DECISÃO ARBITRAL
I – RELATÓRIO
1. No dia 29 de Maio de 2019, A... LDA., NIPC ..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Guimarães, apresentou pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com a redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade dos actos de Liquidação n.º 2011 ... (autoliquidação de IRC de 2010) e n.º 2012 ... (autoliquidação de IRC de 2011), bem como dos actos de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa n.º ...2015... (autoliquidação de IRC de 2011) e n.º ...2015... (autoliquidação de IRC de 2011), no valor de € 146.611,20.
2. Para fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, que quanto ao acréscimo de 50% das perdas apuradas através da aplicação do justo valor, relativas a partes de capital ou outros componentes do capital próprio, não será de aplicar o n.º 3 do art.º 45.º do CIRC aplicável, porquanto não se deverão incluir naquele preceito legal, os factos qualificáveis como “gastos”, à luz do CIRC, no que diz respeito ao acréscimo de 50% à matéria tributável das perdas apuradas, por aplicação do justo valor em instrumentos financeiros de capital próprio que foram reconhecidos em resultados, que as sociedade dominadas detêm no Banco B..., participação essa inferior a 5%, do total do capital daquela instituição bancária..
3. No dia 30-05-2019, o pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.
4. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do tribunal arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
5. Em 19-07-2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.
6. Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 08-08-2019.
7. No dia 26-09-2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por excepção e por impugnação.
8. Tendo em conta a matéria de excepção arguida pela Requerida, foi facultada à Requerente a possibilidade de exercer o correspondente contraditório, o que fez.
9. Ao abrigo do disposto nas als. c) e e) do art.º 16.º, e n.º 2 do art.º 29.º, ambos do RJAT, foi dispensada a realização da reunião a que alude o art.º 18.º do RJAT.
10. Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelas partes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.
11. Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no art.º 21.º/1 do RJAT.
12. O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
O processo não enferma de nulidades.
Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.
Tudo visto, cumpre proferir
II. DECISÃO
A. MATÉRIA DE FACTO
A.1. Factos dados como provados
1- A Requerente foi constituída em 1984, e dedica-se à actividade de fabrico e acabamentos de calçado, encontrando-se integrada no Grupo C..., grupo empresarial do sector do calçado que actua no mercado, essencialmente, através das marcas ... e ....
2- No exercício de 2010, a Requerente detinha uma participação financeira de 0,0165% no Banco B..., S.A., com sede na Avenida ..., n.º..., ...-... Lisboa, e número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial e de pessoa colectiva ... (doravante, apenas, «B...»).
3- No exercício de 2011, a Requerente mantinha a participação financeira na mesma entidade, o B..., reduzida a 0,0132%.
4- Até ao exercício de 2009, esta participação encontrava-se mensurada ao seu custo de aquisição, de acordo com as regras contabilísticas e fiscais então aplicáveis.
5- Tendo em conta que as alterações de valor de tais instrumentos financeiros passaram, para efeitos contabilísticos, a ser reconhecidas na demonstração de resultados, a Requerente registou, na sua contabilidade, a partir de 2010 e em correspondência com as novas regras contabilísticas e fiscais aplicáveis, uma variação patrimonial negativa correspondente à diferença entre o valor de aquisição da participação no B... e a sua cotação oficial, revelando a mesma nos seus capitais próprios.
6- Em face da transição ocorrida para o SNC, e relativamente ao IRC de 2010, a Requerente inscreveu na sua declaração de rendimentos, no campo 705 referente a variações patrimoniais negativas, o montante de € 9.294,88, referente a 1/5 de 50% do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor contabilizado no montante de € 46.474,40.
7- Por outro lado, tendo existido no período de 2010 uma variação negativa da cotação da participação em causa, face ao seu valor a 31 de Dezembro de 2009, a Requerente considerou como fiscalmente dedutível 50% da respectiva perda contabilizada, no montante de € 596.071,46, ou seja, considerou como dedutível € 298.035,73.
8- Deste modo, quanto ao IRC de 2010, a Requerente inscreveu na respectiva declaração de rendimentos Modelo 22:
i. No campo 705 — «variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no artigo 5.º, n.ºs 1, 5 e 6 do DL n.º 159/2009, de 13/7)» — o montante de € 9.294,88 (correspondente a 1/5 de 50% do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor — € 46.474,40);
ii. No campo 737 — «50% de outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes de capital próprio (artigo 45.º n.º 3, parte final» — o montante de € 298.035,73 (correspondente a metade da perda contabilizada no valor de € 596.071,46).
9- Relativamente ao período de tributação de 2010, a Requerente apurou um montante de lucro tributável individual de € 4.330.555,81.
10- No que diz respeito ao período de 2011, a Requerente repetiu os procedimentos, ou seja, face à variação patrimonial negativa decorrente da diferença entre o valor de aquisição da participação no B... e a sua cotação oficial, revelou nos seus capitais próprios o efeito resultante do respectivo reconhecimento ao seu justo valor.
11- Deste modo, relativamente ao IRC de 2011, a Requerente repetiu a inscrição na sua declaração de rendimentos, no campo 705 referente a variações patrimoniais negativas, o montante de € 9.294,88, referente a 1/5 de 50% do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor contabilizado no montante de € 46.474,40.
12- Por outro lado, tendo voltado a existir no período de 2011 uma variação negativa da cotação da participação em causa, tendo em conta o seu valor a 31 de Dezembro de 2010, a Requerente considerou como fiscalmente dedutível 50% da respectiva perda contabilizada, no montante de € 539.638,66, ou seja, considerou como dedutível €269.819,33.
13- Assim, quanto ao IRC de 2011, a Requerente inscreveu na respectiva declaração de rendimentos Modelo 22 os seguintes montantes:
i. No campo 705 — «variações patrimoniais negativas (regime transitório previsto no artigo 5.º, n.ºs 1, 5 e 6 do DL n.º 159/2009, de 13/7)» — o montante de € 9.294,88 (correspondente a 1/5 de 50% do ajustamento decorrente da aplicação retrospectiva do método do justo valor);
ii. No campo 737 — «50% de outras perdas relativas apartes de capital ou outras componentes de capital próprio (artigo 45.º, n.º 3, parte final)» — o montante de € 269.819,33 (correspondente a metade da perda contabilizada no valor de € 539.638,66).
14- No período de tributação de 2011, a Requerente apurou um montante de lucro tributável individual de € 4.695.929,06.
15- Caso a Requerente tivesse feito constar nas suas autoliquidações de IRC e nos respectivos campos 705 o montante de € 18.589,76 (ao invés de € 9.294,88), e eliminado o montante de € 298.035,73, em 2010, e de € 269.819,33, registado em 2011, nos respectivos campos 737, teria resultado um valor de imposto a pagar de um valor de € 51.531,39, em lugar de € 128.364,04, para o ano de 2010, e de € 119.737,21, € em lugar de € 189.515,76, para o ano de 2011.
16- A Requerente pagou, oportunamente, as liquidações objecto da presente acção arbitral.
17- A Requerente apresentou, relativamente ao IRC de 2010 e ao IRC de 2011, pedido de revisão oficiosa dos respectivos actos de autoliquidação, pedido esse que foi indeferido pela AT.
18- A Requerente apresentou no CAAD, em 29.05.2019, o presente pedido de pronúncia arbitral.
A.2. Factos dados como não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada
Relativamente à matéria de facto o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. art.º 123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º/7 do CPPT, a prova documental e o PA juntos aos autos, consideraram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes, e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insusceptíveis de prova e cuja veracidade se terá de aferir em relação à concreta matéria de facto acima consolidada.
B. DO DIREITO
a. da matéria de excepção.
Previamente à discussão do mérito da causa, suscita a Requerida a questão da incompetência material do tribunal arbitral decorrente da circunstância do pedido de pronúncia arbitral ter sido formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa.
Argumenta a Requerida, então, que o pedido de pronúncia arbitral sub judice vem formulado na sequência de indeferimento de pedido de revisão oficiosa de acto de autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), em circunstâncias de tempo em que se mostrava já decorrido o prazo de reclamação graciosa a que alude o artigo 131º do CPPT, pelo que, atento o disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, ambos do RJAT, e nos artigos 1.º e 2.º, alínea a), ambos da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março, verificar-se-á a incompetência material do presente Tribunal Arbitral para apreciar e decidir o pedido.
Fundamenta a AT o seu entendimento essencialmente no disposto no artigo 2.º/a) da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, que exclui dos litígios cognoscíveis pelos tribunais arbitrais em funcionamento no CAAD, as “pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Entende a Requerida, face a este normativo, que o mesmo deve ser entendido na literalidade com que o lê, proscrevendo do âmbito da jurisdição arbitral tributária as pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação que não tenham sido precedidas de reclamação nos termos das referidas normas do CPPT.
Toda a argumentação da Requerida na matéria, contudo, acaba por se reconduzir a sustentar que foi intenção do legislador restringir a competência da jurisdição arbitral tributária, no que ao conhecimento de ilegalidades de actos de autoliquidação diz respeito, unicamente às situações em que exista uma reclamação apresentada nos termos dos artigos 131.º a 133.º do CPPT, porquanto é isso que, na sua leitura, diz no texto da norma interpretada.
Sempre ressalvado o respeito devido, não se descortina, de entre as razões oferecidas pela Requerida, uma razão substancial que explique a razoabilidade do entendimento que sustenta. Efectivamente, não se vislumbra qualquer razão substancial – e a Requerida nada apresenta nesse sentido – para que, atentos os condicionalismos e especificidades próprios de cada um dos meios graciosos em causa, nos mesmos termos em que os tribunais tributários estão vinculados, não seja cognoscível em sede arbitral a legalidade dos actos de autoliquidação objecto de pedido de revisão oficiosa, apresentado para lá do prazo de reclamação graciosa.
Por outro lado, mesmo uma leitura literalística da norma em questão, desde que devidamente contextualizada, não conduz inexoravelmente ao resultado defendido pela Requerida nos autos.
Com efeito, a expressão empregue pela norma da alínea a) do artigo 2.º da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março é paralela à própria norma do artigo 131.º/1 do CPPT, o que deverá ser compreendido como uma concretização da assumida, e pacificamente reconhecida, intenção legislativa de que o processo arbitral tributário constitua um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial.
A norma em causa deverá também ser entendida como explicando-se pela circunstância de, na sua ausência – e face ao teor do artigo 2.º do RJAT – se perfilar como possível a impugnação directa de actos de autoliquidação, sem precedência de pronúncia administrativa prévia.
Ou seja, tendo em conta que face ao RJAT não se configurava como necessária qualquer intervenção administrativa prévia à impugnação arbitral de uma autoliquidação, o teor da Portaria deve ser interpretado como equiparando – nesta matéria – o processo arbitral tributário ao processo de impugnação judicial e não, como decorreria da posição sustentada pela Requerida, passar do 80 para o 8, pegando numa impugnabilidade mais ampla do que a possível nos Tribunais Tributários, e transmutando-a numa mais restrita.
Assim, razão alguma se vê – e, uma vez mais, nenhum subsídio a Requerida dá nesse sentido – para que se interprete de forma diferente uma e outra norma, tanto mais que a letra da norma da Portaria 112.º-A/2011, de 22 de Março, acaba por ser menos restritiva que a do CPPT, na medida em que não integra a expressão “obrigatoriamente”, nem se refere a “reclamação graciosa” mas a “via administrativa”. Daí que seja possível uma leitura da própria letra da lei que se contenha no sentido de que apenas está afastado do âmbito da jurisdição arbitral tributária o conhecimento de pretensões relativas à declaração de ilegalidade de actos de autoliquidação, de retenção na fonte e de pagamento por conta que não tenham sido precedidos de recurso à via administrativa em termos compatíveis com os artigos 131.º a 133.º do CPPT, sendo certo que toda a jurisprudência dos Tribunais Tributários tem sido no sentido de que é compatível com as normas referidas a impugnação dos actos de autoliquidação em causa desde que precedidos de pedido de revisão oficiosa do acto tributário.
E é esta a leitura que se subscreve, na sequência do Acórdão proferido no processo 48/2012T do CAAD, e jurisprudência arbitral subsequente, bem como da doutrina que se tem formado , não se deslindando, na medida em que interpretação efectuada se contém na letra da lei, que daí possa decorrer a violação de qualquer preceito constitucional, maxime, dos indicados artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 111.º e 266.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).
No mesmo sentido, veio a concluir o Ac. do TCA-Sul de 27-04-2017, proferido no processo 08958/15 , onde se lê, para além do mais, que “O artigo 2.º alínea a) da Portaria n.º 112-A/2011 viabiliza a apresentação de pedidos de pronúncia arbitral relativamente a actos de autoliquidação que tenham sido precedidos de pedido de revisão oficiosa.”.
Também o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de se pronunciar nesta matéria, na sequência do Acórdão do TCA-Sul supra-citado, concluindo, no seu Acórdão n.º 244/2018, de 11-05-2018 , “Não julgar inconstitucional a norma que considera os pedidos de revisão oficiosa equivalentes às situações em que existiu «recurso à via administrativa nos termos dos artigos 131.º a 133.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário», para efeito da interpretação da alínea a) do artigo 2.º da Portaria n.º 112-A/2011, encontrando-se tais situações, por isso, abrangidas pela jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD”.
Assim, e face a todo o exposto, não assistindo razão à Requerida nesta matéria, deve a excepção incompetência do Tribunal Arbitral ser julgada improcedente.
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b. do fundo da causa.
Quanto ao fundo da causa, está formada uma corrente jurisprudencial arbitral na matéria, com algumas excepções indicadas pela Requerida, tendo também – o que é completamente omisso na argumentação da Requerida, não obstante o conhecer, por nele ser parte, e ter sido indicado pela Requerente – o STA tomado posição expressa na matéria, no âmbito do Acórdão de 06-06-2018, proferido no processo 0582/17.
Assim sendo, seguir-se-á aqui de perto a argumentação clara e precisa do Ilm.º Senhor Juiz Conselheiro Carlos Cadilha, vertida no processo arbitral 345-2018T do CAAD , onde se pode ler:
“4. A questão que vem colocada prende-se com a dedutibilidade como gasto fiscal das variações patrimoniais negativas resultantes dos ajustamentos que decorram da aplicação do justo valor a participações sociais detidas pelo contribuinte.
A Requerente considera que, por efeito da excepção contida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem na íntegra para a formação do lucro tributável desde que se verifiquem os pressupostos definidos nessa norma, ou seja, quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados e, tratando-se de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social. Encontrando-se esses ajustamentos excluídos, consequentemente, da limitação constante do n.º 3 do artigo 45º desse Código.
A Administração Tributária defende, por sua vez, que, não obstante um determinado ajustamento pelo justo valor em resultados fosse enquadrável na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, se o ajustamento fosse negativo, ainda que aceite nos termos da citada disposição, só seria dedutível em 50% do seu valor em aplicação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, que, sendo uma norma de carácter geral, se aplica a todas as variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Deve começar por dizer-se que a questão não tem sido objecto de entendimento uniforme quer na jurisprudência dos tribunais tributários de instância quer na jurisprudência do CAAD.
No sentido da inaplicabilidade do artigo 45º, n.º 3, do Código de IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor pronunciaram-se, entre outras, as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 108/2013-T, 58/2015-T, 208/2015-T, 473/2015-T, 393/2016-T, 155/2017-T e 30/2015-T. As decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 25/2015-T e 90/2016/T formularam o entendimento contrário, considerando que o gasto para efeito do disposto no artigo 18.º, n.º 9, do Código de IRC corresponde a qualquer das rúbricas contabilísticas que possam afectar negativamente o resultado líquido de uma sociedade, aí se incluindo as menos valias decorrentes da redução do justo valor de instrumentos financeiros e estas cabem no âmbito de aplicação do artigo 45.º, n.º 3.
A questão surge entretanto clarificada pelo acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 (Processo n.º 01401/14), cuja doutrina foi mais recentemente reafirmada pelo acórdão do STA de 6 de junho de 2018 (Processo n.º 0582/17), com referência específica aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, e que não se vê agora motivo para dissentir.
As normas de enquadramento geral que mais interessa considerar são as dos artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e 23.º, n.º 1, alínea i), do Código de IRC. A primeira dessas disposições, na redacção vigente à data dos factos, define exemplificativamente como rendimentos os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, enquanto que a segunda, paralelamente, caracteriza como gastos que poderão ser tidos como indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”.
Por sua vez, o artigo 18º, n.º 9, alínea a), do Código de IRC – que aqui está particularmente em foco - determina que “os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, excepto quando “respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social”.
Qualquer destas disposições foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que, na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, pretendeu proceder às alterações necessárias à adaptação do Código de IRC às regras emergentes do novo enquadramento contabilístico.
Nesse sentido, a nota preambular do referido diploma refere o seguinte:
“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.
Nestes termos, o proémio do n.º 9 do artigo 18.º manteve como regra o princípio da realização para os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, afastando-se do critério geral que resulta do n.º 1 desse artigo, que consigna o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, que consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efectivo recebimento ou pagamento. Excepcionam-se apenas os instrumentos de capitais próprios que preencham as características definidas na sobredita alínea a) desse n.º 9, o que significa que, para esses casos, o legislador aproximou a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do justo valor.
5. No caso vertente e face à matéria dada como assente, não pode deixar de entender-se que a Requerente preenche os requisitos da referida disposição do artigo 18º, n.º 9, alínea a), colocando-se apenas a questão de saber se é aplicável a limitação que consta do artigo 45.º, n.º 3.
Esta norma começou por ser aditada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003), correspondendo então ao artigo 42.º, n.º 3, que ostentava a seguinte redacção: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Por outro lado, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (pág. 53), o que se mostra em consonância com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável” (pág. 34).
Entretanto, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2006), alterou a redacção desse artigo 42.º (que foi depois renumerado como artigo 45.º), passando o seu n.º 3 a dispor do seguinte modo: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Deste modo, o legislador alargou a limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias, passando a considerar, para esse efeito, não apenas as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, como também as que resultem da transmissão onerosa de “outras componentes do capital próprio”.
No entanto, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de 2006 continuou a justificar a alteração legislativa no quadro das medidas tendentes ao “combate à fraude e evasão fiscais e outras medidas direccionadas à consolidação orçamental” (pág. 31). O que levou o citado acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 a concluir que a norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, no ponto em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.
E assim, conforme também se reconhece no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, a norma terá visado “de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.
6. Resta agora verificar em que medida a mensuração dos instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados ao justo valor pode ser compatibilizada com a limitação que resulta do artigo 45.º, n.º 3.
O acórdão ultimamente citado responde a esta questão nos seguintes termos.
“O conceito de justo valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística, quer internacionais (Normas Internacionais de Contabilidade), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes. Refere José de Campos Amorim que, “As IAS/IFRS [International Accounting Standard/International Financial Reporting Standards] e o SNC [Sistema de Normalização Contabilística] com as alterações das normas de relato financeiro, introduziram uma maior justiça na valorização dos bens da sociedade com vista aos utentes da situação económica, financeira e patrimonial da sociedade. Esta abertura da contabilidade ao justo valor vai ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir na empresa.
Não é uma informação que pode condicionar determinadas operações económicas ou financeiras, como, por exemplo, o aumento ou a diminuição de capital, mas que é de uma grande relevância para o investidor que pretende ter uma noção real e atual dos ativos da empresa. É por esse motivo que a contabilidade está orientada não para o custo histórico mas para o valor atual dos ativos.”, cfr. O justo valor e as suas implicações fiscais, IV Congresso de Direito Fiscal, Vida Económica, pág. 168.
Portanto, a consideração do justo valor, no que aqui nos interessa (…) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do Código de IRC se encontra directamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, e no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos - realização das mais ou menos valias - passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de acções de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.
Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo justo valor são meramente potenciais ou provisórias - o valor dos activos consubstancia-se numa posição financeira - porque não há uma efectiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais.
Não há, assim, qualquer dúvida que (…) à posição financeira negativa resultante do justo valor, não lhe “subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo” (cfr. Tomás Castro Tavares, idem, págs. 1143 e 1144).”
Nota-se ainda que a norma do artigo 45.º/3 do Código de IRC tem uma relação teleológica com a norma do art.º 48.º do mesmo Código, em especial, no que para o caso releva, com o seu n.º 4, na medida em que a concorrência negativa em metade do valor para a formação do lucro tributável imposta pela primeira das referidas normas é, compensada, pela concorrência positiva em igual medida (metade do valor), prevista pela segunda.
Contudo, nesta última norma, o legislador impôs condições, sendo que uma delas é a de que o beneficiário dessa redução da base tributável ter de reinvestir o valor que realizou com a venda dos bens que geraram o saldo positivo entre as mais-valias e as menos valias.
Sucede que, em relação aos ganhos relativos à contabilização das partes de capital pelo modelo do justo valor, emerge uma impossibilidade, já que quando a entidade que obtém um rendimento (ganho) resultante da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, fica impossibilitada de aproveitar a redução do valor sujeito a imposto a metade do seu valor.
Efectivamente, para que isso fosse possível, a sociedade teria de reinvestir o valor de realização dos bens que geraram a “mais-valia” (ganho/rendimento) em causa, sendo que, no modelo do justo valor não há um valor de realização a reinvestir, pelo que não é possível cumprir a obrigação de reinvestimento.
Por não existir valor de realização no modelo do justo valor, nem de facto nem de direito (p. ex. o legislador podia ter equiparado a utilização do justo valor ao valor de realização ou ter estabelecido uma presunção de venda e compra sucessiva) o reinvestimento do valor de realização torna-se impossível de cumprir, no caso de o saldo dos ganhos e das perdas geradas com a utilização do modelo do justo valor na contabilização dos instrumentos financeiros
Tal impossibilidade, que determina a não aplicação do benefício da tributação da “mais-valia” gerada pelo justo valor, em metade do seu saldo positivo, também deve determinar que a “menos-valia” gerada com a aplicação do modelo do justo valor aos investimentos financeiros, não possa ser deduzida em metade do seu valor, pelo que ambos – rendimento e gasto – deverão integrar o lucro tributável pela totalidade.
Acresce ainda que a parte do nº 3 do artigo 45º - à data artigo 42º - que refere “…bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio…” foi acrescentada ao respectivo nº 3 pela Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que o modelo do justo valor só apareceu pela primeira vez no código do IRC com Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, que procedeu à adaptação do código do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade, motivo pelo qual não se poderá sustentar que o legislador, com o aditamento feito em 2005, teria querido enquadrar na lei os ganhos ou perdas relativos a uma realidade que só viria a nascer em 2009, muitos anos depois, dado que o modelo do justo valor não fazia parte dos normativos contabilísticos nem das leis fiscais.
Tendo por base todos estes considerandos, torna-se possível concluir que a norma do artigo 45º, n.º 3 do Código de IRC, interpretada de acordo com o fim visado pelo legislador e tendo presente a conjuntura que determinou a decisão legislativa, não pode ser entendida como abrangendo os gastos resultantes da aplicação do justo valor num mercado regulado, caso em que a vontade do contribuinte não releva para a valorização ou desvalorização dos activos financeiros, e nenhuma razão subsiste para a penalização desses gastos para efeitos fiscais.
Entende-se, em conformidade, e na linha do julgado no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, que a diferença negativa releva na totalidade para a formação do lucro tributável, e não apenas em metade do seu valor, pelo que se mostra ser ilegal a correcção efectuada em IRC pela Autoridade Tributária.
Por fim, resta considerar que não tem qualquer relevo para o caso o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 85/2010, que vem invocado pela Requerida. O aresto limitou-se a julgar não inconstitucional a norma do artigo 45.º, n.º 3, do Código de IRC no confronto com os princípios da proibição da retroactividade da lei fiscal, da protecção da confiança e da tributação segundo o rendimento real. No caso vertente, não vem suscitada, porém, qualquer questão de constitucionalidade e tudo se reconduz à interpretação da norma no plano do direito infraconstitucional.”.
Dando o Acórdão transcrito resposta cabal a todas as questões pertinentes que se apresentam a elucidar na matéria, em termos que se subscrevem plenamente, poucas considerações haverá a acrescentar.
Não obstante, a respeito da questão ligada ao elemento literal da norma do art.º 45.º/3 do CIRC aplicável, questão não abordada no aresto supracitado, e suscitada nos presentes autos (estando também, tanto quanto se compreende, na base da declaração de voto lavrada no processo arbitral n.º 351/2016-T do CAAD ), sempre se remeterá para o quanto foi escrito a este propósito, na decisão do processo arbitral 77/2016T do CAAD, referindo-se unicamente que a AT pretende enquadrar na letra do art.º 45.º/3 do CIRC aplicável, alargando sem qualquer argumento teleologicamente fundado o conceito de “perdas”, uma realidade que aquela não abrange que são os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do nº 9 do artigo 18.º.
De resto a própria Requerida reconhece isso mesmo, ao referir que a interpretação consiste em “que a redacção do artigo 45.º, n.º 3, quando se refere a outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital, não afasta os ajustamentos – traduzidos em gastos/perdas - decorrentes da aplicação do justo valor a instrumentos de capital próprio com preço formado num mercado regulamentado, nos termos e condições previstos no art.º 18.º, n.º 9” .
Ou seja: a interpretação sustentada pela Requerida, pressupõe que se leia no art.º 45.º/3 uma coisa que não está lá escrita, designadamente que se leia como referindo-se a “gastos/perdas”, quando a letra da lei refere, apenas a “perdas”. Daí que seja, crê-se, ilegítima a invocação do argumento literal da interpretação da lei para sustentar a posição defendida pela Requerida nos autos.
Por outro lado, a argumentação da Requerida, nesta matéria, assume também contornos de contrariedade, quando por um lado afirma que “Sendo certo que o termo [gastos] utilizado, tanto na epígrafe dada ao art. 23.º, no âmbito das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de Julho, como na redacção da alínea i) do n.º 1 desse preceito [Gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiro], tem necessariamente de ser entendido em sentido amplo, i.e. cobrindo, em substância, os gastos propriamente ditos e as perdas.” , acaba, para sustentar o que defende, por concluir que também o conceito de perdas deverá ser entendido como incluindo gastos e perdas, sem nunca justificar, em momento algum, que na situação dos autos estamos perante um situação qualificável, à luz do CIRC, como de perda, antes pelo contrário, aceitando, ao pretender equiparar aquele conceito ao de gasto, que se está perante um gasto, e não uma perda.
Acresce ainda que os tribunais em geral, e também os tribunais arbitrais, julga-se, estão vinculados ao dever de ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.” (art.º 8.º/3 do Código Civil).
Por outro lado, e nos termos do art.º 25.º/2 do RJAT, “A decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo.”.
Daí que uma decisão, na matéria sub iudice, que vá contra a jurisprudência firmada pelo STA na matéria, verificando-se, como se verifica, identidade fundamental dos factos e do direito a aplicar a este, entre o presente caso, e o já julgado pelo STA, seria, não só susceptível de recurso nos termos do referido art.º 25.º/2 do RJAT, como, com um elevado grau de probabilidade, passível de ser revogada por aquele Alto Tribunal.
Assim, e em suma, não se crê que tivesse qualquer utilidade, pelo contrário (daria azo a tramitação processual adicional inútil e desnecessária), este Tribunal concluir de outra forma, na matéria ora em apreço.
Deste modo, e face a todo o exposto, deverá proceder integralmente o pedido arbitral, sendo anulados os actos tributários objecto da presente acção arbitral.
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Quanto ao pedido de juros indemnizatórios formulado pela Requerente, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos juros indemnizatórios quando se determine, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Acrescenta a al. c) do n.º 3 mesmo artigo que:
“São também devidos juros indemnizatórios nas seguintes circunstâncias: (...)
c) Quando a revisão do acto tributário por iniciativa do contribuinte se efectuar mais de um ano após o pedido deste, salvo se o atraso não for imputável à administração tributária.”
Assim, deverá o termo inicial da contagem do prazo de pagamento de juros indemnizatórios ocorre um ano após a apresentação dos pedidos de revisão oficiosa pelo contribuinte.
Tem, pois, direito a Requerente a ser reembolsada da quantia que pagou (nos termos do disposto nos artigos 100.º da LGT e 24.º, n.º 1, do RJAT) por força dos actos ora anulados e, ainda, a ser ressarcida pelo pagamento indevido através do pagamento de juros indemnizatórios, pela Requerida, desde o termo inicial atrás fixado, até ao seu reembolso, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.ºs 1 e 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.
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C. DECISÃO
Termos em que se decide neste Tribunal Arbitral julgar integralmente procedente o pedido arbitral formulado e, em consequência:
a) Anular parcialmente e no montante total de €146.611,00, os actos de Liquidação n.º 2011... (no montante de € 76.832,65) e n.º 2012... (no montante de € 69.778,55), bem como dos actos de indeferimento expresso dos pedidos de revisão oficiosa n.º ...2015... e n.º ...2015...;
b) Condenar a AT na restituição das quantias indevidamente pagas por força das liquidações ora anuladas, bem como no pagamento de juros indemnizatórios, nos termos acima determinados;
c) Condenar a Requerida nas custas do processo, no montante abaixo fixado.
D. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 146.611,00, nos termos do artigo 97.º-A, n.º 1, a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT e do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
E. Custas
Fixa-se o valor da taxa de arbitragem em € 3.060,00, nos termos da Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, a pagar pela AT, uma vez que o pedido foi totalmente procedente, nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, ambos do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do citado Regulamento.
Notifique-se.
Lisboa, 01 de Junho de 2020
O Árbitro Presidente
(José Pedro Carvalho)
A Árbitro Vogal
(Rita Calçada Pires)
O Árbitro Vogal
(Augusto Vieira)