Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 439/2019-T
Data da decisão: 2020-03-09  IVA  
Valor do pedido: € 3.664.762,00
Tema: IVA - Vouchers multifuncionais; Localização das operações; Exigibilidade do imposto.
Versão em PDF

 

Decisão Arbitral

 

Acordam em tribunal arbitral

 

I – Relatório

 

                1. A..., LDA, NIPC..., com sede na..., n.º..., ...-... Lisboa, vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade da liquidação em IVA referente ao ano de 2014, bem como da decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esses actos de liquidação, requerendo ainda a condenação da Autoridade Tributária no pagamento de juros indemnizatórios.

 

Fundamenta o pedido nos seguintes termos.

 

A B... Ltd, com sede em ..., ..., Dublin ..., presta serviços de telecomunicações, entendidos como serviços que tenham por objecto a transmissão, emissão e recepção de sinais, texto, imagem, som ou informação de qualquer natureza através de fios, rádio, meios ópticos ou outros meios electromagnéticos.

 

Para chegar aos seus clientes em Portugal, a B... Ltd emite e vende vouchers multifuncionais à A... Portugal, com desconto sobre o valor facial, que corresponde à margem de comercialização e permitem ao cliente final usar a rede de telecomunicações instalada em Portugal por via de chamadas telefónicas, SMS e acesso a dados móveis.

 

A A... Portugal actua como agente da empresa Irlandesa no território nacional, revendendo os vouchers a retalhistas e assegurando ainda ao cliente final serviços de assistência, sendo que os serviços de telecomunicacões associados aos vouchers multifuncionais foram prestados pela B... Ltd, empresa que celebrou contrato com a C... para a utilização da sua infraestrutura de antenas em Portugal.

 

A A... Portugal, actuando como agente da B... Ltd em Portugal, vendeu os vouchers a lojas payshop, que os compram pelo valor facial e depois cobram uma comissão sobre os vouchers vendidos, e a retalhistas que compram os vouchers com um desconto que representa a sua retribuição.

 

Os vouchers multifuncionais permitem que o seu possuidor venha a receber determinados bens ou serviços no valor constante do voucher, sendo que no momento da emissão, não é possível identificar, nem os bens ou serviços, nem o local do seu fornecimento.

 

Nesse caso não ocorre uma operação abrangida por qualquer isenção em IVA, mas sim  uma deslocação do momento da tributação e, por isso, a Requerente declarou nas suas facturas que a operação  não se encontrava sujeita a IVA nos termos do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, sendo que o que estará sujeito a IVA é a prestação efectiva do serviço ou da transmissão dos bens.

 

A empresa emitente dos vouchers (B... ltd) é que presta o serviço aos clientes finais, enquanto que a Requerente e os seus clientes fazem parte da cadeia de distribuição dos vouchers, sendo que estes últimos não facturam qualquer valor pela sua utilização porque não são eles que prestam o serviço associado, nem têm acesso à informação relativa à activação dos vouchers.

 

Sabendo-se que foi a B... Ltd, através da rede de telecomunicações da C..., quem prestou o serviço aos clientes finais portugueses, na sequência da activação dos vouchers multifuncionais, a localização da operação para efeitos de IVA, à data dos factos, era na Irlanda, nos termos dos artigos 6.º, n.º 6, alínea b), do CIVA e 9.º, n.º 2, da Directiva IVA. Realidade que só foi alterada com o aditamento da alínea h) ao n.º 10 do artigo 6.º do CIVA, operada pela entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 158/2014 em 1 de Janeiro de 2015.

 

Assim sendo, uma vez que as operações em causa não se consideram localizadas em Portugal para efeitos de IVA, nunca haveria lugar a qualquer regularização de IVA pela Requerente, por não ser devido imposto em Portugal no momento da activação do voucher multifuncional, nem em qualquer outro momento ou operação em que tivesse intervindo, não havendo base legal para as liquidações efectuadas.

 

Por outro lado, nos termos do artigo 74.º, n.º 1, da LGT, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, pelo que cabia à Administração a demonstração dos pressupostos de que dependeria a legalidade dos actos de liquidação impugnados.

 

Acresce que as correcções são justificadas com base no artigo 8.º, n.º 1, alíneas a) ou c), do CIVA, daí resultando que o imposto era devido, não por força e aquando da operação realizada, mas por não ter sido apresentada a documentação de suporte necessária para comprovação dessas operações. A admitir-se que tais normas possibilitam a liquidação adicional de imposto haverá de concluir-se que elas se encontram formuladas em termos muito vagos e imprecisos, pelo que seriam materialmente inconstitucionais por ofensa do princípio da legalidade e tipicidade fiscais. E também seriam passíveis de falta de fundamentação.

 

Autoridade Tributária, na sua resposta, começa por suscitar a excepção de incompetência do tribunal arbitral por considerar que o imposto foi liquidado, não pela Autoridade Tributária e Aduaneira, mas pela Autoridade Tributária da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM) e, embora o procedimento tributário tenha ocorrido na Direcção de Finanças de Lisboa, o Relatório de Inspecção Tributária foi elaborado pela AT-RAM.  E, por outro lado, nos termos do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, então em vigor, era à AT-RAM que competia a liquidação e a cobrança dos impostos que constituem receita da Região.

 

Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária alega que a Requerente, ao facturar os vouchers multifuncionais aos seus clientes está a comportar- se como sujeito activo da relação tributária, conforme disposto no artigo 18.º da LGT. Na compra dos vouchers multifuncionais à B..., Ltd., o sujeito passivo compra os bens e serviços aí considerados, sendo responsável pela liquidação do IVA, não tendo qualquer relevância fiscal a sede do fornecedor dos vouchers multifuncionais.

 

Por outro lado, o sujeito passivo nunca fez prova da utilização ou inutilização dos vouchers multifuncionais, nem apresentou, para os vouchers multifuncionais a documentação externa que comprovasse o local, a data e a designação concreta dos bens transmitidos ou das prestações de serviços efectuadas pelos parceiros, sendo que a exigibilidade da liquidação de IVA nos vouchers multifuncionais ocorre na data da emissão da factura, conforme disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º    do CIVA.

 

Caso assim se não se entenda, a Autoridade Tributária requer o reenvio prejudicial para o  TJUE para se colocar a questão de saber se o vendedor dos vouchers que não faça prova de os mesmos terem sido utilizados junto dos seus parceiros e pagos por aquele a estes deve ser liquidado imposto pelo vendedor dos vouchers e, em caso afirmativo, em que momento o deve fazer.

 

   2. No seguimento do processo, a Requerente foi notificada para responder à matéria de excepção, vindo dizendo que a  empresa nunca teve sede na Madeira e as liquidações impugnadas foram efectuadas pelos serviços competentes  da Autoridade Tributária e, embora o relatório inspectivo tenha sido elaborado pela AT-RAM, as conclusões foram sancionadas pela Direção de Finanças de Lisboa, requerendo a final a condenação como litigante de má fé nos termos do artigo 542.º do CPC.

 

Em alegações, a Requerente entende nada mais haver a acrescentar relativamente ao já alegado na petição inicial e, quanto ao pedido de reenvio prejudicial, considerou que este só se torna exigível quando subsistam dúvidas sobre a interpretação de normas de direito europeu, que no caso se não verificam.

 

A Autoridade Tributária reiterou a sua anterior posição.

 

3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira nos termos regulamentares.

 

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.

 

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 9 de Setembro de 2019.

 

O tribunal arbitral foi regularmente constituído.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

 

O processo não enferma de nulidades e foi invocada a excepção de incompetência material do tribunal arbitral.

 

Cabe apreciar e decidir.

 

II – Saneamento

 

Incompetência do tribunal arbitral

 

4. A Autoridade Tributária suscita a excepção de incompetência do tribunal arbitral por considerar, em síntese, que o imposto em causa constitui receita da Região Autónoma da Madeira, pertencendo a competência para a respectiva liquidação e a cobrança à Autoridade Tributária da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM), que não está vinculada à jurisdição arbitral, e que, embora o procedimento tributário tenha decorrido na Direcção de Finanças de Lisboa, o Relatório de Inspecção Tributária foi elaborado pela Autoridade Tributária da Região Autónoma.

 

No presente Processo, a liquidação impugnada respeita ao imposto sobre o valor acrescentado e como resulta do disposto no artigo 28.º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, constitui receita de cada circunscrição o IVA cobrado pelas operações nela realizadas.

 

No caso, o IVA foi liquidado pela venda de vouchers multifuncionais emitidos pela B... Ltd, com sede na Irlanda, que são alocados a clientes em Portugal, colocando-se a questão de saber se o IVA se torna exigível à sucursal, ora Requerente, ou à empresa mãe. Não há, no entanto, nenhuma indicação, nas peças processuais ou nos elementos instrutórios juntos aos autos, que as operações em causa se tenham realizado na Região Autónoma da Madeira para efeito de poder ser imputada ao órgão regional a competência fiscal para a arrecadação do imposto.

 

Por outro lado, o que se diz no relatório de inspecção tributária elaborado pela AT-RAM é que a acção inspectiva se ficou a dever a um pedido da Direcção de Finanças de Lisboa (ponto II.2.), que foi depois reencaminhado para aquele organismo que manifestou a sua concordância através do despacho de 21 de Setembro de 2017, do Director de Finanças. Acresce que os actos liquidação adicional foram emitidos por essa entidade e a reclamação graciosa contra eles deduzida foi apreciada e decidida pela Director adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa.

 

E o que resulta da decisão proferida na reclamação graciosa é que, no seguimento de uma acção inspectiva desencadeada pela Direcção de Finanças de Lisboa, o processo foi enviado à AT-RAM para efeitos de instrução por se ter verificado, através da consulta ao registo dos contribuintes, que a Requerente tinha passado a centralizar os serviços de contabilidade numa morada no Funchal.

 

A alteração do local dos serviços de contabilidade não significa que a Requerente se tenha tornado, para efeitos fiscais, uma pessoa colectiva com sede e direcção efectiva na Região Autónoma da Madeira e, em todo o caso, não há nenhum indício de que as operações que originaram as liquidações adicionais em IVA se tenham realizado nessa Região Autónoma para efeito de se entender que o imposto constitui receita dessa circunscrição.

 

A alegada incompetência do tribunal arbitral é, pois, manifestamente improcedente.

 

A Requerente solicita ainda a condenação da Autoridade Tributária como litigante de má fé. Não há, no entanto, indicação segura de que a parte tenha agido dolosamente, sabendo que a sua oposição não tinha fundamento legal, podendo entender-se que se limitou a uma deficiente interpretação dos elementos instrutórios que não justifica o recurso à indemnização por litigância de má fé.  

 

III - Fundamentação

 

Matéria de facto

 

5. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.

 

A)           A B... Ltd, com sede na Irlanda, presta serviços de telecomunicações, que consistem na transmissão, emissão e recepção de sinais, texto, imagem, som ou informação de qualquer natureza através de fios, rádio, meios óticos ou outros meios eletromagnéticos.

B)           A B... Ltd emite e vende vouchers multifuncionais à A... Portugal, com desconto sobre o valor facial, que permitem aos clientes finais usar a rede de telecomunicações instalada em Portugal através de chamadas telefónicas, SMS e acesso a dados móveis.

C)           A A... Portugal actua como agente da empresa Irlandesa no território nacional, revendendo os vouchers a lojas payshop, que compram os vouchers pelo valor facial e cobram uma comissão sobre os vouchers vendidos, e a retalhistas, que compram os vouchers com desconto. 

D)           Os serviços de telecomunicacões associados aos vouchers multifuncionais vendidos aos particulares residentes em Portugal são prestados pela empresa B... Ltd por intermédio de um contrato celebrado com a C... Portugal para a utilização da sua infraestrutura de antenas em Portugal.

E)            Os vouchers multifuncionais permitem que o seu possuidor venha a receber determinados bens ou serviços no valor constante do voucher, sendo que no momento da emissão, não é possível identificar, nem os bens ou serviços, nem o local do seu fornecimento.

F)            A Requerente declarou nas suas facturas que a venda de vouchers multifuncionais não se encontrava sujeita a IVA nos termos do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA.

G)           A Requerente foi objecto de uma acção inspectiva incidente sobre o período de tributação de 2014, titulada pela Ordem de serviço n.º OI2015..., de que resultaram liquidações adicionais em IVA;

H)           O Relatório de Inspecção Tributária justificou as liquidações adicionais nos seguintes termos:

     III.1. Falta de Liquidação de IVA

No período económico de 2014 as operações ativas desenvolvidas foram: operações à taxa normal (campo 3 – Eur.1.095.685,15) e operações isentas que conferem direito a dedução (campo 8 – Eur.22.559.049,59).

 

Da análise às faturas emitidas em 2014 pelo S.P. constatámos que as operações evidenciadas no campo 3 diziam respeito principalmente à transmissão de cartões “SIM”.

 

III.1.1. Campo 8: Transmissão de vouchers multifuncionais

Os vouchers constituem uma antecipação de um pagamento referente a transmissão de bens ou prestação de serviços a realizar. Os vouchers poderão ser unifuncionais ou multifuncionais. Os vouchers unifuncionais têm, no momento da sua aquisição, a identificação do bem ou serviço, do fornecedor e do local de fornecimento. No caso dos vouchers multifuncionais, no momento da sua aquisição, não se encontram identificados os bens/serviços que irão ser adquiridos/utilizados, nem o local do seu fornecimento e consequentemente, não será possível determinar a taxa de imposto a aplicar. Deste modo, uma vez que o IVA incide sobre entregas de bens e prestações de serviços e não sobre os pagamentos efetuados em sua contrapartida, e não obstante a alínea c) do n.º 1 do artigo 36.º do CIVA estabelecer que a fatura deve ser emitida “Na data do recebimento, no caso de pagamentos relativos a uma transmissão de bens ou prestação de serviços ainda não efetuada, bem como no caso em que o pagamento coincide com o momento em que o imposto é devido nos termos do artigo 7.º”, a exigibilidade do imposto é transferida para a data em que se materializa a utilização do voucher, e consequentemente a transmissão de bens ou a prestação de serviços, conforme n.º 1 do artigo 7.º do CIVA.

 Assim o mecanismo de funcionamento do IVA nos vouchers multifuncionais será o seguinte:

1.A empresa vendedora dos vouchers, como é o caso do S.P., por cada voucher vendido, emite a fatura ao cliente pelo valor ilíquido do bem a vender ou serviço a prestar, ou seja, o valor da fatura contém IVA incluído e deverá mencionar, nos termos da alínea e) do n.º 5 do artigo 36.º do CIVA, como motivo justificativo da não indicação da taxa de imposto

“IVA incluído, exigibilidade diferida para a data do resgate do voucher”;

2. Os vouchers podem ser utilizados pelos clientes nos chamados “parceiros” (empresas vendedoras de bens e prestadoras de serviços);

3.Após a transmissão do bem ou a realização do serviço, o imposto é devido e torna-se exigível. Nesta fase, a empresa “parceiro” não emite qualquer documento ao cliente, uma vez que a empresa vendedora do voucher já o havia efetuado. No entanto, emite uma fatura à empresa vendedora do voucher, pelo valor acordado entre as partes com liquidação de IVA, identificando o serviço prestado/bem transmitido e o voucher que lhe deu origem, devolvendo com a fatura emitida o correspondente voucher.

4.A empresa vendedora do voucher na posse da fatura da empresa “parceiro”, procede à dedução do imposto suportado, que foi liquidado pelo “parceiro”, e em simultâneo, na posse do voucher devolvido, fica conhecedora de todos os elementos necessários para determinar a taxa de imposto, de modo a apurar o valor do IVA incluído na fatura relativa à venda do voucher ao seu cliente, e proceder à respectiva entrega nos cofres do Estado, de acordo com o artigo 49.º do CIVA;

5.Deste modo, o IVA devido pela empresa vendedora do voucher deve ser calculado no voucher devolvido pelo “parceiro” ou em documento interno elaborado para o efeito, devendo em qualquer das situações identificar a fatura emitida aquando da venda do voucher e o “parceiro”;

6.Se eventualmente se verificar a existência de vouchers não utilizados, para efeitos de IVA, e neste caso uma vez que se trata de vouchers multifuncionais, não há lugar a qualquer regularização, uma vez que não houve lugar a liquidação no momento da transmissão do mesmo.

 

A 3 de abril do ano de 2017 o S.P. foi notificado pessoalmente na pessoa do Senhor D..., identificado com o NIF:..., na qualidade de Contabilista Certificado, para apresentar no dia 20 de abril de 2017, pelas 10:00, na Rua ... n.º..., ...–..., os elementos abaixo indicados, com referência ao período económico de 2014:

1 – Relação, em formato Excel, dos vouchers emitidos por cada fatura indicada nos dois Mapas em suporte informático “excel” no CD em anexo, que fez parte integrante da notificação com a rúbrica do colaborador que recebeu a mesma;

2 – Relação, em formato Excel, dos vouchers acima identificados contendo a seguinte informação: indicação sobre se o mesmo foi ou não utilizado; indicação da fatura da “empresa – parceira” que foi emitida com a utilização do voucher (contendo descritivo do bem/serviço, valor tributável e imposto suportado) e cópia dos vouchers utilizados e devolvidos.

Conforme ata de exibição de documentos lavrada a 21 de abril de 2017 o S.P. não deu cumprimento ao solicitado.

Uma vez que as operações à taxa normal evidenciadas no campo 3 respeitam apenas às vendas de cartões SIM, não se verifica que tenha ocorrido a liquidação do imposto correspondente aos vouchers utilizados.

 Uma vez que o S.P. não fez prova da utilização ou inutilização dos vouchers multifuncionais, nem apresentou, para os vouchers multifuncionais a devida documentação externa que comprovasse o local, a data e a designação concreta dos bens transmitidos ou das prestações de serviços efectuadas pelos “parceiros”, a exigibilidade da liquidação de IVA nos vouchers multifuncionais ocorre na data da emissão da fatura, conforme disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º do CIVA, e a taxa de IVA a aplicar deverá ser a normal, ou seja, a de 23%, pelo disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do CIVA, ou a de 22%, conforme a alínea b) do n.º 3 do mesmo artigo.

 

Foram analisados os documentos representativos das operações evidenciadas no campo 8 e verificou-se que inclui valores referentes à transmissão dos vouchers multifuncionais, totalizando o montante de Eur.18.329.677,09 [igual à soma dos valores apurados como diferenças (14.892.658,91 + 3.425.311,56 + 9.595,59 + 2.111,03), vide Documento n.º 1 em anexo], sendo que o contribuinte indicou como motivo para a não liquidação de imposto “Venda de vouchers multifuncionais, operação não sujeita a IVA, art.º 7.º-n.º1-alínea b) do CIVA”.

Os restantes valores que constam do campo 8 diz respeito a faturas de venda de vouchers multifuncionais do ano de 2014 que foram entretanto anuladas nesse mesmo período, e à reemissão de faturas referentes às vendas de vouchers multifuncionais de anos anteriores a 2014 em que o S.P. liquidou IVA. O S.P. regularizou a seu favor no campo 40 esse IVA liquidado na declaração periódica de IVA de 2014.03. Esta regularização foi já corrigida pela Autoridade Tributária no âmbito da Ordem de Serviço Interna credenciada por OI2014... .

Assim, o apuramento da base tributável efetua-se com base no instituído no artigo 49.º do CIVA, ou seja, deve-se dividir o montante de cada fatura por 123 ou por 122, conforme a sua localização, multiplicando cada um dos quocientes por 100 e arredondando o resultado, por defeito ou excesso, para a unidade mais próxima (Vide os dois Mapas de Faturas de Vouchers Multifuncionais em suporte informático “excel” no CD em anexo). A base tributável obtida e a acrescer ao campo 3 das Declarações Periódicas de IVA de 2014 é a que consta do Quadro resumo do Documento n.º 1 em anexo ao presente relatório, resultando assim no montante de IVA em falta de Eur.3.427.422,59.”

I)             O Relatório de Inspecção Tributária foi objecto de despacho de concordância do director de finanças de Lisboa, datado de 21 de Setembro de 2017;

J)            A Requerente deduziu reclamação graciosa contra os actos de liquidação, que foi indeferida por despacho de 27 de Fevereiro de 2019 do director adjunto da Direcção de Finanças, praticado com delegação de poderes.

K)                  O indeferimento teve por base uma informação dos serviços inspectivos em que se concluiu o seguinte:

 

V - Análise do pedido e parecer

 

No âmbito da ação inspetiva foram efetuadas correções em sede de IVA, conforme já elencadas no ponto anterior, contudo, no peticionado, a reclamante apenas coloca em causa as correções relacionadas com a venda de vouchers multifuncionais, nada tendo argumentado relativamente ao IVA corrigido por regularizações indevidas a favor do sujeito passivo e a falta de regularização de imposto a favor do Estado.

Analisados os elementos constantes dos presentes autos, verifica-se que a reclamante não comprova o alegado, não tendo logrado juntar quaisquer elementos suscetíveis de contrariar as conclusões do RIT, limitando-se a explanar as especificidades do negócio relacionado com a venda de vouchers multifuncionais e a afirmar que cumpriu com o disposto na legislação aplicável ao caso.

Refere que não liquidou o imposto nas faturas de venda dos referidos vouchers, pois, de acordo com o previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do CIVA, o IVA torna-se exigível no momento da realização dos serviços associados aos mesmos e que, no caso dos vouchers multifuncionais a exigibilidade do imposto transfere-se para o momento do seu resgate.

Com efeito, quando não se tem conhecimento do serviço ou produto (vouchers multifuncionais), a dificuldade está em determinar o momento da exigibilidade do IVA e a definição da data da realização do serviço ou da transmissão dos bens, que, no limite será a data em que termina a validade do mesmo sem que seja utilizado.

No caso dos vouchers multifuncionais, não se está perante uma operação abrangida por qualquer isenção em IVA, mas sim de uma deslocação do momento da tributação, sendo certo que o que está sujeito a IVA é a prestação efetiva do serviço ou da transmissão dos bens (no limite, na data em que termina a validade do voucher/cupão sem que este seja utilizado) e não a "venda" do voucher/cupão de desconto.

                O emitente deverá faturar a comissão auferida emitindo um documento interno pelo valor remanescente do                 voucher líquido da comissão, ficando a aguardar a sua utilização por parte do adquirente.

Assim, existe a necessidade de controlo do fluxo documental entre a entidade que faz a divulgação e o prestador dos serviços divulgados, de modo a aferir-se da legitimidade da aplicação das normas legais às operações relacionadas com os vouchers multifuncionais.

Cumpre pois, referir que os SIT não colocaram em causa a não liquidação no momento da transmissão dos vouchers multifuncionais (mecanismo que, aliás, se encontra explicado no ponto 111.1.1 do RIT), mas sim o facto de a reclamante não ter feito prova da utilização ou inutilização dos mesmos através da devida documentação de suporte, comprovando o local, a data e a designação concreta dos bens transmitidos ou das prestações de serviços efetuadas pelos "parceiros".

Desta forma, ao não apresentar a documentação de suporte necessária para comprovação das operações em causa, inviabilizou a aplicação da norma acima indicada, passando o imposto a ser exigível na data de emissão da fatura [alínea a) do nº 1 do art.º 8° do CIVA], conforme foi entendimento dos SIT.

Salienta-se que a reclamante não veio juntar aos autos qualquer elemento novo comprovativo do que pretende que seja reconhecido, ou seja, de que estão reunidos os pressupostos legalmente exigidos para legitimar a não liquidação do IVA nas faturas emitidas pela venda dos vouchers multifuncionais, como lhe competia, nos termos do art.º 74° da LGT.

Nesta conformidade, como ficou demonstrado anteriormente, verifica-se a existência de erros ou inexatidões, suscetíveis de correção fiscal, não tendo a reclamante logrado juntar prova concreta que sirva de suporte para alteração  das correções  efetuadas pelos SIT, afigurando-se-nos que  as mesmas  se encontram corretas.

Resta, assim, concluir que uma vez que as liquidações aqui em crise não apresentam qualquer ilegalidade por vicio de violação de lei, ou outro, a argumentação da reclamante não colhe provimento.

 

a) Juros indemnizatórios

 

Cumpre ainda referir que por não se verificarem in casu os pressupostos do n.º 1 do art.º 43.º da LGT, fica prejudicada a apreciação do direito a juros indemnizatórios.

 

VI - Conclusão

A luz do exposto, somos do parecer que a argumentação deduzida pela reclamante não merece acolhimento, pelo que se propõe o indeferimento da presente reclamação graciosa, de acordo com os fundamentos descritos.

               

Factos não provados

 

Não existem factos não provados relevantes para a decisão da causa.

 

O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados.

 

                Matéria de direito

 

7. A Requerente alega que actua em território nacional como agente de empresa Irlandesa (B... Ltd), revendendo vouchers multifuncionais a retalhistas para prestação de serviços de telecomunicações a particulares residentes em Portugal, serviços que são realizados pela B... Ltd por intermédio de um contrato de fornecimento de rede celebrado com a C... .

 

De entre os diversos serviços disponíveis - chamada telefónica, SMS ou acesso a dados móveis - cabe aos adquirentes finais dos vouchers escolher, no momento do resgate, qual o serviço que pretendem obter, pelo que o voucher funciona como um mero meio de pagamento, não sendo possível identificar, no momento da sua emissão, os bens ou serviços que possam ser efectivamente prestados ou o local do seu fornecimento.

 

E, desse modo, o facto gerador de IVA é a prestação efectiva do serviço ou da transmissão dos bens e apenas ocorre no momento em que se materializa a utilização do voucher. Sendo que a Requerente e os seus clientes retalhistas, enquanto parte integrante da cadeia de distribuição, não têm acesso à informação relativa à activação do serviço.

 

Em contraposição, os serviços inspectivos reconhecem que, no caso dos vouchers multifuncionais, não se está perante uma operação abrangida por isenção de IVA, mas sim de uma deslocação do momento da tributação, sendo certo que o facto gerador de IVA é a prestação efectiva do serviço ou da transmissão dos bens e não a venda do voucher. Por outro lado, não põem em causa a não liquidação de imposto no momento da transmissão dos vouchers multifuncionais, mas antes o facto de a Requerente não ter feito prova da utilização ou inutilização dos mesmos através de documentação de suporte, mediante a comprovação do local, data e a designação concreta dos bens transmitidos ou da prestação de serviços efectuada. Sendo essa a única circunstância que justifica, no entender da Administração, a não aplicação ao caso da regra do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA e torna exigível o imposto na data de emissão da factura, nos termos do artigo 8.°, n.º 1, alínea a).

 

É esta a questão que cabe dilucidar.

 

Importa começar por ter presente as regras aplicáveis à localização das operações de serviços e sobre o facto gerador e exigibilidade do imposto.

 

No que se refere à localização das operações, a regra geral relativa a serviços prestados entre um sujeito passivo e particulares continua a ser a origem, ou seja, o local onde o prestador do serviço tem a sua sede, estabelecimento estável ou domicílio. É o que resulta do artigo 6.º, n.º 6, alínea b), do CIVA onde se declara que são tributáveis as prestações de serviços efectuadas a “uma pessoa que não seja sujeito passivo, quando o prestador tenha no território nacional a sede da sua actividade, um estabelecimento estável ou, na sua falta, o domicílio, a partir do qual os serviços são prestados”.

 

Estão previstas, no entanto, na mesma disposição, regras especiais de localização que têm vista localizar as prestações de serviços no local onde ocorre o consumo, como sucede a título exemplificativo com os serviços de restauração, locação de meios de transporte, serviços culturais, desportivos, científicos e educativos. (artigo 6.º, n.º 8)

 

Entretanto, a Directiva n.º 2008/8/CE do Conselho, de 12 de Fevereiro, mediante a alteração introduzida pelo seu artigo 5.º ao artigo 58.º da Directiva IVA, para vigorar a partir de 1 de Janeiro de 2015, passou a estipular, relativamente a prestações de serviços de telecomunicações, de radiodifusão ou televisão e serviços por via eletrónica, que o lugar das prestações de serviços efectuadas a pessoas que não sejam sujeitos passivos é o lugar onde essas pessoas estão estabelecidas ou têm domicílio ou residência, instituindo desse modo uma outra excepção à regra geral.

 

A Directiva tem presente que relativamente a todas as prestações de serviços, o lugar da tributação deverá ser, em princípio, o lugar onde ocorre o consumo efectivo (considerando 3.), distinguindo, por sua vez, entre os serviços prestados a sujeitos passivos, em que a regra geral aplicável deverá basear-se no lugar onde está estabelecido o destinatário, e não naquele onde está estabelecido o prestador de serviços (considerando 4.), e os serviços prestados a pessoas que não sejam sujeitos passivos, caso em que  o lugar da prestação deverá continuar aquele onde o respectivo prestador tem a sede da sua actividade económica (considerando 5.).

 

  O Decreto-Lei n.º 158/2014, de 24 de Outubro, procedendo à transposição para a ordem jurídica interna do artigo 5.º da Directiva n.º 2008/8/CE passou a incluir entre as excepções à regra geral da localização na origem a que se refere o artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, com efeitos a partir de 1 de Janeiro de 2015, as prestações de serviços de telecomunicações, de radiodifusão ou televisão e serviços por via electrónica, mediante o aditamento da alínea h) ao n.º 10 do artigo 6.º.

 

Assim sendo, no período de tributação de 2014 – que aqui está em causa - , e de acordo com o estatuído na alínea b) do n.º 6 do artigo 6.º do Código, eram tributáveis no território nacional as prestações de serviços de telecomunicações efectuados a partir da sede, estabelecimento estável ou, na sua falta, do domicílio do prestador localizados no território nacional cujo adquirente seja um consumidor final (CLOTILDE CELORICO PALMA, Introdução ao Imposto sobre o Valor Acrescentado, 6.ª edição (Reimpressão), Coimbra, págs. 140-141).

 

Quanto ao momento em que se consideram preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto, o artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA consigna que o imposto é devido e torna-se exigível, no caso de prestações de serviços, “no momento da sua realização”.  Todavia, em derrogação dessa regra, o artigo 8.º, n.º 1, vem dizer que o imposto se torna exigível sempre que a prestação de serviços dê lugar à obrigação de emitir uma factura nos termos do artigo 29.º, sendo que esta disposição impõe como obrigação acessória a obrigatória emissão de factura por cada prestação de serviços, independentemente da qualidade do destinatário dos serviços.

 

Nos termos do n.º 2 do artigo 8.º, esse mesmo regime é ainda aplicável aos casos em que se verifique emissão de factura ou pagamento, precedendo o momento da realização das operações tributáveis, consagrando-se, desta forma, a regra de que os adiantamentos têm o mesmo tratamento da operação definitiva, havendo lugar à liquidação de imposto (Idem, pág. 163).

 

8.  Revertendo à situação do caso, o que resulta da matéria de facto tida como assente é que a Requerente vende no mercado interno vouchers multifuncionais emitidos pela B... Ltd, que permitem aos clientes finais usar a rede de telecomunicações instalada em Portugal através de chamadas telefónicas, SMS e acesso a dados móveis. Por outro lado, os vouchers multifuncionais apenas permitem que o portador possa aceder a esses serviços de telecomunicações, não sendo possível, no momento da sua emissão, identificar os serviços que possam vir a ser utilizados.

 

Acresce que os serviços de telecomunicacões associados aos vouchers multifuncionais vendidos aos particulares residentes em Portugal são prestados pela empresa B... Ltd por intermédio de um contrato celebrado com a C... para a utilização da sua infraestrutura de antenas em Portugal. Nesse contexto, a Requerente declarou nas suas facturas que a venda de vouchers multifuncionais não se encontrava sujeita a IVA, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA, por entender que o imposto apenas se torna exigível com a prestação efectiva do serviço e não com a venda dos vouchers.

 

No plano do direito, como resulta de todos os anteriores considerandos, a exigibilidade do imposto encontra-se definida em termos gerais no artigo 7.º do CIVA, sendo essa disposição complementada pelo artigo 8.º, que difere a exigibilidade do imposto para um momento posterior quando haja lugar à obrigação de emissão de factura ou documento equivalente.

 

A aplicação de qualquer um desses regimes carece, em todo o caso, de ser analisada em atenção às características próprias do voucher, que, na prática, corresponde a um pré-pagamento de aquisição de serviços que serão realizados por terceiros.

 

Como se explicita na informativa vinculativa constante do despacho do Director-geral de 16 de Junho de 2010, nos vouchers unifuncionais, simples ou de fim único, o título permite ao portador receber um determinado  produto ou serviço de um fornecedor mediante um pré-pagamento, em que a taxa de   imposto e o local de fornecimento/realização estão identificados. Estes vouchers, quando vendidos ao cliente final são tributados como um pré-pagamento, uma vez que a taxa de IVA é conhecida, desde logo, no momento da venda. A exigibilidade do imposto reporta-se, por consequência, ao momento da sua emissão ou venda.

 

Nos vouchers multifuncionais ou de fins múltiplos, o título permite receber bens ou serviços no valor indicado, mas nem os bens, os serviços e o local do seu  fornecimento se encontram identificados, nem a taxa do IVA se encontra  determinada à data em que é emitido. Embora se trate de um pré-pagamento o voucher não pode ser tributado à data da sua emissão ou venda, porquanto os bens ou serviços associados, bem como a respectiva taxa de imposto não são conhecidos. A exigibilidade do imposto será assim transferida para o momento em que ocorra a operação tributável.

 

Como se conclui na mesma informação vinculativa, o voucher titula o recebimento de serviços, mediante pré-pagamento, ficando a exigibilidade do imposto dependente da forma como é processado: i) “se o serviço e a taxa de imposto são conhecidos à data de emissão/venda dos vouchers, o pré-pagamento é considerado um adiantamento e o imposto torna-se exigível nesse momento, em conformidade com o estabelecido na alínea c) do n.º 1 do artigo 8.º do CIVA; ii) se o serviço e a taxa de imposto não forem conhecidos, a exigibilidade do imposto transfere-se para o momento da realização dos serviços associados,  nos  termos da  alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do CIVA”.

 

Esse mesmo entendimento foi sufragado pelo TJUE, em situação similar, no acórdão de 21 de Fevereiro de 2006 (Processo n.º C/419/02).

 

Nesse aresto, o Tribunal assinala que no caso de pagamentos por conta, para que o IVA se torne exigível ainda antes da entrega de bens ou da prestação de serviços, ao abrigo do artigo 10.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Sexta Directiva (correspondente ao artigo 65.º da Directiva 2006/112/CE), «é necessário que todos os elementos pertinentes do facto gerador, isto é, da futura entrega ou da futura prestação, já sejam conhecidos e, por conseguinte, em particular,  (…) que, no momento do pagamento por conta, os bens ou os serviços sejam especificamente identificados» (considerando 48). No entanto, o tribunal igualmente recorda, a este respeito, «que são as entregas de bens e as prestações de serviços que estão sujeitas ao IVA e não os pagamentos efectuados como sua contrapartida (v. acórdão de 9 de Outubro de 2001, Cantor Fitzgerald International, C 108/99, Colect., p. I 7257, n.° 17). A fortiori, não podem estar sujeitos a IVA os pagamentos por conta de entregas de bens ou de prestações de serviços ainda não claramente identificados» (considerando 50).

 

As alterações entretanto introduzidas ao Código do IVA pela Lei n.º 71/2018, de 31 de Dezembro, em transposição da Directiva  (EU) 2016/1065 do Conselho, clarificam as regras relativas à definição e tributação dos vouchers, distinguindo entre os conceitos de vales de finalidade única e de finalidade múltipla, consoante sejam ou não conhecidos, no momento da sua emissão, todos os elementos necessários para a determinação do imposto devido (artigo 1.º, n.º 2, alíneas l), m) e n)), e estipulando, quanto à exigibilidade do imposto, que os mesmos são tributados no momento da respectiva cessão, quando se trate de vales de finalidade única, ou apenas no momento da transmissão do bem ou da prestação de serviço, no caso de vales de finalidade múltipla - artigo 7.º, n.ºs 13 e 14, do Código do IVA (cfr., sobre estes aspectos, JOANA MALDONADO REIS/LUÍSA CASIMIRO MOTA, “A (Nova) Directiva dos Vouchers”, in Cadernos IVA 2019, Coimbra, págs. 215 e segs.).

 

9. Como se impõe concluir, à data dos factos, os serviços de telecomunicações prestados pela B... Ltd a consumidores finais através da rede instalada em Portugal não eram tributáveis no território nacional, por efeito da regra geral do artigo 6.º, n.º 6, alínea b), do CIVA quanto à localização das operações. Por outro lado, sendo os serviços adquiridos através de vouchers multifuncionais, que não permitem identificar à data da sua emissão os serviços que poderão vir a ser utilizados, não se torna viável aplicar a norma derrogatória do artigo 8.º, n.º 1, para efeito de tornar exigível o imposto no momento da emissão da factura.

 

Certo é que o n.º 2 do artigo 8.º prevê que haja lugar à liquidação de imposto quando haja adiantamentos, ou seja, quando se verifique a emissão da factura ou o pagamento em momento prévio à realização das operações tributáveis. Esse princípio assenta na ideia – também ressalvada pelo acórdão do TJUE citado - de que, no caso de pagamentos por conta antes do facto gerador, o recebimento desses pagamentos torna o imposto exigível na medida em que os co contratantes demonstram, desse modo, a sua intenção de retirar antecipadamente todas as consequências financeiras ligadas à ocorrência» (considerando 49).

 

O ponto é que o facto gerador do IVA só ocorre quando se encontrarem preenchidas as condições legais necessárias à exigibilidade do imposto. E como se observou, o pagamento antecipado de serviços – como sucede com a emissão de vouchers multifuncionais – não pode originar o pagamento de imposto quando os serviços são indicados genericamente, dependendo a sua concretização da opção do utilizador, e não se encontram, por isso, identificados à data da emissão factura que titula o pagamento.

 

Constata-se, todavia, que os serviços inspectivos não discutem que não haja lugar a  liquidação de imposto no momento da transmissão dos vouchers multifuncionais, mas consideram que o imposto se torna exigível na data da emissão da factura, nos termos do artigo 8.°, n.º 1, alínea a), do CIVA, pelo facto de a Requerente não ter feito prova da utilização ou inutilização dos vouchers através da indicação do local, data e a designação concreta dos bens transmitidos ou da prestação de serviços efectuada, sendo essa mesma inércia probatória que, no entender da Administração, inviabiliza a aplicação da regra geral do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do CIVA (cfr. alíneas H) e K) da matéria de facto).

 

Ora, se os vouchers multifuncionais - como se fez notar - se reportam a bens ou serviços que não estão à partida identificados e não é a Requerente que realiza os serviços que são antecipadamente pagos através dos vouchers, não se vê em que termos é que interessada poderia satisfazer o ónus da prova que lhe é imposto.

 

Mas, para além disso, não se descortina – nem a Autoridade Tributária explica – qual o fundamento legal para uma tal exigência. O bloco normativo que tem estado em análise, sejam as disposições atinentes à localização das operações ou à exigibilidade do imposto, não permitem extrair a conclusão de que a regra derrogatória do artigo 8.º, n.º 1, é também aplicável quando o sujeito passivo não faça prova dos serviços que foram ou não foram prestados, quando esses serviços tenham sido adquiridos mediante pré-pagamento.

 

Em matéria de direito probatório, a disposição que releva é a do artigo 74.º da LGT, pela qual o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque, o que se traduz num princípio geral de repartição do ónus da prova, cabendo assim à Administração a prova da existência dos factos tributários em que assenta a liquidação e ao sujeito passivo a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito (artigo 342.º do Código Civil).

 

Competia pois à Administração Tributária fazer a demonstração dos pressupostos de  facto que justificavam a liquidação de IVA com base na emissão de factura quando o documento respeita  a vouchers multifuncionais.

 

Por tudo, o pedido arbitral mostra-se ser procedente.

 

Vícios de conhecimento prejudicado

 

10. Face à solução a que se chega, fica prejudicado o conhecimento do vício de falta de fundamentação e da questão de constitucionalidade.

 

Juros indemnizatórios

 

11. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exatos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.

 

Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

A primeira dessas disposições consigna que “são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”.

 

Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade dos atos de liquidação em IRC, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).

 

Reenvio prejudicial

 

12.  A Autoridade Tributária requer subsidiariamente o reenvio prejudicial para o  TJUE para se colocar a questão de saber se se torna exigível o IVA no caso da venda de  vouchers de que não se faça prova de terem sido utilizados pelos adquirentes e, em caso afirmativo, em que momento é que o imposto é exigível.

 

A questão, no entanto, não suscita dúvidas fundadas quanto à interpretação do direito europeu e existe jurisprudência do Tribunal de Justiça que, de forma consistente, explicita quando há lugar à liquidação de imposto no caso de pagamentos antecipados de aquisição de serviços, pelo que se não justifica a pretendida submissão de questão prejudicial.

 

 

III - Decisão

Termos em que se decide:

a)            Julgar procedente o pedido arbitral e anular os actos de liquidação de IVA impugnados, referentes ao ano de 2014, bem como a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra esses actos de liquidação;

b)           Condenar a Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito.

 

 

Valor da causa

 

A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 3.664.762,20, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.

 

Custas

 

Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 46.512,00, que fica a cargo da Requerida.

 

Notifique.

 

Lisboa, 9 de Março de 2020,

  

O Presidente do Tribunal Arbitral

Carlos Fernandes Cadilha

 

O Árbitro Vogal

Ricardo Rodrigues Pereira

 

A Árbitro Vogal

Diogo Feio