DECISÃO ARBITRAL
O árbitro, Dr. Henrique Nogueira Nunes, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formar o Tribunal Arbitral, constituído em 5 de Maio de 2014, acorda no seguinte:
1. RELATÓRIO
1.1. A A, com o número de identificação fiscal …, doravante designada por “Requerente”, requereu a constituição do Tribunal Arbitral ao abrigo do artigo 2.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”).
1.2. O pedido de pronúncia arbitral tem por objecto a declaração de ilegalidade dos actos de liquidação de imposto do selo melhor identificado sob os documentos de cobrança emitidos com os números 2012 ..., no montante de € 7.908,12; 2013 ..., no montante de € 5.272,08; n.º 2013 ..., no montante de € 5.272,08 e n.º 2013 ..., no montante de € 5.272,08, tudo no valor total de € 23.724,36, liquidações estas efectuadas ao abrigo do disposto na verba 28.1 da TGIS[1], referente ao ano de 2012. Adicionalmente a Requerente peticiona o reembolso do imposto pago alegadamente indevido e o pagamento de juros indemnizatórios.
1.3. A fundamentar o seu pedido alega a Requerente, em síntese, os seguintes vícios:
a) Erro nos pressupostos de direito, em virtude de:
(i) Um terreno para construção, para efeitos fiscais, não pode ser considerado um prédio afecto a habitação, ao abrigo do disposto no artigo 1.º, nº 1 do Código do Imposto do Selo (CIS) e da verba 28 da TGIS.
(ii) O objectivo do aditamento da verba 28 da TGIS, largamente anunciado pelo actual Governo da República, foi a de tributar as habitações de maior valor patrimonial, numa lógica de equidade social na partilha dos encargos fiscais actualmente exigidos aos cidadãos.
b) Vícios de inconstitucionalidade, porquanto:
(iii) A interpretação subjacente às liquidações impugnadas segundo a qual os terrenos para construção são prédios com afectação habitacional padece de inconstitucionalidade por violação dos princípios da legalidade e da igualdade consignados na Constituição da República Portuguesa (CRP).
(iv) No caso dos autos, o facto tributário forma-se com valores aferidos no passado, revelando um carácter retroactivo, ilegítimo à luz da regra constitucional prevista no artigo 103.° da CRP.
(v) Nesta conformidade, para o mesmo período de tempo — ano fiscal do 2012 — foram exigidas quatro liquidações da mesma natureza — ambas respeitantes a verba 28 da TGIS, referentes ao mesmo imóvel -, sem prejuízo do ter existido uma redução da taxa a aplicar para as liquidações emitidas em 2012.
(vi) Está-se, assim, defende, perante uma duplicação da colecta, porquanto a AT está a pretender cobrar “quatro” vezes o mesmo imposto, ou seja, Imposto do Selo, por referência à verba 28, referente ao mesmo período de tempo e ao mesmo imóvel.
(vii) Entende que as liquidações n.°s 2013 ..., 2013 ... e 2013 ... estão feridas de ilegalidade por duplicação da colecta.
(viii) E que a liquidação n.º 2012 ... é nula por aplicação do princípio constitucional da não retroactividade da lei fiscal.
(ix) Termina, pugnando pela invalidade dos actos tributários em causa nos autos, e solicitando o reembolso do montante total pago de € 23.724,36, e, adicionalmente, o pagamento de juros indemnizatórios nos termos dos números 1 e 2 do artigo 43.° da LGT.
1.4. A Autoridade Tributária e Aduaneira respondeu no sentido de que o conceito de “prédios com afectação habitacional”, para efeitos do disposto na verba 28 da TGIS, “deverá ser entendida de forma ampla, abrangendo quer os prédios habitacionais edificados, quer os terrenos para construção”, concluindo pela manutenção dos actos de liquidação e improcedência do pedido também quanto ao vício alegada pela Requerente de duplicação de colecta.
1.5. A AT veio requerer a dispensa da reunião prevista no artigo 18.º do RJAT, bem como a dispensa de alegações, não tendo a Requerente se oposto.
1.6. Considerando que a questão sub iudice é puramente uma questão de Direito, e que existe prova documental suficiente nos autos para a decisão, entende o Tribunal dispensar a prova testemunhal arrolada pela Requerente.
1.7.O Tribunal fixou prazo para o efeito de prolação da decisão arbitral e notificou a Requerente para efectuar o pagamento da taxa arbitral subsequente.
* * *
1.8. O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria, de acordo com o artigo 2.º do RJAT.
As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, mostram-se legítimas e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
Não foram identificadas excepções, questões prévias e nulidades no processo.
2. QUESTÃO A DECIDIR
Discute-se nos presentes autos a questão (estritamente) jurídica de saber se um terreno para construção pode ser qualificado como “prédio com afectação habitacional” e, em caso afirmativo, enquadrável no âmbito de incidência da verba 28.1 da TGIS, aditada pelo artigo 4.° da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro.
3. MATÉRIA DE FACTO
Com relevo para a apreciação e decisão do mérito, dão-se por provados os seguintes factos:
A) A Requerente é proprietária dos prédios urbanos sitos na ..., n.º ... e ..., n.º 55 a 63, descritos na Conservatória do Registo Predial do …, sob os números ..., ... e ... e inscritos na matriz predial urbana sob os os artigos ..., ... e ..., da freguesia ..., do Conselho do .... (cf. Caderneta predial junta como Documento n.º 1 com o pedido de pronúncia arbitral)
B) O prédio em causa nos autos corresponde ao Lote .., conforme alvará de loteamento n.º ALV/…/…, processo n.º …/03, da Câmara Municipal do ..., destinado a construção para fins habitacionais e de comércio. (cf. Alvará de Loteamento junto como Documento n.º 2 com o pedido de pronúncia arbitral)
C) Aquando da realização de avaliação tributária do terreno para construção em causa nos autos, em 23 de Abril de 2013, a AT determinou como Valor Patrimonial Tributário (“VPT”) o valor de € 1.234.070,00 (cf. Documento n.º 4 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
D) A Requerente, por não concordar com a supra referida avaliação, veio requerer uma segunda avaliação ao imóvel em causa (cf. Documento n.º 5 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
F) E que ditou uma nova avaliação por parte da AT para o imóvel em causa, tendo sido fixado em 27 de Maio de 2013 o VPT de € 1.019.450,00. (cf. Documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral).
G) A Requerente foi notificada dos documentos de cobrança emitidos com os números 2012 ..., no montante de € 7.908,12; 2013 ..., no montante de € 5.272,08; n.º 2013 ..., no montante de € 5.272,08 e n.º 2013 ..., no montante de € 5.272,08, tudo no valor total de € 23.724,36, liquidações, essas, efectuadas ao abrigo do disposto na verba 28.1 da TGIS, datado de 14 de Julho de 2013, referente ao ano de 2012, tendo a Requerente pago as mesmas. (cf. actos de liquidação juntos com o pedido de pronúncia arbitral como Documentos n.ºs 7 a 10 com a respectiva prova de pagamento)
H) No dia 27 de Fevereiro de 2014, a Requerente apresentou requerimento de constituição do Tribunal Arbitral junto do CAAD – cf. requerimento electrónico no sistema do CAAD.
4. FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem factos com relevo para a decisão de mérito que não se tenham provado.
5. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Quanto aos factos essenciais a matéria assente encontra-se conformada de forma idêntica por ambas as partes e a convicção do Tribunal formou-se com base nos elementos documentais (oficiais) juntos ao processo e acima discriminados cuja autenticidade e veracidade não foi questionada por nenhuma das partes.
6. DO DIREITO
6.1. Do erro nos pressupostos: âmbito de incidência objectiva da verba 28.1 da TGIS
As liquidações que constituem o objecto imediato desta acção arbitral tem a sua origem na verba 28.1 da TGIS, aditada pelo artigo 4.º da Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, tendo como pressuposto essencial estar-se perante imóveis que sejam enquadráveis no conceito de “prédios com afectação habitacional”.
Uma vez que na situação sob escrutínio o imóvel em causa é exclusivamente um terreno para construção, importa determinar o sentido da expressão “prédios com afectação habitacional” de modo a concluir se abrange, ou não, os terrenos para construção.
A matéria em análise foi já objecto de extensa jurisprudência arbitral tributária. Referimo-nos designadamente, sem preocupações de exaustividade, às decisões proferidas nos processos seguintes: 42/2013-T, de 18-10-2013; 48/2013-T, de 09-10-2013; 49/2013-T, de 18-09-2013; 53/2013-T, de 02-10-2013; 75/2013-T, de 01-11-2013; 144/2013-T, de 12-12-2013 e 158/2013-T, de 10-02-2014.
Tendo os Tribunais Judiciais igualmente se pronunciado sobre esta mesma questão. Referimo-nos às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) nos processos seguintes: 048/14, de 09-04-2014; 0270/14, de 23-04-2014 e 676/14, e, mais recentemente, de 09-07-2014.
Quer a jurisprudência arbitral citada, como a jurisprudência judicial citada, que acompanhamos, considera que os terrenos para construção estão fora do âmbito da previsão da verba 28.1 da TGIS, na redacção em vigor à data dos factos, nos termos que seguidamente se explicitam, começando por se analisar o contexto legislativo no qual ocorreu o aditamento da verba 28 à TGIS.
A. Contexto da aprovação da verba 28.1 da TGIS e respectivo regime
Na discussão no Parlamento da Proposta de Lei n.º 96/XII (2.ª), que esteve na origem da Lei n.º 55-A/2012, que aditou a verba 28 à TGIS, o Senhor Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais afirmou que:
“(...) Para que o sistema fiscal promova mais igualdade é fundamental que o esforço de consolidação orçamental seja repartido por todos os contribuintes e incida sobre todos os tipos de rendimento, abrangendo com especial ênfase os rendimentos de capital e as propriedades de elevado valor. Esta matéria, recorde-se, foi amplamente abordada no acórdão do Tribunal Constitucional (...).
Esta proposta tem três pilares essenciais: a criação de uma tributação especial sobre prédios urbanos de valor superior a 1 milhão de euros; o agravamento da tributação sobre os rendimentos do capital sobre as mais-valias mobiliárias; e o reforço das regras de combate à fraude e à evasão fiscais.
Em primeiro lugar, o Governo propõe a criação de uma taxa especial para tributar prédios urbanos habitacionais de mais elevado valor. É a primeira vez que em Portugal é criada uma tributação especial sobre propriedades de elevado valor destinadas à habitação. Esta taxa será de 0,5% a 0,8% em 2012 e de 1% em 2013, e incidirá sobre as casas de valor igual ou superior a 1 milhão de euros. Com a criação desta taxa adicional, o esforço fiscal exigido a estes proprietários será significativamente aumentado em 2012 e 2013” (realçado nosso) – cf. Diário da Assembleia da República, I série, n.º 9/XXII-2, de 11 de Outubro de 2012, pp. 31-32.
Quer as casas, quer os prédios urbanos habitacionais aqui referidos não se reconduzem a terrenos para construção. Nota-se que os prédios urbanos habitacionais são um dos conceitos classificatórios constantes do artigo 6.º do Código do IMI claramente distinto dos terrenos para construção. Com efeito, dispõe o citado n.º 1 do artigo 6.º que:
“1 - Os prédios urbanos dividem-se em:
(i) Habitacionais;
(ii) Comerciais, industriais ou para serviços;
(iii) Terrenos para construção;
(iv) Outros.” (realçado nosso)
Assim, prédios urbanos habitacionais e terrenos para construção são, para efeitos de IMI (cuja aplicabilidade, por remissão, ao Imposto do Selo é, como adiante se verá, de convocar), duas categorias distintas, com classificações e definições legais próprias constantes do mencionado artigo 6.º do Código do IMI[2].
À face do exposto e como salienta a decisão arbitral no processo n.º 75/2013-T, de 1 de Novembro de 2013, afigura-se claro que “no espírito da Proposta da Lei que originou a Lei n.º 55-A/2012 não estava a tributação dos terrenos para construção, não existindo, por outro lado, qualquer evidência em sentido diferente proveniente dos Deputados que aprovaram a lei”.
Fixado o contexto, cabe referir que o regime em causa veio a ser aprovado pela Lei n.º 55-A/2012, de 29 de Outubro, e, de entre várias alterações que promoveu ao Código do Imposto do Selo, aditou a verba 28 à TGIS, com a seguinte redacção:
“28 – Propriedade, usufruto ou direito de superfície de prédios urbanos cujo valor patrimonial tributário constante da matriz, nos termos do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI), seja igual ou superior a € 1.000.000 – sobre o valor patrimonial tributário utilizado para efeito de IMI:
28.1 – Por prédio com afectação habitacional – 1%;
28.2 – Por prédio, quando os sujeitos passivos que não sejam pessoas singulares sejam residentes em país, território ou região sujeito a um regime fiscal claramente mais favorável, constante da lista aprovada por portaria do Ministro das Finanças – 7,5 %”. (realçado nosso)
B. O conceito de “prédio com afectação habitacional”
Importa, assim, interpretar o disposto na verba 28.1 da TGIS e determinar o seu sentido e alcance, atenta a ausência de uma definição legal do conceito de prédio com afectação habitacional (noção fundamental ao recorte da incidência objectiva), seja no próprio Código do Imposto do Selo seja em qualquer outro diploma, incluindo o Código do IMI aplicável por remissão.
Com efeito, como salientado no Acórdão Arbitral relativo ao processo n.º 53/2013-T, de 2 de Outubro de 2013, o conceito de “prédio com afectação habitacional” não é empregue pela demais legislação tributária, em particular, no que ao caso releva, no Código do Imposto do Selo e no Código do IMI, este último, de aplicação subsidiária no âmbito da verba 28 da TGIS, conforme previsto nos artigos 2.º, n.º 4; 3.º, n.º 3, alínea u); 5.º, alínea u); 23.º, n.º 7; 46.º, n.º 5 e 67.º, n.º 2, todos do Código do Imposto do Selo.
No mesmo sentido, refere a decisão Arbitral no processo n.º 144/2013-T, de 12 de Dezembro de 2013, que este conceito usado pela verba 28.1 (de prédio com afectação habitacional) “não só não surge definido em qualquer disposição do Código do Imposto do Selo, como tão-pouco é usado no Código do IMI, diploma para que expressamente remete o n.º 2 do art.º 67.º do CIS quando estejam em causa matérias não reguladas no CIS relativamente à verba 28.”
As normas fiscais devem ser interpretadas como quaisquer outras, estando ultrapassada a concepção de que lhes assistiria o carácter excepcional que outrora lhes foi assinalado.
De notar a este respeito que o artigo 9.º do Código Civil marca a prevalência do espírito sobre a letra da lei, embora tenha colocado expressamente a letra como limite à busca do sentido[3]. O artigo 9.º do Código Civil representa a emanação de um princípio geral hermenêutico, assistindo-lhe, por essa razão, validade intrínseca. Dispõe este preceito que:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
A LGT, no seu artigo 11.º, veio, no campo específico das leis tributárias, consagrar um conjunto de regras de interpretação nos seguintes moldes:
1. Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam, são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2. Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.
3. Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários.
4. As lacunas resultantes de normas tributárias abrangidas na reserva de lei da Assembleia da República não são susceptíveis de integração analógica.
Afigura-se que o texto da LGT nada acrescenta, remetendo para as regras e princípios gerais, para além de incorporar princípios distintos de difícil compatibilização.
Como se viu acima, o Código do IMI utiliza (no seu artigo 6.º, n.º 1) a noção de prédios urbanos habitacionais, que consagra como uma categoria autónoma e distinta da dos terrenos para construção, mas não prevê o conceito de “prédio com afectação habitacional”, cuja interpretação agora se impõe.
Neste ponto, recorremos, de novo, à jurisprudência arbitral e ao Acórdão proferido no processo n.º 53/2013-T, acima referenciado, que aqui se sufraga e de que se transcreve o seguinte excerto:
“3.2.5. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como reportando-se aos prédios habitacionais
O conceito mais próximo do teor literal desta expressão utilizada é manifestamente o de «prédios habitacionais», definido no n.º 2 do artigo 6.º do CIMI como abrangendo «os edifícios ou construções» licenciados para fins habitacionais ou, na falta de licença, que tenham como destino normal fins habitacionais.
A entender-se que a expressão «prédio com afectação habitacional» coincide com [a] de «prédios habitacionais», é manifesto que as liquidações enfermarão de erro sobre os pressupostos de facto e de direito, pois todos os prédios relativamente aos quais foi liquidado o Imposto do Selo ao abrigo da referida verba n.º 28.1 são terrenos para construção, sem qualquer edifício ou construção, exigidos para se preencher aquele conceito de «prédios habitacionais».
Por isso, a adoptar-se a interpretação de que «prédio com afectação habitacional» significa «prédio habitacional», as liquidações cuja declaração de ilegalidade é pedida serão ilegais, por não haver em qualquer dos terrenos qualquer edifício ou construção.
No entanto, a não coincidência dos termos da expressão utilizada na verba n.º 28.1 da TGIS com a que se extrai do n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, aponta no sentido de não se ter pretendido utilizar o mesmo conceito.
3.2.6. Conceito de «prédio com afectação habitacional» como conceito distinto de «prédios habitacionais»
A palavra «afectação», neste contexto de utilização de um prédio, tem o significado de «acção de destinar alguma coisa a determinado uso»1.
«Quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a ou sugerir mais fortemente um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento»2.
A relevância do texto da lei é especialmente acentuada em matéria de interpretação de normas de incidência do Imposto do Selo, que se reconduzem a uma amálgama, sob uma denominação comum, de um conjunto incongruente de tributos de naturezas completamente distintas (sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o património, sobre actos, etc.), que não deixa margem apreciável para aplicação do critério interpretativo primordial, que é a unidade do sistema jurídico, que reclama a sua coerência global.
A reconhecida falta de coerência do Imposto do Selo é particularmente exuberante no caso desta verba n.º 28.1, apressadamente incluída à margem do Orçamento Geral do Estado, por um legislador fiscal sem orientação fiscal global perceptível, que vai implementando sucessivamente normas de agravamento fiscal à medida dos revezes da execução orçamental, das imposições dos credores institucionais internacionais (representados pela «troika») e da fiscalização do Tribunal Constitucional. (…)
Neste contexto, não existindo elementos interpretativos seguros que permitam detectar coerência legislativa na solução adoptada na referida verba n.º 28.1 ou o acerto ou desacerto da solução adoptada (relevante para efeitos interpretativos à face do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), o teor do texto legal tem de ser o elemento primacial da interpretação, em conformidade com a presunção, imposta pelo mesmo n.º 3 do artigo 9.º, de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
À face daqueles significados das palavras «afectação» e «afectar», que são «dar destino» ou «aplicar», a fórmula utilizada naquela verba n.º 28.1 da TGIS, abrange, manifestamente, os prédios que já estão aplicados a fins habitacionais, pelo que importa indagar se abrangerá também os prédios que, apesar de não estarem ainda aplicados a fins habitacionais, estão a estes destinados e aqueles cujo destino é desconhecido.
À face do teor literal da verba n.º 28.1, é de afastar do âmbito de incidência do Imposto do Selo aí previsto os terrenos para construção de algumas Requerentes que ainda não têm definido qualquer tipo utilização, pois ainda não estão aplicados nem destinados a fins habitacionais. Isto é, os terrenos para construção que não tem utilização definida não podem ser considerados prédios com afectação habitacional, pois não têm ainda nenhuma afectação nem outro destino que não seja a construção de tipo desconhecido. Uma interpretação no sentido de que a verba n.º 28.1 se reporta a prédios cuja afectação é desconhecida não tem o mínimo de correspondência verbal na letra daquela norma, pelo que um hipotético pensamento legislativo desse tipo não pode ser considerado pelo intérprete da lei, em face da proibição que consta do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.
Mas, isto não basta para esclarecer a situação daqueles terrenos para construção que, não estando ainda aplicados a fins habitacionais, já têm um destino determinado, designadamente, na licença de loteamento (…).
Por isso, haverá que esclarecer quando é que se pode entender que um prédio está afectado a fim habitacional, designadamente se é quando lhe é fixado esse destino num acto de licenciamento ou semelhante, ou apenas quando a efectiva atribuição desse destino é concretizada.
Desde logo, o confronto da verba n.º 28.1 da TGIS com n.º 2 do artigo 6.º do CIMI, que define o conceito de prédios habitacionais, aponta manifestamente, no sentido de ser necessária uma afectação efectiva.
Na verdade, um edifício ou construção licenciado para habitação ou, mesmo sem licença, mas que tenha como destino normal a habitação, é, à face do n.º 2 daquele artigo 6.º um prédio habitacional.
Por isso, no pressuposto de que o legislador da Lei n.º 55-A/2012 soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (como impõe o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil que se presuma), se pretendesse reportar-se a esses prédios já licenciados para habitação ou que tenham a habitação como destino normal, decerto teria utilizado o conceito de «prédios habitacionais», que expressaria perfeita e claramente o seu pensamento, à face da definição dada por aquele n.º 2 do artigo 6.º do CIMI.
Consequentemente, deve presumir-se que o uso de uma expressão diferente tem em vista uma realidade distinta, pelo que, em boa hermenêutica, «prédio com afectação habitacional», não poderá ser um prédio apenas licenciado para habitação ou destinado a esse fim (isto é, não bastará que seja um «prédio habitacional»), tendo de ser um prédio que tenha já efectiva afectação a esse fim.
Que é este o sentido da expressão «afectação», no mesmo contexto de classificação de prédios que faz o CIMI, confirma-se pelo artigo 3.º em que, relativamente aos prédios rústicos, se faz referência aos que «estejam afectos ou, na falta de concreta afectação, tenham como destino normal uma utilização geradora de rendimentos agrícolas», que evidencia que a afectação é concreta, efectiva. Na verdade, como se vê pela parte final deste texto, um prédio pode ter como destino uma determinada utilização e estar ou não afecto a ela, o que evidencia que a afectação é, a nível da ligação de um prédio a determinada utilização, algo mais intenso que o mero destino e que pode ou não ocorrer, a jusante deste e não a montante4.
De resto, o texto da lei ao adoptar a fórmula «prédio com afectação habitacional», em vez de «prédios urbanos de afectação habitacional», que aparece na referida «Exposição de Motivos», aponta fortemente no sentido de que se exige que a afectação habitacional já esteja concretizada, pois só assim o prédio estará com essa afectação.
No que concerne ao artigo 45.º do CIMI, não tem qualquer relação com a classificação de prédios apenas indicando os factores a ponderar na avaliação de terrenos para construção. O que se pondera aí, ao fazer referência ao «edifício a construir» é a ponderação do destino do terreno, que, como se viu, é algo que, no contexto do CIMI, não implica afectação e ocorre antes desta.
A correcção desta interpretação no sentido de que só prédios que estejam efectivamente afectos à habitação, se inserem no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 da TGIS é também confirmada pela ratio legis perceptível da restrição do campo de aplicação da norma aos prédios com afectação habitacional, no contexto das «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», que o artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil também erige em elementos interpretativos5.
Desde logo, a limitação da tributação em Imposto do Selo aos «prédios com afectação habitacional» deixa perceber que não se pretendeu abranger no âmbito de incidência do imposto os prédios com afectação a serviços, indústria ou comércio, isto é, os prédios afectos à actividade económica, o que se compreende num contexto em que, como é notório, a economia se encontra em espiral recessiva, publicamente proclamada ao mais alto nível, com as taxas de desemprego a atingir níveis máximos históricos, com avalanche de encerramento de empresas derivado de insustentabilidade económica.
Tendo em mente esta situação e sendo consabido e público que a reanimação da actividade económica e o aumento das exportações são as portas de saída para a crise, compreende-se que não se tomassem legislativamente medidas que dificultassem a actividade económica, designadamente o agravamento da carga fiscal que a dificulta e afecta a competitividade em termos internacionais.
Por isso, é de concluir que os elementos interpretativos disponíveis, inclusivamente as «circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada», apontam claramente no sentido de não se ter pretendido abranger no âmbito de incidência da verba n.º 28.1 as situações de prédios que ainda não estão afectos à habitação, nomeadamente os terrenos para construção detidos por empresas6.”
Neste âmbito, pelas razões acabadas de expor, não pode proceder o entendimento preconizado pela AT de que a noção de afectação (habitacional) de um prédio urbano se deve ir buscar ao regime de avaliação dos imóveis constante do artigo 45.º do Código do IMI (que tem em consideração o coeficiente de afectação previsto no artigo 41.º do mesmo Código).
De facto, como bem refere a decisão do processo arbitral n.º 144/2013-T, “Se o sentido primacial de “afectação”, como deixámos dito, sugere um destino efectivo, directo, dado a um determinado bem, não vemos como possa este entendimento ser infirmado pela constatação de que o legislador, no âmbito da avaliação de terrenos para construção, autoriza (a admitir que autoriza) o uso do coeficiente de afectação, tendo em vista o que nele pode vir a ser construído.
C. O caso Sub Judice
De acordo com a matéria de facto, que resulta consensual, o imóvel subjacente às liquidações de Imposto do Selo efectuadas, aqui impugnadas, consubstancia um terreno para construção.
Tomando como correcto e válido (como tomamos) o entendimento segundo o qual a verba 28.1 da TGIS postula a necessidade de uma efectiva afectação habitacional de um prédio urbano e não meramente potencial, um terreno para construção não pode considerar-se incluído naquela verba, pois não permite, pela sua própria natureza, ter uma afectação habitacional efectiva e actual.
Assim, na situação vertente não estamos perante um prédio com afectação habitacional actual, pelo que não pode incidir sobre o mesmo o Imposto do Selo previsto na verba 28.1 da TGIS, padecendo as liquidações controvertidas de erro nos pressupostos, consubstanciado na violação da referida verba 28.1, devendo as mesmas serem anuladas (cf. artigo 135.º do CPA, de aplicação subsidiária ex vi artigos 2.º alínea d) do CPPT e 29.º, n.º 1, alíneas a) e d) do RJAT).
6.2 Da alegada violação de princípios constitucionais
A Requerente levantou questões de inconstitucionalidade, na interpretação da verba 28.1 da TGIS que faz a Requerida, no pressuposto de que o imposto do selo aí previsto poderia igualmente incidir sobre terrenos para construção, mais alegando o vício de duplicação de colecta com relação às liquidações com os n.ºs 2013 ..., 2013 ... e 2013 ....
Considerando que este Tribunal Arbitral não acolheu essa interpretação, surge prejudicada e processualmente inútil a apreciação desta questão.
6.3 Do reembolso da quantia paga e do pedido de Juros Indemnizatórios
A Requerente vem pedir o reembolso da quantia paga ao abrigo do acto de liquidação em crise nos autos, no montante total de € 23.724,36, acrescido de juros indemnizatórios pelo pagamento indevido desses montantes.
No caso dos autos, é manifesto que, na sequência da ilegalidade dos actos de liquidação, pelas razões que melhor se expenderam nesta decisão, há lugar a reembolso do imposto pago pela Requerente, por força do disposto nos referidos artigos 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.
No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro nos autos que a ilegalidade dos actos de liquidação de imposto impugnados é directamente imputável à Requerida, que, por sua iniciativa, os praticou sem suporte legal, padecendo de uma errada interpretação (e, logo, aplicação) das normas jurídicas ao caso concreto.
Consequentemente a Requerente tem direito ao recebimento de juros indemnizatórios, nos termos do disposto nos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT.
Os juros indemnizatórios deverão ser pagos à Requerente desde data em que efectuou o respectivo pagamento da prestação de imposto do selo em causa nos autos até ao integral reembolso do montante pago, à taxa legal.
Termos em que procede o pedido da Requerente.
7. DECISÃO
Em face do exposto, acorda este Tribunal em:
- Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e declarar a anulação dos actos de liquidação de Imposto do Selo, por ilegais, melhor identificados sob os documentos de cobrança emitidos com os números 2012 ..., no montante de € 7.908,12; 2013 ..., no montante 5.272,08; 2013 ..., no montante de € 5.272,08 e 2013 ..., no montante de € 5.272,08, no valor total de € 23.724,36, com as legais consequências.
- Julgar procedente o pedido de condenação da Requerida a reembolsar à Requerente
a quantia paga a título de imposto, acrescido de juros indemnizatórios nos termos legais, desde a data em que tal pagamento foi efectuado até à data do integral reembolso do mesmo.
* * *
Fixa-se o valor do processo em Euro 23.724,36, de harmonia com o disposto nos artigos 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT), 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT e 306.º do CPC.
O montante das custas é fixado em Euro 1.224,00, ao abrigo do artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 do RJAT e 4.º, n.º 4 do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 15 de Setembro de 2014.
O Árbitro,
Dr. Henrique Nogueira Nunes
Texto elaborado em computador, nos termos do artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.
A redacção da presente decisão arbitral rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
[1] A liquidação n.º 2012 … foi ainda emitida com base no artigo 6.º da Lei n.º 55-A/2012.
[2] Os n.ºs 2 a 4 do artigo 6.º do Código do IMI definem os conceitos em apreço:
“2 – Habitacionais, comerciais, industriais ou para serviços são os edifícios ou construções para tal licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal cada um destes fins.
3 – Consideram-se terrenos para construção os terrenos situados dentro ou fora de um aglomerado urbano, para os quais tenha sido concedida licença ou autorização, admitida comunicação prévia ou emitida informação prévia favorável de operação de loteamento ou de construção, e ainda aqueles que assim tenham sido declarados no título aquisitivo, exceptuando-se os terrenos em que as entidades competentes vedem qualquer daquelas operações, designadamente os localizados em zonas verdes, áreas protegidas ou que, de acordo com os planos municipais de ordenamento do território,
estejam afectos a espaços, infra-estruturas ou equipamentos públicos. (redacção da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro)
4 – Enquadram-se na previsão da alínea d) do n.º 1 os terrenos situados dentro de um aglomerado urbano que não sejam terrenos para construção nem se encontrem abrangidos pelo disposto no n.º 2 do artigo 3.º e ainda os edifícios e construções licenciados ou, na falta de licença, que tenham como destino normal outros fins que não os referidos no n.º 2 e ainda os da excepção do n.º 3.”
[3] Veja-se Oliveira Ascensão, Interpretação de leis. Integração de lacunas. Aplicação do princípio da analogia”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57 – III, Lisboa, Dezembro 1997, pp. 913-941.