antes (em 2010, 2011 e 2012) contabilizou em resultados as desvalorizações das mesmas acções cotadas em bolsa.
Coincidência ou não, enquanto o modelo do justo valor através de resultados contribuiu para reduzir os valores do lucro tributável, ele foi aplicado; quando esse mesmo modelo gerou valorizações que fizeram aumentar os resultados e consequentemente o lucro tributável, a Requerente continuou a usá-lo, embora passando a contabilizar o ganho apurado pela variação das respectivas cotações em conta dos capitais próprios.
Mas tal não é possível, por frontal oposição da lei, conforme se esclareceu e fundamentou.
Como se pode confirmar acima, o parágrafo 17 da NCRF 27 não permite que uma entidade altere a sua política de mensuração subsequente de um activo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse modelo.
Uma vez que na Decisão Arbitral foi sugerida a hipótese de ser usada a IAS 39, deve dizer-se que também esta NIC, na sua alínea b) do parágrafo 50 determina que “uma entidade não deve reclassificar um instrumento financeiro, retirando-o da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos se, aquando do reconhecimento inicial, tiver sido designado pela mesma entidade como pertencendo à categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos.
A haver circunstâncias excepcionais que abrissem a porta à reclassificação destes activos mediante retirada da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos, elas nunca foram declaradas, alegadas e provadas. Acresce ainda que, para a Requerente poder aplicar a IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração, teria de aplicar também a IAS 32 – Instrumentos Financeiros: Apresentação, e a IFRS 7 - Instrumentos Financeiros: Divulgação de Informações, deixando de aplicar a NCRF 27 - Instrumentos Financeiros.
E não consta do processo a existência comprovada de quaisquer circunstâncias excepcionais que determinariam a mudança de critério com a respectiva reclassificação, nem a opção pela aplicação das três normas internacionais de contabilidade (NIC) indicadas.
A Requerente limitou-se a usar o critério utilizado nos anos anteriores (aplicação do justo valor com impacto nos resultados) e, perante o rendimento positivo gerado em 2013, limitou-se a contabilizar o rendimento numa conta de capitais próprios ao invés de o contabilizar numa conta de rendimentos, como lhe impunha a normalização contabilística e a lei fiscal.
Aliás, a Requerente declarou no Anexo às Demonstrações Financeiras do exercício de 2013 que “As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...” e ainda que “Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.”
Ainda assim, caso a normalização contabilística e as regras fiscais permitissem fazer retroagir os efeitos da reclassificação dos investimentos financeiros em causa – acções cotadas em mercado regulamentado – tendo a liquidação adicional de IRC do exercício de 2013 sido efectuada no ano de 2018 e sendo o prazo de caducidade do direito à liquidação de 5 anos, já não seria possível proceder à correcção dos resultados fiscais de 2011 e de 2012 tempestivamente fixados.
Os resultados fiscais fixados com referência a um dado exercício – bem ou mal – só podem ser corrigidos dentro do prazo do direito à liquidação. Nos termos da lei aplicável, o prejuízo fixado com referência ao exercício de 2011 só era rectificável até ao dia 31 de Dezembro de 2016 e o fixado com referência ao exercício de 2012 só era rectificável até ao dia 31 de Dezembro de 2017. No ano de 2018 já nenhum dos resultados fiscais em causa poderiam ser alterados.
O princípio da segurança jurídica impede que um resultado fixado com referência a um dado período, não possa ser eternamente alterado, só porque alguém descobriu que alguns anos atrás se cometeu um erro que devia ser corrigido.
Na hipótese de, em caso semelhante, o reporte de prejuízos ser inferior aos fixados, por certo, nem a Requerente nem o Tribunal iria defender que passados 6 ou 7 anos da sua fixação a AT pudesse corrigir os prejuízos a reportar.
Pelo exposto, fica claro que não me revejo na fundamentação produzida pelo tribunal, não podendo por isso, fazer adesão à posição vencedora.
Na sequência do Acórdão n.º 55/2022 proferido pelo Tribunal Constitucional, em 20 de janeiro de 2022, já transitado em julgado, que determinou a reforma da decisão proferida nos presentes autos, o Tribunal reviu a sua posição no sentido aqui defendido, razão pela qual passei a dar o meu acordo à decisão, embora mantenha a devida distância em relação à fundamentação produzida.
2. Inaplicabilidade do regime do artigo 45º, nº 3, do Código do IRC em vigor à data dos factos, aos gastos derivados de variações de activos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor
Reconhecendo a criatividade de alguma fundamentação das decisões proferidas no âmbito do CAAD nos processos mencionados na presente pronúncia arbitral, bem como nos mencionados acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), porque no fundamental não me revejo nelas, entendi expor o meu desacordo com a fundamentação seguida pelo Tribunal, sem prejuízo de, no que diz respeito a este assunto, entenda que o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado procedente, tal como o Tribunal Arbitral o faz.
Em resumo, a argumentação usada nas pronúncias arbitrais emitidas no âmbito do CAAD, bem como dos acórdãos do STA referidas na presente pronúncia arbitral, centram a sua posição em dois vectores:
1. O nº 3 do artigo “45º - Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais” foi criado com a intenção de combater a fraude e a evasão fiscal que a dedução das menos-valias com a transmissão onerosa de instrumentos financeiros poderia proporcionar/propiciar; e
2. Como o justo valor é determinado por um mercado regulado, não dependendo do jogo de interesses do contribuinte, e por isso não permitindo a evasão fiscal, a limitação imposta pelo nº 3 do artigo 45º não faz sentido no caso das perdas do justo valor em participações sociais.
Esta leitura do nº 3 do artigo 45º do CIRC, a meu ver, enferma de um erro que é o de considerar que este número é uma norma genérica de combate à evasão fiscal, com o qual não posso concordar.
Feito o levantamento histórico da lei, esta norma foi criada com um fim bem objectivo: quando em 2002 se passou a excluir da tributação metade das mais-valias realizadas com a alienação onerosa de partes de capital, o legislador não acautelou o uso abusivo da realização de menos-valias com a alienação onerosa de partes de capital, como forma de diminuir o lucro tributável e o imposto a pagar. Detectada a situação, foi no ano seguinte criado o nº 3 do artigo 45º para travar o abuso da lei detectado no ano anterior (combate à evasão fiscal).
Assim, a partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que tenham procedido à transmissão onerosa de partes de capital e que tenham feito o reinvestimento dos valores de realização, foram tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado passou a ser considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
Com o devido respeito pelas fundamentações produzidas nas decisões referenciadas, entendo que foi este o motivo da criação do nº 3 do artigo 45º do CIRC e não as justificações e argumentação que são produzidas nas pronúncias arbitrais e nos acórdãos dados como referência na presente pronúncia arbitral.
É o que tentaremos demonstrar de seguida.
A tributação da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo fixo tangível (à data imobilizado corpóreo) foi, desde a criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), objecto de um tratamento fiscal mais favorável que outros tipos de rendimentos.
Desde a sua criação (1 de Janeiro de 1989) até à publicação da Lei nº 71/93 de 26 de Novembro (Lei do Orçamento Suplementar ao Orçamento do Estado para 1993) a diferença positiva entre as mais-valias e as menos valias realizadas em cada ano, era excluída da tributação em IRC na sua totalidade.
Após a alteração legislativa de 1993, o regime das mais-valias deixou de constituir uma exclusão da sua tributação, passando a consubstanciar um mero diferimento da tributação. Isto é, no exercício em que ocorria a alienação onerosa dos elementos do activo imobilizado corpóreo, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias não concorria para a formação do lucro tributável, mas, em contrapartida, a reintegração dos bens nos quais se tenha concretizado o reinvestimento dos valores de realização, não era fiscalmente dedutível na parte correspondente à mais-valia que, para o efeito, foi imputada ao valor de aquisição.
Foi uma solução que pretendia introduzir mais justiça na atribuição deste benefício, mas que trouxe, na prática, mais trabalho administrativo aos contribuintes e maiores dificuldades à Administração Fiscal no seu controlo.
A solução legislativa que passou a prever a tributação de apenas metade do saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias geradas num dado exercício, sujeito ao reinvestimento do valor de realização, foi incorporada no código do IRC pela lei do Orçamento do Estado para o ano de 2002, a Lei nº 109-B/2001 de 29 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 45º do CIRC seria alterado como segue, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2002:
“Artigo 45.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 – Para efeitos de determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado corpóreo, detidos por um período não inferior a um ano, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no exercício anterior ao da realização, no próprio exercício, ou até ao fim do segundo exercício seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos elementos seja reinvestido na aquisição, fabricação ou construção de elementos do activo imobilizado corpóreo afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º.
2 - ...............................................................................................................................................
3 - ...............................................................................................................................................
4 – O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de partes de capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial com sede ou direcção efectiva em território português ou ainda em títulos do Estado português;
b) As partes de capital alienadas devem ter sido detidas por um período não inferior a um ano e corresponder a, pelo menos, 10% do capital social da sociedade participada.
5 – Para efeitos do disposto nos n.ºs 1, 2 e 4, os contribuintes devem mencionar a intenção de efectuar o reinvestimento na declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 109.º, do exercício da realização, comprovando na mesma e nas declarações dos dois exercícios seguintes os reinvestimentos efectuados.
6 – Não sendo concretizado, total ou parcialmente, o reinvestimento até ao fim do segundo exercício seguinte ao da realização, considera-se como proveito ou ganho desse exercício, respectivamente, a diferença ou a parte proporcional da diferença prevista nos n.ºs 1 e 4 não incluída no lucro tributável, majorada em 15%.
Ao longo do ano de 2002, o Estado constatou que o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias realizadas em cada ano era tributadas em metade do seu valor, na condição de o sujeito passivo reinvestir a totalidade do valor de transmissão dos bens que geraram as respectivas mais-valias e menos-valias. Mas também constatou que no caso em que fosse negativo o saldo entre as mais-valias e as menos-valias geradas em cada ano, o sujeito passivo poderia deduzir a totalidade desse saldo negativo.
Detectada esta situação de iniquidade e ineficiência da solução legislativa criada em 2001, o legislador tratou de corrigir o erro em 2002, para entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 2003. Tal correcção da iniquidade foi efectuada pela lei do Orçamento do Estado para o ano de 2003 pela Lei nº 32-B/2002 de 30 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 42º do CIRC seria alterado como segue:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 - ...
2 - ...
3 - A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
Com esta alteração, a lei, no que respeita à tributação das mais-valias obtidas com a transmissão de partes de capital de sociedades com sede ou direcção efectiva em território português, ficou mais equilibrada. O princípio da simetria vingou.
A partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que procedam à transmissão onerosa de partes de capital e façam o reinvestimento dos valores de realização, serão tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado será considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
A Lei do Orçamento do Estado para 2006 (Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro) veio alterar o nº 3 ao artigo 42º do código do IRC, ficando como a seguir se transcreve:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — …
2 — ….
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
4 — …
Tal alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que podemos acrescer as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho.
As alterações mais relevantes para apreciação do caso, são as a seguir indicadas, com os artigos já renumerados para efeitos da sua republicação:
Artigo 18º
Periodização do lucro tributável
1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 - …
9 — Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando- se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.
10 - …
Artigo 20º
Rendimentos
1 — Consideram- se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:
a) …
f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
g) …
h) Mais-valias realizadas;
i) …
Artigo 21.º
Variações patrimoniais positivas
1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;
Artigo 23.º
Gastos
1 — Consideram- se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:
a) . . .
i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
j) …
l) Menos-valias realizadas;
Artigo 24.º
Variações patrimoniais negativas
Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;
Artigo 45.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:
a) …
2 — …
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
NOTA: o nº 3 do artigo 42º não foi alterado pelo Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, mantendo o texto que se encontrava em vigor desde 1 de Janeiro de 2006.
Artigo 46.º
Conceito de mais-valias e de menos-valias
1 — Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:
a) Activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda;
b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º
4 - …
5 — São assimiladas a transmissões onerosas:
a) …
b) As mudanças no modelo de valorização que sejam relevantes para efeitos fiscais, nos termos do n.º 9 do artigo 18.º, e que decorram, designadamente, de reclassificação contabilística ou de alterações nos pressupostos referidos na alínea a) do n.º 9 deste mesmo artigo.
Artigo 48.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de activos fixos tangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, detidos por um período não inferior a um ano, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no período de tributação anterior ao da realização, no próprio período de tributação ou até ao fim do segundo período de tributação seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos activos seja reinvestido na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º
2 — . .
3 — . . .
4 — O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de participações no capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial ou em títulos do Estado Português, ou na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, nas condições referidas na parte final do n.º 1;
b) . . .
É no quadro jurídico apresentado que importa aferir se as correcções efectuadas pela Requerida ao lucro tributável da Requerente, por referência ao período de tributação de 2013, enfermam de alguma ilegalidade.
Em resumo, poder-se-á dizer que, a questão que vem colocada se prende com a dedutibilidade como gasto fiscal dos gastos registados com os ajustamentos que decorreram da aplicação do justo valor às participações sociais detidas pela Requerente em 31 de Dezembro de 2013.
Mais precisamente, o que cabe ao Tribunal aferir é se às perdas apuradas com a utilização do modelo do justo valor às partes de capital detidas em 31 de Dezembro de 2013 pela Requerente é aplicável, ou não, a limitação da dedução a metade do seu valor prevista no nº 3 do artigo 45º do código do IRC.
Para tal, haverá que saber se a perda (ou gasto) em causa é caracterizada como um “gasto resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 23º do CIRC ou se se trata de uma menos-valia enquadrável na alínea l) do mesmo número e artigo.
Caracterizado o gasto como pertencente a um tipo ou a outro, ter-se-á encontrado a resposta à questão colocada.
A lei (Decreto-Lei nº 442-B/88) que trata as mais-valias e as menos-valias em IRC data de 30 de Novembro de 1988 e entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1989. A tributação das mais-valias e menos-valias foi sofrendo várias alterações e ajustamentos para chegar em 2010 aos textos que são reproduzidos acima.
O nº 3 do artigo 45º do código do IRC foi criado para vigorar a partir de 1 de Janeiro de 2003 com a intenção de balancear a dedução de apenas metade das menos-valias geradas com a transmissão de partes de capital, com a não tributação de metade das mais-valias geradas com a transmissão de activos do mesmo tipo, de acordo com o nº 4 do artigo 48º, que tinha sido criado um ano antes.
Ou seja, estando num prato da balança uma norma que, sob condição de reinvestimento do valor de realização, previa a tributação de apenas metade da diferença positiva das mais-valias e das menos-valias geradas com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 4 do artigo 48º), o legislador colocou no outro prato da balança uma norma que previa a dedução de apenas metade da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias gerada com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 3 do artigo 45º). Este equilíbrio da lei é característica de um sistema fiscal justo e equitativo.
Assim, a partir de 1 de Janeiro de 2003, sob condição de reinvestimento do valor de realização, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais é tributada em metade do seu valor; e a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais é também dedutível para efeitos fiscais em metade do seu valor.
De uma forma simples e fácil de ser entendida, pode dizer-se que se no processo de cálculo do saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias for obtido um valor positivo (na condição de haver o reinvestimento do valor da realização) apenas será incorporado (acrescido) no cálculo do lucro tributável metade desse valor. No caso de ser obtido um saldo negativo, apenas será incorporado (deduzido) no cálculo do lucro tributável metade desse valor. Uma solução simples, equitativa e justa.
Cumpre lembrar que as normas em referência entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2002 e em 1 de Janeiro de 2003.
No ano de 2005, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2006, foi alterado o nº 3 do artigo 42º que passou a ter a seguinte redacção, tendo-lhe sido acrescentada a parte a sublinhado.
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
Tal alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, e no contexto de uma transmissão onerosa, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que, como se disse já, podia acrescer-se as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2010 ou no período de tributação com início posterior a esta data.
Esta nova lei, veio claramente distinguir os ganhos considerados como mais-valias, e as perdas como menos-valias, dos ganhos e as perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em investimentos financeiros, entre os quais se destacam as participações sociais cotadas em mercados regulados.
A nova lei – alínea b) do nº 1 do artigo 46º - refere de forma clara que os ganhos e as perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais não são mais-valias nem menos-valias.
Como tal, sendo o nº 3 do artigo 45º do CIRC uma norma aplicável às menos-valias, fica claro que não é aplicável às perdas apuradas pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais.
Porque, como se disse acima, tal norma, ainda que alterada em 2005, teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que, repete-se, pode acrescentar-se as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
E não era crível que em 2005 o legislador tivesse previsto a entrada em vigor do SNC em 2010 e tivesse introduzido alterações no IRC, por forma a, antecipadamente e com muitos anos de distância, ter colocado na lei as perdas geradas com a utilização do justo valor nos investimentos financeiros, no caso, às participações sociais cotadas em bolsa.
Assim, não sendo aplicável o nº 3 do artigo 45º do CIRC às perdas geradas com a utilização do justo valor na valorização das participações sociais cotadas em bolsa, assim como não é aplicável o nº 4 do artigo 48º do mesmo código, os ganhos são tributados pela totalidade e as perdas são também deduzidas na totalidade para efeitos fiscais.
Motivo pelo qual assiste razão à Requerente, devendo o pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente no que ao presente tema diz respeito, devendo a desvalorização das acções da ESFG verificadas no exercício de 2013 ser considerada no cálculo do lucro tributável pela totalidade do seu valor, €186.524,00, e não por metade do mesmo, ou seja, €93.262,00.
Dito isto, embora não me reveja na fundamentação produzida pelo Tribunal, entendo que com a decisão tomada se faz justiça, ao prever a aceitação como gasto para efeitos fiscais do valor resultante da aplicação do justo valor em activos financeiros, com referência aos resultados no exercício de 2013.
Henrique Fiúza
Economista
DECISÃO ARBITRAL
Os árbitros designados para formarem o Tribunal Arbitral, Dra. Alexandra Coelho Martins, árbitro presidente, Dr. Ricardo da Palma Borges, designado pela Requerente, e Professor Henrique Fiúza, designado pela Requerida, acordam no seguinte:
I. RELATÓRIO
A..., S.A., sociedade dominante do “Grupo Fiscal B...”, doravante “Requerente”, pessoa colectiva número ..., com sede na Av. ..., n.º..., ..., ...-... Lisboa, veio, na sequência da notificação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa apresentada em relação à liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (”IRC”) e dos juros compensatórios inerentes, relativos ao exercício de 2013, no valor de € 729.607,80, requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo e deduzir pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 10.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, com as alterações subsequentes, e dos artigos 1.º e 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.
A Requerente peticiona a declaração de ilegalidade e anulação da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa, bem como da liquidação adicional de IRC e de juros compensatórios a que aquela respeita. Pretende ainda ser indemnizada pelos prejuízos decorrentes da prestação de garantia indevida, de acordo com o disposto no artigo 53.º da Lei Geral Tributária (“LGT”).
Em 18 de Março de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 25 de Março de 2019.
A Requerente designou como árbitro o Dr. Ricardo da Palma Borges, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), do RJAT.
Nos termos do disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea b), e n.º 3 do RJAT, e dentro do prazo previsto no artigo 13.º, n.º 1, a dirigente máxima do serviço da AT designou como árbitro o Professor Henrique Fiúza.
Na sequência do requerimento apresentado pelo Professor Henrique Fiúza para que o árbitro presidente fosse designado pelo Conselho Deontológico, foi, por despacho de 27 de Maio de 2019, do Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico, designada a Dra. Alexandra Coelho Martins nessa qualidade, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, alínea b), II.ª parte do RJAT.
Todos os árbitros comunicaram a aceitação do encargo, tendo o Exmo. Presidente do CAAD informado as partes dessa designação em 28 de Maio de 2019, para efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT.
Em 18 de Junho de 2019, não tendo as partes manifestado oposição, o Tribunal Arbitral Colectivo ficou constituído.
POSIÇÃO DA REQUERENTE
Em 2013, a Requerente passou a reconhecer as variações de valor (de cotação) dos activos financeiros mensurados ao justo valor apenas em capitais próprios, sem as reflectir em resultados, contrariamente ao que vinha a registar até então, alteração que, por via da apresentação de declarações de substituição, produziu efeitos retroactivos aos anos 2010, 2011 e 2012.
A Requerente não discute a posição da AT, que recusou esta mudança alicerçada no princípio da consistência e coerência da política contabilística.
Discorda, no entanto, que o reconhecimento em resultados preconizado pela AT, em relação às variações de cotação dos activos da sua carteira de investimentos no exercício de 2013, ano em que essas variações foram globalmente positivas, não tenha em conta os prejuízos fiscais acumulados do grupo que resultam, de forma consistente, da aplicação do mesmo critério aos anos antecedentes, 2011 e 2012, cujas variações foram negativas.
Para a Requerente, a AT emprega critérios contraditórios, pois ao mesmo tempo que rejeita a alteração de política contabilística por forma a concluir pelo acréscimo do lucro tributável em relação ao exercício de 2013, invoca as declarações de substituição que reduziram de forma significativa os seus prejuízos fiscais com origem nos exercícios de 2011 e 2012, em concretização dessa alteração de política contabilística, pelo expurgo das variações de cotação dos resultados.
Segundo a Requerente, tendo a inspecção tributária fundamentado que a contabilização em 2010, 2011 e 2012 das variações de cotação através de resultados (do exercício) já não permite a alteração, em 2013, do modo de contabilização destas variações (de forma que apenas tivessem reflexo em contas de capitais próprios), então, a reposição da política contabilística do reconhecimento das variações de cotação em resultados (e no lucro a tributar), sustentada pela AT, também tem de implicar a consideração dos prejuízos fiscais vindos de trás, derivados da variação para menos do valor das acções nos anos 2011 e 2012. Prejuízos que foram declarados inicialmente pela Requerente, antes da entrega das declarações de substituição verificada em 2013.
Considera, ainda, a Requerente que a questão dos prejuízos fiscais disponíveis para utilização em 2013, apesar de originada nos resultados fiscais (prejuízos) de 2011 e 2012, não é alheia à apreciação do imposto devido em 2013 e ao procedimento que culminou no respectivo apuramento e no acto de liquidação contestado. Negar à Requerente o direito a discutir esta questão com referência ao exercício de 2013 (dos prejuízos disponíveis para utilização nesse exercício gerados em 2011 e 2012) representa, em seu entender, a violação do direito à tutela jurisdicional efectiva, com amparo nos artigos 20.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).
Neste contexto, invoca o disposto nos artigos 266.º da CRP, 3.º, 4.º, 6.º, 8.º, 9.º, e 10.º do Código do Procedimento Administrativo (“CPA”), 55.º da LGT e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), e os princípios da legalidade, da imparcialidade, da isenção, da igualdade, da justiça e da boa fé, todos com assento constitucional.
Acrescenta que não está em causa uma questão de caducidade (artigo 45.º da LGT) na correcção simétrica de sentido favorável ao contribuinte, pois a AT devia proceder a essa correcção como pura consequência do entendimento de que “as variações de valor dos ativos em causa vão a resultados e em consequência entram no cômputo da base tributável”, para o que cita jurisprudência do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCAS”) e um Ofício-Circulado . Defende também que as declarações modelo 22 de substituição de 2011 e 2012 foram entregues em Janeiro de 2015, pelo que em 2018, ano da inspecção e da liquidação de IRC controvertida, ainda estava em curso o prazo de revisão de 4 anos contado das citadas autoliquidações.
Noutra linha de argumentação, a Requerente invoca que o valor dos prejuízos fiscais do Grupo Fiscal B... em 2011 e 2012 (reportado nas declarações modelo 22 iniciais, antes da entrega das declarações de substituição) apenas inclui 50% das variações negativas de justo valor, de acordo com o entendimento da AT publicado sobre este assunto à data, com suporte no artigo 45.º, n.º 3 do Código do IRC, quando deveriam ter sido consideradas na totalidade, como veio a ser confirmado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) e arbitral. Propugna que não se podem tributar 100% os ganhos de cotação e considerar em apenas 50% as perdas de cotação, sob pena de tributação de lucros inexistentes e de tratamento desigual de contribuintes com idênticos resultados económicos.
Por fim, alega ser ilegal que as reduções de justo valor, na “veste de prejuízos fiscais”, só relevem contra 75% do lucro tributável dos anos seguintes, pois este lucro (de 2013) foi gerado pela mera reversão de cotação dos activos que tinham sido desvalorizados em anos anteriores.
Reforça que em 2013 não se teria produzido lucro tributável se não fosse o aumento de justo valor dos activos pela recuperação da cotação que, porém, apenas anula uma parte das perdas de justo valor dos exercícios anteriores – 2010, 2011 e 2012 – não podendo admitir-se que seja gerado imposto sobre o valor [dessa recuperação] quando o Grupo Fiscal B... está ainda em posição de perda, e muita, relativamente aos activos financeiros em causa.
As reduções de justo valor de exercícios anteriores que ainda não foram abatidas à matéria colectável devem sê-lo, em 2013, sem restrições, até à concorrência do valor da recuperação de justo valor das acções em causa ocorrida nesse exercício [2013] de € 6.322.078,36. O que é suficiente e até excede, reduzindo a zero, a matéria colectável desse ano, pois o lucro tributável apurado pela AT foi menor, de € 5.644.645,93.
Os ajustamentos decorrentes do justo valor representam empobrecimento ou enriquecimento meramente potenciais e a sua medição (seja como gasto ou como rendimento) é, por definição, provisória, o que torna especialmente desadequada a interferência do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, que estabelece aquele limite [de 75%] à dedução de prejuízos fiscais, na redacção contemporânea aos factos. Esta norma deve ser interpretada, à semelhança do entretanto revogado artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, como não abrangendo prejuízos/lucros meramente potenciais e não realizados decorrentes de variações de justo valor de acções cotadas.
Considera a Requerente que sustentar o contrário será defender a tributação de ganhos inexistentes e inventados, com violação dos princípios constitucionais da igualdade, da proibição de soluções arbitrárias, da proporcionalidade ou da justa medida, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da propriedade, para o que invoca os artigos 2.º, 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 104.º, n.º 2, e 62.º da CRP.
Apela adicionalmente ao princípio da tutela da confiança e da boa fé, em virtude de a norma de restrição da utilização de prejuízos fiscais transitados de anos anteriores, prevista no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, só ter sido introduzida em 30 de Dezembro de 2011, pela Lei n.º 64-B/2011, com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2012. Donde, a sua aplicação aos prejuízos gerados em exercícios anteriores, designadamente de 2010 e 2011, determinada pelo artigo 116.º, n.º 2, da citada Lei, viola o artigo 2.º da CRP – Estado de Direito.
A Requerente juntou 23 documentos e não requereu a produção de prova testemunhal. Considera que os factos não são controvertidos, suscitando-se somente questões de direito.
POSIÇÃO DA REQUERIDA
Em 9 de Setembro de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por excepção e por impugnação.
Por excepção, invoca que o Tribunal Arbitral é parcialmente incompetente para apreciar o pedido de reconhecimento do direito a deduzir prejuízos fiscais de € 6.032.522,18 provenientes dos exercícios de 2011 e 2012, pois a decisão jurisdicional tem de limitar-se à apreciação da legalidade da liquidação, de acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 1, do RJAT e na Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, cabendo à AT, em caso de procedência da acção, a realização dos correspondentes actos de execução (artigos 100.º da LGT e 24.º do RJAT).
Para este efeito, suporta-se em jurisprudência do TCAS e arbitral, na natureza facultativa da jurisdição arbitral e na primazia da interpretação estrita da competência material dos Tribunais Arbitrais, concluindo que as únicas correcções passíveis de serem apreciadas são as que respeitam ao direito de reporte de prejuízos fiscais apurados e declarados pela Requerente (ou seja, os que constam das declarações de substituição apresentadas em 2015 na sequência da alteração da política contabilística), à luz do regime legal consagrado nos artigos 52.º e 71.º do Código do IRC.
A Requerida suscita uma segunda excepção, de litispendência parcial, em relação à acção administrativa de condenação à prática de acto devido que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual a Requerente peticiona a condenação da AT a aceitar e repor as (segundas) declarações modelo 22 de substituição apresentadas em 30 de Outubro de 2018 após a acção inspectiva, para os exercícios fiscais de 2011 e 2012.
Para a Requerida, o efeito jurídico pretendido pela Requerente é o reconhecimento do direito de deduzir os prejuízos fiscais provenientes dos exercícios de 2011 e 2012, de € 6.032.522,18, pelo que a decisão daquela acção produzirá a alteração da matéria colectável da Requerente, por referência às declarações apresentadas, o que, na perspectiva da primeira, pode implicar a prolação de decisões judiciais contraditórias, quanto ao pedido de reconhecimento do direito a deduzir os prejuízos fiscais mencionados, em relação ao qual conclui pela litispendência.
Se o Tribunal assim não o entender, considera a Requerida que se verifica uma relação de prejudicialidade ou dependência entre a acção administrativa e a acção arbitral, dado que o montante dos prejuízos fiscais a utilizar no exercício de 2013 depende da decisão a proferir sobre o pedido de processamento das declarações modelo 22 de substituição apresentadas em 30 de Outubro de 2018, nas quais se quantificam esses prejuízos.
Na defesa por impugnação, a Requerida sustenta e reproduz os fundamentos aduzidos, quer no Relatório de Inspecção Tributária (“RIT”), quer na decisão da Reclamação Graciosa, salientando que a Inspecção Tributária não procedeu à correcção de quaisquer prejuízos fiscais dos exercícios de 2011 e 2012, tendo, sim, considerado os valores dos prejuízos fiscais apurados nas declarações modelo 22 de substituição entregues em 2015, pelo que os valores dos resultados fiscais de 2011 e 2012 não fazem parte do seu objecto. Foram apurados pela Requerente e esse apuramento não foi corrigido pela AT.
Quanto ao prazo de caducidade previsto no artigo 45.º da LGT, a Requerida afirma que que o mesmo não é fundamento da decisão, mas antes a inobservância do regime dos artigos 52.º e 71.º do Código do IRC, para além de não concordar que a caducidade seja apenas aplicável aos actos desfavoráveis aos contribuintes.
Refere que o prazo para apresentação de declarações de substituição em situação de reporte de prejuízos fiscais se deve considerar expirado em conformidade com a jurisprudência do STA.
Relativamente à alegada violação da tutela jurisdicional efectiva, a Requerida pugna pela sua não verificação, pois as decisões que sejam proferidas em relação aos pedidos de revisão oficiosa pendentes sobre a matéria tributável dos exercícios de 2011 e 2012, se forem de indeferimento, podem ser impugnadas.
Sustenta também que o Ofício Circulado invocado pela Requerente (n.º 14 da Direcção de Serviços do IRC, de 23 de Novembro de 1993) não tem aplicação ao caso vertente, pois respeita ao tratamento de custos e proveitos e não a prejuízos.
Em relação aos princípios constitucionais, lembra que o Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão n.º 85/2010, já se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade do regime de dedutibilidade em 50% das perdas decorrentes das reduções do justo valor.
Por fim, a Requerida pronuncia-se no sentido da procedência das excepções invocadas, ou, caso assim não se entenda, pela suspensão da instância e, a final, pela improcedência do pedido por não provado, com a consequente absolvição da Requerida de todos os pedidos.
TRAMITAÇÃO SUBSEQUENTE
Por despacho de 18 de Setembro de 2019 foi a Requerente notificada para se pronunciar sobre a matéria de excepção e juntar a petição da acção administrativa em relação à qual foi deduzida a questão da litispendência.
Em 24 de Setembro de 2019, a Requerente deu satisfação ao requerido, manifestando-se no sentido de não existir fundamento para as excepções suscitadas. No caso da incompetência (parcial) por ser claro que, sem prejuízo da causa de pedir complexa que lhe subjaz, o pedido é meramente anulatório da liquidação de IRC. No tocante à litispendência (também parcial), por falta de identidade do pedido e da causa de pedir. Considera de igual modo inexistente uma relação de prejudicialidade por serem autónomos e independentes os pedidos e fundamentos das duas acções.
Em 30 de Setembro de 2019, o Tribunal Arbitral decidiu dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e não suspender a instância por entender que não se verifica a relação de prejudicialidade ou dependência alegada pela AT nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (“CPC”), relegando o conhecimento das excepções para a decisão a proferir a final.
Em 1 de Outubro de 2019, a Requerida procedeu à junção aos autos do processo administrativo (“PA”).
As Partes foram notificadas para apresentarem alegações escritas sucessivas e fixada a data para prolação da decisão arbitral.
A Requerente apresentou alegações finais em 25 de Outubro de 2019, nas quais mantém a sua posição. A Requerida contra-alegou em 13 de Novembro de 2019, reiterando os argumentos de facto e de direito constantes da Resposta.
Por despacho de 30 de Janeiro de 2020 foi prorrogado por dois meses o prazo de prolação da Decisão Arbitral, atenta a complexidade das questões suscitadas, prorrogação que foi renovada por despacho de 13 de Abril de 2020 por mais dois meses.
II. SANEAMENTO
1. DA EXCEPÇÃO DE INCOMPETÊNCIA MATERIAL (PARCIAL)
Em primeiro lugar, importa conhecer a excepção de incompetência material (parcial) invocada pela Requerida que é de ordem pública e cujo conhecimento precede o de qualquer outra matéria (cf. artigos 16.º do CPPT e 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), ex vi dos artigos 29.º, n.º 1, alíneas a) e c), do RJAT e 2.º, alínea c), do CPPT).
A competência dos Tribunais é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional. Em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo Tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa .
Os Tribunais Arbitrais estão previstos no artigo 209.º, n.º 2, da CRP, sendo o âmbito da jurisdição arbitral tributária recortado, em primeira linha, pelo disposto no artigo 2.º do RJAT que enuncia, no seu n.º 1, os correspondentes critérios de repartição material. Aí se determina competir a esta “espécie” de Tribunais a apreciação das seguintes pretensões :
“a) A declaração de ilegalidade de atos de liquidação de tributos, de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta;
b) A declaração de ilegalidade de atos de fixação da matéria tributável quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo, de atos de determinação da matéria coletável e de atos de fixação de valores patrimoniais.”
A Requerida suscita a excepção de incompetência por considerar que está em causa, nos presentes autos, o pedido de reconhecimento do direito a deduzir prejuízos fiscais de exercícios anteriores (2011 e 2012) àquele que foi inspeccionado (2013), ao qual respeita o acto de liquidação impugnado, devendo o Tribunal Arbitral cingir-se à apreciação da legalidade dessa liquidação.
Afigura-se que a Requerida não tem razão, pois submete-se à apreciação do Tribunal um acto tributário proprio sensu, que define de forma unilateral e impositiva uma prestação de imposto . O pedido deduzido pela Requerente e, em consequência, o objecto do processo, é precisamente e apenas o da ilegalidade e anulação do acto tributário de liquidação de IRC e correspondentes juros compensatórios com respeito ao exercício de 2013, matéria que cabe na competência da jurisdição arbitral tributária e que, por essa razão, este colectivo pode conhecer, nos termos do disposto no citado artigo 2.º, n.º 1, alínea a), do RJAT .
A admissibilidade ou não da pretensão da Requerente em relação a serem atendíveis prejuízos fiscais derivados das reduções de justo valor dos anos 2011 e 2012 no apuramento do imposto [IRC] relativo ao exercício de 2013, é questão que se prende com a apreciação do mérito, com a procedência da causa, não enquadrável como pressuposto processual. Soçobra, desta forma, a excepção de incompetência material parcial suscitada pela Requerida.
2. DA EXCEPÇÃO DE LITISPENDÊNCIA
A Requerida vem também arguir a excepção de litispendência (parcial), ao abrigo do artigo 580.º do CPC, entendendo que está em causa no presente processo arbitral e, em simultâneo, no processo que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º .../19...BELRS, o mesmo efeito jurídico, que é o do reconhecimento do alegado direito da Requerente a deduzir os prejuízos fiscais no concreto montante de € 6.032.522,18 provenientes dos exercícios de 2011 e 2012. Pelo que a decisão que vier a ser proferida pelo Tribunal Tributário na ação administrativa é passível de alterar a matéria tributável da Requerente nos mesmos termos da pretensão deduzida na acção arbitral, implicando a possível prolação de decisões judiciais contraditórias.
A litispendência visa impedir a repetição de uma causa anterior que está em curso e evitar, dessa forma, que o Tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Para que se constate este pressuposto são exigidas três condições, que implicam uma tripla identidade: de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (cf. artigos 89.º do CPTA, 577.º, alínea i), 580.º e 581.º do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas c) e e), do RJAT e do artigo 1.º CPTA).
Resulta do probatório que está efectivamente pendente uma acção administrativa de condenação à prática de acto devido, sendo os sujeitos os mesmos do ponto de vista da sua qualidade jurídica.
Peticiona aí a Requerente a condenação da AT a “aceitar e repor as declarações de rendimento (IRC) modelo 22 de substituição apresentadas em 30.10.2018 para os exercícios fiscais de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016, pela A... S.A. (na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal) e pela sociedade integrante do Grupo Fiscal E... SGPS S.A.” e a anular “o ato que deu sem efeito e anulou as referidas declarações individuais e agregadas referentes do Grupo Fiscal B..., notificado através do e-balcão em 4 de Dezembro de 2018 (Doc. n.º 1).”.
Este pedido e causa de pedir não têm correspondência com os da presente acção anulatória (de um acto de liquidação relativo ao exercício de 2013), pelo que a excepção arguida quanto ao segmento dos prejuízos fiscais com origem nos exercícios de 2011 e 2012 é improcedente.
Acresce que, para além da falta de tripla identidade que constitui requisito da excepção de litispendência e que aqui, como assinalado, não se verifica, a decisão da presente acção não depende da aceitação ou não das declarações de substituição submetidas em 2018, posteriormente à acção inspectiva e ao acto de liquidação cuja invalidade está em discussão nestes autos. Nesta matéria, o que o Tribunal Arbitral é chamado a conhecer é a necessária consideração dos prejuízos fiscais de 2011 e 2012 apurados de acordo com a política de reconhecimento das variações de justo valor em resultados, cujo montante corresponde ao das declarações iniciais modelo 22 de IRC submetidas pela Requerente, independentemente da aceitação ou não daquelas declarações de substituição apresentadas em 2018.
* * *
O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos actos de liquidação de IRC e inerentes juros compensatórios controvertidos, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a), e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
A acção é tempestiva, tendo o pedido de pronúncia arbitral sido apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do RJAT, contado da notificação do despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, de acordo com a remissão operada para o artigo 102.º, n.º 1, do CPPT.
Não foram identificadas outras questões que obstem ao conhecimento do mérito.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos:
U. A A..., S.A., aqui Requerente, é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B..., o qual inclui a sociedade dominada C... SGPS, S.A. (C... SGPS), tendo optado pelo Regime Especial de Tributação de Grupos de Sociedades (RETGS), previsto nos artigos 69.º a 71.º do Código do IRC – cf. RIT.
V. Com a introdução do Sistema de Normalização Contabilística em 2010, a sociedade dominada C... SGPS começou por contabilizar as variações nas participações financeiras que detinha nas sociedades F... SGPS, S.A. (detenção de 4,97%) e na G... SGPS, S.A. (detenção de 0,42%), através de resultados, em variações de justo valor nas contas de gastos ou rendimentos (contas 66 ou 77) – cf. RIT.
W. Porém, no exercício de 2013, a C... SGPS alterou esse procedimento, passando a reconhecer directamente essas variações em contas de capital próprio, sem afectar resultados. O lucro tributável da C... SGPS declarado em relação a 2013, de € 1.469.167,70, foi, desta forma, apurado sem que para o mesmo tivessem concorrido as variações de justo valor das referidas participações financeiras (instrumentos de capital próprio) – cf. RIT.
X. Em Janeiro de 2015, a C... SGPS e a Requerente submeteram declarações modelo 22 de substituição das autoliquidações dos exercícios de 2010, 2011 e 2012, na sequência da alteração da política contabilística relativa às variações de justo valor, que retroagiram a esses anos. Estas declarações de substituição reflectem o facto de essas variações terem deixado de afectar resultados e, por conseguinte, de já não serem tidas em conta no cômputo do lucro tributável do IRC declarado, reduzindo os prejuízos fiscais que haviam sido inicialmente declarados para 2011 e 2012, nos termos do quadro seguinte:
Prejuízos do Grupo C...
Exercícios Modelo 22 IRC original Modelo de substituição
submetido em 2015
2011 6.521.642,40 1.127.939,18
2012 1.900.459,53 1.261.640,57
– cf. documentos 8 a 13, 15 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral (“PPA”) e RIT.
Y. A C... SGPS foi sujeita a uma acção de inspecção externa de âmbito parcial, incidente sobre o IRC do exercício de 2013, na sequência da ordem de serviço n.º OI2017..., de 31 de Julho de 2017, com o objectivo de verificar se a valorização das acções ao justo valor estava reflectida nos resultados – cf. RIT.
Z. No âmbito da acção inspectiva à C... SGPS, o lucro tributável por esta declarado em 2013, de € 1.469.167,70, foi corrigido. Com efeito, a AT efectuou correcções à matéria colectável de € 6.415.340,36, correspondente a um ganho de justo valor de € 6.508.602,36, deduzido de 50% da perda de justo valor cifrada em € 93.262,00 (€ 186.524,00*50%). Assim, o lucro tributável da C... SGPS em 2013, conforme corrigido pela AT, passou a ser de € 7.884.508,06 – cf. RIT.
AA. Como fundamento das correcções em causa, refere o Relatório de Inspecção o seguinte:
“III DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL
III.1. Fundamentos das correções meramente aritméticas ao lucro tributável:
III.1.1. Metodologia de Análise
[…]
III.1.2. Contabilização dos ganhos e perdas com instrumentos financeiros valorizados ao justo valor
Atento aos elementos remetidos pelo sujeito passivo verifica-se que detêm as seguintes participações financeiras:
[…]
Quando confrontado o balancete analítico a 31/12/2013 com o mapa enviado pela sociedade C... SGPS, SA, o qual indicava o valor da sua participação financeira na sociedade F... SGPS, SA (NIF:...) em 01/01/2013 e em 31/12/2013, verificou-se que o ganho, proveniente da alteração do justo valor, não se encontrava refletido numa conta SNC de rendimentos, nomeadamente, numa 77 – Ganhos por aumentos de justo valor em investimentos financeiros.
Aquando do início do procedimento inspetivo questionou-se o sujeito passivo acerca da situação acima descrita, ao que o mesmo veio informar que «Com a introdução do SNC em 2010, a C..., SGPS, começou por contabilizar as variações nas referidas participações através de resultados, em variações de justo valor – contas 66 ou 77. No entanto em 2013, foi decidido alterar a forma de contabilização destas variações, passando a ser contabilizada essa variação através de capitais próprios – conta 5721. Foi ainda decidido efetuar correções as declarações fiscais dos anos de 2010, 2011 e 2012, tanto nas modelos 22 da C..., SGPS, como nas modelo 22 da empresa mãe, dado a empresa integrar o RETGS.»
Para o efeito apresentou um quadro demonstrativo com as variações anuais existentes entre os anos de 2009 a 2016, conforme print abaixo:
[…]
Constata-se, assim, que no ano de 2013 o sujeito passivo alterou a forma de contabilização dos ganhos e perdas provenientes da alteração no justo valor respeitantes às participações financeiras detidas nas sociedades F... SGPS, SA E a G... .
Nos exercícios de 2010, 2011 e 2012 eram contabilizados, pelo sujeito passivo, através de resultados (lucros ou prejuízos na aceção da Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 27). Com a alteração da metodologia de contabilização, os ganhos / perdas passaram a ser reconhecidos diretamente em capital próprio, nos termos da norma internacional de contabilidade IAS 39.
No entanto, segundo o § 17 da NCRF 27 «Uma entidade não deve alterar a sua política de mensuração subsequente de um ativo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse método. São situações de exceção quando deixar de estar disponível uma mensuração fiável do justo valor para um instrumento de capital próprio de uma outra entidade mensurado ao justo valor ou quando passar a estar disponível uma mensuração fiável de justo valor para um instrumento de capital próprio de uma outra entidade mensurado ao custo».
No mesmo sentido a IAS 39, refere, na alínea b) do parágrafo 50, que uma entidade «não deve reclassificar um instrumento financeiro, retirando-o da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos se, aquando do reconhecimento inicial, tiver sido designado pela mesma entidade como pertencendo à categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos».
Assim, conclui-se da interpretação das Normas que uma entidade não deve alterar a política de mensuração de um instrumento financeiro ou não deve reclassificá-lo, enquanto o mesmo for detido ou estiver disponível uma mensuração fiável de justo valor.
Este procedimento não foi efetuado pela sociedade C... SGPS, SA, em 2013. Uma vez que com a introdução do SNC (2010), o sujeito passivo contabilizou os ganhos e perdas em resultados, estava legalmente obrigado a seguir a mesma metodologia, até deixar de deter as participações ao invés de passá-las a contabilizar diretamente em capital próprio.
Conclui-se desta forma, de acordo com os normativos contabilísticos, que o ganho obtido com a alteração do justo valor da participação financeira detida na F... SGPS, SA, no exercício de 2013, no montante de € 6.508.602,36, deveria ter sido reconhecido na conta 772 – Ganhos por aumentos de justo valor em investimentos financeiros; e a perda obtida, no montante de € 186.524,00, com a alteração do justo valor da participação financeira detida na sociedade G... deveria ter sido contabilizada na conta 662 – Perdas por redução de justo valor em instrumentos financeiros, ao invés de terem sido ambos contabilizados na conta 5721 – Ajustamentos do justo valor – CMVM.
Se a alteração efetuada pelo sujeito passivo não é legalmente permitida pelo direito da contabilidade não poderá ser, concomitantemente, acolhida fiscalmente, em sede de IRC, uma vez que o apuramento do lucro tributável das pessoas coletivas é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não refletidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade, que deve estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor, nos termos do artigo 17.º do CIRC.
Assim nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gasto no período de tributação quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital superior a 5% do respetivo capital social.
No que concerne aos ajustamentos negativos tem de se conjugar o disposto na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º com a parte final do n.º 3 do artigo 45.º, ambos do CIRC (em vigor à data dos factos), isto é, apenas concorre para a formação do lucro tributável 50% da perda verificada com a alteração do justo valor da participação detida na sociedade G... .
Face ao exposto o sujeito passivo deveria ter feitio concorrer para o apuramento do lucro tributável o ganho de justo valor no montante de € 6.508.602,36 e 50% da perda de justo valor no montante de € 93.262,00 (€ 186.524,99*50%). […]”.
BB. Estas correcções na esfera individual da C... SGPS tiveram repercussão no lucro tributável do Grupo Fiscal B..., calculado na esfera da sociedade dominante, aqui Requerente, para o que foi emitida a ordem de serviço OI2017... a fim de reflectir os ajustamentos efectuados na declaração de rendimentos Modelo 22 do Grupo relativa ao exercício de 2013 – cf. Relatório de Inspeção Tributária da Requerente (“RIT-1”).
CC. Nesta sequência, o resultado declarado do Grupo Fiscal B... no exercício de 2013 foi alterado de um prejuízo fiscal de € 770.694,43 para o lucro tributável de € 5.644.645,93 – cf. RIT-1.
DD. E os prejuízos dedutíveis gerados em anos anteriores foram corrigidos pela AT de € 9.366.833,57 para € 4.748.161,35, na sequência consideração, nesse momento, das declarações de substituição de IRC que tinham sido apresentadas pela Requerente em Janeiro de 2015 e que, com referência aos anos 2011 e 2012, reduziram esses prejuízos fiscais do Grupo B... constantes das declarações modelo 22 de IRC originariamente submetidas, em virtude da eliminação do impacto das variações do justo valor por alteração da política contabilística operada no exercício de 2013 na C... SGPS – cf. documentos 8 a 16 juntos com o PPA, RIT e RIT-1.
EE. Dos prejuízos fiscais gerados em anos anteriores, corrigidos para € 4.748.161,35, foi determinada pela AT a dedução ao lucro tributável de 2013 do Grupo B... da importância de € 4.233.484,45, correspondente a 75% do lucro tributável apurado nesse ano de € 5.644,645, conforme disposto no artigo 52.º, n.º 2 do Código do IRC na redacção vigente em 2013 – cf. RIT-1.
FF. A Requerente foi notificada da liquidação adicional de IRC n.º 2018..., de 2 de Abril de 2018, referente ao exercício de 2013, e da liquidação de juros compensatórios n.º 2018..., da mesma data, originando o valor total a pagar de € 729.607,80, com data limite de pagamento de 9 de Maio de 2018 – cf. demonstração de liquidação de IRC, demonstração de liquidação de juros e demonstração de acerto de contas juntas com PPA.
GG. A Requerente prestou garantia bancária até ao montante de € 922.254,06, para suster o processo de execução fiscal n.º ...2018..., instaurado pelo Serviço de Finanças de Lisboa ..., para cobrança das dívidas de IRC e juros compensatórios constantes dos actos tributários acima identificados – cf. documento 23 junto com o PPA.
HH. Inconformada com a liquidação, a Requerente apresentou, em 24 de Julho de 2018, Reclamação Graciosa (constante do PA) alegando, em síntese, como no PPA, que:
Devem ser considerados os prejuízos fiscais reportados nas Declarações Modelo 22 originais relativas a 2011 e 2012, ou seja, mais € 6.032.522,18 do que os considerados pela AT (sendo € 5.393.703,22 de 2011 e € 638.818,96 de 2012) - artigo 20.º da RG;
Devem ser consideradas adicionalmente as reduções de justo valor que foram afastadas, em 50%, do cômputo do lucro tributável numa errada aplicação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC à situação vertente, i.e., mais € 6.032.522,18, com referência aos exercícios 2011 e 2012 - artigos 21.º e 22.º da RG;
Assim sendo, os prejuízos do Grupo B... nos exercícios 2011 e 2012 devem ascender a, respectivamente, € 11.915.345,63 e € 2.539.278,49 - artigo 23.º da RG;
É inaceitável que os prejuízos fiscais gerados por reduções de justo valor só relevem em 75% do valor do lucro tributável gerado em anos seguintes por aumentos de justo valor dos mesmos activos, nos termos do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, e que esta norma seja aplicada com efeitos retroactivos (a prejuízos gerados em anos anteriores) – artigos 24.º e 121.º da RG;
Extrai-se que deve também ser deduzida ao lucro tributável do próprio exercício (2013) a quantia de € 93.262,00, correspondente a 50% do montante de € 186.524,00, da perda de valor da participação financeira detida na G... SGPS, S.A., por ser inaplicável o artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC.
II. Em 30 de Outubro de 2018, a Requerente submeteu declarações modelo 22 de substituição das autoliquidações dos exercícios de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016 respeitantes à C... SGPS e também ao Grupo Fiscal – cf. PA.
JJ. As declarações de substituição submetidas em nome do Grupo não foram validadas pela AT, com fundamento em erros de validação central. As declarações da sociedade C... SGPS foram validadas centralmente, permanecendo na situação de não liquidáveis pelas seguintes razões: «(i) Respeita ao relatório de inspeção efetuada ao período de 2013, (ii) Não cumpre os requisitos do nº 3 do artº, 122º do CIRC» – cf. PA.
KK. A Requerente e a sociedade dominada C... SGPS, S.A. deduziram acção administrativa de condenação à prática de acto devido, que corre termos no Tribunal Tributário de Lisboa sob o n.º .../19...BELRS, deduzindo o seguinte pedido – cf. cópia da p.i. junta pela Requerente:
“a) deve o Ministério das Finanças e o órgão AT nele integrado, autor do ato administrativo que desencadeou a presente ação, ser condenado a aceitar e repor as declarações de rendimento (IRC) modelo 22 de substituição apresentadas em 30.10.2018 para os exercícios fiscais de 2011, 2012, 2014, 2015 e 2016, pela A... S.A. (na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal) e pela sociedade integrante do Grupo Fiscal E... SGPS S.A.;
b) deve reflexamente ser anulado o ato que deu sem efeito e anulou as referidas declarações individuais e agregadas referentes do Grupo Fiscal B..., notificado através do e-balcão em 4 de Dezembro de 2018 (Doc. n.º 1).”
LL. A Reclamação Graciosa foi indeferida por despacho datado de 27 de Dezembro de 2018, notificado em 3 de Janeiro de 2019, com base na fundamentação que parcialmente se transcreve:
“2 – A reclamante não discute a correção efetuada no que respeita à tributação dos resultados decorrentes das variações do justo valor das ações em questão no exercício de 2013, mas pretende que o valor da dedução de prejuízos fiscais ao lucro tributável corrigido, no que respeita aos prejuízos fiscais reportados dos exercícios de 2011 e 2012, seja o que resulta da contabilização dessas variações de justo valor em resultados do exercício, no lugar do que resulta de contabilização nos capitais próprios.
Pretende que os valores dos resultados para efeitos fiscais apurados nas declarações mod. 22 de substituição do grupo relativas aos exercícios de 2011 e 2012, entregues em 13-01-2015 (cf. quadro acima no ponto II-5), assim como as da C... SGPS entregues em 2012-01-2015, sejam reduzidos em €10.787.406,45 e €1.277.637,92 em cada um desses exercícios, respetivamente, conforme cálculos constantes no quadro entregue durante a ação de inspeção e incluído na folha 6 do relatório (fl. 58 dos presentes autos).
É de referir que em 30-10-2018 foram submetidas duas declarações mod. 22 pela C... SGPS relativas aos exercícios de 2011 e 2012 (fls.341 e 344) nas quais são inscritos os valores dos prejuízos fiscais dessa sociedade resultantes da alteração pretendida:
a) Exercício 2011: € 9.725.121,74 (= € 1.062.284,71 - € 10.787.406,45), sendo o valor de € 1.062.284,71 o lucro tributável antes declarado, a repercutir no resultado fiscal do grupo pelo mecanismo do artº 70º do CIRC.
b) Exercício de 2012: € 240.571,64 (= € 1.037.066,28 - € 1.277.637,92), sendo o valor de € 1.037.066,28 o lucro tributável antes declarado, a repercutir no resultado fiscal do grupo.
Dessas alterações não resultaram quaisquer liquidações corretivas pela AT, quer por se tratar de declarações de uma sociedade incorporada num grupo tributado de acordo com o RETGS (artº 120º nº 6 al. b) do CIRC), quer porque não foram entregues declarações com a repercussão dessas alterações no resultado fiscal do grupo (artº 70º do CIRC), quer, ainda, porque se o tivessem sido não seriam liquidadas pelos Serviços por se encontrar ultrapassado o prazo de caducidade do direito à liquidação previsto no artº 45º da LGT.
Dado que, nos termos do artº 52º nº 1 do CIRC, aqui aplicável em conjugação com o artº 71º do CIRC, a dedução de prejuízos fiscais a efetuar nos termos do artº 16º nº 1 al. a) do CIRC toma por base os prejuízos fiscais declarados nos prazos legais, não tendo esses resultados fiscais, no caso em apreço, sido objeto de alteração posterior pela AT, e, por outro lado, dado que os valores dos resultados fiscais dos exercícios de 2011 e 2012 apurados pela C... SGPS não se incluem no objeto da reclamação graciosa em análise, não parece que haja razão para considerar dedutíveis ao lucro tributável corrigido de 2013 valores diferentes dos declarados em 2015 e que já foram considerados no cálculo da matéria coletável corrigida o grupo ao exercício de 2013.
3 – A reclamante alega que não está correto o procedimento de considerar apenas em 50%, no cálculo do lucro tributável do exercício, o montante do ajustamento negativo do justo valor das ações em questão (da F... SGPS, S.A. e da G... SGPS, S.A.) porque o nº 3 do artº 45º do CIRC não é aplicável aos ajustamentos de justo valor previstos na al. a) do nº 9 do artº 18º do CIRC.
O nº 3 do artº 45º (Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais) do CIRC, norma revogada pelo artº 13º da Lei 2/2014 de 16/1, com efeitos nos períodos de tributação iniciados em 01-01-2014, teve, até à sua revogação, a seguinte redação que lhe foi dada pela Lei 60-A/2005 (como artº 42º, posteriormente renumerado para artº 45º do DL 159/2009) «A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.»
Alega, também, que os ajustamentos negativos decorrentes do justo valor não correspondem a menos-valias previstas na referida norma legal, por não se enquadrarem no disposto no artº 46º nº 1 al. b) do CIRC e porque a utilização pelo legislador do termo «perdas» referido no nº 3 do artº 45º implica que ocorreu a respetiva realização (e não apenas variações de valor) e no artº 23º nº 1 al. i) do CIRC, o legislador optou por lhes chamar «gastos resultantes da aplicação do justo valor», e não «perdas…».
Quanto a essas questões é de referir que a expressão na norma «variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital» parece ser suficiente para acomodar as reduções verificadas no justo valor das ações em questão.
É de referir, ainda, que na al. f) do artº 8º do DL 159/2009, diploma que procede à adaptação do Código do IRC ao SNC, esclarece-se que o conceito «custos e perdas» é substituído pelo conceito «gastos». Assim o conceito de gastos inclui o de perdas, tendo este, de resto, continuado a ser utilizado no Código do IRC, como é o caso do artº 45º.
4 – A reclamante alega ainda que os ajustamentos decorrentes do justo valor, aqui em causa, não se enquadram na categoria das variações patrimoniais negativas, porque os ajustamentos reconhecidos através de resultados (artº 18º nº 9 al. a) do CIRC) não abrangem variações patrimoniais inscritas diretamente em capitais próprios.
Quanto a essa questão é de referir que as reduções no justo valor das ações em questão verificadas num determinado período representam variações patrimoniais negativas, quer a contabilização se tenha feito diretamente em capitais próprios, quer indiretamente através de resultados.
A reclamante discorda, ainda, da aplicação às variações do justo valor das ações em questão do disposto no nº 2 do artº 52º do CIRC (Dedução de prejuízos fiscais), na redação então vigente, segundo a qual «A dedução a efetuar em cada um dos períodos de tributação não pode exceder o montante correspondente a 75 % do respetivo lucro tributável, não ficando, porém, prejudicada a dedução da parte desses prejuízos que não tenham sido deduzidos, nas mesmas condições e até ao final do respetivo período de dedução.»
No entanto, não consta na lei qualquer exceção à aplicação da norma no caso de prejuízos fiscais que resultam dessas variações negativas.
5 – Dado que, conforme exposto acima nos pontos 2 a 4, não assiste razão à reclamante, propõe-se o indeferimento do pedido, mantendo-se a liquidação adicional objeto de reclamação.
Acrescenta-se, ainda, que por não se verificarem in casu os pressupostos do artº 53º da LGT, não assiste ao reclamante o direito a indemnização por prestação da garantia […]”.
MM. Em 12 de Dezembro de 2018, a Requerente apresentou pedidos de revisão oficiosa do IRC dos exercícios de 2011, 2012, 2014 e 2015, que se encontram pendentes de decisão, nos quais peticiona o acréscimo dos prejuízos fiscais reportáveis, com fundamento no entendimento da AT sobre os ajustamentos do justo valor previstos no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC – cf. pedidos de revisão oficiosa constantes do PA.
NN. Em 15 de Março de 2019, por não se conformar com as liquidações de IRC e de juros compensatórios acima identificadas e, bem assim, com o indeferimento da Reclamação Graciosa deduzida contra esses actos tributários, a Requerente apresentou o pedido de constituição do Tribunal Arbitral que deu origem ao presente processo – conforme registo no sistema de gestão processual do CAAD.
2. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos que devam considerar-se não provados.
3. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do CPPT, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT.
No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos por ambas as Partes e nas posições por estas assumidas em relação aos factos, que não são controvertidos.
IV. DO DIREITO
1. QUESTÕES DECIDENDAS
Foram submetidas à apreciação do Tribunal as seguintes questões, de que importa conhecer:
e) A consideração no apuramento da matéria colectável do exercício de 2013 dos prejuízos fiscais determinados em relação a 2011 e 2012, de acordo com a política contabilística imposta pela AT de reconhecimento das variações de cotação de activos financeiros, in casu de instrumentos de capital próprio, em contas de resultados (gastos e rendimentos), no valor de € 6.032.522,18;
f) A inaplicabilidade do regime do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, em vigor à data dos factos, aos gastos derivados de variações de activos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor, quer no tocante às reduções de justo valor de 2011 e 2012, de € 6.032.522,18 (€ 12.065.044,36*50%), quer em relação às do exercício de 2013, de € 93.262,00 (€ 186.524,00*50%);
g) A inaplicabilidade do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, na sua nova versão vigente a partir de 2012, a prejuízos/lucros meramente potenciais derivados de variações de justo valor de acções cotadas e, em qualquer caso, a sua inaplicabilidade aos prejuízos de exercícios anteriores ao da sua entrada em vigor [como os gerados em 2011];
h) O pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida, nos termos do artigo 53.º da LGT.
2. A CONSIDERAÇÃO NO APURAMENTO DA MATÉRIA COLECTÁVEL DO EXERCÍCIO DE 2013 DOS PREJUÍZOS FISCAIS DETERMINADOS EM RELAÇÃO A 2011 E 2012
A título de enquadramento, importa fazer algumas precisões.
A Requerente não contesta a correcção de acréscimo ao lucro tributável. No entanto, contesta a correcção ao montante de prejuízos dedutíveis em 2013 que também está na origem do acto tributário sindicado. Embora a Requerente afirme ser criticável a posição da Requerida de impor a mensuração ao justo valor em resultados, abstém-se de contestar a correcção, exigindo apenas a coerência no que respeita à correcção do montante de prejuízos fiscais dedutíveis, concomitantemente realizada pela AT.
Apesar de não estar em discussão a actuação da AT ao promover o aludido acréscimo ao lucro tributável, cumpre atentar na fundamentação do acto tributário nesta parte pois é relevante para aferir da legalidade da correcção atinente aos prejuízos fiscais.
A correcção ao lucro tributável é alicerçada na consistência contabilística e impossibilidade de operar alterações no modo de contabilização. Estavam em causa variações de cotação de acções detidas em duas empresas, sendo uma delas o principal cliente do Grupo. Foram as acções desta última empresa que registaram uma variação positiva em 2013, depois da desvalorização registada nos anos anteriores e seguida de desvalorização nos anos subsequentes. O sujeito passivo alterou o modo de contabilização das acções por entender que não eram detidas para negociação mas sim investimentos de longa duração. Essa reclassificação contabilística implicava que as variações de justo valor seriam registadas nos capitais próprios e não nos resultados. A AT corrigiu o impacto fiscal de tal alteração, por esta não ser permitida.
O acolhimento parcial e circunscrito do modelo de justo valor no Código do IRC foi efectuado pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho. Encontra-se consagrada no n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC a regra da irrelevância dos ajustamentos de justo valor, para efeitos fiscais. Excepcionalmente, porém, confere-se aquela relevância fiscal quando esteja em causa determinado tipo de instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados. Assim, a primeira condição para que seja conferida a aludida relevância fiscal é a de que os instrumentos estejam reconhecidos, contabilisticamente, pelo justo valor em resultados. A norma fiscal não define quando isso deva suceder nem se sobrepõe à normação contabilística a esse respeito. Simplesmente, verificando-se o reconhecimento contabilístico em resultados, é igualmente conferida relevância fiscal, desde que preenchidos os demais pressupostos, designadamente o da formação de preço em mercado regulamentado.
Neste caso, as variações de justo valor de 2010, 2011 e 2012 encontravam-se originariamente reflectidas em contas de resultados. Já quanto às variações de justo valor de 2013, registadas em capitais próprios, a AT entendeu que era aplicável o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, uma vez que considerou existir uma infracção às regras contabilísticas. Assim, o mencionado preceito é aplicado àqueles instrumentos financeiros que deveriam estar reconhecidos contabilisticamente pelo justo valor em resultados.
A mensuração ao justo valor de instrumentos financeiros pode ocorrer por contrapartida de resultados mas também pode ocorrer por contrapartida de capitais próprios: categoria FVPL (“Fair Value Through the Statement of Profit or Loss”) ou categoria FVOCI (“Fair Value through Other Comprehensive Income”). Ambas as categorias estavam previstas na norma contabilística então aplicável - IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração -, actualmente substituída pela IFRS 9 – Instrumentos Financeiros.
Impunha-se a classificação na categoria FVPL se estivessem em causa instrumentos detidos para negociação. Um activo financeiro é classificado como detido para negociação se for: (i) adquirido ou incorrido principalmente para a finalidade de venda ou de recompra num prazo muito próximo; (ii) parte de uma carteira de instrumentos financeiros identificados que sejam geridos em conjunto e para os quais exista evidência de terem recentemente proporcionado lucros reais.
Refere a AT no relatório de inspecção o seguinte: “Se a alteração efetuada pelo sujeito passivo não é legalmente permitida pelo direito da contabilidade não poderá ser, concomitantemente, acolhida fiscalmente, em sede de IRC (…)”.
Sempre se dirá, a título de obiter dicta, que não é absolutamente linear o acerto desta afirmação. Estar-se-ia a admitir uma interpretação da palavra “reconhecidos”, no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, como significando “reconhecíveis”, ou seja, abdicando-se de averiguar a concreta contabilização. Nessa linha de entendimento, nas situações em que a mensuração ao justo valor em resultados decorresse obrigatoriamente do direito contabilístico e em que também estivessem verificadas as condições adicionais para relevância fiscal, o modelo em causa seria igualmente obrigatório para efeitos fiscais, independentemente do concreto critério seguido na contabilidade. Por outro lado, nas situações de opção conferida pelo direito contabilístico, já não se poderia perfilhar o mesmo entendimento [obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados para efeitos fiscais]. Nessas situações, pelo menos, a palavra “reconhecidos” teria que ser entendida nesse sentido preciso.
Ora, a afirmação transcrita, de que a incorrecta contabilização autoriza a correcção fiscal por aplicação do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, afigura-se problemática em situações de duvidosa interpretação das regras contabilísticas. Com efeito, embora estas questões não estejam aqui em discussão, não é líquido que tenha sido intenção do legislador tributário conferir relevância fiscal a ajustamentos de justo valor não reflectidos contabilisticamente em resultados.
Também se dirá, a título de obiter dicta, que parece assistir razão à Requerente quando menciona que a norma contabilística então vigente autorizava, em certas e determinadas situações, a reclassificação dos instrumentos financeiros, designadamente no que respeita à “participação com relação directa com a sua actividade operacional”, isto é, a participação de 4,97% no capital da sociedade principal cliente do Grupo. A AT não chega a referir que aquelas acções eram de facto detidas para negociação. Afirma apenas que a alteração do modo de contabilização era proibida pelo direito de contabilidade.
Tal como alude a Requerente, aplicava-se à data a alteração operada pelo Regulamento (CE) n.º 1004/2008, da Comissão, de 15 de Outubro de 2008, à versão originária da IAS 39, alteração que veio permitir reclassificar certos instrumentos financeiros, retirando-os da categoria “detidos para negociação”, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2008. Assim, contrariamente ao afirmado pela AT no relatório de inspecção, a alteração de política contabilística de FVPL para FVOCI não estava liminarmente proibida, desde que os instrumentos obedecessem às características da diferente categoria e não se tratasse de discricionariedade da própria entidade. Como sublinha a Requerente, a norma previa a possibilidade de reclassificar um activo financeiro que já não fosse detido para efeitos de venda ou recompra a curto prazo, designadamente tendo a entidade intenção e capacidade de o deter no futuro previsível.
Actualmente, à luz da IFRS 9, é também assente que os instrumentos de capital detidos no âmbito de um investimento estratégico de longo prazo podem ser designados ao FVOCI. A intenção do investimento será estabelecer ou manter um relacionamento operacional a longo prazo com a entidade na qual o investimento é feito e não tanto a intenção de aumento do valor do investimento propriamente dito.
Atento todo este excurso preambular, extraem-se duas conclusões relevantes: (i) a Requerente e Requerida estão de acordo quanto à aplicação do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC às participações em questão; (ii) embora sem aflorar as características dos investimentos, a AT funda a correcção ao lucro tributável na obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados por decorrência do princípio contabilístico da consistência.
A acção inspectiva foi aberta com vista a proceder à análise do tratamento fiscal dos referidos activos e concluiu a AT que deveriam estar reconhecidos contabilisticamente, em 2013, pelo justo valor em resultados. Cumpre agora dilucidar se assiste razão à Requerente quando afirma que a AT, ao fundar-se no princípio da consistência para proceder ao acréscimo ao lucro tributável, fica vinculada a aceitar os prejuízos dedutíveis em decorrência da mesma aplicação do disposto artigo 18, n.º 9, alínea a), do Código do IRC.
Para determinar a correcção do valor dedutível de prejuízos, a AT baseia-se na circunstância de o contribuinte ter apresentado, em Janeiro de 2015, declarações de substituição que alteravam os prejuízos precisamente na medida em que eram expurgadas as mencionadas variações de justo valor em resultados. A fundamentação expendida é a seguinte: “os prejuízos dedutíveis declarados pela sociedade A... gerados em anos anteriores totalizam o montante de € 9,366.833,67 (valor inscrito pelo sp no campo 303 do quadro 09 da declaração Modelo 22 de IRC). No entanto, o sujeito passivo, no exercício de 2015, procedeu à entrega de declarações Modelo 22 de substituição, relativas aos anos de 2011 e 2012, o que alterou os prejuízos fiscais dedutíveis. (…).” Em sede de decisão da reclamação graciosa, a AT afirma que as declarações de substituição apresentadas em 2015 não são passíveis de correcção por estar ultrapassado o prazo de caducidade do direito à liquidação. Acrescenta, ainda, que, nos termos do artigo 52.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 71.º do Código do IRC, a dedução de prejuízos fiscais a efectuar nos termos do artigo 16.º, n.º 1, do mesmo Código, toma por base os prejuízos fiscais declarados nos prazos legais, não tendo esses resultados fiscais, no caso em apreço, sido objecto de alteração posterior pela AT.
Assim, a Requerida reconhece na sua resposta que os prejuízos dedutíveis gerados em anos anteriores foram corrigidos, alterando-se o valor declarado no campo 303 do quadro 09 da declaração Modelo 22 de IRC de exercício de 2013. Ora, o facto de ter sido efectuada essa correcção constitui motivo mais do que suficiente para que se impusesse analisar a consistência na aplicação dos preceitos legais que motivaram a própria acção inspectiva, conforme invocado pela Requerente.
De facto, na relevação dos prejuízos dedutíveis de exercícios anteriores deveria ter sido dada aplicação ao disposto no artigo 18, n.º 9, alínea a), do Código do IRC. Se a AT propugna a obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados por decorrência do princípio contabilístico da consistência, não pode alhear-se dessa obrigatoriedade por aproveitamento de erro declarativo do sujeito passivo.
De acordo com a AT, não lhe cabia tomar qualquer posição de fundo sobre se os prejuízos dedutíveis existiam e qual o respectivo montante, estando nesse ponto vinculada pela declaração do sujeito passivo. A tese da AT é a de que prevalece a autoliquidação entretanto efectuada para 2011 e 2012 como fundamento suficiente e rígido para corrigir a autoliquidação de 2013 do mesmo sujeito passivo.
Ora, antecipamos desde já que esta posição da Requerida não pode proceder.
Note-se que a dedução dos prejuízos é, ao menos para a AT, um regime regra do Código do IRC e não um benefício fiscal ou uma opção que esteja na estrita dependência da conduta concreta do contribuinte e arredada da análise da AT. Nenhuma regra obriga a AT a tomar por base prejuízos fiscais declarados de montante inferior ao que decorra da lei, em situações em que disso tenha conhecimento. A norma a que a Requerida faz apelo – artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRC – dispõe: “A matéria colectável é, em regra, determinada com base em declaração do sujeito passivo, sem prejuízo do seu controlo pela administração fiscal”. Nenhuma regra impedia, pois, a AT de, no apuramento do imposto do exercício, escrutinar se era correcto o valor de prejuízos dedutíveis inscrito na declaração Modelo 22.
Efectivamente, decorre de doutrina da AT que não está na esfera exclusiva do sujeito passivo decidir da dedução de prejuízos quanto ao momento ou quando ao quantitativo de dedução. A prioridade do reporte de prejuízos até à concorrência do lucro tributável aplicase sempre e a sua dedução deverá concretizarse logo no primeiro exercício em que seja apurado lucro tributável, por ordem cronológica de antiguidade e respeitando o limite temporal definido (cf. Informação Vinculativa, Processo 962/2008, Despacho do Subdirector–Geral, de 9.07.2008, proferido por subdelegação de competências).
Além disso, se é detectada uma discrepância nas declarações apresentadas pelo sujeito passivo, o princípio do inquisitório determinaria que, ao corrigir o declarado, a AT se orientasse pela satisfação do interesse público e pela descoberta da verdade material, com a quantificação do imposto efectivamente devido. Ora, se o tivesse feito, não teria desconsiderado o montante de prejuízos fiscais que dizia respeito às variações de justo valor negativas daquelas participações.
Vejamos, pois, se a vinculação às regras invocadas pela Requerida (artigo 45.º da LGT e artigo 16.º, n.º 1, do Código do IRC) impede a consideração de prejuízos dedutíveis com inclusão das reduções de justo valor, em aplicação do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC.
Trata-se de determinar, em boa hermenêutica, qual a leitura correcta daquelas normas e é neste âmbito que intervêm os princípios invocados pela Requerente, designadamente os princípios da justiça e da boa fé.
Tem razão a Requerida quando alega que não está em causa nos autos uma situação de especialização de gastos a que se aplicaria o Ofício-Circulado 14, de 23 de Novembro de 1993 – Direcção de Serviços do IRC. Também não se aplica directamente ao caso a jurisprudência dos Tribunais superiores sobre a articulação da regra de especialização dos exercícios com o princípio da justiça.
A jurisprudência e a doutrina têm de facto entendido que o princípio da especialização de exercícios não pode ser aplicado às cegas se, da sua aplicação, resultar uma flagrante injustiça para o contribuinte, especialmente quando a administração fiscal se furte a efectuar “correcções simétricas”, ou seja, quando, ao desconsiderar um gasto erradamente contabilizado e deduzido em determinado exercício, acrescendo o respectivo valor ao lucro tributável declarado pelo sujeito passivo, não efetuar a correcção de sinal contrário, acrescendo-o aos gastos do exercício em que deveria ter sido contabilizado. E que, não sendo a correcção simétrica possível, v. g., por motivos de tempestividade, o custo, ainda que indevidamente contabilizado, deve ser aceite, pois, de outro modo, o sujeito passivo seria, por motivos de índole formal, sujeito a uma tributação por um lucro que efectivamente não obteve. Nesses casos “(…) não se verifica sequer qualquer interesse público na atuação da administração fiscal, pois não está em causa a obtenção de um imposto devido, pelo que, devendo toda a atividade administrativa ser norteada pela prossecução deste interesse, a administração deveria abster-se de atuar (…)” (cf. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, in Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada, 4.ª Edição, 2012, pp. 452 e ss.).
No caso sub judice, não tratamos de correcções simétricas em diferentes exercícios. Porém, é também uma situação de aplicação das regras do Código do IRC de forma conjugada com os mencionados princípios constitucionais da justiça e da boa fé.
Apesar da omissão da referência no artigo 55.º da LGT ao princípio da boa fé, a sua aplicação é imposta pelo n.º 2 do artigo 266.º da CRP. A própria LGT supõe a sua observância no âmbito do princípio da colaboração entre a AT e os contribuintes (artigo 59.º) e concretiza a sua aplicação ao estabelecer o regime das informações vinculativas (artigo 68.º) e a vinculação pelas orientações publicadas (artigo 68.º-A). A inclusão deste princípio na LGT estava, aliás, prevista na lei de autorização legislativa em que o Governo se baseou para a aprovar (n.º 10 do artigo 2.º da Lei n.º 41/98, de 4 de Agosto). Aquele princípio consta igualmente do artigo 10.º do CPA, o qual a Requerente também invoca.
O dever de actuar de harmonia com o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente prevêem a actuação da administração A administração tributária deverá abster-se de concretizar os comandos legais quando, em face das particularidades do caso, não se verifiquem as razões de interesse público que justificam a sua actuação ou quando se produza um resultado manifestamente injusto, devendo, em qualquer caso, limitar-se, na restrição dos direitos individuais, ao estritamente necessário para assegurar os fins que visa, não tratar discriminatoriamente os administrados, nem frustrar as expectativas que a sua actuação nestes tenha gerado.
A violação do princípio da legalidade, entendido globalmente com as limitações decorrentes dos referidos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé, constituirá vício autónomo de violação de lei. Assim tem entendido o STA, tendo-o por diversas vezes afirmado (cf. Acórdão de 2.04.2008, processo n.º 0807/07, de 25.06.2008, processo n.º 0291/08, de 19.11.2008, processo n.º 0325/08, de 28.10.2009, processo n.º 0477/09, de 06.07.2011, processo n.º 0589/11, de 21.9.2011, processo n.º 0753/11 e de 15.02.2012, processo n.º 089/12).
No caso sub judice, determina a ilegalidade parcial da liquidação a presença de correcções de sentido oposto por parte da AT. Não se lhe impunha reliquidar o IRC dos anos anteriores, nem dos anos seguintes, mas tinha que levar em consideração, ao corrigir os prejuízos declarados, a sua própria posição que entendeu ser conforme ao princípio da legalidade.
De facto, o acréscimo de variação positiva foi acompanhado de posição oposta a propósito da fixação dos prejuízos fiscais de exercícios anteriores disponíveis para utilização em 2013.
Este Tribunal está ciente que o princípio da justiça não opera como critério normativo autónomo e alternativo ao princípio da legalidade para reparar incongruências respeitantes a elementos determinantes do facto tributário que se repetem entre exercícios, mas que não são comunicáveis inter-exercícios (cf. Acórdão do STA, de 9.10.2019, no processo n.º 01278/12.2BELRS 0574/18).
Na situação sub judice, não é desse tipo de incongruências que tratamos. Não propugna a Requerente a impossibilidade de a AT corrigir o resultado fiscal de 2013 por não ter efectuado semelhantes correcções nos demais exercícios, anteriores e ulteriores. É perfeitamente possível que a AT perfilhe interpretações normativas contraditórias em exercícios fiscais distintos relativamente a elementos determinantes do facto tributário que se repetem entre exercícios, sem que isso acarrete, em si mesmo, um motivo de invalidação dos actos tributários. Porém, uma situação em que a AT aplica o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC, por ser um preceito obrigatório e por imperar a consistência com os exercícios imediatamente anteriores e depois recuse atender ao correcto valor de prejuízos dedutíveis naquele exercício, em negação da aplicação da mesma norma, já configura uma violação do princípio da legalidade em sentido amplo.
Estamos diante de uma incongruência intrínseca ao próprio apuramento do imposto do exercício de 2013, uma contradição na relevação das várias componentes que entram em linha de conta no apuramento do imposto (acréscimo ao lucro e dedução de prejuízos reportados). A própria AT, que faz apelo à consistência inter-exercícios como “leitmotif” da correcção, não pode prevalecer-se da declaração que, a seu ver, não respeita essa consistência e não respeita a obrigatoriedade do modelo de justo valor em resultados. Ao corrigir a quantificação do facto tributário por errada qualificação de um elemento, não pode ignorar, ainda que isso lhe seja recaudatoriamente mais favorável, esse mesmo elemento, erradamente qualificado, noutra vertente em que ele também influi na quantificação do facto tributário. Estando a AT vinculada ao princípio da legalidade em sentido amplo, não pode desconsiderar num erro total que detectou a mera parte em que ele a beneficia.
Refere a Requerida que, por estarem em causa prejuízos, uma diferença entre determinado montante de proveitos e de custos, desconhecia por completo os valores que compunham qualquer uma dessas rubricas.
Porém, a Requerida não pode afirmar que desconhecia se os prejuízos fiscais dedutíveis estavam ou não a ser influenciados pelas variações de justo valor uma vez que decorre do RIT que o sujeito passivo informou, em detalhe, sobre o procedimento que seguiu. Consta do RIT, igualmente, o quadro demonstrativo das variações nos anos 2011 e 2012, podendo verificar-se, de forma aritmética simples, que as declarações de substituição nada mais alteraram para além do expurgo daquelas variações de cotação das duas acções. O próprio contribuinte pôs de imediato à disposição da AT os meios necessários ao correcto apuramento da matéria colectável, com base no acertado valor dos prejuízos fiscais reportados.
Não são, pois, atendíveis as alegações da Requerida de que apenas actuou no exercício de poderes vinculados. Nenhuma vinculação existe a tomar por base prejuízos fiscais de montante inferior ao que decorra da lei, em situações em que a AT disso tenha conhecimento. A jurisprudência invocada pela Requerida a este respeito (Acórdão do STA de 15.11.2017, no processo n.º 0544/16) não tem aplicação no caso vertente, quer porque aqui não tratamos de uma situação em que se desconhecesse e não houvesse forma de comprovar o correcto montante dos prejuízos dos exercícios anteriores, quer porque diferentemente da situação tratada naquele aresto aqui a AT procedeu a uma correcção ao montante de prejuízos dedutíveis, para além da diferença assinalável de que as autoliquidações datadas de 2015 não se encontravam definitivamente consolidadas à data da inspecção realizada.
Relevante no entender deste Tribunal é que, de modo algum, estariam tais liquidações de 2011 e 2012 “cristalizadas” no sentido de precludirem o escrutínio dos resultados aí apurados para efeitos da correcta determinação dos prejuízos dedutíveis em 2013, a favor do contribuinte, e correcta liquidação referente ao exercício de 2013.
Esta conclusão sai reforçada numa situação, como a dos autos, em que há comunicação entre exercícios por força do fundamento da correcção de acréscimo ao lucro. Não esquecendo que a AT se sustenta na consistência relativamente aos exercícios anteriores não pode em simultâneo alegar uma preclusão de escrutínio dos exercícios anteriores, naquilo que é estritamente relevante.
Defende a Requerida na sua resposta que “o que violaria a confiança e segurança jurídica seria permitir a correcção do montante dos prejuízos fiscais fixados em determinado exercício durante todo o período de tempo em que esses prejuízos pudessem vir a ser reportados”. Sem razão, todavia.
Entende certa doutrina que existe de facto uma grande margem para a alteração de prejuízos fixados em exercícios anteriores, nos seguintes termos:
“O prazo de caducidade referido no presente artigo [artigo 45.º da LGT], porque é apenas de caducidade do direito à liquidação, não prejudica o direito de a Administração Tributária corrigir liquidações efectuadas dentro desse prazo, com base na inexistência de prejuízos reportáveis apurados em períodos de tributação anteriores.
A Administração não pode, pois, proceder a qualquer liquidação respeitante a esses períodos anteriores, mas essa proibição não prejudica, no entanto, o seu direito de impedir a dedução dos prejuízos que nestes períodos tenham sido apurados, quando esta for efectuada dentro de períodos de tributação relativamente aos quais ainda não se tenha extinto o direito de liquidação (despacho do Director-Geral dos Impostos de 5 de Dezembro de 1969, proc. 11/A, E.G. 7169/69)” (cf. ANTÓNIO LIMA GUERREIRO, Lei Geral Tributária – anotada, Rei dos Livros, Lisboa, 2000, p. 216).
Este Tribunal inequivocamente entende que é permitido, sem com isso bulir com situações jurídicas já estabilizadas na ordem jurídica, corrigir o montante de prejuízos abatíveis ao lucro tributável num determinado exercício, em consonância com o montante superior efectivamente correcto, quando a AT disso tenha conhecimento e esteja em prazo para o fazer.
Note-se que isto não faz perigar a segurança jurídica pois essa possibilidade de atender ao correcto valor dos resultados dos exercícios anteriores tem efeitos circunscritos. Não significa que a AT esteja a todo o tempo obrigada, ex officio, a rever e anular liquidações dos exercícios anteriores, quando nelas detecte erros, ou que deva a todo o momento reembolsar imposto liquidado superior ao devido. Todavia, já se afigura diferente desconsiderar, como desconsiderou no caso vertente, nos prejuízos dedutíveis a relevar no âmbito do apuramento do exercício por si inspeccionado [2013], um valor de prejuízos que a própria AT entendia ser fiscalmente atendível. Ao menos nos casos de inspecção tem a AT tal dever de acção, e correcção.
Este entendimento é compatível com jurisprudência do TCAS, designadamente nos Acórdãos do TCAS, de 9 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 02859/09 e de 22 de Janeiro de 2013, no processo 02857/09.
Como se refere no primeiro acórdão mencionado “a caducidade do direito à liquidação impli[ca] a caducidade à prática de um qualquer outro acto tributário que corporize a referida situação subjacente, se e ao menos na medida em que se traduza no acto tributário desfavorável e agressivo da esfera jurídica do contribuinte. Tal é o que sucede, exactamente, com as situações de correcção da matéria colectável, por referência a exercícios em que não tenha sido apurado lucro tributável e, por isso, não tenha dado origem a qualquer liquidação, em que se não entende possível o operar tal correcção por forma reflectir-se em exercícios subsequentes, por efeitos do exercício do direito ao reporte de prejuízos, se tal correcção não fosse possível, por intempestividade, no caso de, ao invés, ter ocorrido um acto tributário de liquidação naquele referido exercício pretendido corrigir” (cf. Acórdão do TCAS, de 9 de Fevereiro de 2010, no processo n.º 02859/09, destaque nosso).
No mesmo sentido afirma o TCAS que a AT não pode corrigir os prejuízos reportados de anos anteriores (alterar a expressão numérica dos resultados dos exercícios anteriores) quando o faça “em desfavor da contribuinte, sob pena de, encapotadamente, levar a efeito liquidação abrangendo exercício protegido pela caducidade” (cf. Acórdão do TCAS, de 22 de Janeiro de 2013, no processo n.º 02857/09, destaque nosso).
À luz da referida jurisprudência, não fica vedado à AT, portanto, corrigir o valor de prejuízos reportados, em benefício do contribuinte, para efeitos de correcta liquidação do imposto no correspondente prazo de caducidade.
Ao corrigir o montante de prejuízos dedutíveis impunha-se à AT a necessária consideração dos prejuízos fiscais de 2011 e 2012 apurados de acordo com a política de reconhecimento das variações de justo valor em resultados, cujo montante corresponde ao das declarações iniciais modelo 22 de IRC submetidas pela Requerente. Deste modo, a correcção de diminuição do valor dedutível de prejuízos é uma actuação incongruente de duplicação arbitrária de uma qualificação tributária desfavorável ao contribuinte (inclusão das valorizações e simultânea desconsideração de desvalorizações de justo valor reportadas dos exercícios anteriores) quando estão em causa elementos integrantes da completude normativa do mesmo facto tributário.
Consequentemente, o acto tributário de liquidação de IRC praticado pela AT com respeito ao exercício de 2013, na medida em que desconsidera prejuízos fiscais provenientes de 2011 e de 2012 num total de € 6.032.522,19, é ilegal e deve, nessa medida, ser anulado.
3. A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 45.º, N.º 3, DO CÓDIGO DO IRC
A questão da aplicabilidade ou não do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor tem sido decidida no sentido da não aplicabilidade em várias decisões arbitrais, tendo a Requerente enumerado 17 na sua petição. Acompanhamos aqui, por concordância com os respectivos fundamentos, o sentido das referidas decisões arbitrais, bem como do Acórdão proferido pelo STA, de 6.06.2018, no recurso n.º 582/17.
O entendimento da AT enferma de uma errónea interpretação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, e consequente vício de violação de lei, uma vez que aos gastos decorrentes da aplicação do modelo do justo valor não se aplica a restrição fiscal de indedutibilidade de metade do valor.
Da errónea interpretação face aos elementos literal e histórico
Na interpretação do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC deverá atender-se desde logo, conforme impõe o artigo 9.º do Código Civil, ex vi do artigo 11.º, n.º 1, da LGT, à letra da lei, assim como às circunstâncias em que a mesma foi elaborada, isto é, aos elementos literal e histórico. Importa, assim, desde já enquadrar o momento em que os preceitos legais relevantes foram aditados ao Código do IRC.
Com efeito, o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC foi aditado ao Código do IRC pela Lei do Orçamento do Estado para 2003 (Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro), dispondo, na sua redacção original que “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”. Esta redacção foi alterada pela Lei do Orçamento do Estado para 2006, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, a qual estendeu o âmbito da restrição a “(…) outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares (…)”.
Visou-se, assim, com aquela alteração legislativa abranger, ou explicitar que se encontravam abrangidas, as transmissões de outras componentes do capital próprio que não estritamente partes sociais.
No mesmo sentido refere TOMÁS CANTISTA TAVARES, quanto ao fito da alteração legislativa ao preceito legal sub judice, que “(…) A regra ínsita no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, restringia-se, inicialmente, à limitação fiscal das perdas económicas em partes de capital. No entanto, por superveniente alteração legal, essa estatuição estendeu-se também às variações patrimoniais negativas de capital próprio (…)” (cf. IRC e Contabilidade – da Realização ao Justo Valor, Almedina, Coimbra, 2011, p. 246).
Na ausência de qualquer alteração ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, concomitante com a adopção limitada, em 2010, do modelo do justo valor, aquela norma não comportou uma interpretação diferente da que vinha sendo aplicada pelo intérprete até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho.
Assim, aquela norma continuou a aplicar-se à diferença negativa entre as mais e menos-valias realizadas mediante transmissão onerosa a qualquer título, sendo condição de aplicação do preceito que houvesse “realização”.
O facto de o legislador não ter diferenciado, aquando da introdução do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, norma entretanto revogada, entre perdas e variações patrimoniais realizadas e perdas e variações patrimoniais não realizadas, para efeito de subtrair estas à restrição consagrada, não pode ser logicamente valorado como qualquer manifestação de vontade, ainda que meramente implícita, no sentido de os gastos resultantes da aplicação do justo valor serem abrangidos por essa limitação à dedutibilidade. Tais gastos apenas com o Decreto-Lei n.º 159/2009 e a consequente adaptação do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade, passaram a concorrer para a formação do lucro tributável, operando assim a reconstituição do pensamento legislativo em sentido contrário: o legislador não manifestou, ainda que tacitamente, qualquer vontade de incluir no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, os gastos resultantes da aplicação do justo valor aos instrumentos financeiros.
Na verdade, embora a letra da lei aparente autorizar a interpretação abrangente sustentada pela AT, é também a análise atenta e rigorosa do elemento literal que permite apreciar o sentido próprio e distinto dos conceitos ali em causa. Segue-se, na análise desta questão, a fundamentação do acórdão arbitral proferido no processo n.º 108/2013-T.
Com efeito, “perdas” e “outras variações patrimoniais negativas” são conceitos não redundantes, mas dotados de um sentido próprio e distinto. Para compreender tal facto, será necessário recuar aos artigos 23.º e 24.º do Código do IRC, atentando na evolução terminológica operada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009. Com efeito, antes da entrada em vigor deste último diploma, os artigos referidos do Código do IRC referiam, respectivamente, que: – “Consideram-se custos ou perdas os que comprovadamente forem indispensáveis para a realização dos proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente os seguintes: (...)”; – “Nas mesmas condições referidas para os custos ou perdas, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício, excepto: (...)”.
Verifica-se, deste modo, que, aquando da consagração da redacção do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC vigente em 2011 e 2012, este Código distinguiu expressamente, para o que aqui releva, três tipos de situações, a saber:
a) Custos;
b) Perdas;
c) Variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do exercício.
A previsão do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC (predecessor do artigo 45.º, n.º 3, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009), dever-se-á considerar, assim, reportada a estes conceitos, definidos nos artigos 23.º e 24.º, nas redacções anteriores a este Decreto-Lei. Deste modo, da previsão daquela norma dever-se-ão ter por excluídos os custos relativos a partes sociais.
A alteração normativa introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, não terá alterado nada de relevante na matéria em causa. Não se incluirão deste modo, no âmbito da norma em causa, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do Código do IRC, ainda que relativos a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Da errónea interpretação face ao elemento sistemático
Em segundo lugar há que interpretar o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC “(…) tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico (…)”, isto é, tendo presente o complexo de regras em que se insere (cf. artigo 11.º, n.º 1, da LGT e artigo 9.º do Código Civil). Ora, a limitação prevista no n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC não se aplica aos gastos por justo valor previstos na alínea a) do n.º 9 ao artigo 18.º do Código do IRC, na medida em que esta constitui uma norma excepcional–particular, que não é nem pode considerar-se ab initio derrogada pelo artigo 45.º, n.º 3, norma excepcional-comum pré-existente àquela.
Com efeito, o artigo 23.º do Código do IRC prevê a dedutibilidade, para efeitos fiscais, da generalidade dos gastos contabilísticos, desde que observados determinados critérios formais e substanciais, designadamente, que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, determinando a alínea i) do n.º 1 deste preceito a dedutibilidade fiscal dos gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros. Assim, o artigo 23.º do Código do IRC afigura-se, pois, uma norma geral, porquanto aplicável à generalidade das situações em que se apurem gastos.
Pelo contrário, o corpo do n.º 9 do artigo 18.º consagra uma excepção comum à dedutibilidade dos referidos gastos e a alínea a) do mesmo número estabelece, por sua vez, uma excepção particular à excepção comum, voltando a repor a regra de dedutibilidade quanto aos instrumentos de capital próprio mensurados ao justo valor através de resultados.
Note-se que não estão em causa na referida alínea todos e quaisquer instrumentos financeiros.
Por último, o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC limita, em contradição com a regra geral prevista no artigo 23.º do mesmo diploma legal, a dedutibilidade de certos gastos fiscais, quais sejam, as perdas geradas com a transmissão de todas e quaisquer partes de capital.
A aludida norma consubstancia, pois, uma norma excepcional-comum e por isso, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que não derroga a norma excepcional-particular introduzida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC.
Efectivamente, tendo presente as regras de resolução de conflitos entre normas, impõe-se concluir que o artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC consagra um regime excepcional particular aplicável aos gastos por justo valor, sendo que o artigo 45.º, n.º 3, do mesmo Código estabelece apenas uma limitação à regra geral da dedutibilidade de certos gastos fiscais prevista no artigo 23.º do Código do IRC. De facto, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor quanto aos identificados títulos concorrem, nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC, para a formação do lucro tributável e pela totalidade do seu valor pois se o legislador pretendesse que, quando negativos, apenas concorressem em metade do seu valor, tê-lo-ia que dizer expressamente, não sendo a norma particular aditada derrogada pela norma comum pré-existente.
Na verdade, se a lei passou a prever que as variações de valor daqueles concretos títulos são sempre ganho ou perda fiscal, quer interinamente, quer quando vendidos (não relevando como mais e menos-valia), então tais ganhos e perdas potenciais, que constituem excepção à consagração da regra geral de irrelevância de perdas e ganhos de justo valor, vão sendo custo ou proveito fiscal, ano a ano, até à venda, sem que operem nesse caso quaisquer correcções fiscais ao resultado contabilístico.
Por sua vez, nos demais instrumentos financeiros, uma vez que não foi acolhido de forma mais ampla o modelo do justo valor, mantém-se a regra anterior a 2010 de que as variações de justo valor positivas e negativas são totalmente anuladas do resultado contabilístico e, apenas na venda, com perda efectiva, existe uma tributação em 50%, tal como o ganho efectivo será tributado em metade do respectivo valor caso ocorra reinvestimento nos termos do n.º 4 do artigo 48.º do Código do IRC.
Em suma, interpretando o n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC, tendo também presente o sistema jurídico em que este se insere, conclui-se que não pode o mesmo aplicar-se às reduções de justo valor em apreço.
Da errónea interpretação face ao elemento teleológico
Por último, deverá levar-se ainda em linha de conta o elemento teleológico, o qual consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma (cf. artigo 11.º, n.º 1, da LGT e artigo 9.º do Código Civil). Ora, atendendo ao elemento teleológico, conclui-se que outra não pode ser a interpretação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC que não a de que o mesmo se não aplica aos gastos por justo valor. Com efeito, o aludido normativo estabelece uma censura ao apuramento de certas perdas em partes de capital.
Sucede que o desincentivo à obtenção de certas perdas em partes de capital só faz sentido nos casos em que a vontade do sujeito passivo seja determinante do momento e do montante da perda. De facto, a restrição fiscal prevista no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC tem como propósito evitar uma manipulação do resultado pelo sujeito passivo através da gestão do momento e/ou do quantum da perda com a transmissão de partes de capital.
Sobre a razão de ser do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, em conjugação com as alterações introduzidas pelo Decreto Lei n.º 159/2009, vejam-se os Acórdãos do STA, de 17.02.2016, no recurso n.º 01401/14, e de 6.06.2018, no recurso n.º 582/17.
Como se refere neste último “(…) à posição financeira negativa resultante do Justo Valor, não lhe …subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo…cfr. Tomás Castro Tavares, ibidem, págs. 1143 e 1144.
Portanto, o legislador com a norma do artigo 18º, n.º 9, al. a), para casos como o dos autos, afastou o princípio da realização e aproximou, ainda mais, a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do Justo Valor, cfr. artigos 20.º, n.º 1, alínea f) e 23.º, n.º 1, alínea i) do CIRC.
Do exposto resulta claramente, ao abrigo do disposto no artigo 9º do CC, que a norma do artigo 45º, n.º 3 do CIRC em análise, não se coaduna com a determinação –ao Justo Valor- do valor dos activos sujeitos a mercado regulado por entidades oficiais, porque a razão da sua existência, combate à evasão e elisão fiscal, não tem justificação no caso concreto, o valor dos activos – a posição financeira acaba por ser “estranho” e alheio à vontade do contribuinte que, em última instância, nada releva para a valorização ou desvalorização do respectivo activo (…)”.
De facto, no que respeita aos presentes valores mobiliários e correspondentes desvalorizações, não é possível qualquer controlo ou prática do tipo “wash sales"” e, a aplicar-se a limitação do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, seria inequívoca a assimetria de tratamento entre ganhos, tributados na totalidade pelo artigo 18.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRC, e perdas aceites apenas em metade do valor.
Citando novamente a mencionada jurisprudência do STA “A norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, na medida em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal. (…)
A existência desta norma visou, portanto, de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.
Nas situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), como as acções com as características do caso sub judice, passamos a ter uma relevância tributária continuada. Ou seja, face às novas normas integrantes do regime da relevância tributária da contabilização pelo justo valor de instrumentos financeiros, os rendimentos ou gastos resultantes da aplicação do justo valor a estes passam a relevar directamente para a formação do lucro tributável (artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e artigo 23.º, n.º 1, alínea i), do Código do IRC) do próprio ano em que se verificam, cumpridas que sejam determinadas condições (artigo 18.º, n.º 9, do Código do IRC), que incluem a formação do preço num mercado regulamentado, não sendo tributadas as variações patrimoniais verificadas como mais ou menos-valias (artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC).
Neste quadro, deixam de se verificar quaisquer necessidades relativas ao combate da fraude e evasão fiscais, não só porquanto a relevância tributária das variações patrimoniais deixa de estar condicionada por um acto de vontade do sujeito passivo, mas também porquanto a valorimetria é objectivamente fixada. Por outro lado, e pelas mesmas razões, carece igualmente de sentido qualquer medida de condicionamento da vontade do sujeito passivo, no sentido de favorecer comportamentos economicamente mais “desejáveis” e, como tal, conformes aos interesses do alargamento da base tributável e consolidação orçamental.
Ora, penalizar, nestes casos, o sujeito passivo com uma desconsideração de 50% do gasto incorrido, seria de todo injustificado, quer de um ponto de vista económico, quer de um ponto de vista jurídico.
É que, recorde-se, esta situação de penalização contingente (aleatória, até) injustificada, só se daria por força da excepção das situações abrangidas pelo artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do Código do IRC ao regime do princípio da realização.
Como se refere no acórdão proferido no processo n.º 393/2016-T, “Tais resultados, meramente aleatórios e sem qualquer justificação substancial que os sustente, não poderão ter sido queridos por um legislador razoável, que, por imperativo do artigo 104.º, n.º 2, da CRP, tem de fazer assentar a tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real.
O desacerto de uma hipotética solução legislativa a que conduz uma determinada interpretação é, seguramente, um argumento decisivo para rejeitar essa interpretação, pois, em boa hermenêutica, tem de se presumir que o legislador consagrou a solução mais acertada para uma determinada situação jurídica e não uma solução insensata e sem fundamento lógico (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Para além disso, o direito tributário tem especificidades interpretativas e uma delas é a de que, a estar-se perante uma situação de dúvida sobre o alcance do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC (como patenteia a existência de decisões arbitrais contraditórias), ter de se atender «à substância económica dos factos tributários» (por imposição do artigo 11.º, n.º 3, da LGT), que, em situações em que, findo o período de detenção de partes de capital, não ocorreu realização mais-valias ou até houve realização de menos-valias, conduz inexoravelmente à interpretação que afasta a incidência de imposto sobre o rendimento e não à que se reconduz a tributar o prejuízo como se fosse um rendimento.
O que permite concluir que, ao contrário do que se terá entendido no processo arbitral n.º 90/2016-T, citado pela Autoridade Tributária e Aduaneira, na interpretação em matéria tributária, os Tribunais têm de atender ao «mérito das normas» que aplicam, numa dupla aceção, pelo menos: não podem ser aceites interpretações que conduzam a soluções desacertadas, por que a tal se opõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil; nem são admissíveis interpretações que se reconduzam à tributação de rendimentos inexistentes, porque tal não se compagina com as diretrizes teleológicas que emanam do referido artigo 11.º, n.º 3, e dos princípios que lhe estão subjacentes, da justiça material, da igualdade e da tributação fundamentalmente com base na capacidade contributiva (artigos 4.º, n.º 1, e 5.º, n.º 2 da LGT), que têm suporte constitucional em princípios basilares do Estado de Direito democrático (artigos 2.º, 13.º e 104.º, n.º 2, da CRP).
Assim, tem de se concluir que devem afastar-se do campo de aplicação deste artigo 45.º, n.º 3, as situações em que não vale a sua razão de ser, em sintonia com a velha máxima “cessante ratione legis cessat eius dispositio (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)”.
Acresce, ainda, que também pela ratio legis do aditamento do n.º 9 ao artigo 18.º do Código do IRC se descortina que não é aplicável a correcção fiscal vertente, pois que, na adaptação do Código do IRC às regras de normalização contabilística vigentes, o legislador tributário não acolheu generalizadamente o justo valor como modelo de valorização dos instrumentos financeiros, mantendo, nesse âmbito, alguma disparidade entre a normação contabilística e fiscal. Na verdade, consagrou expressamente no corpo do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC um princípio geral de irrelevância do justo valor para de seguida acolher uma excepção quanto a um particular tipo de instrumentos financeiros, a qual consubstancia uma confluência entre normação contabilística e fiscal.
Ora, a ratio da excepção, que consubstancia tal confluência entre normação contabilística e fiscal é a que subjaz às demais normas adaptadoras da fiscalidade à contabilidade, ou seja, a redução dos custos de cumprimento e administrativos. Como salientado no Relatório do Grupo de Trabalho para a Análise do Impacto Fiscal da Adopção das Normas Internacionais de contabilidade (cf. Relatório do Grupo de Trabalho criado por Despacho de 23 de Janeiro de 2006 do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 200, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa, 2006, p. 99), no caso de activos adquiridos com o objectivo de venda num prazo muito curto, em que o número de transacções tende a ser muito elevado, a existência de tratamentos distintos a nível fiscal e contabilístico implicaria encargos administrativos bastante elevados, razão pela qual se acolheu aí a regra do justo valor vigente em termos contabilísticos. Que sentido faria, pois, aditar-se a alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código do IRC para efeitos de uniformizar o tratamento fiscal ao contabilístico naquela específica situação se, ao mesmo tempo, se cumulasse de imediato uma correcção fiscal repondo a disparidade? Nesse caso, o razoável seria que o legislador tributário se abstivesse de adaptar, ainda que parcialmente, conservando o status quo ante de expurgar do resultado contabilístico as variações de justo valor de qualquer espécie de instrumentos financeiros. Com efeito, nesse caso, o legislador tributário nem teria por que agir no âmbito do Decreto-Lei n.º 159/2009, bastando-lhe que não aditasse qualquer norma de acolhimento do justo valor e mantivesse a existência de tratamentos distintos a nível fiscal e contabilístico, com a relevação da perda em metade do valor.
Não se encontra, pois, preenchida a ratio legis do n.º 3 do artigo 45.º do Código do IRC no que respeita às desvalorizações do justo valor, razão pela qual aquele preceito não se lhes aplica, sendo as mesmas fiscalmente dedutíveis na totalidade.
No caso dos autos, tal interpretação significa que o montante de € 93.262,00 referente a reduções de justo valor no ano de 2013 não podia ter sido desconsiderado pela AT, determinando-se a anulação do imposto correspondente, incluindo as componentes de derrama.
Significa igualmente que os prejuízos de 2011 e de 2012 dedutíveis em 2013 compreendem os montantes de € 5.392.703,23 e € 638.818,96, num total de € 6.032.522,19, correspondentes a 50% dos gastos de justo valor das acções verificadas nesses exercícios. Ou seja, a totalidade das reduções de justo valor de € 12.065.044,38 devem ser relevadas, e não apenas a sua metade, contrariamente ao veiculada na doutrina da AT.
4. A INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 52.º, N.º 2, DO CÓDIGO DO IRC A PREJUÍZOS/LUCROS MERAMENTE POTENCIAIS DERIVADOS DE VARIAÇÕES DE JUSTO VALOR DE ACÇÕES COTADAS
Passamos à pretensão da Requerente de deduzir à matéria colectável no seu todo os prejuízos fiscais reportados, sem limites quantitativos, designadamente o limite que decorre do disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC.
Nesta parte, o pedido de pronúncia arbitral com vista à anulação da liquidação de IRC tem como causa de pedir a ilegalidade por vício de violação de lei e, subsidiariamente, a ilegalidade por inconstitucionalidades do mencionado artigo.
De acordo com o pedido de pronúncia arbitral, não se conforma a Requerente com o entendimento da AT (e respectivas consequências na tributação) de que as recuperações de justo valor de uns anos para outros (reduções em 2010, 2011 e 2012, e recuperação parcial em 2013, objecto de tributação pela AT) podem ser tributadas sem ter em conta a totalidade das antecedentes baixas de valor por abater à matéria colectável. De acordo com a Requerente, é inaceitável a leitura da lei subscrita pela AT de que os prejuízos fiscais gerados pelas reduções de justo valor dos activos só relevariam contra 75% do lucro tributável gerado em anos seguintes pela recuperação da cotação (reversão das perdas anteriores nos mesmos activos).
A Requerente salienta que o lucro tributável apenas tem a sua origem na recuperação ocorrida no ano de 2013 do justo valor anterior das acções. Sublinha que essa valorização das acções neste ano de 2013 reverte apenas parcialmente desvalorizações ocorridas nos anos anteriores de 2010 a 2012 (recuperação parcial que foi novamente revertida nos anos seguintes). Ou seja, insiste a Requerente que não é despiciendo o facto de o contribuinte se manter em situação de perda com respeito àquelas acções. Nessa situação em que a recuperação parcial ainda não fez o contribuinte sair de um agregado de perdas, entende o contribuinte que a oscilação positiva do justo valor nenhuma matéria colectável e consequente tributação deveria originar.
À cautela e sem prescindir, entende que é inconstitucional a norma constante do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC quando interpretada (conforme pretendido pela AT) no sentido de abranger o confronto entre lucros (valorizações) e prejuízos (desvalorizações) decorrentes de ajustamentos de justo valor de acções cotadas, isto é, quando aplicada sem expurgar os lucros e prejuízos decorrentes de ajustamentos de justo valor de acções cotadas, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, de proibição de soluções arbitrárias, da proporcionalidade ou da justa medida, da capacidade contributiva, da tributação fundamentalmente do rendimento real e da propriedade (artigos 2.º - Estado de Direito – 13.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, 104.º, n.º 2, e 62.º, da CRP).
Acresce, ainda, o princípio da tutela da confiança e da boa fé: a norma de que se pretende servir a AT, qual seja a restrição à utilização de prejuízos fiscais transitados de anos anteriores prevista no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, só foi introduzida no ordenamento jurídico em 30 de Dezembro de 2011, pelo artigo 113.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2012), com entrada em vigor em 1 de Janeiro de 2012 (cf. o artigo 215.º da referida lei). Na medida em que se interprete a restrição prevista no n.º 2 do artigo 52.º do Código IRC, na redacção em vigor em 2013 e introduzida em 2012, como aplicando-se ao encontro de prejuízos e de lucros mensurados ao justo valor, será inconstitucional, no entender da Requerente, a abrangência por essa restrição de prejuízos mensurados ao justo valor nos anos anteriores de 2010 e 2011, por violação dos princípios constitucionais da tutela da confiança e da boa fé (artigo 2.º - Estado de Direito – da CRP).
A Requerente invoca a inconstitucionalidade quer da norma do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC na redacção em vigor em 2013 (introduzida em 2012), mas também do artigo 116.º, n.º 2, da citada Lei do Orçamento do Estado para 2012, no segmento normativo em que impõe a aplicação da nova redacção do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC a prejuízos apurados no passado (anteriores a 2012), incluindo prejuízos resultantes de mensurações ao justo valor.
De acordo com a posição expressa pela Requerente, a invocada inconstitucionalidade das normas decorre igualmente do facto de não assistir escolha ao contribuinte. Esta imperatividade da mensuração ao justo valor mais reforça a desproporção, a violência da agressão à real capacidade contributiva, caso se veja na introdução em 2012 da restrição que até hoje vigora no n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC, uma restrição aplicável também fora do sistema-regra de relevação fiscal apenas de ganhos e perdas realizados, isto é, uma restrição extensível ao desvio ao sistema-regra de realização que é a tributação por mensuração ao justo valor.
Começando por analisar a questão interpretativa, antes de prosseguirmos para a apreciação das inconstitucionalidades, importa desde já referir que esta questão decidenda apresenta muitos pontos próximos da questão apreciada na secção anterior relativa ao artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC.
Isso mesmo ilustra a Requerente quando tece as suas considerações. Caso seja aplicável o n.º 2 do artigo 52.º do Código IRC aos prejuízos de justo valor (com a recusa fiscal de relevação da totalidade dos mesmos), a Requerente será tributada, sem motivo discernível algum, como se tivesse tido um acréscimo patrimonial que não teve. Isso gera resultados totalmente arbitrários, que tratam de modo desigual contribuintes com idênticos resultados económicos pelo simples facto de ter havido mais, ou menos, oscilações, durante um período mais ou menos alargado, na cotação do activo mensurado ao justo valor, no período que medeia entre a aquisição do ativo e a realização (fixação definitiva) do ganho (ou perda) na venda. De facto, a aleatoriedade que acima se referiu também é resultado inerente à restrição agora analisada.
Entende a Requerente que, à semelhança do que se passou com o entretanto revogado (em 2014) artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, deve entender-se igualmente que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, não se aplica ao relacionamento tributário entre ganhos e perdas resultantes de oscilações de partes de capital detidas contabilístico-fiscalmente mensuradas ao justo valor.
No entanto, adianta-se desde já que não será no plano interpretativo que se poderá chegar a uma solução de adequada compatibilização de valorações normativas entre o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), e o disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC (tal como foi relativamente ao confronto de normas anteriormente apreciado).
Com recurso aos elementos da interpretação afigura-se que não se consegue chegar, tal como pretende a Requerente, a uma conclusão de prevalência do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), em relação ao disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC ou a uma conclusão de restrição do campo de aplicação deste último preceito por referência às variações de justo valor.
No plano da aplicação do disposto no artigo 52.º do Código do IRC já só entram em linha de conta os conceitos de “lucro tributável” e de “prejuízos”. Não assistem dúvidas que os ganhos e gastos de justo valor estão aí compreendidos, naquilo que é o campo circunscrito de acolhimento do modelo de justo valor.
A interpretação da lei traduz-se na determinação do seu sentido jurídico-normativo em ordem a obter, por referência ao caso, um critério jurídico adequado à justa resolução de um determinado problema jurídico concreto. Impor-se-á, a esse propósito, considerar a intencionalidade prático-normativa da norma, para além do elemento literal.
Na interpretação das normas em referência são atendíveis os princípios da especialização e da solidariedade dos exercícios, os princípios da mensuração ao justo valor em resultados por confronto com o princípio da realização e os princípios da capacidade contributiva e da igualdade em articulação com os princípios da praticabilidade e da prevenção do abuso e evasão fiscais.
O princípio da especialização dos exercícios é muitas vezes referenciado como uma regra legislativamente arbitrária de separação temporal, para efeitos fiscais, de um facto tributário de duração prolongada. A actividade das empresas é continuada, ainda que exista a necessidade de, artificialmente, a cindir, calculando-se os resultados em relação a cada exercício. Este princípio é o “informador material”, i. e., o pressuposto legitimador das opções normativas e das operações administrativas – baseadas no pressuposto rígido da necessidade de efectuar um corte temporal (anual) na sequência dinâmica que é o fluxo económico empresarial, tendo em vista o apuramento da situação económica do sujeito passivo para efeitos de liquidação do imposto sobre o rendimento – que hão-de permitir a imputação dos elementos positivos e negativos a quantificar no contexto da determinação do lucro tributável em IRC.
O legislador consagra em paralelo outras regras legais que, substancialmente, constituem matizes ao princípio da especialização dos exercícios, tendo em vista harmonizar, em abstracto, a segurança jurídica necessária à fixação dos critérios que presidem à determinação da base tributável do IRC com o princípio constitucional da tributação das empresas segundo o rendimento real.
O reporte de prejuízos enquadra-se nessas regras. O rendimento real das empresas decorre da consideração dos sucessivos resultados anuais, os quais são meramente parcelares. O apuramento de resultados anuais positivos pode assim não traduzir um verdadeiro enriquecimento, mas antes a mera recuperação de perdas pretéritas.
Importa a este respeito recordar o que se encontra referido no último parágrafo do ponto 7 do preâmbulo do Código do IRC: “A periodização do lucro é origem de outros complexos problemas, estando o principal relacionado com o facto de cada exercício ser independente dos restantes para efeitos de tributação. Essa independência é, no entanto, atenuada mediante certas regras de determinação da matéria colectável, especialmente através do reporte de prejuízos. Consagra-se, assim, a solidariedade dos exercícios, o que se faz em moldes idênticos aos que vigoravam no sistema anterior, ou seja, na modalidade de reporte para diante até um máximo de cinco anos”.
A solidariedade dos exercícios assenta, pois, na continuidade e plurianualidade da actividade empresarial. Em comentário ao então artigo 46.º, actual artigo 52.º do Código do IRC, refere a administração tributária o seguinte:
“O estudo do imposto sobre o rendimento, mais concretamente sobre o rendimento das pessoas colectivas, tem dado um lugar de destaque ao princípio da especialização dos exercícios. Basicamente, pela necessidade de estabelecer períodos anuais de apuramento de resultados para efeitos fiscais e de precisar a qual dos exercícios é que se imputa certo facto ou relação jurídica ou económica que tenha elementos de conexão com os vários exercícios.
Frente a uma postura inicial de aplicação rígida do princípio, tem-se progressivamente atenuado os efeitos de injustiça que em alguns casos leva tal aplicação, quer através da aceitação de critérios de imputação temporal mais flexíveis no apuramento de resultados, quer admitindo a compensação dos prejuízos em posteriores exercícios que evidenciem resultados positivos.
Esta última faculdade é o reconhecimento de que os exercícios económicos são independentes entre si e que, fluindo o rendimento das sociedades em continuidade, a sua qualificação em períodos anuais, resultando de um imperativo legal, não obsta à solidariedade entre os diversos exercícios”. (cf. Código do IRC – Comentado e Anotado, Direcção-Geral dos Impostos [DGCI], 1990, p. 207).
Fica, pois, bem expresso que a dedução dos prejuízos fiscais não é um “favor” ou “benesse” concedida às empresas, mas sim o reconhecimento de que a sua actividade não se esgota no final de cada período de tributação. Não se trata de “beneficio fiscal”, de “isenção”, de excepção à tributação regra. Os custos não recuperados de um exercício devem comunicar-se ao lucro de outros exercícios como forma de o imposto sobre os lucros da actividade ser equilibrado e justo, através de uma postura de neutralidade temporal. O reporte é pois um aspecto estrutural ao sistema fiscal uma vez que tem como objectivo adaptar o sistema de tributação anual à real situação contributiva do contribuinte. Esta ponderação inter-temporal é essencial para salvaguardar o princípio da capacidade contributiva.
Note-se que o prazo de reporte dos prejuízos fiscais aplicável à data dos factos é extremamente exíguo quando comparado com os padrões internacionais. O prolongamento do prazo de reporte de prejuízos fiscais introduzido com a Reforma do Código do IRC em 2014 visou trazer alguma competitividade do regime face a outros países como a Espanha, com prazo prolongado até 18 anos, ou como a Alemanha, Áustria, França, Itália, Hungria, Bélgica, Chipre, Dinamarca, Eslovénia, Irlanda, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Reino Unido e Suécia, sem quaisquer limites temporais de reporte fiscal.
Apreciada a natureza e razão de ser do princípio da solidariedade dos exercícios, cumpre ainda atentar nas razões da compressão a este princípio – artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC – introduzida com a Lei do Orçamento do Estado para 2012.
Tais razões terão sido relacionadas com o imperativo de consolidação orçamental e prevenção do abuso, sendo relevante o contexto da introdução daquela medida.
O Relatório do Orçamento do Estado para 2012 é sucinto a este respeito. Refere-se o seguinte: “As empresas portuguesas passam a beneficiar do alargamento do prazo de reporte de prejuízos de quatro para cinco anos, fruto da renegociação do compromisso previsto no PAEF, favorecendo-se assim o investimento produtivo e criando-se condições para o reforço da competitividade das empresas. Por outro lado, introduz-se uma limitação à dedução de prejuízos fiscais, a qual corresponderá a 75% do lucro tributável do período em que se procede à dedução. Desta forma, as empresas que apresentem lucros tributáveis serão sempre sujeitas ao pagamento de IRC, ainda que detenham prejuízos fiscais reportáveis de anos anteriores” (p. 47 do Relatório).
No ano imediatamente anterior, as medidas de condicionamento da dedução de prejuízos fiscais apresentavam as seguintes justificações:
“III.2.2.2. Alargamento da Base e Combate à Evasão no IRC - A Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 faz uma aposta forte no alargamento da base de incidência e no combate ao planeamento e evasão em sede de IRC. Assenta esta aposta na consciência de que o IRC se mostra distribuído de forma desequilibrada em Portugal, quer no topo, onde preponderam taxas efectivas de tributação inferiores à média, quer na base, onde a evasão se mostra em níveis socialmente não aceitáveis. Sendo verdade que estas deficiências do nosso sistema fiscal não se resolvem facilmente e se é verdade que nem todas elas passam por intervenções de natureza legislativa, é certo, porém, que o Código do IRC continua a conceder um tratamento favorável a matérias como a distribuição de lucros, o reinvestimento de mais-valias ou a dedução de prejuízos, impelindo o legislador a procurar adequar estas situações em que a base de incidência deste imposto se mostra tão estreita. Em conformidade, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 introduz um conjunto largo de medidas tendentes ao alargamento da base do IRC, assim como ao combate a práticas de natureza evasiva.
(…)
III.2.2.2.3. Condicionamento da Dedução de Prejuízos Fiscais - Com o propósito de reforçar o combate à fraude e evasão fiscal, nomeadamente através da manipulação dos registos contabilísticos das empresas, a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 vem subordinar a dedução de prejuízos fiscais à certificação legal das contas por Revisor Oficial de Contas. Trata-se de uma solução que visa pôr termo a eventuais aproveitamentos abusivos de prejuízos fiscais, reforçando o escrutínio sobre as empresas e a responsabilização na elaboração das suas contas. Assim de uma solução que exige modelação e filtragem, estando fora de causa a sua aplicação universal. Pelo que a Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2011 remete a concretização desta regra para Portaria do membro do governo responsável pela área das finanças, garantindo-lhe aplicação eficaz mas ponderada, combinando a preocupação do combate à fraude com a de evitar custos de contexto para as empresas” (´cf. pp. 69 e ss. do Relatório do Orçamento do Estado para 2011).
Neste ponto, verifica-se que a razão de ser da norma agora em análise é bastante próxima da razão de ser da norma analisada na secção anterior.
Por outro lado, a derrogação ao princípio da realização com a introdução do artigo 18.º, n.º 9, alínea a), do mesmo Código, teve subjacente as razões acima aludidas.
Importa relembrar que o Código do IRC acolhe um princípio de dependência parcial entre a fiscalidade e a contabilidade para efeitos de apuramento do lucro tributável. Este princípio determina ou conduz a soluções diferentes quando se trate de externalizar de forma padronizada (tendo em vista a comparabilidade) a situação financeira de uma entidade económica (a empresa) – sendo essa a finalidade a que se destinam as normas de contabilidade e relato –, ou antes de apurar o rendimento líquido do exercício, ou seja, aquilo que expressa a efectiva capacidade contributiva do sujeito passivo.
Assim, não é porque as regras da contabilidade e do relato financeiro impõem a contabilização no balanço e o respectivo reconhecimento como resultados do exercício de determinados ganhos ou perdas potenciais ou latentes, que essas variações potenciais têm de ser imputadas para efeitos do apuramento do lucro tributável.
Com efeito, a intenção do legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, devidamente evidenciada, foi, assumida e expressamente, a de manter a aplicação do princípio da realização, inclusive relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5% do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.
Como já mencionado, a ratio da excepção foi a redução dos custos de cumprimento e administrativos.
Note-se que o próprio Direito da Contabilidade não impõe a mensuração FVPL acima referenciada em todas e quaisquer situações mas apenas naquelas em que se considera que essa é a forma mais correcta de reflectir a criação de valor ao longo do tempo, o que se compreende pela necessidade de o balanço ilustrar anualmente a situação económico-financeira da empresa. Em todo o caso, a motivação para a fiscalidade acolher de forma circunscrita a mencionada regra de relevância de mais e menos-valias não realizadas foi uma razão de praticabilidade e não uma consideração de que as mais-valias não realizadas constituíssem índice mais adequado de capacidade contributiva.
Atendendo a todas estas razões que presidiram à edificação das normas fiscais em presença, cumpre verificar da sua conciliação.
A Requerente propõe que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC não se aplique aos ajustamentos de justo valor. O limite da dedutibilidade de prejuízos teria a seguinte leitura: a percentagem de 25% do lucro tributável é insusceptível de abatimento por prejuízos fiscais reportados, com excepção da componente do lucro que se reconduza a mais-valias não realizadas de instrumentos financeiros. Ora, tal interpretação restritiva não se afigura possível.
É certo que não se vê motivo para qualquer assimetria no tratamento fiscal de rendimentos e gastos de justo valor e esta conduziria a resultados económicos e fiscalmente inaceitáveis, como já se demonstrou amplamente na jurisprudência proferida a respeito do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC. Aí se erige a teleologia do preceito como elemento central e se desvaloriza a pura literalidade em virtude de poder conduzir a resultados jurídico-fiscais incomportáveis (haver imposto a pagar com rendimento nulo) e frontalmente contrários a princípios da tributação empresarial legalmente consagrados.
De facto, ao justo valor negativo (e ao prejuízo fiscal em que este se traduza) nunca subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte.
Como se referiu, designadamente nos acórdãos arbitrais n.os 148/2013-T, 108/2013-T, 85/2018-T, a assimetria de tratamento dos ganhos e gastos de justo valor tem efeitos perniciosos e contrários ao próprio modelo de justo valor. Citando o primeiro dos mencionados acórdãos, “(…) o contribuinte apenas pode aceitar que aumentos e diminuições do justo valor funcionem como duas faces da mesma moeda. De outro modo, quando ele ainda nada ganhou nem perdeu em termos definitivos, já teria sofrido um dano fiscal irreparável: a tributação díspar de uma diferença de 25 quando ainda não logrou uma valorização sequer superior ao custo da aquisição (cenário aliás bem provável, se atendermos à evolução das bolsas mundiais, em particular da portuguesa, no período 2008-2014)”.
No entanto, como se havia adiantado já, nada no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC autoriza a distinguir componentes dos lucros ou dos prejuízos. A interpretação propugnada pela Requerente de que o artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC tem o seu campo de aplicação restringido ao plano da “realização” não é possível. Está já fora do domínio interpretativo; situa-se no domínio integrativo. Postula-se a necessidade de superar o elemento literal de forma a que a solução concreta esteja adequada ao concreto escopo da norma tal como este foi previsto pelo legislador.
Ora, pese embora se tenha vindo a admitir a prevalência do elemento teleológico em situações similares à decidenda (veja-se, por exemplo, o Acórdão arbitral proferido no processo n.º 351/2016-T, em que se admite a extensão teleológica num contexto de contornos semelhantes), entende este Tribunal que não é aqui permitido romper as amarras do teor literal ainda que em obediência à máxima “cessante ratione legis, cessat lex ipsa”.
A norma em causa – artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC - está redigida em termos tais que a posição defendida pela Requerente corresponderia, na prática, a uma interpretação correctiva ou ab-rogante, porquanto contrariaria abertamente a letra do preceito em causa (elemento gramatical da interpretação).
Será possível em matérias como as de que nos ocupamos ir para além do significado literal possível? Este seria efectivamente um exemplo de manual de uma lacuna oculta. O caso em apreço terá especificidades não consideradas pela letra da lei e que deviam tê-lo sido, pois justificam um tratamento diferente (cf. BAPTISTA MACHADO, J., Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, Almedina, 1993, p. 196).
Nas situações em que a lei fixa um regime que entra em contradição com o sistema ou com a própria finalidade do preceito, a doutrina e a jurisprudência civilística vêm admitindo a redução teleológica (cf. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2012, pp. pp. 746-747, 782 e ss.). Pressupõe-se que o fim da lei está claramente averiguado pelo intérprete e que, sem essa redução, esse fim não seria atingido em parte dos casos, gerando uma grave contradição de valoração. Para evitar essas situações, o intérprete reduz ou exclui do campo de aplicação de uma norma casos que estão abrangidos, inclusive pelo seu texto, com fundamento na teleologia imanente a essa mesma norma (cf. BRONZE, Fernando José, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 922, CASTANHEIRA NEVES, António, “Interpretação Jurídica”, Digesta. Escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua Metodologia e Outros, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, pp. 364-368).
Não obstante, uma vez que na determinação do sentido das normas fiscais de incidência resulta proibida a analogia, também uma proibição de redução teleológica deve nelas ser extraída, obrigando o interesse preponderante de segurança jurídica a manter o limite do sentido literal possível.
Da mesma forma, não é possível atingir o resultado pretendido pela Requerente através de uma interpretação em conformidade com a CRP, designadamente em conformidade com os princípios constitucionais da igualdade e da tributação do rendimento real (artigo 104.º, n.º 2, da CRP), por falta de um sentido possível conforme. No dizer de JORGE MIRANDA, “A interpretação conforme com a Constituição não consiste então tanto em escolher entre vários sentidos possíveis e normais de qualquer preceito o que seja o mais conforme com a Constituição quanto a discernir o limite - na fronteira da inconstitucionalidade – um sentido que, embora não decorrente de outros elementos de interpretação, é o sentido necessário e o que se torna possível por virtude da força conformadora da Lei Fundamental” e “Não pode, no entanto, deixar de estar sujeita a um requisito de razoabilidade: implica um mínimo de base na letra da lei” (cf. Manual de Direito Constitucional – Tomo II, Coimbra Editora, 2001, pp. 267-269).
Por outro lado, da leitura dos preceitos em presença também não se pode concluir que estejamos diante de uma verdadeira presunção de abuso que consentiria, em sintonia com o artigo 73.º da LGT (“As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”), que o contribuinte desencadeasse o procedimento contraditório para ilidir a presunção de abuso subjacente à norma.
Resta, pois, aferir da constitucionalidade das normas em presença.
Ora, a aplicação conjugada das duas normas – artigo 18.º, n.º 9, alínea a), e artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC – resulta num tratamento diferenciado injustificado de contribuintes que se encontrem em situações materialmente idênticas, por evidenciarem igual capacidade contributiva. A aplicação conjugada das duas normas conduz a que meras valorizações provisórias de acções se convertam em matéria colectável mínima devida arredada do princípio da solidariedade de exercícios que, como referido, constitui emanação da capacidade contributiva.
No caso concreto ficou demonstrado que o lucro (resultado positivo) deriva da variação positiva do justo valor (ganhos potenciais) pelo que não podem deixar de ser integralmente consideradas as variações negativas, mesmo que provindas de anos anteriores (via prejuízos, também gerados, como comprovado, por perdas potenciais de variações de justo valor). É a determinação desse preciso rendimento – nas suas componentes positivas e negativas – que está a ser feita, e não pode ser truncada, sob pena de se subverter o modelo de tributação.
Caso tratássemos de valorizações provisórias de acções, convertidas em matéria colectável mínima devida no ano por inaplicabilidade da solidariedade de exercícios [artigo 52.º, n.º 2], mas em que não existissem desvalorizações anteriores de justo valor, ou pelo menos não na mesma medida da valorização (em teoria, quer por caducidade do direito de dedução de prejuízos, quer porque as desvalorizações correspondentes já teriam sido “utilizadas” influindo no apuramento doutros exercícios, quer porque a composição dos prejuízos dedutíveis fosse inteiramente distinta), a situação seria diferente da tratada nos autos. Ainda assim se estaria a tributar um mero ganho potencial numa situação de concomitante existência de prejuízos por deduzir mas a situação não teria os contornos exactos da sub judice. Caso tratássemos de lucro realizado ao qual se vedava a dedutibilidade de prejuízos enformados por desvalorizações de justo valor, a situação seria também diferente da dos autos. Neste caso, ficou provado que a totalidade do lucro e a totalidade dos prejuízos têm idêntica natureza (rendimentos / gastos potenciais das acções cotadas).
A simples circunstância da obrigatoriedade de mensuração e imputação temporal de acordo com o modelo de justo valor em determinados activos leva a tributar um acréscimo patrimonial ilíquido nulo, sem que haja uma razão preponderante para que isso suceda. Não se verificam razões de combate à fraude e evasão fiscal, nem as razões de consolidação orçamental, que tenham estado na génese da introdução do normativo fiscal.
A soma dos dois desvios (desvio à realização e desvio à solidariedade de exercícios) leva a que a tributação se distancie em absoluto da capacidade contributiva. Não há uma efectiva relação entre o imposto, na sua estrita configuração pelo legislador e o pressuposto económico seleccionado para objecto desse imposto.
Aproveitando as palavras do Acórdão n.º 348/97:
"(...)
O legislador, na seleção e articulação dos factos tributáveis deverá ater-se a factos reveladores da capacidade contributiva 'definindo como objeto (matéria coletável) de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto'.
A tributação conforme com o princípio da capacidade contributiva implicará a existência e a manutenção de uma efetiva conexão entre a prestação tributária e o pressuposto económico selecionado para objeto do imposto, exigindo-se, por isso, 'um mínimo de coerência lógica das diversas hipóteses concretas de imposto previstas na lei com o correspondente objeto do mesmo'.
(...)".
Ora, a capacidade contributiva não resulta alterada pelo diferente momento em que deva ocorrer a tributação dela resultante. Seria uma frontal violação do princípio da igualdade, cuja dimensão maior é, precisamente, a da “tributação segundo a capacidade contributiva” (neste sentido, CASALTA NABAIS, Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 151 e ss), tratar diferentemente realidades iguais apenas por ser diferente o momento em que deve ocorrer a sua tributação (tributação do saldo do acréscimo patrimonial, no caso do regime regra de realização, e tributação de acréscimo patrimonial ilíquido nulo por força da relevância fiscal assimétrica das oscilações de justo valor).
Tal tratamento discriminatório, desprovido de qualquer fundamento objectivo evidente, encerra uma violação do princípio da igualdade, do princípio da capacidade contributiva e da tributação do lucro real enquanto corolários do princípio da igualdade.
Face ao enunciado constitucional, as normas de prevenção de abuso que se traduzam em desvios de “normalidade” ou “praticabilidade” necessitam de uma motivação qualificada para subsistirem incólumes na ordem jurídica, pelo que se essa motivação não fizer qualquer sentido numa determinada interpretação e aplicação da norma, o que sobra é apenas a adopção de uma perspectiva meramente maximizadora do rédito fiscal, de forma acrítica, arbitrária e discriminatória.
Cumpre notar que, embora o princípio da tributação das empresas pelo rendimento real não seja absoluto, também não é meramente programático, significando a expressão “fundamentalmente” que deve ser compatibilizado com outros princípios, sendo o balanceamento articulado pelo princípio da proporcionalidade, no sentido de legitimidade da derrogação, funcionalidade e proporcionalidade estrita. Admite-se que normas anti-abuso específicas possam legitimamente traduzir-se - em casos que oferecem especial risco do ponto de vista da erosão das bases tributáveis -, na indedutibilidade de determinadas componentes negativas do lucro, ou seja, na sua irrelevância para efeitos fiscais.
Porém, o legislador não pode arbitrariamente, sem respeito dos limites da necessidade e proporcionalidade, tributar um lucro “normalizado”.
A este respeito, atente-se na posição do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 753/2014, de 12 de Novembro, de que se transcreve o seguinte excerto:
“(…) O ponto é que tais limitações ou exclusões [à dedutibilidade de gastos] tenham um fundamento racional adequado e se apliquem à generalidade dos rendimentos em causa.
Trata-se de opções de política fiscal que assentam numa ideia de praticabilidade, que exige ao legislador a elaboração de leis cuja aplicação e execução seja eficaz e económica ou eficiente, e que conduzam a resultados consonantes com os objetivos pretendidos. Com essa finalidade, com que se pretende também assegurar os princípios materiais da igualdade e da justiça fiscal, é constitucionalmente justificável que o legislador possa recorrer não apenas às referidas presunções legais, mas também a técnicas de tipificação e de simplificação, que permitam disciplinar certos aspetos do direito dos impostos segundo critérios de normalidade, afastando as situações atípicas ou anormais (idem, págs. 622-623).
(…)
(…) não se afigura ser excessivo ou desproporcionado, face ao objetivo central de combate à evasão e fraude fiscal, que se tenha adotado um critério mais apertado naquelas situações em que se verifique um especial risco de planeamento fiscal por se tratar de operações realizadas no seio de grupos societários. Relevando também aqui razões de normalidade e viabilidade prática (…)”.
Ora, da tributação segundo o justo valor resulta a impossibilidade da manipulação através da escolha do momento da realização das mais-valias e menos-valias e o rendimento resultante da aplicação do justo valor é apurado independentemente de qualquer manifestação de vontade do sujeito passivo. Efectivamente, o funcionamento do justo valor, ancora-se no pressuposto económico de constituir uma antecipação financeira do imposto a arrecadar aquando da realização, inexistindo qualquer intenção de proceder a uma tributação superior à que deveria ser efectuada aquando da realização. Ou seja, ao método do justo valor está subjacente um pressuposto de neutralidade entre o regime do justo valor e o regime das mais-valias realizadas, não devendo a tributação que resulta da aplicação de um desses regimes ser superior ou inferior à que resultaria da aplicação do outro.
O modelo do justo valor é, em conformidade, um sistema completo e fechado, sob pena de total adulteração do seu funcionamento. É por essa razão que os instrumentos financeiros mensurados ao justo valor ficam excluídos do regime das mais e menos-valias nos termos do artigo 46.º, n.º 1, alínea b), do Código do IRC, na redacção à data.
Neste sentido, ao introduzir-se neste modelo uma correcção, qual seja a compressão do princípio da solidariedade entre exercícios, alcança-se, afinal, um resultado absolutamente distorcido e afastado do rendimento real. O imposto a pagar não será então uma mera antecipação do que deveria ser pago aquando da realização, mas um rendimento eventualmente muito superior, dependente de factos alheios à vontade do sujeito passivo relacionados com as flutuações do mercado bolsista.
Não existe aqui o risco de eventual erosão da base fiscal referenciado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, n.º 197/2013, n.º 753/2014, e n.º 430/2016.
Referiu o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 197/2013 que não há “(…) uma conexão suficientemente forte entre os princípios da igualdade tributária e da tributação das empresas pelo lucro real, por um lado, e a figura do reporte de prejuízos fiscais, por outro, ao ponto de se poder afirmar que a assunção do lucro tributável como matéria coletável de um dado imposto frustra o respetivo conteúdo normativo. Indubitavelmente, havendo reporte de prejuízos, verifica-se uma maior adequação da tributação à vida económica das empresas, mas isso não basta para que se afirme, na ausência daquela faculdade, uma violação daqueles princípios (…)”.
Este entendimento foi reiterado no Acórdão n.º 430/2016. No entanto, na situação vertente, não tratamos da estrita configuração e incidência das derramas estadual e municipal, mas do imposto principal sobre o rendimento. Além disso, não falamos apenas da incidência de imposto sobre o lucro tributável sem consideração de prejuízos, mas dessa incidência sem consideração dos prejuízos quando o lucro tributável se reconduz a ganhos meramente potenciais, não realizados. Acresce ainda que, diferentemente daquelas situações, na situação vertente não há outras razões de “normalidade” ou “praticabilidade” a impor a derrogação cumulada ao princípio da capacidade contributiva.
Na solução normativa contida na aplicação conjugada do disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), e do disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, fazendo incidir de imediato imposto sobre uma reversão meramente parcial de desvalorizações de justo valor anteriores, por subtracção à solidariedade de exercícios daquele rendimento virtual, encontra-se evidência de ultrapassagem da medida necessária à prossecução das finalidades de interesse público apontadas, em termos que merecem censura por infracção do princípio da proporcionalidade contido no artigo 18.º, n.º 2, da CRP (ou no artigo 2.º, como decorrência do princípio do Estado de Direito). A restrição da dedução dos prejuízos, no caso de estes serem gerados por variações de justo valor, contra lucros, também gerados pelo justo valor (ou seja, tudo gastos e rendimentos hipotéticos, sendo que o pagamento de imposto neste caso é bem real e implica o dispêndio de meios financeiros), é excessiva em relação à finalidade reditícia e/ou anti-abuso que o artigo 52.º pretende alcançar. O limite é excessivo quando resulta na enunciada restrição.
Era perfeitamente possível consagrar uma norma em obediência ao princípio da proporcionalidade bastando excepcionar da aludida percentagem de matéria colectável à qual são indedutíveis prejuízos as valorizações patrimoniais potenciais das acções cotadas, quando por seu turno os prejuízos dedutíveis incluam desvalorizações patrimoniais de idêntica natureza.
Embora o princípio da coerência não consubstancie um parâmetro normativo constitucional autónomo, para o efeito de fundar um juízo de desvalor constitucional, releva na relação que se estabeleça com o princípio da igualdade tributária.
A coerência sistemática representa uma ferramenta metodológica que serve sobretudo ao controlo do princípio da igualdade, uma vez que as situações em que ocorre a estruturação incongruente de um tributo são situações nas quais se verifica um tratamento desigual dos contribuintes sem fundamento em razões materialmente válidas. Neste caso, pelas razões apontadas, a consagração do modelo de justo valor cumulada com uma restrição que se configure como indedutibilidade de desvalorizações de justo valor, consubstancia a aludida estruturação incongruente do tributo.
Neste caso, não há um fundamento material para a tributação de rendimento meramente potencial, ilíquido, com impacto definitivo e em dissonância com a real capacidade contributiva, por afastamento do modelo da realização somado ao afastamento da solidariedade de exercícios. A limitação da norma é inconstitucional quando resulta na restrição da dedução de prejuízos derivados de perdas latentes em relação a lucros provenientes de ganhos latentes, todos originados em flutuações de justo valor, com a agravante de, neste caso, estarmos perante os mesmos activos financeiros (que não foram transaccionados, nem se perspectiva que sejam, e cuja mera detenção suscitaria o pagamento de IRC sem que efectivamente se tivessem valorizado no período compreendido entre 2010 e 2013, isto é, dentro do prazo de caducidade, pois das flutuações de valor ocorridas nesse quadro temporal resulta que a revalorização ocorrida em 2013 ainda não foi suficiente para compensar as desvalorizações anteriores). Mesmo que existisse tal fundamento, a restrição seria desproporcionada, conforme referido. Assim, com fundamento na violação dos mencionados preceitos constitucionais, deve desaplicar-se o disposto no artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC com a consequente anulação do acto tributário nesta parte, por vício de violação de lei.
No que concerne a limitação da dedutibilidade de prejuízos apurados em exercícios anteriores à entrada em vigor da norma, também assiste razão à Requerente. Ainda que não fosse devida a desaplicação do artigo 52.º, n.º 2, do Código do IRC, em geral, nos termos acima decididos, sempre tal desaplicação seria imposta ao menos para os prejuízos fiscais gerados no exercício de 2011, na parte em que os mesmos se mostrassem influenciados pelas variações de justo valor levadas a resultados.
A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da CRP é a retroactividade própria ou autêntica. No entanto, admite-se que uma norma não retroactiva implique a violação do princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança (ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da CRP).
Ora, a potencial razão de interesse público subjacente à alteração legislativa em causa - obter uma mais justa e equilibrada repartição de encargos fiscais entre as diversas espécies de contribuintes – não permite no caso vertente justificar a não continuidade da detenção integral dos prejuízos fiscais anteriores, os quais, reitera-se, são insusceptíveis de qualquer manipulação quando se reconduzem às mencionadas desvalorizações de justo valor.
A alteração que se traduz em deixar de permitir a dedução das “perdas” com os referidos activos, cuja mensuração ao justo valor em resultados é legalmente imposta, viola expectativas legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, depreendendo-se do acolhimento parcial do modelo de justo valor uma intenção do legislador tributário de conferir um tratamento simétrico àqueles ganhos e gastos, como amplamente demonstrado. Poderia o contribuinte ter optado pela transmissão / desinvestimento nos referidos activos não fora a perspectiva legítima de continuidade do modelo recentemente consagrado, sem entorses no confronto entre perdas e ganhos. Tudo razões que levam a que a retrospectividade expressamente introduzida pela norma transitória - artigo 116.º, n.º 2, da citada Lei do Orçamento do Estado para 2012, no segmento normativo em que impõe a aplicação da nova redacção do n.º 2 do artigo 52.º do Código do IRC a prejuízos apurados no passado, incluindo prejuízos resultantes de mensurações ao justo valor – seja inconstitucional por violação da tutela da confiança. Também por este motivo se impõe a anulação do acto tributário nesta parte.
Uma vez que o Ministério Público não tem representação especial perante os Tribunais arbitrais que funcionam no CAAD (artigo 4.º, n.º 1 do Estatuto do Ministério Público), comunique-se esta decisão à Procuradoria-Geral da República, para os fins que tiver por convenientes.
5. QUESTÕES DE CONHECIMENTO PREJUDICADO
Por fim, importa referir que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras ou cuja apreciação seria inútil (artigo 608.º do CPC, ex vi do artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT), nem se tendo verificado quaisquer outras inconstitucionalidades além da acima identificada.
6. JUROS COMPENSATÓRIOS
A ilegalidade da liquidação de IRC, implica a anulação, na mesma medida, dos correspondentes juros compensatórios.
Dispõe nesta matéria o artigo 35.º, n.º 1 da LGT que os juros compensatórios são devidos “quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.
Na situação vertente o acto tributário de liquidação de IRC que originou valor de imposto a pagar é inválido por vício de violação de lei, por erro de direito, gerador de anulabilidade, pelo que não se verifica o requisito constitutivo da obrigação de juros compensatórios, não tendo sido retardada a liquidação de imposto que fosse devido.
7. INDEMNIZAÇÃO POR PRESTAÇÃO DE GARANTIA INDEVIDA
A Requerente, ancorada no artigo 53.º da LGT, peticiona o pagamento de uma indemnização, uma vez que, conforme ficou provado, prestou garantia bancária para suspender o processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva das quantias de IRC e de juros compensatórios liquidadas.
O artigo 171.º do CPPT estabelece que a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda (n.º 1) e que a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência (n.º 2).
O processo de impugnação judicial abrange, desta forma, a possibilidade de condenação no pagamento de garantia indevida e até é, em princípio, o meio processual adequado para formular tal pedido, o que se justifica por evidentes razões de economia processual, pois o direito a indemnização por garantia indevida depende do que se decidir sobre a legalidade ou ilegalidade do acto de liquidação.
Assumindo-se o processo arbitral como um meio processual alternativo à impugnação judicial, no qual é discutida a legalidade do acto(s) tributário(s) subjacente(s) à dívida exequenda, sempre que os contribuintes optarem pela via arbitral, é neste processo que deve ter lugar o pedido de indemnização por garantia indevida.
Neste sentido se pronuncia a jurisprudência consolidada dos Tribunais arbitrais constituídos sob a égide do CAAD que afirmam ser a acção arbitral o meio próprio para conhecer e apreciar o pedido de indemnização por garantia indevida (decisões arbitrais proferidas em 04.11.2013, no processo n.º 66/2013-T, em 18.05.2016, no processo n.º 695/2015-T, em 02.01.2017, no processo n.º 220/2016-T e em 28.06.2017, no processo n.º 508/2016).
Dispõe o artigo 53.º da LGT, que rege o direito a indemnização por garantia indevida, nos seguintes moldes:
“Artigo 53.º da LGT
Garantia em caso de prestação indevida
1. O devedor que, para suspender a execução, ofereça garantia bancária ou equivalente será indemnizado total ou parcialmente pelos prejuízos resultantes da sua prestação, caso a tenha mantido por período superior a três anos em proporção do vencimento em recurso administrativo, impugnação ou oposição à execução que tenham como objeto a dívida garantida.
2. O prazo referido no número anterior não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo.
3. A indemnização referida no número 1 tem como limite máximo o montante resultante da aplicação ao valor garantido da taxa de juros indemnizatórios prevista na presente lei e pode ser requerida no próprio processo de reclamação ou impugnação judicial, ou autonomamente.
4. A indemnização por prestação de garantia indevida será paga por abate à receita do tributo do ano em que o pagamento se efetuou.”
A situação vertente é enquadrável no n.º 2 deste artigo, dependendo o direito à indemnização por prestação de garantia indevida da constatação de erro imputável aos serviços na liquidação do tributo, como pressuposto constitutivo.
Conforme preconiza o Acórdão do STA, de 21.11.2007, no processo n.º 633/07: “o fundamento do direito à indemnização reside no facto complexo integrado pelo prejuízo resultante da prestação de garantia e pela ilegal atuação da administração devida a erro seu, ao liquidar indevidamente, forçando o contribuinte a incorrer em despesas com a constituição da garantia que, não fora aquela sua atuação, não teria sido necessária prestar”.
Assim, demonstrada a existência de erro imputável aos serviços conducente à ilegalidade do acto tributário controvertido e, consequentemente, à indevida prestação de garantia para suspensão da execução fiscal resultante do não pagamento da prestação tributária ilegalmente liquidada, assiste ao contribuinte o direito a ser ressarcido dos custos incorridos com a prestação e manutenção da garantia.
Compulsados os autos, foi o que ocorreu na situação vertente, tendo a Requerente sido alvo da liquidação ilegal de IRC e de juros compensatórios, da exclusiva iniciativa da AT.
Por outro lado, resultou provado que a Requerente prestou garantia bancária para sustação da execução.
Deste modo, procede o pedido de condenação da AT ao pagamento de indemnização por prestação de garantia indevida até ao respectivo cancelamento. Isto, sem prejuízo da limitação do quantum indemnizatório estatuída no artigo 53.º, n.º 3, da LGT.
* * *
Em consequência, são anuláveis os actos tributários impugnados, em conformidade com o disposto no artigo 135.º do CPA, com correspondência no actual artigo 163.º, n.º 1, do novo CPA (cuja entrada em vigor ocorreu em 8 de Abril de 2015), por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea d), do RJAT.
V. DECISÃO
De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em:
(d) Julgar improcedentes as excepções de incompetência e litispendência (em ambos os casos parciais) suscitadas;
(e) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a ilegalidade dos actos de liquidação de IRC e de juros compensatórios relativos ao exercício de 2013, no valor global de € 729.607,80, e, bem assim, da decisão de indeferimento da Reclamação Graciosa que os confirmaram, anulando-os;
(f) Julgar procedente o pedido de condenação da AT ao pagamento de uma indemnização à Requerente por prejuízos decorrentes da prestação de garantia indevida, até ao respectivo levantamento, a liquidar em execução da presente decisão, com o limite do quantum indemnizatório estatuído no artigo 53.º, n.º 3, da LGT,
tudo com as legais consequências.
Determina-se para efeitos do disposto no artigo 280.º, n.º 3, da CRP e no artigo 72.º, n.º 3, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei Orgânica do Tribunal Constitucional), a notificação ao Ministério Público da presente decisão arbitral.
VI. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 729.607,80 (setecentos e vinte e nove mil seiscentos e sete euros e oitenta cêntimos) indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, correspondente ao valor da liquidação de IRC e juros cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
Notifique-se.
Lisboa, 17 de Junho de 2020
O Tribunal Arbitral Colectivo,
Alexandra Coelho Martins
Ricardo da Palma Borges
Henrique Fiúza
(vencido, conforme declaração de voto junta)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Como ponto prévio para a elaboração da presente Declaração de Voto, entendo ser de destacar a seguinte passagem da Decisão Arbitral, que considero relevante para o devido enquadramento e permite a redução da fundamentação a efectuar.
“A Requerente não contesta a correcção de acréscimo ao lucro tributável. No entanto, contesta a correcção ao montante de prejuízos dedutíveis em 2013 que também está na origem do acto tributário sindicado. Embora a Requerente afirme ser criticável a posição da Requerida de impor a mensuração ao justo valor em resultados, abstém-se de contestar a correcção, exigindo apenas a coerência no que respeita à correcção do montante de prejuízos fiscais dedutíveis, concomitantemente realizada pela AT.”
De facto, a Requerente não põe em causa a correcção a acrescer ao lucro tributável do exercício de 2013 referente à valorização de um lote de acções detidas em 31 de Dezembro de 2013 por efeito da aplicação do modelo do justo através de resultados ao valor das acções cotadas em bolsa.
Embora dizendo não concordar com a lei aplicável, a Requerente não contesta a correcção ao lucro tributável feita pela AT, resultante da necessária aplicação do modelo do justo valor às acções em carteira no dia 31 de Dezembro de 2013, por, tratando-se de acções cotadas em bolsa de valores, no reconhecimento inicial ter usado esse modelo de valorização e, nos termos da normalização contabilística, não ser permitida a alteração de modelo de valorização das respectivas acções.
A correcção fiscal efectuada pela AT, ao lucro tributável do exercício de 2013, tem por base a lei fiscal aplicável: o artigo 20º, nº 1, alínea f) e o artigo 23º, nº 1, alínea i), conjugados com as alíneas a) e b) do nº 9 do artigo 18º do Código do IRC (CIRC).
Artigo 20.º - Rendimentos
1 — Consideram-se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:
a) ...
...
f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
...
Artigo 23.º - Gastos
1 — Consideram-se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:
a)...
i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
Artigo 18.º - Periodização do lucro tributável
...
9 — Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando-se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.
O lucro tributável assim apurado, está de acordo com a legislação atrás citada, bem como com o artigo 17º do CIRC, sendo a matéria colectável apurada nos termos do artigo 15º do mesmo código.
Artigo 17.º - Determinação do lucro tributável
1 — O lucro tributável das pessoas colectivas e outras entidades mencionadas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º é constituído pela soma algébrica do resultado líquido do período e das variações patrimoniais positivas e negativas verificadas no mesmo período e não reflectidas naquele resultado, determinados com base na contabilidade e eventualmente corrigidos nos termos deste Código.
2 — Para efeitos do disposto no número anterior, os excedentes líquidos das cooperativas consideram-se como resultado líquido do período.
3 — De modo a permitir o apuramento referido no n.º 1, a contabilidade deve:
a) Estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade, sem prejuízo da observância das disposições previstas neste Código;
b) Reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes.
Artigo 15.º - Definição da matéria colectável
1 — Para efeitos deste Código:
a) Relativamente às pessoas colectivas e entidades referidas na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º, a matéria colectável obtém-se pela dedução ao lucro tributável, determinado nos termos dos artigos 17.º e seguintes, dos montantes correspondentes a:
1) Prejuízos fiscais, nos termos do artigo 52.º;
2) Benefícios fiscais eventualmente existentes que consistam em deduções naquele lucro;
...
Por sua vez, a dedução de prejuízos fiscais é efectuada dos termos do artigo 52º do CIRC a que é também aplicável o artigo 71º do referido código.
Artigo 52.º - Dedução de prejuízos fiscais
1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, os prejuízos fiscais apurados em determinado período de tributação, nos termos das disposições anteriores, são deduzidos aos lucros tributáveis, havendo-os, de um ou mais dos cinco períodos de tributação posteriores.
2 - A dedução a efectuar em cada um dos períodos de tributação não pode exceder o montante correspondente a 75 % do respectivo lucro tributável, não ficando, porém, prejudicada a dedução da parte desses prejuízos que não tenham sido deduzidos, nas mesmas condições e até ao final do respectivo período de dedução.
3 - Nos períodos de tributação em que tiver lugar o apuramento do lucro tributável com base em métodos indirectos, os prejuízos fiscais não são dedutíveis, ainda que se encontrem dentro do período referido no n.º 1, não ficando, porém, prejudicada a dedução, dentro daquele período, dos prejuízos que não tenham sido anteriormente deduzidos.
4 - Quando se efectuarem correcções aos prejuízos fiscais declarados pelo sujeito passivo, devem alterar-se, em conformidade, as deduções efectuadas, não se procedendo, porém, a qualquer anulação ou liquidação, ainda que adicional, de IRC, se forem decorridos mais de cinco anos relativamente àquele a que o lucro tributável respeite.
Artigo 71.º - Regime específico de dedução de prejuízos fiscais
1 — Quando seja aplicável o regime estabelecido no artigo 69.º, na dedução de prejuízos fiscais prevista no artigo 52.º, observa-se ainda o seguinte:
a) ...
b) Os prejuízos fiscais do grupo apurados em cada período de tributação em que seja aplicado o regime só podem ser deduzidos aos lucros tributáveis do grupo, nos termos e condições previstos no n.º 2 do artigo 52.º;
c) ...
No seguimento da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC) pelo Decreto-Lei nº 158/2009 de 13 de Julho, o legislador publicou também o decreto-Lei nº 159/2009 da mesma data, para introduzir diversas alterações ao Código do IRC de modo a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC).
Entre as diversas normas contabilísticas que entraram em vigor no dia 1 de Janeiro de 2010 com relevo para os temas em apreço, é de destacar a Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 27.
Norma contabilística e de relato financeiro 27
Instrumentos financeiros
Esta Norma Contabilística e de Relato Financeiro tem por base as Normas Internacionais de Contabilidade IAS 32 — Instrumentos Financeiros: Apresentação, IAS 39 — Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração e IFRS 7 — Instrumentos Financeiros — Divulgação de Informações, adoptadas pelo texto original do Regulamento (CE) n.o 1126/2008 da Comissão, de 3 de Novembro.
Sempre que na presente norma existam remissões para as normas internacionais de contabilidade, entende-se que estas se referem às adoptadas pela União Europeia, nos termos do Regulamento (CE) n.o 1606/2002 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de Julho e, em conformidade com o texto original do Regulamento (CE) n.o 1126/2008 da Comissão, de 3 de Novembro.
...
Definições (parágrafo 5)
5 — Os termos que se seguem são usados nesta Norma com os significados especificados:
Activo financeiro: é qualquer activo que seja:
(a) Dinheiro;
(b) Um instrumento de capital próprio de uma outra entidade;
(c) Um direito contratual:
(i) De receber dinheiro ou outro activo financeiro de outra entidade;
ou
(ii) De trocar activos financeiros ou passivos financeiros
...
Mensuração (parágrafos 11 a 22)
11 — Nos termos da presente norma, todos os activos e passivos financeiros são mensurados, em cada data de relato, quer:
(a) Ao custo ou custo amortizado menos qualquer perda por imparidade; ou
(b) Ao justo valor com as alterações de justo valor a ser reconhecidas na demonstração de resultados.
12 — Uma entidade deve mensurar os seguintes instrumentos financeiros ao custo ou ao custo amortizado menos perda por imparidade:
(a) Instrumentos que satisfaçam as condições...
...
(c) Instrumentos de capital próprio que não sejam negociados publi- camente e cujo justo valor não possa ser obtido de forma fiável, bem como contratos ligados a tais instrumentos que, se executados, resultem na entrega de tais instrumentos, os quais devem ser mensurados ao custo menos perdas por imparidade.
...
15 — Uma entidade deve mensurar ao justo valor todos os instrumentos financeiros que não sejam mensurados ao custo ou ao custo amortizado nos termos do parágrafo 12 com contrapartida em resultados.
16 — Exemplos de instrumentos financeiros que sejam mensurados ao justo valor através de resultados:
(a) Investimentos em instrumentos de capital próprio com cotações divulgadas publicamente, uma vez que o parágrafo 12 (c) define a mensuração ao custo apenas para os restantes casos;
...
17 — Uma entidade não deve alterar a sua política de mensuração subsequente de um activo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse método.
18 — Se deixar de estar disponível uma mensuração fiável do justo valor para um instrumento de capital próprio mensurado ao justo valor, a quantia escriturada do justo valor torna-se, à data da transição, a quantia de custo para efeitos da adopção do modelo do custo amortizado.
...
Imparidade (parágrafos 23 a 29)
Reconhecimento (parágrafos 23 a 26)
23 — À data de cada período de relato financeiro, uma entidade deve avaliar a imparidade de todos os activos financeiros que não sejam mensurados ao justo valor através de resultados. Se existir uma evidência objectiva de imparidade, a entidade deve reconhecer uma perda por imparidade na demonstração de resultados.
...
Data de eficácia (parágrafo 60)
60 — Uma entidade deve aplicar esta Norma a partir do primeiro período que se inicie em ou após 1 de Janeiro de 2010.
Feita a descrição das principais normas aplicáveis ao processo, quer de carácter tributário quer de carácter contabilístico, passamos à análise da DECISÃO ARBITRAL e das questões que importa decidir.
1. A consideração no apuramento da matéria colectável do exercício de 2013 dos prejuízos fiscais determinados em relação aos exercícios de 2011 e de 2012
Com referência aos exercícios de 2010, de 2011 e de 2012, a Requerente seguiu o estipulado nas normas contabilísticas e tributárias acima transcritas, isto é, contabilizou em rendimentos e/ou em gastos as diferenças dos valores das cotações das acções, cotadas em mercados regulamentados (bolsa), apuradas nos primeiros e nos últimos dias de cada período de tributação, de acordo com o modelo do justo valor através dos resultados.
Os resultados apurados pela utilização do modelo do justo valor em partes de capital, para além dos respectivos efeitos nos resultados contabilísticos, tiveram também efeitos nos respectivos resultados fiscais.
Porém, em 2013 a Requerente alega ter alterado o modo de contabilização das valorizações/desvalorizações das acções.
Como se pode verificar pela leitura da NCRF 27 acima parcialmente transcrita, tal alteração não lhe era permitida, conforme dispõe o parágrafo 17.
A mudança de modelo de valorização do modelo do justo valor através de resultados para outro modelo de valorização, só poderia ser para o modelo do custo ou do custo amortizado menos qualquer perda por imparidade, única alternativa possível dentro da NCRF 27, que só seria viável se as acções em causa tivessem deixado de estar cotadas em bolsa de valores, nos termos do parágrafo 18 da referida NCRF 27 e também da alínea c) do parágrafo 12 da mesma norma.
Ora, tal não aconteceu, pelo menos no exercício de 2013.
Na DECISÃO ARBITRAL é feita a afirmação que de seguida se transcreve na qual são incluídas a IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração e a IFRS 9 – Instrumentos Financeiros
“A mensuração ao justo valor de instrumentos financeiros pode ocorrer por contrapartida de resultados mas também pode ocorrer por contrapartida de capitais próprios: categoria FVPL (“Fair Value Through the Statement of Profit or Loss”) ou categoria FVOCI (“Fair Value through Other Comprehensive Income”). Ambas as categorias estavam previstas na norma contabilística então aplicável - IAS 39 – Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração -, actualmente substituída pela IFRS 9 – Instrumentos Financeiros.”
Não se entende o motivo pelo qual o Tribunal inclui na fundamentação da decisão as referidas normas internacionais de contabilidade (NIC) que não foram usadas pela Requerente na sua defesa nem foram aplicadas nos exercícios de 2011 e de 2012, nem sequer no exercício de 2013, conforme se pode verificar das Demonstrações Financeiras apresentadas anualmente, nas quais em 2011 e em 2012 a Requerente mencionou no Anexo que:
2.1. As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...
2.2. Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.
3.4 As participações financeiras ao justo valor: estão os activos e passivos financeiros não incluídos nas categorias do “custo” ou “custo amortizado”, sendo que as variações no respectivo justo valor são registadas em resultados como perdas por reduções de justo valor e ganhos por aumento de justo valor.
14. Activos ao justo valor – Na rubrica de “participações financeiras – outros métodos” estão valorizados ao Justo Valor, os quais as suas variações em 31 de Dezembro... são detalhadas conforme seguinte:
Relação das acções detidas: F... SGPS, SA e E. H... ...
As passagens do Anexo às Demonstrações Financeiras do exercício de 2013 de igual teor às apresentadas em 2011 e 2012, foram apresentadas como segue:
2.1. As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...
2.2. Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.
3.4 As participações financeiras ao justo valor: estão os activos e passivos financeiros não incluídos nas categorias do “custo” ou “custo amortizado”, sendo que as variações no respectivo justo valor são registadas em capitais próprios.
14. Activos ao justo valor – Na rubrica de “Outros Instrumentos Financeiros” estão valorizadas ao Justo Valor, os activos detalhados da seguinte forma:
Relação das acções detidas: F... SGPS, SA e E. G... ...
...
Os ajustamentos de valor das acções da F..., SGPS, SA e da I..., SA foram reflectidos directamente na rúbrica de ajustamentos em activos financeiros, em capitais próprios, tendo sido reajustados os comparativos das demonstrações financeiras.
Como se pode ver, a Requerente, para além de em 2011 e em 2012, também em 2013 aplicou o SNC na preparação das suas demonstrações financeiras; também em 2013 não existiram quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC; também em 2013 os instrumentos financeiros foram valorizados ao justo valor; e, finalmente, em 2013 é dito que os ajustamentos de valor das acções da F..., SGPS, SA e da I..., SA foram reflectidos directamente na rúbrica de ajustamentos em activos financeiros, em capitais próprios (ao invés de os reflectir em resultados como fez em 2011 e em 2012), tendo sido reajustados os comparativos das demonstrações financeiras.
Resumindo, em 2013 todos os procedimentos foram iguais aos de 2011 e de 2012, à excepção de serem considerados em resultados as variações do valor das acções da F... e da I..., levando desta vez essas variações aos capitais próprios.
Qual foi a justificação dada pela Requerente nas suas Demonstrações Financeiras (Anexo) para essa mudança de política contabilística? Nenhuma.
De facto, a Requerente usou em 2013 o mesmo modelo de valorização que usou em 2010, em 2011 e em 2012, sendo a única diferença o facto de ter contabilizado nos capitais próprios a valorização ocorrida nesse ano (2013) nas acções cotadas em bolsa, quando antes (em 2010, 2011 e 2012) contabilizou em resultados as desvalorizações das mesmas acções cotadas em bolsa.
Coincidência ou não, enquanto o modelo do justo valor através de resultados contribuiu para reduzir os valores do lucro tributável, ele foi aplicado, quando esse mesmo modelo gerou valorizações que fizeram aumentar os resultados e consequentemente o lucro tributável, a Requerente pretendeu deixar de o usar.
Mas tal não é possível, por frontal oposição da lei, conforme se esclareceu e fundamentou.
Como se pode confirmar acima, o parágrafo 17 da NCRF 27 não permite que uma entidade altere a sua política de mensuração subsequente de um activo ou passivo financeiro enquanto tal instrumento for detido, seja para passar a usar o modelo do justo valor, seja para deixar de usar esse modelo.
Uma vez que na Decisão Arbitral foi sugerida a hipótese de ser usada a IAS 39, deve dizer-se que também esta NIC, na sua alínea b) do parágrafo 50 determina que “uma entidade não deve reclassificar um instrumento financeiro, retirando-o da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos se, aquando do reconhecimento inicial, tiver sido designado pela mesma entidade como pertencendo à categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos.
A haver circunstâncias excepcionais que abrissem a porta à reclassificação destes activos mediante retirada da categoria de justo valor através dos lucros ou prejuízos, elas nunca foram declaradas, alegadas e provadas. Acresce ainda que, para a Requerente poder aplicar a IAS 39 - Instrumentos Financeiros: Reconhecimento e Mensuração, teria de aplicar também a IAS 32 – Instrumentos Financeiros: Apresentação, e a IFRS 7 - Instrumentos Financeiros: Divulgação de Informações, deixando de aplicar a NCRF 27 - Instrumentos Financeiros.
E não consta do processo a existência comprovada de quaisquer circunstâncias excepcionais que determinaram a respectiva reclassificação, nem a opção pela aplicação das três normas internacionais de contabilidade (NIC) indicadas.
Aliás, a Requerente declarou no Anexo às Demonstrações Financeiras do exercício de 2013 que “As demonstrações financeiras individuais anexas foram preparadas nos termos do Sistema de Normalização Contabilística – SNC - ...” e ainda que “Não existiram, no decorrer do exercício a que respeitam estas Demonstrações Financeiras, quaisquer casos excepcionais que implicassem directamente a derrogação de qualquer disposição prevista pelo SNC.”
Ainda assim, caso a normalização contabilística e as regras fiscais permitissem fazer retroagir os efeitos da reclassificação dos investimentos financeiros em causa – acções cotadas em mercado regulamentado – tendo a liquidação adicional de IRC do exercício de 2013 sido efectuada no ano de 2018 e sendo o prazo de caducidade do direito à liquidação de 5 anos, já não seria possível proceder à correcção dos resultados fiscais de 2011 e de 2012 tempestivamente fixados.
Os resultados fiscais fixados com referência a um dado exercício – bem ou mal – só podem ser corrigidos dentro do prazo do direito à liquidação. Nos termos da lei aplicável, o prejuízo fixado com referência ao exercício de 2011 só era rectificável até ao dia 31 de Dezembro de 2016 e o fixado com referência ao exercício de 2012 só era rectificável até ao dia 31 de Dezembro de 2017. No ano de 2018 já nenhum dos resultados fiscais em causa poderiam ser alterados.
O princípio da segurança jurídica impede que um resultado fixado com referência a um dado período, não possa ser eternamente alterado, só porque alguém descobriu que alguns anos atrás se cometeu um erro que devia ser corrigido.
Na hipótese de, em caso semelhante, o reporte de prejuízos ser inferior aos fixados, por certo, nem a Requerente nem o Tribunal iria defender que passados 6 ou 7 anos da sua fixação a AT pudesse corrigir os prejuízos a reportar.
Pelo exposto, fica claro que não me revejo na fundamentação produzida pelo tribunal, não podendo por isso, fazer adesão à posição vencedora.
2. Inaplicabilidade do regime do artigo 45º, nº 3, do Código do IRC em vigor à data dos factos, aos gastos derivados de variações de activos financeiros reconhecidos e mensurados ao justo valor
Reconhecendo o brilhantismo de alguma fundamentação das decisões proferidas no âmbito do CAAD nos processos mencionados na presente pronúncia arbitral, bem como nos mencionados acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo (STA), porque no fundamental não me revejo nelas, embora concorde que no que, diz respeito a este assunto, o pedido de pronúncia arbitral deve ser julgado procedente como o Tribunal Arbitral o faz, entendi emitir a presente declaração de voto.
Em resumo, a argumentação usada nas pronúncias arbitrais emitidas no âmbito do CAAD, bem como dos acórdãos do STA referidas na presente pronúncia arbitral, centram a sua posição em dois vectores:
3. O nº 3 do artigo “45º - Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais” foi criado com a intenção de combater a fraude e a evasão fiscal que a dedução das menos-valias com a transmissão onerosa de instrumentos financeiros poderia proporcionar/propiciar; e
4. Como o justo valor é determinado por um mercado regulado, não dependendo do jogo de interesses do contribuinte, e por isso não permitindo a evasão fiscal, a limitação imposta pelo nº 3 do artigo 45º não faz sentido no caso das perdas do justo valor em participações sociais.
Esta leitura do nº 3 do artigo 45º do CIRC, a meu ver, enferma de um erro que é o de considerar que este número é uma norma genérica de combate à evasão fiscal, com o qual não concordo.
Feito o levantamento histórico da lei, esta norma foi criada com um fim bem objectivo: quando em 2002 se passou a excluir da tributação metade das mais-valias realizadas com a alienação onerosa de partes de capital, o legislador não acautelou o uso abusivo da realização de menos-valias com a alienação onerosa de partes de capital, como forma de diminuir o lucro tributável e o imposto a pagar. Detectada a situação, foi no ano seguinte criado o nº 3 do artigo 45º para travar o abuso da lei detectado no ano anterior (combate à evasão fiscal).
Assim, a partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que tenham procedido à transmissão onerosa de partes de capital e que tenham feito o reinvestimento dos valores de realização, foram tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado passou a ser considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
Com o devido respeito pelas fundamentações produzidas nas decisões referenciadas, entendo que foi este o motivo da criação do nº 3 do artigo 45º do CIRC e não as justificações e argumentação que são produzidas nas pronúncias arbitrais e nos acórdãos dados como referência na presente pronúncia arbitral.
É o que tentaremos demonstrar de seguida.
A tributação da diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo fixo tangível (à data imobilizado corpóreo) foi, desde a criação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), objecto de um tratamento fiscal mais favorável que outros tipos de rendimentos.
Desde a sua criação (1 de Janeiro de 1989) até à publicação da Lei nº 71/93 de 26 de Novembro (Lei do Orçamento Suplementar ao Orçamento do Estado para 1993) a diferença positiva entre as mais-valias e as menos valias realizadas em cada ano, era excluída da tributação em IRC na sua totalidade.
Após a alteração legislativa de 1993, o regime das mais-valias deixou de constituir uma exclusão da sua tributação, passando a consubstanciar um mero diferimento da tributação. Isto é, no exercício em que ocorria a alienação onerosa dos elementos do activo imobilizado corpóreo, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias não concorria para a formação do lucro tributável, mas, em contrapartida, a reintegração dos bens nos quais se tenha concretizado o reinvestimento dos valores de realização, não era fiscalmente dedutível na parte correspondente à mais-valia que, para o efeito, foi imputada ao valor de aquisição.
Foi uma solução que pretendia introduzir mais justiça na atribuição deste benefício, mas que trouxe, na prática, mais trabalho administrativo aos contribuintes e maiores dificuldades à Administração Fiscal no seu controlo.
A solução legislativa que passou a prever a tributação de apenas metade do saldo positivo apurado entre as mais-valias e as menos-valias geradas num dado exercício, sujeito ao reinvestimento do valor de realização, foi incorporada no código do IRC pela lei do Orçamento do Estado para o ano de 2002, a Lei nº 109-B/2001 de 29 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 45º do CIRC seria alterado como segue, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2002:
“Artigo 45.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 – Para efeitos de determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado corpóreo, detidos por um período não inferior a um ano, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no exercício anterior ao da realização, no próprio exercício, ou até ao fim do segundo exercício seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos elementos seja reinvestido na aquisição, fabricação ou construção de elementos do activo imobilizado corpóreo afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º.
2 - ...............................................................................................................................................
3 - ...............................................................................................................................................
4 – O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de partes de capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial com sede ou direcção efectiva em território português ou ainda em títulos do Estado português;
b) As partes de capital alienadas devem ter sido detidas por um período não inferior a um ano e corresponder a, pelo menos, 10% do capital social da sociedade participada.
5 – Para efeitos do disposto nos n.ºs 1, 2 e 4, os contribuintes devem mencionar a intenção de efectuar o reinvestimento na declaração a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 109.º, do exercício da realização, comprovando na mesma e nas declarações dos dois exercícios seguintes os reinvestimentos efectuados.
6 – Não sendo concretizado, total ou parcialmente, o reinvestimento até ao fim do segundo exercício seguinte ao da realização, considera-se como proveito ou ganho desse exercício, respectivamente, a diferença ou a parte proporcional da diferença prevista nos n.ºs 1 e 4 não incluída no lucro tributável, majorada em 15%.
Ao longo do ano de 2002, o Estado constatou que, o saldo positivo entre as mais-valias e as menos-valias realizadas em cada ano era tributadas em metade do seu valor, na condição de o sujeito passivo reinvestir a totalidade do valor de transmissão dos bens que geraram as respectivas mais-valias e menos-valias. Mas também constatou que, no caso de o saldo entre as mais-valias e as menos-valias geradas em cada ano fosse negativo, o sujeito passivo poderia deduzir na totalidade desse saldo negativo.
Detectada esta situação de iniquidade e ineficácia da solução legislativa criada em 2001, o legislador tratou de corrigir o erro em 2002, para entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 2003. Tal correcção da iniquidade foi efectuada pela lei do Orçamento do Estado para o ano de 2003 pela Lei nº 32-B/2002 de 30 de Dezembro.
Ditou a referida lei que, o artigo 42º do CIRC seria alterado como segue:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 - ...
2 - ...
3 - A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
Com esta alteração, a lei, no que respeita à tributação das mais-valias obtidas com a transmissão de partes de capital de sociedades com sede ou direcção efectiva em território português, ficou mais equilibrada. O princípio da simetria vingou.
A partir de 1 de Janeiro de 2003, os sujeitos passivos de IRC, que procedam à transmissão onerosa de partes de capital e façam o reinvestimento dos valores de realização, serão tributados sobre metade do valor do saldo positivo das mais-valias e das menos-valias. No caso de o saldo anual ser negativo, o valor apurado será considerado dedutível em apenas metade do seu valor, para efeitos de cálculo do lucro tributável.
A Lei do Orçamento do Estado para 2006 (Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro) veio alterar o nº 3 ao artigo 42º do código do IRC, ficando como a seguir se transcreve:
Artigo 42.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — …
2 — ….
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
4 — …
Tal alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que acrescentaríamos as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho.
As alterações mais relevantes para apreciação do caso, são as a seguir indicadas, com os artigos já renumerados para efeitos da sua republicação:
Artigo 18º
Periodização do lucro tributável
1 — Os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento, de acordo com o regime de periodização económica.
2 - …
9 — Os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados, excepto quando:
a) Respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, tratando- se de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5 % do respectivo capital social; ou
b) Tal se encontre expressamente previsto neste Código.
10 - …
Artigo 20º
Rendimentos
1 — Consideram- se rendimentos os resultantes de operações de qualquer natureza, em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, nomeadamente:
a) …
f) Rendimentos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
g) …
h) Mais-valias realizadas;
i) …
Artigo 21.º
Variações patrimoniais positivas
1 — Concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As mais-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade, incluindo as reservas de reavaliação ao abrigo de legislação de carácter fiscal;
Artigo 23.º
Gastos
1 — Consideram- se gastos os que comprovadamente sejam indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, nomeadamente:
b) . . .
i) Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros;
j) …
l) Menos-valias realizadas;
Artigo 24.º
Variações patrimoniais negativas
Nas mesmas condições referidas para os gastos, concorrem ainda para a formação do lucro tributável as variações patrimoniais negativas não reflectidas no resultado líquido do período de tributação, excepto:
a) …
b) As menos-valias potenciais ou latentes, ainda que expressas na contabilidade;
Artigo 45.º
Encargos não dedutíveis para efeitos fiscais
1 — Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:
b) …
2 — …
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
NOTA: o nº 3 do artigo 42º não foi alterado pelo Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, mantendo o texto que se encontrava em vigor desde 1 de Janeiro de 2006.
Artigo 46.º
Conceito de mais-valias e de menos-valias
1 — Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afectação permanente a fins alheios à actividade exercida, respeitantes a:
a) Activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda;
b) Instrumentos financeiros, com excepção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º
4 - …
5 — São assimiladas a transmissões onerosas:
a) …
b) As mudanças no modelo de valorização que sejam relevantes para efeitos fiscais, nos termos do n.º 9 do artigo 18.º, e que decorram, designadamente, de reclassificação contabilística ou de alterações nos pressupostos referidos na alínea a) do n.º 9 deste mesmo artigo.
Artigo 48.º
Reinvestimento dos valores de realização
1 — Para efeitos da determinação do lucro tributável, a diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias, calculadas nos termos dos artigos anteriores, realizadas mediante a transmissão onerosa de activos fixos tangíveis, activos biológicos que não sejam consumíveis e propriedades de investimento, detidos por um período não inferior a um ano, ainda que qualquer destes activos tenha sido reclassificado como activo não corrente detido para venda, ou em consequência de indemnizações por sinistros ocorridos nestes elementos, é considerada em metade do seu valor, sempre que, no período de tributação anterior ao da realização, no próprio período de tributação ou até ao fim do segundo período de tributação seguinte, o valor de realização correspondente à totalidade dos referidos activos seja reinvestido na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, com excepção dos bens adquiridos em estado de uso a sujeito passivo de IRS ou IRC com o qual existam relações especiais nos termos definidos no n.º 4 do artigo 58.º
2 — . .
3 — . . .
4 — O disposto nos números anteriores é aplicável à diferença positiva entre as mais -valias e as menos -valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, com as seguintes especificidades:
a) O valor de realização correspondente à totalidade das partes de capital deve ser reinvestido, total ou parcialmente, na aquisição de participações no capital de sociedades comerciais ou civis sob forma comercial ou em títulos do Estado Português, ou na aquisição, produção ou construção de activos fixos tangíveis, de activos biológicos que não sejam consumíveis ou em propriedades de investimento, afectos à exploração, nas condições referidas na parte final do n.º 1;
b) . . .
É no quadro jurídico apresentado que importa aferir se as correcções efectuadas pela Requerida ao lucro tributável da Requerente, por referência ao período de tributação de 2013, enfermam de alguma ilegalidade.
Em resumo, poder-se-ia dizer que, a questão que vem colocada se prende com a dedutibilidade como gasto fiscal dos gastos registados com os ajustamentos que decorreram da aplicação do justo valor às participações sociais detidas pela Requerente em 31 de Dezembro de 2013.
Mais precisamente, o que cabe ao Tribunal aferir é se as perdas apuradas com a utilização do modelo do justo valor às partes de capital detidas em 31 de Dezembro de 2013 pela Requerente é aplicável, ou não, a limitação da dedução a metade do seu valor prevista no nº 3 do artigo 45º do código do IRC.
Para tal, haverá que saber se a perda (ou gasto) em causa é caracterizada como um “gasto resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros” previsto na alínea i) do nº 1 do artigo 23º do CIRC ou se se trata de uma menos-valia enquadrável na alínea l) do mesmo número e artigo.
Caracterizado o gasto como pertencente a um tipo ou a outro, ter-se-á encontrado a resposta à questão colocada.
A lei (Decreto-Lei nº 442-B/88) que trata as mais-valias e as menos-valias em IRC data de 30 de Novembro de 1988 e entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1989. A tributação das mais-valias e menos-valias foi sofrendo várias alterações e ajustamentos para chegar em 2010 aos textos que são reproduzidos acima.
O nº 3 do artigo 45º do código do IRC foi criado para vigorar a partir de 1 de Janeiro de 2003 com a intenção de balancear a dedução de apenas metade das menos-valias geradas com a transmissão de partes de capital, com a não tributação de metade das mais-valias geradas com a transmissão de activos do mesmo tipo, de acordo com o nº 4 do artigo 48º, que tinha sido criado um ano antes.
Ou seja, estando num prato da balança uma norma que, sob condição de reinvestimento do valor de realização, previa a tributação de apenas metade da diferença positiva das mais-valias e das menos-valias geradas com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 4 do artigo 48º), o legislador colocou no outro prato da balança uma norma que previa a dedução de apenas metade da diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias gerada com a transmissão onerosa de partes sociais (nº 3 do artigo 45º). Este equilíbrio da lei é característica de um sistema fiscal justo e equitativo.
Ou seja, desde 1 de Janeiro de 2003, sob condição de reinvestimento do valor de realização, a diferença positiva entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais é tributada em metade do seu valor e a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias geradas com a transmissão onerosa de participações sociais é dedutível para efeitos fiscais em metade do seu valor.
Cumpre lembrar que as normas em referência entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2002 e em 1 de Janeiro de 2003.
No ano de 2005, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2006, foi alterado o nº 3 do artigo 42º que passou a ter a seguinte redacção, tendo-lhe sido acrescentada a parte a sublinhado.
3 — A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor.
Tal alteração legislativa teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, e no contexto de uma transmissão onerosa, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que acrescentaríamos as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
Faz-se notar que, não é imaginável que, em 2005, o legislador alterasse a lei porque previa que em 2010 iria entrar em vigor o SNC e que essa realidade poderia vir a gerar perdas que só deveriam ser aceites como gastos fiscais em metade do seu valor, tendo acautelado nessa data já essa realidade que só quatro anos depois veio a acontecer.
O Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho procedeu a diversas alterações ao código do IRC e legislação complementar, por forma a adaptar as regras de determinação do lucro tributável dos sujeitos passivos de IRC às Normas Internacionais de Contabilidade (NIC) no âmbito do novo Sistema de Normalização Contabilística (SNC) aprovado pelo Decreto-Lei nº158/2009 de 13 de Julho, para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2010 ou no período de tributação com início posterior a esta data.
Esta nova lei, veio claramente distinguir os ganhos considerados como mais-valias, e as perdas como menos-valias, dos ganhos e as perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em investimentos financeiros, entre os quais se destacam as participações sociais cotadas em mercados regulados.
A nova lei – alínea b) do nº 1 do artigo 46º - refere de forma clara que os ganhos e as perdas gerados pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais não são mais-valias nem menos-valias.
Como tal, sendo o nº 3 do artigo 45º do CIRC uma norma aplicável às menos-valias, fica claro que não é aplicável às perdas apuradas pela utilização do modelo do justo valor em participações sociais.
Porque, como se disse acima, tal norma, ainda que alterada em 2005, teve a intenção de, no âmbito do enquadramento das menos-valias, alargar o leque de activos financeiros equiparáveis a partes de capital, dando a própria lei como exemplo as prestações suplementares – a que acrescentaríamos as prestações acessórias, as reservas, os resultados transitados, e outros instrumentos de capital - e também de alargar as operações que passaram a ser equiparadas a transmissões onerosas para efeitos das menos-valias, como é o caso das operações de remissão e amortização com redução de capital ou outras componentes do capital próprio.
E não era crível que em 2005 o legislador tivesse previsto a entrada em vigor do SNC em 2010 e tivesse introduzido alterações no IRC, por forma a, antecipadamente e com muitos anos de distância, ter colocado na lei as perdas geradas com a utilização do justo valor nos investimentos financeiros, no caso, às participações sociais cotadas em bolsa.
E não sendo aplicável o nº 3 do artigo 45º do CIRC às perdas geradas com a utilização do justo valor na valorização das participações sociais cotadas em bolsa, assim como não é aplicável o nº 4 do artigo 48º do mesmo código, os ganhos são tributados pela totalidade e as perdas são também deduzidas na totalidade para efeitos fiscais.
Motivo pelo qual assiste razão à Requerente, devendo o pedido de pronúncia arbitral ser julgado procedente no que ao presente tema diz respeito, devendo a desvalorização das acções da I... verificadas no exercício de 2013 ser considerada no cálculo do lucro tributável pela totalidade do seu valor, €186.524,00, e não por metade do mesmo, ou seja, €93.262,00.
3. Inaplicabilidade do regime do artigo 52º, nº 2, do Código do IRC em vigor à data dos factos, que prevê o limite da dedução de prejuízos fiscais a 75% do lucro tributável
O Tribunal Arbitral, na questão agora em apreço, tenta recapturar a sua leitura do que deve e não deve ser incluído no cálculo do lucro tributável – se negativo, prejuízo fiscal – voltando a insistir que às acções cotadas em bolsa não deve ser aplicado o modelo do justo valor através de resultados na quantificação das valorizações (ou desvalorizações) ocorridas num determinado período.
Esse tema foi já tratado Ponto 1. anterior desta Declaração de Voto, tendo ficado demonstrado que, tendo a Requerente, inicialmente, optado pela utilização do modelo do justo valor com contrapartida em resultados, não poderia reclassificar esses activos para assim os retirar da aplicação obrigatória do modelo do justo valor e desta forma escapar à integração nos resultados das valorizações e desvalorizações ocorridas em cada período de tributação.
Ficou também demonstrado que, ainda que tivesse sido possível reclassificar os activos em causa, essa reclassificação não poderia ter efeitos (retroagir) a períodos anteriores à respectiva reclassificação, não sendo possível, por esse motivo, alterar os resultados fixados em devido tempo.
Ao longo de todo este capítulo da Decisão Arbitral se repisam os caminhos já trilhados anteriormente e que, como se demonstrou, não podem ter vencimento.
Em resumo, poder-se-ia afirmar que o Tribunal Arbitral entende que os resultados fiscais (prejuízos) fixados com referência aos exercícios de 2011 e de 2012 deviam ser divididos em duas partes: uma correspondente aos resultados gerados com a aplicação do modelo do justo valor e outra correspondente aos resultados gerados pela restante actividade económica exercida pela Requerente.
E uma parte desse prejuízo fiscal seria dedutível em 100% e a outra parte seria dedutível em 75% do lucro tributável a que esses prejuízos fossem dedutíveis.
Ora, tal proposta não pode vencer, por ser desprovida de razão e também porque, a ser aceite uma solução deste tipo, tal seria uma afronta ao princípio da igualdade e ao da não discriminação.
A limitação criada por lei com vista ao alargamento da base tributável, tem de ser aplicada de forma igual a todos os prejuízos fiscais, independentemente do tipo de rendimentos e gastos que os geraram, e a todos os contribuintes sem excepção
Dito isto, fica claro que também neste caso não poderei aderir à posição vencedora, por não me rever na fundamentação produzida.
Henrique Fiúza
Economista