Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 333/2019-T
Data da decisão: 2020-05-11  IRC IVA  
Valor do pedido: € 362.059,71
Tema: IVA e IRC – Operações fictícias/simuladas – Direito à dedução – Art. 19.º, n.º 3 do CIVA. Indedutibilidade fiscal – Art. 23.º do CIRC.
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DECISÃO ARBITRAL

 

Os árbitros Dra. Alexandra Coelho Martins (árbitro presidente), Dr. José Ramos Alexandre e Professora Doutora Nina Aguiar, designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (“CAAD”) para formarem o Tribunal Arbitral, acordam no seguinte:

 

I.             RELATÓRIO

 

A..., LDA., doravante “Requerente”, com o número de identificação fiscal..., com sede na Rua ..., ...– ... ..., veio requerer a constituição de Tribunal Arbitral Coletivo, ao abrigo dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a) e 10.º, n.º 1, alínea a), ambos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (“RJAT”), aprovado pelo Decreto-lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, com as alterações subsequentes, com vista à declaração de ilegalidade e anulação das liquidações de Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (“IRC”), incluindo os respetivos juros (compensatórios e de mora), relativas aos anos 2015 e 2016, no valor global de € 362.059,71.

 

É demandada a Autoridade Tributária e Aduaneira, doravante referida por “AT” ou “Requerida”.

Em 9 de maio de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD e seguiu a sua normal tramitação, nomeadamente com a notificação da AT, em 15 de maio de 2019.

 

Em conformidade com os artigos 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, alínea a), todos do RJAT, o Exmo. Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os árbitros do Tribunal Arbitral Coletivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

As Partes, notificadas dessa designação em 1 de julho de 2019, não manifestaram oposição e em 22 de julho de 2019, conforme previsto no artigo 11.º, n.º 7 do RJAT, o Tribunal Arbitral Coletivo ficou constituído.

 

                Em 21 de outubro de 2019, a Requerida apresentou Resposta, na qual se defende por impugnação, tendo, na mesma data, procedido à junção do processo administrativo (“PA”). 

 

O Tribunal determinou a notificação das Partes para se pronunciarem sobre a cumulação de pedidos, tendo a Requerida pugnado pela absolvição da instância por procedência da exceção de cumulação ilegal de pedidos.

 

Por se entender desnecessária, foi determinada a dispensa da reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT, relegando-se o conhecimento da matéria de exceção para a decisão final, conforme despacho de 27 de novembro de 2019.

 

                Subsequentemente, em 16 de dezembro de 2019, foram as Partes notificadas para alegações sucessivas e prorrogado por dois meses o prazo de prolação da decisão arbitral, atenta a interposição de férias judiciais e o disposto no artigo 21.º do RJAT, advertindo-se a Requerente de que deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente.

 

                A Requerente apresentou alegações finais em 21 de fevereiro de 2020, nas quais mantém a sua posição. Considera ser permitida a cumulação de pedidos, por se verificar, quanto ao essencial, uma identidade das questões de facto e de direito. Adiciona o pedido dependente de restituição das quantias a serem por si pagas no âmbito de “acordo prestacional com a AT”.

 

                A Requerida optou por não contra-alegar.

 

                Foi prorrogado o prazo para prolação da decisão, ao abrigo do artigo 21.º, n.º 2 do RJAT, por despacho de 21 de março de 2020, atenta a complexidade das questões suscitadas.

 

POSIÇÃO DA REQUERENTE

 

A Requerente advoga que em relação à ação inspetiva que incidiu sobre o ano 2015, correspondente à Ordem de Serviço OI2018..., o procedimento se estendeu para além dos seis meses previstos no artigo 36.º do Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira (“RCPITA”), pelo que se encontrava ferido de caducidade, em virtude da natureza imperativa desse prazo.

 

Sobre o mérito da causa, opõe-se ao entendimento da AT de que as faturas dos fornecedores em causa se referem a operações simuladas e não titulam efetivas operações comerciais.

 

A este respeito, considera que os documentos por si disponibilizados no decurso da ação inspetiva preenchem os requisitos legais previstos no artigo 78.º, n.º 7, alíneas a) e b) do Código do IVA e constituem suporte válido para a dedução do imposto nos termos do artigo 19.º, n.ºs 1 e 3 do mesmo diploma. 

 

Adicionalmente, alega estarem cumpridos os requisitos materiais do direito à dedução do IVA, pelo que a limitação deste direito à dedução do IVA é violadora do princípio da neutralidade, contexto em que invoca a jurisprudência do Tribunal de Justiça.

Entende ter demonstrado que adquiriu efetivamente a mercadoria em causa, sem que a AT tivesse identificado indícios relevantes no sentido de demonstrar que [a Requerente] sabia, ou devia saber, que quem lhe estava a vender não era a entidade que figurava nas faturas e que tinha conhecimento dos factos imputados às empresas emitentes das faturas, deduzindo que a AT não satisfez o ónus da prova de demonstração dos pressupostos das liquidações controvertidas.

 

Arguiu ainda que a AT se alheou da realidade, reconduzindo a atuação da Requerente àquilo que de errado se passava nos seus fornecedores, ou seja, extrapolou para a sua esfera [da Requerente] os vícios e irregularidades verificados naqueles, em violação dos princípios do procedimento tributário previstos no artigo 55.º da Lei Geral Tributária (“LGT”): da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.

 

Para suportar a sua tese cita jurisprudência dos Tribunais Superiores e do Tribunal de Justiça. Conclui pela anulação das liquidações adicionais de IVA, IRC e juros.

 

A Requerente juntou documentos e não requereu a produção de prova testemunhal.

 

POSIÇÃO DA REQUERIDA

                              

                Na sua resposta, a Requerida defende não assistir razão à Requerente em relação à caducidade do procedimento inspetivo (parcial, referente ao ano 2015) e consequente invalidade da liquidação.

 

                Por um lado, salienta que o início do procedimento se reporta, de acordo com o disposto no artigo 51.º do RCPITA, ao momento da assinatura da Ordem de Serviço, o que ocorreu em 12 de junho de 2018. O prazo máximo de seis meses, previsto no artigo 36.º, n.º 2 do RCPITA, contado a partir dessa data, pretende limitar a prática de atos externos, como determinado de forma expressa pelo n.º 7 do mesmo preceito, os quais terminaram em 11 de dezembro de 2018, ou seja, antes do decurso do referido prazo.

                Por outro lado, retira da estatuição do n.º 7 do artigo 36.º [segundo o qual, “o decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando, porém, o direito à liquidação dos tributos”] que a alegada caducidade do procedimento inspetivo não é suscetível de afetar a validade do ato de liquidação, uma vez que não foram praticados quaisquer atos externos fora do mencionado quadro temporal, e que o direito à liquidação não resulta comprometido pelo decurso do prazo de conclusão do procedimento inspetivo por expressa previsão legal.

 

                No que se refere aos fundamentos materiais dos atos de liquidação, a Requerida confirma o entendimento do Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”), no sentido de que foram apurados fortes indícios de que as operações em causa [transmissões de bens] são fictícias ou simuladas não tendo sido realizadas pelos sujeitos identificados nos documentos como emitentes/fornecedores. Na hipótese de tais transmissões terem ocorrido, terá sido com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das mencionadas nos documentos de suporte, que não foi possível identificar. Além dos indícios respeitantes às duas entidades emitentes das faturas, reveladores de que estas não dispunham de qualquer infraestrutura empresarial e de recursos materiais e humanos afetos ao exercício de uma atividade, foram, especificamente em relação à Requerente, identificadas as seguintes circunstâncias:

(a)          A Requerente não apresentou nem mostrou estar na posse de quaisquer documentos de transporte (ou outros, como orçamentos ou requisições), relativos à mercadoria descrita nas faturas que suportaram a dedução do IVA, que, no caso das faturas datadas de 28 e 31 de dezembro de 2015, implicavam meios de transporte específicos [viaturas pesadas de mercadorias];

(b)          A B..., S.A., que controla as entradas e saídas da infraestrutura produtiva da Requerente, forneceu matrículas das viaturas que deram entrada naquelas datas [28 e 31 de dezembro de 2015] com destino à Requerente, não tendo sido identificadas quaisquer viaturas pesadas de mercadorias ou outras associadas a descargas dos bens faturados à Requerente;

(c)          A natureza e quantidade dos bens adquiridos revelam-se desajustados à atividade e/ou às necessidades da Requerente:

a.            Quer atendendo ao seu quadro de pessoal, circunscrito a catorze efetivos (incluindo um sócio e um gerente), que dificilmente justificariam a compra, de uma só vez, de 1000 polos, 500 calças de trabalho, 585 pares de botas de trabalho, ou 400 manguitos de soldadura em pele; 

b.            Quer tendo em conta o facto de as faturas em causa se concentrarem nos últimos dias de 2015 e nos últimos três meses de 2016, não tendo sido encontrados indícios de qualquer acréscimo súbito e anormal do nível de atividade da Requerente naquele período, após análise da faturação emitida e de outros indicadores como os consumos de energia elétrica;

c.            Quer ainda por a variação média do volume de negócios em 2015 (-7,21%) não apontar para uma procura anormal no respetivo setor de atividade que justificasse um consumo excecional de matérias primas pela Requerente. 

 

A Requerida sustenta que o facto de o pagamento estar documentado através de cheques sacados sobre contas bancárias da Requerente, criando um circuito financeiro com aparência de normalidade, não comprova a veracidade das transações, uma vez que os cheques não foram depositados em contas abertas em nome dos emitentes das faturas, mas levantados em numerário aos balcões de instituições financeiras, desconhecendo-se o destino dado aos fundos.

 

                Segundo a Requerida, é genérica e infundada a alegação de que a AT violou os princípios do procedimento tributário previstos no artigo 55.º da LGT, não indicando a Requerente que garantias foram violadas ou em que medida e em que momento a AT agiu com desproporção nas iniciativas adotadas para a descoberta da verdade material.

 

                Aduz que, para além de os formalismos das faturas não se encontrarem sequer cumpridos à luz do artigo 36.º, n.º 5 do Código do IVA, por inobservância da forma legal (artigos 19.º, n.ºs 2 e 6 do mesmo Código), os elementos complementares fornecidos pela Requerente foram insuficientes para esclarecer os Serviços de Inspeção sobre os requisitos substantivos (i.e., para demonstrarem que as operações realmente ocorreram). Rejeita também que o direito à dedução do IVA tenha sido corrigido com base no simples facto de os emitentes das faturas (supostos fornecedores) estarem indiciados como emitentes de faturas falsas.

 

                Em relação ao ónus da prova, defende que, tendo sido recolhidos indícios baseados em dados objetivos de que as faturas não corresponderiam a verdadeiras operações comerciais, era à Requerente que cabia o ónus probatório dos requisitos materiais do direito à dedução, de acordo com o artigo 74.º, n.º 1 da LGT (o ónus probatório incide sobre quem invoca um direito),  o que não fez.

 

                Desta forma, encontra-se vedada a dedução do IVA, nos termos do artigo 19.º, n.º 3 do Código deste imposto, por estarmos perante operações fictícias, assim como a dedução em sede de IRC, face ao disposto no artigo 23.º do correspondente Código, por não corresponderem a gastos comprovadamente incorridos ou suportados pelo sujeito passivo para obter ou garantir rendimentos sujeitos a IRC.

 

Por fim, a Requerida pronuncia-se no sentido da manutenção na ordem jurídica das liquidações adicionais e respetivos juros, atenta a sua manifesta conformidade legal.

 

 

II.            SANEAMENTO E CUMULAÇÃO DE PEDIDOS

 

O Tribunal foi regularmente constituído e é competente em razão da matéria para conhecer dos atos de liquidação de IVA, IRC e inerentes juros compensatórios e de mora, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º, n.º 3, alínea a), 6.º, n.º 2, alínea a) e 11.º, n.º 1, todos do RJAT.

 

As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, têm legitimidade e encontram-se regularmente representadas (cf. artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).

O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo, porque apresentado no prazo de 90 dias previsto no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do RJAT.

 

Tendo sido suscitada a questão da cumulação ilegal de pedidos, sobre a qual as partes tiveram oportunidade de se pronunciar, importa proceder à respetiva apreciação.

 

De acordo com o artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, a cumulação de pedidos, ainda que relativos a diferentes atos, é admissível quando a respetiva procedência “dependa essencialmente da apreciação das mesmas circunstâncias de facto e da interpretação e aplicação dos mesmos princípios ou regras de direito.”

 

Do cotejo desta norma com o disposto no artigo 104.º, n.º 1 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), na versão em vigor até 16 de novembro de 2019 , depreende-se, conforme salienta JORGE LOPES DE SOUSA, que as limitações deste último para o processo de impugnação judicial não constam do regime arbitral, pois, para além da identidade de fundamentos de facto e de direito, o CPPT exigia a identidade da natureza dos tributos, condição omissa na hipótese do artigo 3.º, n.º 1 do RJAT (cf. Guia da Arbitragem Tributária, Coord: NUNO VILLA-LOBOS e MÓNICA BRITO VIEIRA, Almedina, 2013, pp. 145-148). 

 

Assim, JORGE LOPES DE SOUSA conclui que “pode ser pedida a um tribunal arbitral a declaração de ilegalidade de atos de liquidação de IVA e IRC que tenham subjacente a mesma materialidade fáctica detetada em ação de inspeção”, não sendo necessário, para que a cumulação de pedidos seja viável, “que haja uma identidade absoluta das situações fácticas, bastando que seja essencialmente idêntica a questão jurídico – fiscal a apreciar e que a situação fáctica seja semelhante nos pontos que relevem para a decisão.

Os factos serão essencialmente os mesmos quando forem comuns às pretensões do autos […] de forma a que se possa concluir que, se se provarem os alegados relativamente a um ato, existirá o suporte fáctico total ou parcialmente necessário para a procedência das pretensões de todos os pedidos”.

De notar que, mesmo no âmbito do artigo 104.º do CPPT, reportado ao processo de impugnação judicial e de teor mais restritivo do que o artigo 3.º, n.º 1 do RJAT, ISABEL MARQUES DA SILVA preconizava uma interpretação com maior amplitude (cf. “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Março de 2004 (Cumulação de Impugnações de IVA e de IRS)”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 414, Julho-Dezembro de 2004, pp. 371-377).

 

Posição que foi sendo acolhida e se consolidou na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo, com a aceitação da cumulação de pedidos provenientes de uma mesma correção à matéria tributável com produção de efeitos em impostos distintos, desde que esteja em causa a apreciação conjunta dos mesmos factos, como assinala o acórdão de 31 de maio de 2017, no processo n.º 0358/17 .

 

CARLA CASTELO TRINDADE salienta que este novo entendimento derivou de uma maior latitude na concretização do conceito “idêntica natureza dos tributos”, na aceção do artigo 104.º do CPPT, que deixou de basear-se no tríptico rendimento, património e despesa (cf. Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Almedina, 2016, pp. 130-140).

 

A construção jurisprudencial passou a remeter para a classificação de tributos estabelecida no artigo 4.º da LGT, em particular para a dicotomia impostos e taxas (n.ºs 1 e 2), não se considerando o cúmulo ilegal (quanto ao requisito da identidade da natureza dos tributos) sempre que estejam em causa imposições pertencentes à mesma categoria classificatória de “imposto”.   Como princípios orientadores da solução alcançada, que se acompanha pelo seu mérito, figuram a conveniência de evitar decisões contraditórias, a racionalidade de meios e a celeridade das decisões .

Esta interpretação resultou entretanto reforçada com as alterações introduzidas pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, ao artigo 104.º do CPPT , que confirmaram a ampliação do campo de aplicação da norma, cuja redação atual acolhe, de forma expressa, a cumulação de pedidos cuja “apreciação tenha por base as mesmas circunstâncias de facto ou o mesmo relatório de inspeção tributária, ou sejam suscetíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a situações de facto do mesmo tipo”.

 

Em sentido favorável à cumulação de pedidos na jurisdição arbitral quando estejam em discussão impostos de distinta natureza, com fundamento em razões idênticas às supra expostas, de marcado pendor pro actione, corolário do direito à tutela judicial efetiva, se pronunciam de igual modo, e a título de exemplo, as decisões arbitrais n.º 209/2015-T, de 27 de abril de 2016, e 720/2014-T, de 23 de março de 2015, desde que a factualidade a apreciar seja idêntica.

 

Refere esta última [decisão] que “as regras sobre cumulação de pedidos têm subjacentes razões de economia processual, pelo que devem ser interpretadas teleologicamente não com a perspetiva de colocação de obstáculos à apreciação das pretensões dos contribuintes, mas sim, com o alcance de viabilizarem a cumulação sempre que as razões de economia se verifiquem.

Sendo assim, quando está em causa a apreciação dos mesmos factos, justificar-se-á, em regra, a cumulação, desde que as questões de direito colocadas, que em regra serão distintas a nível de tributos diferentes, não sejam o principal objeto de controvérsia.

É esse o alcance do artigo 3.º, n.º 1, ao não exigir uma absoluta identidade de questões de facto e de direito mas apenas uma identidade quanto ao que é essencial.”

 

Na situação vertente, apesar de estarmos perante dois impostos com características distintas – IVA e IRC –, as liquidações adicionais procedem do mesmo facto: o alegado caráter fictício ou simulado das operações constantes das faturas em relação às quais a Requerente procedeu à dedução fiscal, e resultam da mesma ação ou procedimento inspetivo. Assim, os atos tributários, apesar de se reportarem a diferentes períodos (exercícios) e impostos, derivam de idênticas circunstâncias de facto e estas, conjuntamente com as regras do ónus probatório, constituem o principal ponto de divergência da presente ação, pelo que a cumulação de pedidos deve ser admitida, nos moldes expostos, ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1 do RJAT. 

 

Não foram identificadas questões que obstem ao conhecimento do mérito.

 

 

III.          FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

 

1.            MATÉRIA DE FACTO PROVADA

 

Com relevo para a decisão, importa atender aos seguintes factos que se julgam provados:

 

A.           A..., LDA., aqui Requerente, é uma sociedade de cariz familiar criada em 26 de maio de 2009 e tem por objeto social a “[c]onstrução e reparação de embarcações metálicas (petroleiros, navios de guerra, graneleiros, navios frigoríficos, de pesca, de passageiros, hidro deslizadores, hovercrafts, ferry boats, dragas, rebocadores) e de outras embarcações metálicas e estruturas metálicas flutuantes (barcos-faróis, barcos-piloto, docas flutuantes, pontões, gruas-flutuantes, plataformas de perfuração. Construção e reparação de iates e outras embarcações de recreio e desporto (inclui barcos para pesca desportiva) feitas em metal, madeira, ou qualquer outro material, acionados por motores, velas ou remos. Inclui canoas, caiaques, jangadas e barcos insufláveis. Agentes de comércio por grosso de máquinas, equipamento industrial, embarcações e aeronaves” – cf. Relatório de Inspeção Tributária (“RIT”) constante do PA e também junto pela Requerente como documento 28.

B.            A Requerente está registada pelo exercício da atividade de “Construção de embarcações metálicas e estruturas flutuantes, exceto de recreio e desporto – CAE 30111”, é um sujeito passivo de IRC do regime geral e, para efeitos de IVA, está enquadrada no regime normal de periodicidade mensal – cf. RIT.

C.            A atividade exercida pela Requerente respeita essencialmente a operações abrangidas pela isenção prevista no artigo 14.º, n.º 1, alínea f) do Código do IVA, que conferem o direito à dedução, relacionadas com “transformações, reparações, operações de manutenção, construção, frete e aluguer de embarcações afetas às atividades a que se referem as alíneas d) e e) [afetas à navegação marítima em alto mar e que assegurem o transporte remunerado de passageiros ou o exercício de uma atividade comercial, industrial ou de pesca], assim como as transmissões, aluguer, reparação e conservação dos objetos, incluindo o equipamento de pesca, incorporados nas referidas embarcações ou que sejam utilizados para a sua exploração” – cf. RIT.

D.           Nos anos 2015 e 2016, a atividade da Requerente foi desenvolvida na Zona Portuária de ..., numa infraestrutura industrial propriedade da B..., S.A., entidade que lhe cedia ainda energia elétrica e prestava um conjunto de serviços relacionados com a atividade operacional, como o encalhe e desencalhe de embarcações – cf. RIT.

E.            A Requerente foi objeto de um procedimento inspetivo externo, de âmbito parcial – IVA e IRC –, abrangendo os anos 2015 e 2016, credenciado pelas Ordens de Serviço OI2018... [2015] e OI2018... [2016], da Direção de Finanças do Porto, com vista à comprovação e verificação do cumprimento das obrigações legais de natureza tributária – cf. RIT.

F.            A Requerente foi notificada na sua sede, em 12 de junho de 2018, de que se iria realizar a mencionada ação inspetiva, o que veio a concretizar-se com a assinatura das respetivas Ordens de Serviço pelo representante do sujeito passivo, aqui Requerente, nas seguintes datas:

i)             Em 14 de junho de 2018, no caso da Ordem de Serviço OI2018..., que determinou a inspeção ao ano 2015;

ii)            Em 5 de julho de 2018, em relação à Ordem de Serviço OI2018..., referente ao ano 2016,

– cf. RIT.

G.           A ação inspetiva realizada à Requerente aferiu que, no decurso dos anos 2015 e 2016, esta registou faturas de aquisição de bens a dois fornecedores que estavam indiciados por emissão de faturas falsas – a C..., UNIPESSOAL, LDA. (a seguir referida por C...) e a D..., UNIPESSOAL, LDA. (D...) – em relação às quais deduziu o IVA e reconheceu o respetivo gasto fiscal para efeitos de IRC – cf. RIT.

H.           Estão em causa – cf. RIT:

i)             30 faturas emitidas pela C... em 2015, entre 28 de setembro de 2015 e 31 de dezembro de 2015, no valor total de € 551.836,78 (€ 448.647,78 de base tributável e € 103.189,00 de IVA);

ii)            19 faturas emitidas pela C... em 2016, entre 28 de janeiro de 2016 e 5 de abril de 2016, no valor total de € 271.988,72 (€ 221.129,04 de base tributável e € 50.859,68 de IVA); e

iii)           8 faturas emitidas pela D... em 2015, entre 21 de dezembro de 2015 e 31 de dezembro de 2015, no valor total de € 78.658,50 (€ 63.950,00 de base tributável e € 14.708,50 de IVA ).

I.             Por um conjunto de factos-índice, a AT inferiu que aquelas faturas não correspondiam a operações reais e rejeitou a dedução do IVA e do gasto fiscal correspondente para efeitos de IRC, procedendo às correções de imposto e juros inerentes – cf. RIT.

J.             Neste âmbito, a fundamentação dos atos tributários que consta do Projeto de Conclusões e do RIT refere o seguinte:

“III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORREÇÕES MERAMENTE ARITMÉTICAS À MATÉRIA TRIBUTÁVEL

[…]

1 – UTILIZAÇÃO DE FATURAS NAS QUAIS FORAM MENCIONADAS OPERAÇÕES INDICIARIAMENTE «FICTÍCIAS» OU «SIMULADAS»

1.1 – ELEMENTOS DECLARADOS/INDICADORES DE ATIVIDADE

Consultada a base de dados do Sistema de Informática Tributária, verifica-se que o indicador médio nacional de rendibilidade bruta Rácio R16-MBI, para a atividade de «Construção de embarcações metálicas e estruturas flutuantes, exceto de recreio – CAE 30111», que corresponde à que foi desenvolvida pela A..., LDA nos anos de 2015 e de 2016, apresenta os seguintes desfasamentos para com os calculados a partir dos elementos declarados pela empresa:

 

ANOS    Rácio R16-MBI

                EMPRESA            UN ORGÂNICA SETOR

2015      46,06     59,27     82,27

2016      53,75     73,69     82,14

[…]

Os assinalados desfasamentos, indiciam desde logo consumos anormais de matérias […].

Em conformidade com os elementos recolhidos no decurso do procedimento inspetivo, concluiu-se que não correspondem a efetivas aquisições de bens ou de serviços efetuadas aos emitentes dos documentos, sendo por isso indiciariamente fictícias ou simuladas, com os fundamentos que se indicam, relativamente a cada um deles, as operações que constam dos documentos com origem nos obrigados tributários a seguir indicados, cujas operações foram relevadas a débito nas contas 31-COMPRAS, 62-FORNECIMENTOS E SERVIÇOS EXTERNOS e 63-GASTOS COM O PESSOAL e outras que deram origem a movimentos a débito da conta 64-GASTOS DE DEPRECIAÇÃO E DE AMORTIZAÇÃO do Sistema de Normalização Contabilística (SNC):

A)  C..., Unipessoal, Ldª [NIF: ...]

[…]

Nem a emitente, nem a utilizadora das faturas mencionaram as operações que dela constam, respetivamente no Anexo O e no Anexo P às declarações anuais de informação contabilística e fiscal a que se referem a alínea c) do nº 1 do artigo 117º e o artigo 121º, ambos do CIRC, pelo facto de quanto ao ano de 2015, nenhuma delas ter dado cumprimento aquela sua obrigação declarativa e quanto ao ano de 2016, em que a situação de incumprimento declarativo se mantém no caso da emitente, a A..., LDA ter omitido as operações com a C..., Unipessoal, Ldª ao Anexo P, ainda que estas excedessem o limite previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 29º do CIVA.

Acresce que contrariando o disposto no artigo 3º do Dec.-Lei Nº 198/2012, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Nº 66-B/2012, de 31 de dezembro, a emitente não comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira, as faturas antes identificadas, emitidas em nome da A..., LDA e os demais documentos da mesma natureza […].

As faturas em causa fazem alusão, ao programa utilizado [GesposWin licenciado a: C..., Unipessoal, Lda-/.../Documento processado por computador], mas omitem a certificação, que na altura era obrigatória, por força da alteração ao nº 9 do artigo 123º do CIRC, operada pelo artigo 113º da Lei Nº 64-B/2011, de 30 de dezembro, nos termos e condições definidos na Portaria Nº 22-A/2012, de 24 de janeiro, verificando-se ainda que os documentos não ostentam o código hash, exigível pelo nº 1 do artigo 6º da Portaria Nº 363/2010, de 23 de junho, com as alterações introduzidas pela Portaria Nº 22-A/2012, de 24 de janeiro.

Acresce que respeitando as operações, como é o caso, a alegados bens em circulação, não foram detetados quaisquer documentos de transporte comunicados pela C..., Unipessoal, Ldª, nos termos do disposto no Dec.-Lei Nº 198/2012, de 23 de agosto, conjugado com o preceituado na Portaria Nº 161/2013, de 23 de abril.

[…]

Para efeitos fiscais, a C..., Unipessoal, Ldª, está registada pelo exercício das atividades principal de «Comércio por grosso de vestuário e de acessórios – CAE 46421» que iniciou com efeitos reportados a 2015/04/01 e secundária «Comércio por grosso não especificado – CAE 46900» [declaração de alterações submetida a 2015/10/02].

C..., Unipessoal, Ldª, apresentou as declarações periódicas de IVA de 15-06T a 16-09T, nas quais assinala que «não realizou operações ativas nem passivas» [Quadro 05/Campo 1], o que permite concluir que não reconheceu as operações mencionadas nas faturas emitidas em nome da A..., LDA e dos demais utilizadores conhecidos, nem até esta data, procedeu à entrega da prestação tributária que nela foi liquidada. Quanto aos períodos de imposto de 16-12T e seguintes, a C..., Unipessoal, Ldª não deu cumprimento aquela sua obrigação declarativa.

Com referência aos anos de 2015 e de 2016 e, em matéria de IRC, a C..., Unipessoal, Ldª, é um sujeito passivo em situação de incumprimento declarativo, por não ter apresentado as declarações de rendimento Modelo 22 de IRC e anual de informação contabilística e fiscal.

Apesar da C..., Unipessoal, Ldª não ter submetido a IES/DA relativa aos anos de 2015 e de 2016, da qual fazem parte os anexos O/P, através do Sistema de Informática Tributária, procedeu-se ao cruzamento da informação baseada nos valores declarados por terceiros, seus hipotéticos fornecedores [Cruzamento do Anexo P com o Anexo O de fornecedores] e da consulta efetuada, não foram detetadas quaisquer aquisições de bens ou serviços declaradas por outros sujeitos passivos nacionais, que pudessem constituir os inputs da atividade empresarial da C..., Unipessoal, Ldª.

[…] foi efetuada uma deslocação à sede/domicílio fiscal da C..., Unipessoal, Ldª […]

Não obstante as diversas tentativas nesse sentido, não foi possível estabelecer qualquer contacto com eventuais residentes, tendo sido detetados indícios de que o local não estaria habitado […]

Sem prejuízo das demais características do imóvel, que o tornam viável apenas para fins habitacionais, tal como consta do registo matricial, de notar que as áreas exíguas de construção, a que acresce a implantação do edificado num terreno com algum declive, à face de um rua estreita e em curva, que torna praticamente impossível efetuar cargas e descargas no local, nomeadamente de chapas com as dimensões das mencionadas nalgumas das faturas emitidas em nome da A..., LDA [Vg. Fatura Nº 163, 40 Chapas de Inox 3000x1500x3MM], tratando-se ainda de bens que pelo peso e dimensões, carecem de equipamento de manuseamento e de carga adequado, nomeadamente de um empilhador, que não teria condições de operar no local […]

Não obstante as diligências efetuadas, não foi identificado qualquer outro local, a partir do qual, a C..., Unipessoal, Ldª, tivesse desenvolvido eventual atividade empresarial nos anos de 2015 e de 2016.

[…]

             Na Guia de Transporte Nº 98 emitida pela C..., Unipessoal, Ldª a 2015/12/11, em nome da A..., LDA, é expressamente indicado que o transporte foi efetuado por «N/CARRO  ...», depreendendo-se do teor da expressão, que se trataria de viatura da própria emitente do documento;

             Na Guia de Transporte Nº 122, emitida a 2015/12/29, é indicado expressamente que o transporte foi efetuado por «N/...», o mesmo acontecendo com as Guias de Transporte Nºs 140, 149, 150, 152, 153, 158, 159, 162, 167, 168, 171, 172, 176, 185, 191, 196, 197 e 211, com a mesma origem e destinatário, todas emitidas nos anos de 2015 e de 2016, o que mais uma vez levaria a supor que a viatura em causa seria pertença da C..., Unipessoal, Ldª, a emitente das guias;

             Acontece que a viatura Matrícula ..., é um ligeiro de mercadorias, marca ... ..., que desde 2010/05/05, figura no registo de propriedade em nome de E... […], a qual, instada a pronunciar-se sobre o assunto, não deu resposta ao Ofício Nº 2018..., de 2018/06/22 desta Direção de Finanças, cujo sobrescrito foi devolvido pelos CTT, com as menções Não Atendeu e de Objeto não Reclamado. Ainda assim, fica descartada a hipótese de tal viatura ter sido utilizada no transporte dos bens a que se referem as guias antes identificadas, considerando que a proprietária cessou a atividade de «Comércio a retalho não especificado sem predominância de produtos alimentares, bebidas e tabaco – CAE 47191», com efeitos reportados a 2016/04/30 e nos anos de 2014 e de 2015, não comunicou ao e-fatura quaisquer operações com o NIF da A..., LDA, nem com o NIF da C..., Unipessoal, Ldª.

[…] a C..., Unipessoal, Ldª, apesar de notificada para o efeito, não nos permitiu o acesso aos registos contabilísticos e aos suportes documentais às alegadas operações efetuadas nos anos de 2015 e de 2016.

[…]

A diversidade das operações mencionadas nas faturas, associada à falta de estrutura empresarial compatível para o exercício de uma efetiva atividade produtiva ou comercial por parte da C..., Unipessoal, Ldª [inexistência de imóveis registados em seu nome na matriz predial, inexistência de contratos de arrendamento que a identifiquem como inquilina, inexistência de viaturas de carga no registo de propriedade] e a inexistência ou insuficiência de recursos produtivos básicos: - próprios [pessoal assalariado] ou alheios [recurso a subcontratação]; - bem como os adquiridos a terceiros [mercadorias e/ou matérias primas], indiciam que se trata de um mero emitente de faturação «falsa», que não tem respaldo algum em efetivas transações comerciais efetuadas com os utilizadores dos documentos.

Sabendo-se que a A..., LDA, justifica o registo de pagamento das operações mencionadas nas faturas emitidas pela C..., Unipessoal, Ldª, com a emissão de cheques sacados sobre duas contas de depósitos à ordem abertas em seu nome, uma no Banco F..., SA e, outra no Banco G..., SA, no sentido de se identificarem os destinatários dos fundos sacados foi solicitada à A..., LDA autorização de acesso aos referidos cheques bancários, pedido esta acedeu.

[…]

Os cheques fornecidos pelo Banco F..., SA, são cheques nominativos, emitidos à ordem de C..., Unip., Ldª, que foram todos levantados [cheques de caixa], com o demonstram na generalidade dos casos o carimbo e rubrica da conferência de assinaturas aposto na frente dos documentos e, no verso, um carimbo com os dizeres « C..., Unip., Lda., A Gerência, seguido da assinatura legível de H... [endosso], a repetição da mesma assinatura [levantamento] e nalgumas das situações, a referência ao cartão de cidadão «cc ...», e o prazo de validade deste último documento «26/05/2020», o que confirma o levantamento dos fundos sacados.

 […]

             A C..., Unipessoal, Ldª, identificada com destinatária dos cheques, ao proceder ao levantamento dos fundos, não os fez passar pela conta bancária afeta à atividade empresarial, como decorre do nº 1 do artigo 63º-C da Lei Geral Tributária, nomeadamente e como se depreende do teor do preceito, para efetuar futuros pagamentos de recursos utilizados na atividade, simplesmente porque não desenvolveu atividade alguma, nem alocou quaisquer recursos à atividade empresarial. Sabe-se que na declaração de início de atividade, a C..., Unipessoal, Ldª indicou uma conta aberta no Banco I..., SA, a que corresponde o IBAN […] sendo que, conforme ficou evidenciado, não há indícios de que os fundos sacados tenham revertido para crédito desta ou de outras contas bancárias abertas em nome da empresa;

[…]

             Com o descrito comportamento de emissão de cheques nominativos, a A..., LDA, identificada como sacadora, procurou dar uma aparência de realidade às operações mencionadas nas faturas que utilizou, criando um circuito financeiro paralelo e coincidente com o circuito documental que deriva do registo contabilístico decorrente da utilização das faturas e, por outro lado, procurou criar uma ideia ilusória do cumprimento do disposto no artigo 63º-C da LGT;

             Todavia e como facilmente se compreende, com o levantamento de um cheque, perde-se o rasto ao dinheiro, não sendo possível assegurar de forma clara e inequívoca, que no caso concreto, os fundos sacados/levantados tenham revertido a favor da C..., Unipessoal, Ldª, a emitente das faturas, nem assegurar que não possam ter retornado à A..., LDA, a sacadora dos cheques ou que possam ter revertido a favor dos responsáveis desta última ou de quaisquer outras pessoas ou entidades;

 […]

Em resposta à notificação de pedido de informações por escrito de 2018/09/11, a A..., LDA, alega que a pessoa que a contactou «… e que agiu em nome e por conta do fornecedor foi o senhor J... …», que «… os locais de entrega dos bens foram os estaleiros …» da respondente, sendo os contactos estabelecidos «… por duas vias, pessoalmente e com visitas aos estaleiros e, telefonicamente …», adianta que «… os meios de pagamento utilizados foram cheques bancários, da conta da empresa ‘A..., Ldª’, sempre passados à ordem do fornecedor ‘C..., Unipessoal, Ldª’ e entregues …», ao referido indivíduo, que a respondente presume ser um «… comercial da firma …». Reitera que «… os locais de descarga dos bens foram os estaleiros … A..., Ldª …», que «… os locais de carga, conforme faturas emitidas, foram as instalações da empresa fornecedora ‘C..., Unipessoal, Ldª’ …», que não acompanhou «… a carga do material comprado …» e que não consegue identificar as viaturas utilizadas no transporte, até porque muitas das vezes é «… consumidor final…». Numa adenda à resposta dada ao Quesito Nº 1, a A..., LDA, retifica que o «… material constante da fatura nº 175 …» foi utilizado «… para consumo próprio …» e afeto ao imobilizado da respondente, o que do ponto de vista formal, naturalmente se pode confirmar pelos mapas de depreciações e de amortizações, assunto a que adiante voltaremos no Ponto III-2.1-A) deste Relatório.

Quanto à pessoa indicada por «J... », em função de elementos recolhidos no decurso do procedimento inspetivo e segundo a descrição que nos foi dada do referido indivíduo, pensamos tratar-se de J..., que não identificamos como sócio ou gerente da C..., Unipessoal, Ldª nem como colaborador desta, por não constar do ato constitutivo da sociedade [Publicação On-Line de Ato Societário – Insc 1/AP.3/...1], nem em ulteriores transformações societárias e por não ter sido identificado nas Declarações Mensais de Remunerações (DMR’s) apresentadas pela C..., Unipessoal, Ldª.

Quanto aos demais esclarecimentos prestados pela A..., LDA, o teor da resposta é demasiado vago, não fornecendo quaisquer elementos objetivos, concretizadores do negócio. Estranha-se que um alegado negócio da dimensão daquele que a respondente pretende justificar com as faturas emitidas pela C..., Unipessoal, Ldª, não tivesse deixado outros vestígios além das próprias faturas, nomeadamente e atendendo ao elevado número de cargas/descargas, que a respondente não conseguisse identificar o transportador ou algumas das viaturas utilizadas no transporte [note-se que estamos perante bens de apreciáveis dimensões e de cargas com elevado peso relativo, que obrigaria à utilização de viaturas pesadas e de meios de descarga adequados], a que acresce a não indicação de quaisquer contactos telefónicos da pessoa que alega ter contactado.

E no que respeita aos meios de pagamento, como já foi referido, estamos perante os denominados «cheques de caixa», todos levantados ao balcão, que muito embora tenham sido emitidos à ordem da C..., Unipessoal, Ldª, nada provam quanto ao destino subsequente dos fundos ou que estes tenham revertido a favor da emitente das faturas procedimento que como já foi dito, em nada difere do mero pagamento em numerário.

[…] foi efetuada uma tentativa de contacto com o alegado interlocutor J..., NIF […], no seu domicílio fiscal, não tendo sido possível contactá-lo. […] procedeu-se à sua notificação por carta registada com aviso de receção expedida para o referido local […]. O sobrescrito enviado foi rececionado pelo notificado a 2018/10/17 […], todavia, até esta data, não foi recebida qualquer resposta sobre o assunto por parte do visado.

De referir o domicílio fiscal do notificado corresponde ao do sócio único e gerente da C..., Unipessoal, Ldª, o Sr. H..., que notificado por via postal, no âmbito do procedimento inspetivo desencadeado à empresa a coberto das Ordens de Serviço OI2018... e OI2018... desta Direção de Finanças, nunca recebeu/levantou os sobrescritos enviados, que acabaram por ser devolvidos pelos CTT.

[…] o contabilista certificado da C..., Unipessoal, Ldª […] prestou os seguintes esclarecimentos, vertidos para Termo de Declarações […]:

             O respondente «… disse que já não é contabilista certificado da C..., Unipessoal, Ldª, por ter renunciado aquelas funções com efeitos reportados a 2016/11/03…», sendo que os honorários pelos serviços que prestou, lhe eram pagos mensalmente «… pelo gerente da empresa, o Sr. H..., pessoa que o contratou para aquelas funções …»,  no entanto e como refere «… aquele responsável da empresa nunca lhe entregou quaisquer documentos para efetuar os registos contabilísticos e por isso, as únicas declarações que apresentou para efeitos fiscais estão a ‘zeros’, no pressuposto de que no período a que respeitam, a empresa não desenvolveu qualquer atividade, porque o gerente lhe assegurou que sempre que a empresa estava ‘para arrancar’…;

[…]

             […] referiu «… que não tem conhecimento de quaisquer fornecimentos de bens ou de serviços efetuados pela C..., Unipessoal, Ldª nos anos de 2015 e de 2016, a favor dos clientes A..., LDA […]

Por E-Mail rececionado na Direção de Finanças do Porto a 2016/10/17, K..., o contabilista certificado da C..., manifesta o seu desconhecimento, quanto à emissão de faturas por parte daquela empresa sua cliente, esclarecendo que «… o CAE desta empresa é de comércio por grosso de vestuário e acessórios e não de construção civil…» e confirma que naquela altura a sua cliente não tinha «… programa de faturação para poder emitir faturas…».

O declarante K... desempenhou as funções de contabilista certificado de duas outras sociedades já referenciadas nas Direções de Finanças do Porto e de Braga, pela emissão de faturação fictícia ou simulada, uma das quais teve como gerente J... .

As demais declarações do contabilista certificado K..., revelam que pouco ou nada conhece da atividade e negócios da C..., pois baseiam-se em registos decorrentes da constituição da empresa e pouco mais, realçando-se apenas que o teor das declarações prestadas aponta para a ausência de qualquer infraestrutura empresarial e de recursos materiais e humanos afetos à atividade da empresa, o que vai de encontro aos restantes elementos e informações recolhidas no âmbito deste procedimento inspetivo.

B)  D..., Unipessoal, Ldª [NIF: ...]

[…]

Nem a emitente, nem a utilizadora das faturas mencionaram as operações que dela constam, respetivamente no Anexo O e no Anexo P à declaração anual de informação contabilística e fiscal a que se referem a alínea c) do nº 1 do artigo 117º e o artigo 121º, ambos do CIRC, pelo facto de quanto ao ano de 2015, nenhuma delas ter dado cumprimento a esta obrigação declarativa.

Acresce que contrariando o disposto no artigo 3º do Dec.-Lei Nº 198/2012, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Nº 66-B/2012, de 31 de dezembro, a emitente não comunicou à Autoridade Tributária e Aduaneira, as faturas antes identificadas, emitidas em nome da A..., LDA e os demais documentos da mesma natureza […].

No mês de dezembro de 2015, não foram detetados quaisquer documentos de transporte comunicados pela D... Unipessoal, Ldª com o NIF da A... LDA enquanto destinatária dos bens, nos termos da Portaria Nº 161/2013, de 23 de abril.

[…]

Para efeitos fiscais, a D... Unipessoal, Ldª, está registada pelo exercício da atividade de «Comércio a retalho de calçado em estabelecimentos especializados – CAE 47721», que iniciou com efeitos reportados a 2011/10/26 e, quanto ao ano de 2015, não deu cumprimento às suas obrigações tributárias de natureza declarativa, nomeadamente, não apresentou as declarações de rendimento e anual de informação contabilística e fiscal (IES), nem as declarações periódicas de IVA relativas aos períodos de 15-09T e 15-12T, o que permite concluir que não reconheceu as operações mencionadas nas faturas emitidas em nome da A..., LDA e em nome dos demais destinatários conhecidos, nem procedeu à entrega da prestação tributária que nelas foi liquidada.

Apesar da D... Unipessoal, Ldª não ter submetido a IES/DA relativa ao ano de 2015, da qual fazem parte os anexos O/P, através da base de dados do Sistema de Informática Tributária, procedeu-se ao cruzamento da informação baseada nos valores declarados por terceiros, seus hipotéticos fornecedores [Cruzamento do Anexo P com o Anexo O de fornecedores] e da consulta efetuada, não foram detetadas quaisquer aquisições de bens ou serviços declaradas por outros sujeitos passivos nacionais nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 29º do CIVA, que pudessem constituir os inputs da atividade empresarial da D... Unipessoal, Ldª.

[…]

             […] foi efetuada uma deslocação à sede/domicílio fiscal da D... Unipessoal, Ldª, sita à Rua..., ... – ...-... ... e averiguou-se que no local, a que corresponde a numeração do arruamento, existem dois edifícios habitacionais, que não ostentam qualquer indicação do nº ... [do lado da numeração par do arruamento, o nº ... de um dos edifícios, é imediatamente sucedido pelo nº ... do edifício seguinte];

[…]

             […]  foi efetuada uma deslocação ao domicílio fiscal do sócio único e gerente L... […] e averiguou-se que o local, corresponde a uma pequena moradia com evidentes sinais de estar desabitada […], informação então recolhida junto da vizinhança, dá conta que foi habitada por uma arrendatária idosa, que entretanto abandonou o local, por não estar em condições de viver sozinha […]

[…] a D... Unipessoal, Ldª, apesar de notificada para o efeito, não nos permitiu o acesso aos registos contabilísticos e suportes documentais às operações efetuadas no ano de 2015.

[…]

A diversidade das operações mencionadas nas faturas, associada à inexistência de estrutura empresarial compatível para o exercício de uma efetiva atividade produtiva ou comercial por parte da emitente [inexistência de imóveis registados na matriz em nome da D... Unipessoal, Ldª ou contratos de arrendamento comunicados de que fosse arrendatária, no registo de propriedade figura apenas uma viatura ligeira de mercadorias, Marca..., Mat. ..., com data de início de propriedade em nome da D... Unipessoal, Ldª a 2012/03/20 e fim de propriedade a 2014/10/15 e a inexistência de recursos produtivos básicos: - próprios [pessoal assalariado] ou alheios [recurso a subcontratação]; - bem como os adquiridos a terceiros [mercadorias e/ou matérias primas], indiciam que se trata de um mero emitente de faturação «falsa», que não tem respaldo algum em efetivas transações comerciais efetuadas com os utilizadores dos documentos.

No que em concreto respeita ao detalhe e à dimensão das operações transcritas nas faturas utilizadas pela A..., LDA, verifica-se que respeitam a:

Valores em €

DATA    FR           DESCRIÇÃO        PREÇO UNITÁRIO            VALOR TOTAL

                               Qt           Artigos                

21-12-2015         2015/14                500         Lote de Botas de Trabalho (Pares)           27,06     13 530,00

28-12-2015         2015/16                85           Pares Botas Trabalho do 39 ao 44             49,20     4 182,00

28-12-2015         2015/16                100         Luvas para soldadura     14,76     1 476,00

28-12-2015         2015/17                1             Lote de Estanteria Industrial carga pesada           15 375,00             15 375,00

28-12-2015         2015/18                500         Polos malha cardada c/descrição “A...” 12,30     6 150,00

28-12-2015         2015/18                500         Polos em piquet manga curta c/descrição “A...” 9,23       4 615,00

28-12-2015         2015/19                400         Manguitos em pele para soldadura         18,45     7 380,00

29-12-2015         2015/21                30           Cacifos para Balneários 239,85   7 195,00

29-12-2015         2015/21                20           Bancos de Vestiário        92,25     1 845,00

31-12-2015         2015/22                1             Conj. Estantes 15 lanços e 35 prateleiras              9 225,00               9 225,00

31-12-2015         2015/23                500         Calças de trabalho           15,37     7 685,00

TOTAL                                                                  78 658,50

Considerando que a A..., LDA, não destinou os alegados artigos adquiridos para ofertar aos seus clientes ou a terceiros e que o quadro de pessoal da empresa, no mês de dezembro de 2015, era composto por 14 efetivos [incluindo um sócio e um gerente], as quantidades alegadamente adquiridas, são absolutamente desproporcionadas para a dimensão da utilizadora das faturas [Vg. 585 pares de botas de trabalho, 1000 polos, 400 manguitos de soldadura em pele, 500 calças de trabalho].

Sabendo-se que a A..., LDA, justifica o registo de pagamento das operações mencionadas nas faturas emitidas pela D..., Unipessoal, Ldª, com a emissão de cheques sacados sobre duas contas de depósitos à ordem abertas em seu nome no Banco F..., SA e no Banco G..., SA, no sentido de se identificarem os destinatários dos fundos sacados, foi solicitada à empresa, autorização de acesso aos referidos cheques bancários, pedido a que esta acedeu.

[…]

             Tratam-se em todos os casos de cheques nominativos, emitidos à ordem de D..., Unipessoal, Ldª ;

[…]

             E sendo comum a todos eles a mesma assinatura ilegível, cujo titular foi identificado na Justificação de Operações Bancárias apensa ao Cheque Nº […], como sendo L... […], concluiu-se que os cheques em causa foram todos levantados ao balcão das instituições financeiras sacadas […]

 […]

Em resposta à notificação de pedido de informações por escrito de 2018/09/11, a A..., LDA, vem esclarecer que a pessoa que contactou a respondente «… e que agiu em nome e por conta deste fornecedor foi o comercial/vendedor senhor M... …», sendo os contactos estabelecidos «… quer pessoalmente …» nas instalações da respondente, «… quer telefonicamente …», que «… os meios de pagamento utilizados foram cheques emitidos à ordem de ‘D..., Unipessoal, Ldª’…» que «… foram entregues ao comercial da firma, o senhor M... …». Relativamente «… às cargas efetuadas nos dias 28 e 31 de Dezembro de 2015 …», acrescenta que «… não foram identificadas as viaturas utilizadas no transporte da mercadoria ou os transportadores que, eventualmente, efetuaram o transporte, pois esta mercadoria destinou-se ao consumo da ‘A..., Ldª’, na qualidade de consumidor final …».

Não foi possível identificar o indivíduo identificado pela denominação de «M... », mas seguramente, é pessoa que não faz parte dos órgãos sociais da D..., Unipessoal, Ldª, nem consta que seja seu assalariado ou colaborador.

Quanto aos demais esclarecimentos, objetivamente, nada acrescentam aos dados conhecidos, desde logo, não foram indicados os números telefónicos usados nos contactos nem foram identificadas as viaturas ou transportadores, não constituindo qualquer impedimento o motivo invocado, que nem sequer se compreende.

[…] N... […] o Contabilista Certificado da D..., justifica o envio das declarações periódicas de IVA dos 1 e 2º trimestres de 2015 sem qualquer movimento, com o facto de não lhe ter sido «… entregue nenhuma documentação …», adianta que «… Até 31/12/2014 a loja de comércio situava-se em ... …» [até ao momento da venda da sociedade, encerrada em 2015], […] que após a venda da sociedade não teve «… nenhum contacto com o novo proprietário …»  […]

EM SÍNTESE

Em conformidade com os elementos recolhidos e sem prejuízo da matéria desenvolvida nos Pontos III-1.1-A) e III-1.1-B) deste Relatório, conclui-se que a A..., LDA, participou num intrincado esquema de solicitação e de utilização de faturas com origem na D..., Unipessoal, Ldª e na D..., Unipessoal, Ldª, nas quais foram mencionadas operações sem qualquer correspondência com efetivas transações comerciais efetuadas com as sociedades emitentes, existindo fortes indícios da constituição/manutenção das referidas sociedades com o único propósito de servirem de veículo para a emissão de «faturação falsa» utilizada pela A..., LDA e por outros operadores económicos, salientando-se que:

             Contrariando o disposto no artigo 3º do Dec.-Lei Nº 198/2012, de 24 de agosto, com as alterações introduzidas pela Lei Nº 66-B/2012, de 31 de dezembro, nenhuma das sociedades emitentes comunicou à plataforma «e-fatura», as faturas identificadas nos Pontos III-1.1-A) e III-1.1-B) deste Relatório, utilizadas pela A..., LDA e pelos demais utilizadores conhecidos;

             As sociedades emitentes não deram cumprimento às suas obrigações declarativas de natureza tributária e, como tal, não reconheceram com rendimentos ou ganhos as operações mencionadas nas faturas utilizadas pela A..., LDA, nem apuraram ou entregaram a prestação tributária (IVA) que nelas foi liquidada;

             A D..., Unipessoal, Ldª e a D..., Unipessoal, Ldª, são sociedades sem qualquer estrutura empresarial, nomeadamente por inexistência ou insuficiência de recursos produtivos básicos: - próprios [pessoal assalariado] ou adquiridos a terceiros [mercadorias e/ou matérias primas]; - ou alheios [recurso a subcontratação] e, infraestruturas compatíveis, para o exercício de uma efetiva atividade produtiva ou comercial [inexistência de imóveis registados na matriz, inexistência de contratos de arrendamento, inexistência de viaturas comerciais no registo de propriedade];

             No âmbito das ações inspetivas levadas a efeito às sociedades emitentes, pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças do Porto, apesar de notificadas para o efeito, nenhuma delas exibiu a contabilidade, não foi possível contactar os respetivos gerentes ou responsáveis, tendo-se constatado, em ambas as situações, a ausência de estrutura empresarial compatível com as operações mencionadas nas faturas conhecidas e no caso da D..., Unipessoal, Ldª, a inexistência física do local da sede/domicílio fiscal;

             Já no âmbito do procedimento inspetivo à A..., LDA, constatou-se que a utilização das faturas com origem nos emitentes identificados nos Pontos III-1.1-A) e III-1.1-B) deste Relatório, num dos casos, se concentra nos últimos três meses do ano e noutro nos últimos dias do ano de 2015, sendo certo que não foram encontrados indícios de qualquer acréscimo súbito e anormal do nível de atividade da empresa naquele período [faturação emitida pela A..., LDA: - primeiros nove meses do ano = 62%; - últimos três meses do ano = 38%];

             O consumo de energia elétrica da A..., LDA, um dos indicadores do nível da atividade transformadora da empresa, denota fornecimentos de 14 929 kw e 13 580 kw, respetivamente nos anos de 2015 e de 2016, os quais indiciam um nível de atividade sem oscilações suscetíveis de justificar a variação dos valores declarados para o custo das mercadorias vendidas/matérias consumidas naqueles dois exercícios, respetivamente € 1 298 792,32 e € 369 502,46. Idêntica conclusão se pode retirar do comportamento dos restantes inputs diretos: - Gastos com o Pessoal e Subcontratos;

             Por outro lado, consultada a base de dados do Sistema de Informática Tributária, opção Rácios de IRC/Rácios por Unidade Orgânica, verifica-se que o indicador R08-VVENDAS [que compara a variação do volume de negócios do ano «n» relativamente ao ano «n-1»], para as 4 empresas do distrito do Porto, com o CAE principal 30111-Construção de embarcações metálicas e estruturas flutuantes, exceto de recreio, nas quais se inclui a A..., LDA, quanto ao ano de 2015, aponta para uma variação média do volume de negócios de -7,21%, por conseguinte não foram detetados indícios concretos de uma procura anormal neste setor de atividade, que por sua vez possa justificar um consumo excecional de matérias primas por parte da A..., LDA;

             Tendo-se detetado especial concentração de faturas com datas de 28 e de 31 de dezembro de 2015, […] e, operações que carecem de meios de transporte adequados [viaturas pesadas de mercadorias], […] solicitou-se à B..., SA, NIF […] [entidade que controla as entradas e saídas da infraestrutura produtiva utilizada pela A..., LDA e por outras empresas que desenvolvem atividade no local], que nos identificasse pelas matrículas nacionais as viaturas que deram entrada naquelas datas com destino à A..., LDA. […] O teste efetuado, ainda que a título meramente exemplificativo, comprova que nos dias 28 e 31 de dezembro de 2015, não deram entrada no referido local quaisquer viaturas pesadas de mercadorias ou outras, associadas a eventuais descargas de bem relacionados com a as Faturas Nºs 163, 165, 174, 175, 176 e 178 emitidas pela C..., Unipessoal, Ldª e com as Faturas Recibo Nºs 2015/16, 2015/17, 2015/18, 2015/19, 2015/22 e 2015/23, emitidas pela D..., Unipessoal, Ldª, o que demonstra que os alegados bens não entraram fisicamente nas instalações da A..., LDA, o que se justifica, por não ter havido qualquer transação entre as sociedades emitentes e a utilizadora dos documentos;

             Sem prejuízo do que já foi referido acerca da forma como foi justificado o pagamento das faturas em análise, as alegadas operações comerciais, inexplicavelmente não deixaram qualquer outro vestígio documental além da própria fatura, nomeadamente requisições, documentos de transporte, ou outros e, a A..., LDA, instada a identificar as pessoas contactadas, indicou, num dos casos «o senhor J...», que nos remete para J..., que não é sócio, gerente ou colaborador da C..., Unipessoal, Ldª e noutro «o comercial/vendedor senhor M...», pessoa que não foi possível identificar, mas que se conclui não ser sócio, nem gerente ou colaborador da D..., Unipessoal, Ldª»;

             No caso das operações mencionadas nas faturas emitidas pela C..., Unipessoal, Ldª e pela D..., Unipessoal, Ldª em nome da A..., LDA, é notória a desconformidade entre o tipo de operações mencionadas nas faturas identificadas nos Pontos III-1.1-A) e III-1.1-B) deste Relatório e o tipo de operações que foram mencionadas nas demais faturas conhecidas e com a natureza das atividades principal ou secundária, pelas quais, ao tempo, as emitentes estavam registadas;

             No que respeita ao pagamento das faturas, o facto de os pagamentos estarem documentados através de cheques sacados sobre contas bancárias da A..., LDA, criando assim um circuito financeiro com a aparência de normalidade, não comprova a veracidade das transações, uma vez que esses cheques, não foram depositados em quaisquer contas abertas em nome dos emitentes das faturas [Artº 63º-C, nº 1 da LGT], mas sim levantados aos balcões de instituições financeiras ou das agências bancárias sacadas, desconhecendo-se o destino que foi dado aos fundos […].

Por conseguinte, com referência às faturas identificadas nos Pontos III-1.1-A) e III-1.1-B) deste Relatório, foram apurados fortes e contundentes indícios de que as transmissões de bens que estas visam documentar, não foram realizadas pelos sujeitos passivos identificados nos documentos como sendo os emitentes/fornecedores e, a terem ocorrido, terá existido a intervenção de pessoas ou entidades diversas das mencionadas nos documentos de suporte, que não foi possível identificar.

[…]”

K.            Em 20 de novembro de 2018, a Requerente foi notificada do Projeto de Conclusões do Relatório de Inspeção, para, querendo, exercer o direito de audição prévia, através do Ofício n.º 2018..., datado de 13 de novembro de 2018, da Direção de Finanças do Porto, tendo optado por não exercer esse direito, pelo que o projeto se convolou em definitivo, mantendo-se:

i)             As correções propostas à matéria coletável de IRC por utilização de faturas donde constam operações indiciariamente “fictícias” ou “simuladas”, ao abrigo do artigo 23.º do Código do IRC;

ii)            As correções ao IVA deduzido com suporte nas faturas emitidas pelos acima referidos fornecedores, com o mesmo fundamento fáctico, i.e., por respeitarem a operações indiciariamente “fictícias” ou “simuladas”, de acordo com o disposto no artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA – cf. RIT.

L.            Os atos de inspeção à Requerente foram dados por concluídos com a emissão das Notas de Diligência NDO2018... [OI2018..., em relação a 2015] e NDO2018... [OI2018..., referente a 2016] em 11 de dezembro de 2018. Na mesma data foi emitido o Relatório de Inspeção pelo Inspetor Tributário – cf. RIT.

M.          Sobre o Relatório de Inspeção Tributária recaiu despacho de concordância do Chefe de Divisão, por subdelegação do Diretor de Finanças Adjunto, datado de 13 de dezembro de 2018, notificado por via postal à Requerente em 20 de dezembro de 2018 – cf. ofício de notificação do RIT junto pela Requerente aos autos e constante do PA. 

N.           A Requerente foi notificada dos seguintes documentos relativos aos atos tributários de IRC, IVA e juros compensatórios e de mora – cf. documentos 1 a 27 juntos pela Requerente:

i)             Demonstração de Liquidação de IRC n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018, relativa ao período de 2015, com o valor a pagar de € 192.048,45;

ii)            Demonstração de Liquidação de Juros relativos a IRC do período de 2015 – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018 (Juros Compensatórios-Pagamentos por Conta € 317,00; Juros Compensatórios-Retardamento da Liquidação € 11.863,93 e Juros Moratórios € 309,97;

iii)           Demonstração de acerto de contas de IRC e juros de 2015 – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 127.860,42 e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019;

iv)           Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 8.902,57, reportado ao período de setembro de 2015, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018);

v)            Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 11.675,14, reportado ao período de outubro de 2015, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018);

vi)           Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 17.251,15, reportado ao período de novembro de 2015, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018 ..., de 26 de dezembro de 2018);

vii)          Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 78.055,67, reportado ao período de dezembro de 2015, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018);

viii)         Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 5.623,50, reportado ao período de janeiro de 2016, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018 ..., de 26 de dezembro de 2018);

ix)           Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 32.057,35, reportado ao período de fevereiro de 2016, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018);

x)            Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 9.369,57, reportado ao período de março de 2016, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018);  

xi)           Demonstração de acerto de contas de IVA – documento de compensação n.º 2018..., de 28 de dezembro de 2018, com o saldo apurado e a pagar de € 3.809,26, reportado ao período de abril de 2016, e data limite de pagamento de 6 de fevereiro de 2019 (com origem na liquidação n.º 2018..., de 26 de dezembro de 2018).

O.           Inconformada com tais atos de liquidação de IVA, IRC, juros compensatórios e de mora, a Requerente apresentou no CAAD, em 8 de maio de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral na origem do presente processo – cf. registo de entrada no SGP do CAAD.

 

2.            FACTOS NÃO PROVADOS

 

                A Requerente não logrou provar o alegado nos artigos 34.º e 63.º do pedido de pronúncia arbitral (“ppa”) relativamente à justificação das razões pelas quais não submeteu o Anexo P do ano 2015  e não reportou as faturas que lhe foram emitidas pela C... no Anexo P referente ao ano 2016.

 

                De igual modo, não resultou provado que os bens mencionados nas faturas da C... e da D... tenham sido consumidos, em parte, na atividade da Requerente e, noutra parte, ainda estejam a ser utilizados por esta, como alegado, nomeadamente, nos artigos 61.º, 84.º e 85.º do ppa.

 

                Com relevo para a decisão não existem outros factos que devam considerar-se não provados.

 

3.            MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

 

Os factos pertinentes para o julgamento da causa foram escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, em face das soluções plausíveis das questões de direito, nos termos da aplicação conjugada dos artigos 123.º, n.º 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (“CPPT”), 596.º, n.º 1 e 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (“CPC”), aplicáveis por remissão do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT, não tendo o Tribunal de se pronunciar sobre todas as alegações das Partes.

 

Não se deram como provadas nem não provadas alegações feitas pelas partes e apresentadas como factos, consistentes em afirmações estritamente conclusivas, insuscetíveis de prova e cuja validade terá de ser aferida em relação à concreta matéria de facto consolidada.

 

No que se refere aos factos provados, a convicção dos árbitros fundou-se na análise crítica da prova documental junta aos autos, que está referenciada em relação a cada facto julgado assente, considerando as posições assumidas pelas Partes.

 

                Cumpre notar que a exibição de fotografias de alguns itens, como calças e instrumentos de trabalho, não permitiu ao Tribunal concluir que se tratava dos mesmos bens que constam das faturas questionadas, nem o facto de se alegar que os mesmos foram reconhecidos na contabilidade da Requerente (em rubricas de inventários, de ativos tangíveis, ou de FSE’s ) permite a demonstração da sua efetiva existência ou de que tenham sido consumidos na atividade da empresa.

 

                Aliás, a contabilização das faturas constitui precisamente um requisito das operações simuladas ou fictícias. Tais operações são tratadas, do ponto de vista contabilístico e fiscal, como se fossem reais e efetivas, gerando registos contabilísticos e a subsequente dedução, neste caso, em IVA e IRC.

 

                Salienta-se ainda que a não submissão, pela Requerente, do Anexo P relativamente ao ano 2015 (com a consequente omissão declarativa dos fornecimentos realizados pela C... e pela D...) e, no caso do ano 2016, a omissão das faturas da C... no Anexo P  que a Requerente apresentou, assentou numa justificação que nada esclarece sobre as circunstâncias que presidiram à omissão desse dever legal. Este comportamento não declarativo e omissivo é típico dos sujeitos passivos que pretendem ocultar informação sobre as operações.

 

                Com efeito, sendo os Anexos O (mapa recapitulativo de clientes) e P (mapa recapitulativo de fornecedores) uma das principais fontes de informação a que a AT podia recorrer para realizar o seu cruzamento e detetar situações de incumprimento, o não preenchimento/entrega, simultaneamente por parte do fornecedor (do Anexo O) e do adquirente (do Anexo P, ou de parte da informação que aí devia constar), permitia (e permitiu) a ocultação da informação sobre as operações do sistema. O intuito de ocultação das operações constitui uma motivação tanto ou mais plausível para a não apresentação de declarações fiscais obrigatórias do que a alegada mera divergência em relação aos fornecedores.

                Divergência esta que a Requerente sempre teria oportunidade de justificar junto da AT se fosse suscitada alguma questão.

 

IV.          FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

 

1.            QUESTÕES DECIDENDAS

 

                São essencialmente dois os vícios que importa apreciar relativamente aos atos tributários que constituem o objeto desta ação.

 

                O primeiro respeita à caducidade do procedimento inspetivo e o pretendido efeito invalidante das liquidações.

 

                O segundo prende-se com o alegado erro nos pressupostos subjacente à qualificação, como fictícias ou simuladas, das operações na origem das liquidações adicionais em apreço. Importa, como questão central, dilucidar se, e em que condições, a Administração Tributária cumpriu o ónus que sobre si impendia de, por intermédio de indícios relevantes constatados na esfera da Requerente, evidenciar a divergência entre as aquisições declaradas e a realidade, ou que as entidades vendedoras não eram as que figuravam nas faturas tendo a Requerente conhecimento destes factos, ou seja, a inobservância, por parte desta, dos requisitos subjacentes à dedução fiscal, para efeitos de IVA e de IRC, relativamente às faturas que lhe foram emitidas pela C... e pela D... .

 

                E, ainda, em caso afirmativo, se a Requerente logrou infirmar, através da comprovação da materialidade das operações e dos pressupostos da dedução fiscal, os factos-índice em que assentou o entendimento da AT. 

 

2.            CADUCIDADE DO PROCEDIMENTO INSPETIVO RELATIVO AO ANO 2015

 

                A Requerente alega que a extensão, para além de seis meses, do procedimento inspetivo, implicou a respetiva caducidade e a consequente invalidade dos atos tributários controvertidos.

 

                Interessa sobre esta matéria compulsar o artigo 36.º do RCPITA que, sob a epígrafe “Início e prazo do procedimento de inspeção”, dispõe nos seus n.ºs 2 e 7 o seguinte:

 

                “2 - O procedimento de inspeção é contínuo e deve ser concluído no prazo máximo de seis meses a contar da notificação do seu início.

                […]

                7 - O decurso do prazo do procedimento de inspeção determina o fim dos atos externos de inspeção, não afetando, porém, o direito à liquidação dos tributos.”

 

                O facto que determina a data do início do procedimento é a notificação da Ordem de Serviço ao sujeito passivo, de acordo com o preceituado no artigo 51.º, n.ºs 1 a 3 do RCPITA. Por outro lado, o termo do procedimento ocorre com a notificação do Relatório de Inspeção Tributária conforme determina o artigo 62.º, n.º 2 do mesmo diploma.

 

                O RCPITA diferencia a conclusão do procedimento de inspeção da conclusão dos atos de inspeção, referindo-se a estes no artigo 61.º. Em relação aos atos de inspeção, os mesmos consideram-se concluídos na data de notificação da nota de diligência emitida pelo funcionário incumbido do procedimento.

 

                O estabelecimento de limites temporais ao procedimento inspetivo externo atende ao facto de que as inspeções externas, ao contrário das internas (efetuadas exclusivamente no seio da AT através da “análise formal e de coerência dos documentos”), comportam a perturbação e ingerência na esfera dos sujeitos passivos. O objetivo é o mesmo que subjaz ao princípio da irrepetibilidade das ações inspetivas externas, previsto no artigo 63.º, n.º 4 da LGT (respeitante ao mesmo sujeito passivo, imposto e período de tributação). Visa-se evitar que “que um mesmo contribuinte ou obrigado tributário seja sobrecarregado com os incómodos que as ações de fiscalização externas são suscetíveis de lhes provocar”, em consonância com o princípio da proporcionalidade acolhido de forma expressa pelos artigos 5.º e 7.º do RCPITA (cf. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES E JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 4ª edição, Encontro da Escrita, 2012, p. 271.

 

                No caso dos autos, o início da ação inspetiva referente ao ano 2015 verificou-se no dia 14 de junho de 2018, data em que foi assinada a correspondente Ordem de Serviço (ponto F da matéria de facto). Quanto ao seu termo, o procedimento concluiu-se com a notificação do Relatório de Inspeção Tributária, ocorrida em 20 de dezembro de 2018 (ponto M da matéria de facto), tendo os atos de inspeção terminado com a emissão da nota de diligência em 11 de dezembro de 2018, data a que também se reporta a elaboração do Relatório de Inspeção Tributária, sobre o qual recaiu despacho de concordância do Chefe de Divisão em 13 de dezembro desse ano.

 

                Constata-se, desta forma, que os atos de inspeção terminaram antes de expirado o prazo de seis meses a contar do início do procedimento. Já a notificação do Relatório, momento a que a lei reporta a cessação do procedimento inspetivo, verificou-se além deste prazo, excedendo a sua duração máxima.

 

                A consequência da ultrapassagem de prazo referente à notificação do Relatório de Inspeção Tributária [emitido, note-se, antes do decurso do prazo] não se afigura ser, contudo, a invalidade do(s) ato(s) de liquidação subsequente(s), contrariamente ao preconizado pela Requerente. Como acima se salientou, a lei prescreve um prazo máximo de duração da ação inspetiva, por forma a evitar o prolongamento excessivo de atos que interferem com o sujeito passivo. Daí que o efeito do decurso desse prazo seja, de acordo com a previsão expressa da norma em análise, o de determinar o fim dos atos externos de inspeção (artigo 36.º, n.º 7 do RCPITA), tendo o legislador ressalvado que o decurso do prazo não afeta, porém, o direito à liquidação dos tributos.

                No caso vertente, ficou assente e é consensual que os atos inspetivos terminaram antes de expirar o mencionado prazo de seis meses, pelo que o interesse tutelado pela norma foi salvaguardado, tendo a emissão das Notas de Diligência, do Relatório de Inspeção Tributária e, bem assim, o despacho de concordância que sobre o mesmo recaiu por parte do superior hierárquico, ocorrido em momento anterior ao seu termo [do prazo de seis meses]. Não se verifica, portanto, qualquer ilegalidade de ultrapassagem do prazo relativa aos atos de inspeção caracterizável como lesiva do sujeito passivo.

 

                Em síntese, o decurso do prazo determinou a cessação dos atos externos de inspeção, sobre o que nada há a apontar. Acresce que o mesmo [decurso] não afeta, por expressa estatuição legal, o direito à liquidação, pelo que não se pode considerar que os atos tributários subsequentes estão viciados, uma vez que, por um lado, foi efetivamente observada a cominação de cessação dos atos externos de inspeção (estes, sim, passíveis de afetar as garantias do contribuinte se praticados além do prazo legal) e, por outro lado, o legislador excluiu ex professo a produção de consequências jurídicas adversas sobre o direito à liquidação decorrentes do mero decurso do prazo do procedimento de inspeção .

               

                Nestes termos, conclui-se que improcede a suscitada invalidade das liquidações impugnadas por caducidade do procedimento inspetivo, uma vez que essa caducidade não produz qualquer efeito invalidade dos atos tributários, mantendo-se o direito à liquidação, nos moldes estabelecidos no artigo 36.º, n.º 7 do RCPITA.

 

3.            OPERAÇÕES FICTÍCIAS OU SIMULADAS. ÓNUS DA PROVA

 

                Constitui questão central a dirimir saber se a AT satisfez o ónus de demonstrar factos-índice suscetíveis de afastar a presunção de veracidade, estabelecida no artigo 75.º, n.º 1 da LGT [que consagra o princípio de que se presumem verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes], a benefício das declarações da Requerente, no que respeita à aquisição, em 2015 e 2016, à C... e à D..., de um acervo diversificado de bens afetos à sua atividade.

 

                Circunstância que, a confirmar-se e não sendo produzida contraprova por parte da Requerente, merece enquadramento no disposto no artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA, segundo o qual “[n]ão pode deduzir-se imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura”, e obvia ao preenchimento da condição de dedução fiscal do gasto para efeitos de IRC, por falta de demonstração da conexão com a obtenção ou a garantia de rendimentos sujeitos a este imposto, conforme reclama o artigo 23.º do respetivo Código.

 

                A ordem jurídico-fiscal parte, assim, do pressuposto de validade das declarações do contribuinte, que, no entanto, podem ser desconsideradas, não operando tal presunção, por ausência da sua premissa de suporte, quando a AT demonstre que se verificam erros, inexatidões ou outros indícios fundados de que a contabilidade ou as declarações fiscais não refletem a matéria tributável efetiva, descredibilizando ou destruindo o valor probatório dos documentos – cf. SALDANHA SANCHES, A Quantificação da Obrigação Tributária, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (173), CEF, Lisboa 1995, de páginas 340-342. Regime que se mostra consentâneo com a compreensão atualizada do princípio da legalidade que rege toda a atuação administrativa. 

 

                Deste modo, à AT cabe demonstrar a verificação dos pressupostos legais que legitimaram a sua atuação.  Ao contribuinte cumpre, nesse caso, provar a veracidade das operações em causa. A este propósito, refere VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 2ª. edição, Almedina, página 269: “há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegitimidade do ato, quando se mostrem verificados estes pressupostos”.

                Relativamente a esta matéria, a lei basta-se com um juízo administrativo de adequação entre os factos e valorações em que a administração diz, formalmente, suportar a sua atuação e o resultado desse juízo no sentido de se lhe afigurar terem sido declarados custos que não se verificaram, e com a prova perante o Tribunal da pertinência desse juízo, ou seja, com a prova perante o Tribunal da existência dos elementos que tornam possível ter como adequada a consideração por si feita de que tais custos não ocorreram.

 

                Por outras palavras, basta à AT evidenciar a consistência daquele juízo, invocando factos que traduzam uma probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade. Para este efeito, pode recorrer à prova indireta, i.e., a “factos indiciantes, dos quais se procurará extrair, com o auxílio das regras de experiência comum, de ciência ou da técnica, uma ilação quanto aos factos indiciados. A conclusão ou prova não se obtém diretamente, mas indiretamente, através de um juízo de relacionação normal entre o indício e o tema de prova” – ALBERTO XAVIER, Conceito e Natureza do Ato Tributário, 1972, p. 154.

 

                Quando haja cessação da presunção de veracidade, cabe ao contribuinte o ónus de prova da existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito à dedução nos termos do artigo 19.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IVA e do artigo 23.º do Código do IRC.

 

                A AT também não necessita de fazer prova da existência de um acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratório, no intuito de enganar terceiros, conforme previsto no artigo 240.º do Código Civil) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende. 

 

                O entendimento exposto é o que corresponde à jurisprudência constante do Supremo Tribunal Administrativo, entre outros, dos acórdãos de 27 de fevereiro de 2019 (Pleno da Secção do CT), processo n.º 01424/05.2BEVIS; de 16 de novembro de 2016, processo n.º 600/15; de 19 de outubro de 2016, processo n.º 511/15 (Pleno da Secção do CT); de 16 de março de 2016, processo n.º 587/15 (Pleno da Secção do CT); de 17 de fevereiro de 2016, processo n.º 591/15 (Pleno da Secção do CT); de 24 de abril de 2002, processo n.º 102/02; de 17 de abril de 2002, processo n.º 26635.

 

                Neste âmbito, salienta o acórdão de 27 de fevereiro de 2019, proferido no processo n.º 01424/05.2BEVIS, que “[p]ara que a AT proceda à correção do lucro tributável por desconsideração dos custos suportados por faturas existentes na escrita do contribuinte e relativamente às quais considera não se terem efetivamente realizado as operações nelas consubstanciadas, não tem de fazer prova da existência de acordo simulatório (existência de divergência entre a declaração e a vontade negocial das partes por força de acordo entre o declarante e o declaratário, no intuito de enganar terceiros – cfr. art. 240.º do CC) para satisfazer o ónus de prova que sobre si impende.” Para este efeito, “[b]asta à AT provar a factualidade que a levou a não aceitar esses custos, factualidade essa que tem de ser suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, só então passando a competir ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (o de exercer o direito de deduzir os custos ao lucro tributável) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, o ónus de prova de que as operações se realizaram efetivamente e ocorrem os pressupostos de que depende o seu direito àquela dedução.”

 

                Quanto ao IVA, refere o mesmo acórdão:

 

                “como a jurisprudência do STA tem unanimemente afirmado, apesar de, atendendo ao princípio da legalidade administrativa, impender sobre a AT o ónus de provar a factualidade que a leve a desconsiderar fiscalmente (não aceitando a respetiva dedução) o montante do IVA incluído em faturas correspondentes a transações que considere não se terem realizado, basta para legitimar essa atuação da AT (ao abrigo do nº 3 do art. 19º do CIVA) a existência de indícios sérios de que as operações tituladas por tais faturas não são verdadeiras, cabendo depois ao contribuinte demonstrar que o são.

                E reiterando-se tal entendimento, é de concluir que cabe à AT «o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua atuação, como factos constitutivos de tal direito, em termos daquele princípio da legalidade, segundo a sua atual compreensão, entendido não como mero limite à atividade da administração mas como fundamento de toda a sua atividade. […]

                Na verdade, embora a regularidade formal da escrita constitua presunção da sua veracidade - estendida aos seus elementos de apoio (art. 75º da LGT) -, tal presunção cessa no caso da existência de indícios sérios de que as operações escrituradas se não realizaram. Daí que, como se disse, provando a AT a existência de indícios sérios e credíveis de que tais operações não são verdadeiras, cabe ao contribuinte o ónus da prova da veracidade das mesmas.”

 

                Sobre esta matéria escreveu-se ainda no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 24 de abril de 2002, processo n.º 0102/02:

 

                Cabe nesta previsão, claramente, o caso de a contabilidade, impecavelmente organizada, se avaliada do ponto de visto técnico-contabilístico, no entanto omitir operações efetuadas; e cabe o caso inverso - o de incluir operações não efetuadas. Este último é aquele que correntemente se vem chamando de “faturas falsas”, isto é, a contabilidade considera (e trata de forma contabilisticamente correta) documentos emitidos na forma legal, mas que não correspondem a qualquer realidade, porque as operações que era suposto refletirem, na verdade, não tiveram lugar.

                E, aqui, a lei não exige senão “indícios fundados”, ou seja, não impõe à Administração a “prova provada” de que por detrás dos documentos não está a realidade que normalmente refletem e comprovam, basta-se com indícios fundados para fazer cessar a presunção a favor do contribuinte. E a este, desprovido do escudo protetor da presunção, não resta senão demonstrar a veracidade dos seus elementos contabilísticos, e respetivos suportes, destarte posta em crise, face àqueles “fundados indícios”. […]

                Porém, no caso vertente, a Administração Fiscal não atuou baseada na existência de qualquer facto tributário, nomeadamente, liquidando o correspondente imposto. Antes, obstou ao exercício, por parte da recorrente, do seu direito à dedução do IVA constante das faturas em causa, baseada no entendimento de que, face aos indícios recolhidos, não se teriam, realmente, realizado as operações comerciais que tais faturas, supostamente, titulavam.

                Como assim, o caso, aqui, é diverso, também para os efeitos de saber a quem cabe provar a ocorrência dos factos em que assenta o direito à dedução: é a recorrente quem se arroga um direito que pretende exercer - o direito à dedução do IVA -, que não é reconhecido pela Administração Fiscal.

                Destarte, não é a Administração que afirma um facto positivo com consequências tributárias - é o contribuinte que invoca o seu direito à dedução do IVA pago a montante. Por isso, é ele quem deve provar a verificação dos pressupostos em que assenta tal direito.”

 

                No caso concreto, perante a análise conjugada dos indícios coligidos pela AT, impõe-se concluir que os mesmos permitem suportar e contextualizar o afastamento do valor probatório das declarações da Requerente. Trata-se de indícios sérios e objetivos, reveladores de uma probabilidade elevada de as faturas desconsideradas não titularem operações reais. Não tem razão a Requerente quando afirma que apenas foram recolhidos factos imputados às empresas emitentes das faturas e que a AT se alheou da realidade ao extrapolar esses factos reconduzindo à Requerente o que de errado se passava com os seus fornecedores. Não foi (apenas) porque aqueles fornecedores não tinham estrutura ou capacidade para realizar as vendas (que não tinham) que a AT concluiu, da forma simplista que a Requerente expõe, que não lhe comprou a mercadoria. A AT não se bastou com a recolha de indícios de falsidade por parte dos emitentes das faturas.

 

                Sem prejuízo de existir um quadro fáctico cujo ponto de partida assentou nos indícios obtidos junto dos fornecedores, a realização subsequente do procedimento inspetivo pela AT à Requerente logrou alcançar a compilação de múltiplos elementos adicionais pertinentes à esfera da Requerente que, globalmente considerados, militam no sentido de que os fornecimentos titulados pelas faturas emitidas da C... e da D...  não são reais. Destacam-se, para este efeito os seguintes factos:

a)            Apesar de estarmos perante fornecimentos de bens que ascendem a cerca de € 750.000,00, IVA excluído, e que em parte teriam de ser transportados por veículos de grande dimensão (pesados de mercadorias), a Requerente não dispõe de quaisquer documentos, designadamente de transporte, ou quaisquer outros (v.g., orçamentos ou requisições), para além das faturas.

Isto quando, de acordo com o regime de bens em circulação, objeto de transações entre sujeitos passivos de IVA, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 147/2003, de 11 de julho, com as alterações subsequentes, um dos exemplares do documento de transporte (o que acompanha os bens) se destina obrigatoriamente ao adquirente dos mesmos [a Requerente], conforme disposto no artigo 6.º, n.º 5, alínea a) deste regime. Documento de transporte que deve ser mantido em arquivo, até ao final do segundo ano seguinte ao da emissão (artigo 6.º, n.º 6) [ou seja, quanto às faturas de 2016, até ao final de 2018, abrangendo todo o período em que decorreu o procedimento inspetivo], quando não devesse sê-lo pelo período mais longo, de dez anos civis, nos termos do disposto no artigo 52.º do Código do IVA.

A alegação de que os bens se destinaram à Requerente na qualidade de consumidor final é incompreensível e sublinha (reforçando) o caráter irregular de todas estas “transações”, pois os consumidores finais são entidades que não desenvolvem atividades económicas, situando-se no extremo final da cadeia produtiva.  A Requerente ao deduzir o IVA dos bens adquiridos para a atividade e ao considerar os gastos inerentes como fiscalmente dedutíveis para efeitos de IRC, estava de forma inequívoca a assumir a qualidade de operador económico, situado num estádio intermédio da cadeia produtiva, sendo contraproducente a invocação da qualidade de consumidor final, pois esta, para além de não corresponder à matéria de facto alegada pela Requerente (que declara que destinou os bens à atividade, sendo o consumo de bens na atividade um consumo intermédio e não um consumo final), se correspondesse à realidade implicaria que esta não poderia deduzir o IVA (o IVA só é dedutível por sujeitos passivos agindo como tal, ou seja, no exercício de uma atividade económica, nos termos do artigo 2.º e 20.º do Código deste imposto), nem considerar os gastos incorridos como conexos com a obtenção de proveitos derivados de uma atividade sendo, portanto indedutíveis para efeitos de IRC. Afigura-se plausível que este argumento (paradoxal, pois a levar-se a sério implicaria, per se, a admissão da indedutibilidade, em IVA e IRC das operações) tenha sido empregue com a finalidade de fornecer uma explicação para a inexistência/não exibição dos documentos de transporte que deviam encontrar-se nos arquivos da Requerente;

b)           Não há registo de entrada e saída de veículos de mercadorias nos dias em que alegadamente se efetuaram entregas relevantes dos bens faturados no local onde se situa a infraestrutura produtiva da Requerente e em que esta desenvolve a sua atividade. Este controlo, feito por uma entidade terceira, a B..., que explora as instalações, permitiu constatar-se que nas mencionadas datas não ocorreu qualquer o transporte em viaturas pesadas de mercadorias com destino à Requerente;

c)            Tendo sido negociados e contratados fornecimentos de centenas de milhares de euros com os dois fornecedores identificados, sendo que num dos casos (D...) a Requerente afirma que manteve um relacionamento comercial com a entidade que perdurou três anos, não foi facultado à AT um contacto telefónico dos interlocutores que a Requerente conhecia como faces visíveis dos referidos fornecedores, cujos nomes não têm correspondência com o dos membros dos órgãos sociais (gerentes), dos sócios ou de colaboradores desses fornecedores;

d)           A Requerente, em relação ao ano de 2015, não entregou o anexo P, pelo que não reportou de forma individualizada e prontamente detetável pela AT os fornecimentos alegadamente realizados pela C... e pela D...;

e)           Com referência ao ano 2016, a Requerente apresentou o anexo P sem reportar os fornecimentos da C... . Neste ano, a Requerente, tendo cumprido formalmente a obrigação de entrega do referido anexo, omitiu seletivamente as operações do fornecedor em causa, de novo, dificultando o acesso da AT a informação relevante;

f)            Em relação a algumas aquisições o volume de bens adquiridos é flagrantemente desproporcional à dimensão da Requerente. A título de exemplo, considerando que tinha 14 colaboradores, comprou 500 pares de calças (uma média de 36 pares de calças por cada colaborador), 1000 polos (uma média de 71 polos por colaborador); 585 botas de trabalho (uma média de 42 botas por colaborador), entre outros ;  

g)            Verifica-se a concentração da emissão das faturas nos últimos dias do ano 2015 e nos 3 últimos meses de 2016, desacompanhada de variações significativas que mostrem acréscimo súbito e anormal da atividade da Requerente.

 

                Na situação sub iudice, a factualidade (indiciária) demonstrada pela AT é circunstanciada e suscetível de abalar a presunção de veracidade das operações constantes da escrita do contribuinte e dos respetivos documentos de suporte, relativamente aos fornecimentos de bens que constam das faturas emitidas à Requerente pela C... e pela D... nos anos 2015 e 2016, ficando assim reunidos os pressupostos de aplicação do regime previsto no artigo 19.º, n.º 3 do Código do IVA e da desconsideração da dedução fiscal dos gastos, em IRC, por falta de enquadramento no artigo 23.º do Código do IRC.

 

                Pelo que competia ao contribuinte o ónus de prova do direito de que se arroga (de exercer a dedução do IVA e de considerar como fiscalmente dedutíveis, para efeitos de IRC, os inerentes gastos) e que não é reconhecido pela AT, ou seja, a demonstração de que as operações se realizaram efetivamente.

 

                Porém, os indícios coligidos pela AT não foram rebatidos e infirmados pela Requerente, que se limitou e concentrou a apontar insuficiências e falhas à argumentação da AT sem, contudo, apresentar quaisquer elementos que suportassem a efetividade das operações, não tendo junto documentos ou fornecido evidências tangíveis da existência e afetação à sua atividade dos bens faturados por aqueles fornecedores (como sejam guias de transporte, e-mails de encomendas ou contactos comerciais, indicação das empresas transportadoras ou da forma como os bens foram transportados, onde foram descarregados e em que dias, ou um simples contacto telefónico das pessoas [físicas] que agiram em nome e/ou por conta dos fornecedores em causa na contratação dos pretendidos fornecimentos).

 

                A Requerente coloca particular ênfase no facto de ter realizado os pagamentos por cheque, porém, para além de tal circunstância não constituir condição suficiente para comprovar a materialidade das operações, os cheques foram levantados pelos gerentes das entidades emitentes das faturas, ao balcão das entidades bancárias, momento a partir do qual se perdeu o rasto dos fundos, equivalendo a um pagamento em numerário, do ponto de vista do mapeamento da respetiva aplicação.

 

4.            A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

                SOBRE OS REQUISITOS FORMAIS DO DIREITO À DEDUÇÃO DO IVA

 

                A Requerente invoca o acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C-516/14, em 15 de setembro de 2016, Barlis, que apreciou uma questão relativa à limitação do direito à dedução quando sejam incumpridos certos requisitos formais, em concreto, menções obrigatórias nas faturas. Todavia, esta matéria não é relevante para a apreciação da situação em apreço, que respeita à indedutibilidade derivada do caráter fictício ou simulado das operações, ou seja, nos presentes autos discute-se a não verificação dos requisitos materiais do direito à dedução do IVA, por estarmos perante operações fictícias/simuladas, e não a falta de preenchimento de requisitos formais (sem prejuízo de a AT identificar que as faturas da C... não cumpriram alguns requisitos formais, nos termos da fundamentação do Relatório de Inspeção supra reproduzida).

 

                No tocante ao alegado cumprimento, por parte da Requerente, dos requisitos previstos no artigo 78.º, n.º 7 do Código do IVA, trata-se de argumento incompreensível, pois esta norma refere-se a matéria distinta, relativa à regularização do imposto em créditos considerados incobráveis.

 

                SOBRE A DEDUÇÃO DO IVA EM OPERAÇÕES FICTÍCIAS OU SIMULADAS

 

                O exercício do direito à dedução do IVA requer que as operações constantes das faturas se tenham efetivamente realizado nas condições nelas espelhadas, não sendo o IVA relativo a operações fictícias dedutível, de acordo com o disposto no artigo 168.º da Diretiva IVA (Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do IVA, publicada no JO L347, de 11 de dezembro de 2006, incluindo alterações subsequentes). Preconiza neste âmbito o acórdão do Tribunal de Justiça de 8 de maio de 2019, no processo C-712/17, EN.SA, o seguinte:

 

“23 Com efeito, resulta deste artigo [168.º] que o sujeito passivo pode deduzir o IVA que onera os bens e os serviços que utiliza para as necessidades das suas operações tributadas. Noutros termos, o direito a dedução do IVA que incide sobre a aquisição de bens ou serviços a montante pressupõe que as despesas efetuadas com a sua aquisição façam parte dos elementos constitutivos do preço das operações tributadas a jusante (v., neste sentido, Acórdão de 6 de setembro de 2012, Portugal Telecom, C-496/11, EU:C:2012:557, n.º 36).

24 Ora, quando uma operação de aquisição de um bem ou de um serviço é fictícia, não pode ter qualquer elemento de conexão com as operações do sujeito passivo tributadas a jusante. Consequentemente, quando a realização efetiva da entrega de bens ou da prestação de serviços não existe, nenhum direito de dedução se pode constituir (Acórdão de 27 de junho de 2018, SGI e Valériane, C-459/17 e C-460/17, EU:C:2018:501, n.º 36).

25 Por conseguinte, é inerente ao mecanismo do IVA que uma operação fictícia não possa dar direito a nenhuma dedução deste imposto.”

 

                A Requerente suporta-se no acórdão do Tribunal de Justiça proferido no processo C-642/11, de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans, para defender o seu direito à dedução do IVA. Contudo, a situação em análise nos presentes autos arbitrais difere substancialmente daquela , sendo enquadrável, dada a similitude de circunstâncias, nos casos C-712/17, de maio de 2019, EN.SA; C-459/17 , de 27 de junho de 2018, SGI e C-572/11, de 4 de julho de 2013, Menidzherski (e outros aí citados), em que a questão submetida é baseada na premissa de que os bens sobre os quais incide o IVA a montante não foram fornecidos, ou seja, de que as operações são fictícias como sucede in casu.

 

                O Tribunal de Justiça declara neste âmbito (processo C-459/17, SGI, com acórdão de 27 de junho de 2018, ponto 45) que: “os Acórdãos de 31 de janeiro de 2013, Stroy trans (C-642/11, EU:C:2013:54), e de 31 de janeiro de 2013, LVK (C-643/11, EU:C:2013:55), foram proferidos em circunstâncias factuais substancialmente diferentes das dos processos principais. Com efeito, num contexto em que não tinha sido demonstrado que as entregas de bens em que se baseava o direito a dedução dos sujeitos passivos em questão não tinham efetivamente existido, esses dois acórdãos diziam respeito à questão de saber, por um lado, se a Administração Fiscal podia concluir pela inexistência de entregas tributáveis pela simples razão de os fornecedores não terem apresentado nenhum documento sobre a realização das entregas em causa e, por outro, se os sujeitos passivos destinatários dessas faturas podiam basear-se na inexistência de retificações por parte da Administração Fiscal respeitantes aos emitentes das faturas controvertidas para sustentarem que as operações em causa foram efetivamente realizadas.”

 

                Quando se parte do pressuposto (distinto) de que as operações são fictícias (o que cabe aos órgãos nacionais aferir, como assinalado no ponto 21 do acórdão proferido no processo C-572/11, de 4 de julho de 2013, Menidzherski), conclui o Tribunal de Justiça que “para recusar ao sujeito passivo destinatário de uma fatura o direito de deduzir o IVA mencionado nessa fatura, é suficiente que a Administração demonstre que as operações a que essa fatura diz respeito não foram efetivamente realizadas” (ponto 47, do processo C-459/17, SGI).

                Na verdade, a não dedução do IVA em operações simuladas ou fictícias constitui uma decorrência do princípio da neutralidade do IVA e não representa uma limitação ao mesmo.

 

                Os parâmetros interpretativos do Tribunal de Justiça constantes das decisões de reenvio prejudicial enunciadas, quanto à matéria essencial para a decisão, não suscitam dúvidas  e reafirmam a inexistência do direito à dedução do IVA relativamente a operações fictícias , cujos pressupostos (precisamente a determinação do caráter fictício dessas operações) cabe aos órgãos nacionais determinar. Nestes termos, não se verificam os vícios invalidantes de erro nos pressupostos, de facto e de direito, que a Requerente imputou aos atos tributários impugnados (de IVA e de IRC e inerentes juros), pelo que a ação deve improceder.

 

                A Requerente, arguiu, por fim, a violação dos princípios procedimentais previstos no artigo 55.º da LGT, sem, contudo, especificar que comportamento ou atuação da AT violou esses princípios e de que modo os mesmos foram desrespeitados. Tal alegação genérica e não substanciada é improcedente.

 

Por último, interessa notar que foram conhecidas e apreciadas as questões relevantes submetidas à apreciação deste Tribunal, não o tendo sido aquelas cuja decisão ficou prejudicada pela solução dada a outras, ou cuja apreciação seria inútil – cf. artigo 608.º do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

V.           DECISÃO

 

                De harmonia com o supra exposto, acordam os árbitros deste Tribunal Arbitral em julgar improcedente o pedido arbitral, com as legais consequências.

 

VI.          VALOR DO PROCESSO

 

Fixa-se o valor do processo em € 362.059,71, indicado pela Requerente e não contestado pela Requerida, correspondente ao valor das liquidações de IVA, de IRC e de juros compensatórios e de mora cuja anulação se pretende – cf. artigo 97.º-A, n.º 1, alínea a) do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alínea a) do RJAT e do artigo 3.º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (“RCPAT”).

 

VII.         CUSTAS

 

                Custas no montante de € 6.120,00, a cargo da Requerente, em razão do decaimento integral, em conformidade com a Tabela I anexa ao RCPAT, e com o disposto nos artigos 12.º, n.º 2 e 22.º, n.º 4 do RJAT, 4.º, n.º 5 do RCPAT e 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de maio de 2020

 

O Tribunal Arbitral Coletivo,

 

Alexandra Coelho Martins

José Ramos Alexandre

Nina Aguiar