Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 358/2019-T
Data da decisão: 2020-04-22  IRS  
Valor do pedido: € 216.321,67
Tema: IRS/2015 – Mais-valias, regime transitório do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro – Terreno para construção.
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Acórdão

I – RELATÓRIO

 

1.            No dia 25 de Maio de 2019, A..., viúvo, NIF... e domicílio fiscal na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, B..., casado, NIF ..., residente na Rua..., n.º..., ..., ...-... Porto, C..., casado, NIF..., residente na Rua ..., n.º..., ..., ...-... Porto, e D..., divorciada, NIF ..., residente na Rua ..., n.º..., ...-... Porto, apresentaram pedido de constituição de tribunal arbitral, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, com as alterações subsequentes (doravante, abreviadamente designado RJAT), visando a declaração de ilegalidade da liquidação n.º 2019..., de 15 de Fevereiro de 2019 relativa ao Imposto

 

sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) do ano de 2015 e também, por consequência, a anulação da liquidação de juros compensatórios com o n.º 2019..., de 20 de Fevereiro de 2019, no valor de € 216.321,67.

 

2.            Para fundamentar o seu pedido alegam os Requerentes, em síntese, que i) o imóvel em causa era, ao tempo da sua aquisição, um prédio rústico sem possibilidades de nele ser construída construção urbana, pelo que, os ganhos decorrentes da sua alienação não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código do Imposto de Mais-Valias aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46.373, de 9 de Junho de 1965, não sendo qualificado como terreno para construção na acepção daquele Código; ii) erro na identificação do sujeito passivo no acto de liquidação; iii) errónea qualificação e quantificação dos rendimentos: a possibilidade de ilisão da presunção prevista no artigo 44.º, n.º 2, do Código do IRS; iv) inconstitucionalidade dos artigos 44.º, 65.º, 66.º do Código do IRS, 139.º do Código do IRC e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) por violação do disposto nos artigos 20.º, 103.º, 266.º, n.º 2 e 268.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que ao sujeito passivo de IRS está postergada a possibilidade de, em sede de impugnação judicial a liquidação de IRS produzida com base em alterações promovidas oficiosamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), demonstrar qual a contraprestação efectivamente recebida pela venda de imóvel e, assim, ilidir a presunção de rendimento plasmada no artigo 44.º, no 2, do Código do IRS, mesmo quando não tenha iniciado até Janeiro do ano seguinte ao da transmissão do imóvel o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC; v) inconstitucionalidade dos artigos 44.º e 139.º do Código do IRC, por violação do disposto nos artigos 20.º, 103.º, 266.º, n.º 2 e 268.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que, em Janeiro do ano seguinte ao da transmissão de imóvel, mostra-se definitiva e irremediavelmente precludido o direito de sujeito passivo de IRS demonstrar qual o seu rendimento real sujeito a tributação e, assim, por via administrativa ou judicial, ilidir a presunção prevista no artigo 44.º, n.º 2, do Código do IRS e demonstrar o preço efectivamente recebido pela transmissão de imóvel.

 

3.            No dia 24 de Maio de 2019, o pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite e automaticamente notificado à AT.

 

4.            Os Requerentes não procederam à nomeação de árbitro, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou os signatários como árbitros do Tribunal Arbitral colectivo, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

 

5.            Em 16 de Julho de 2019, as partes foram notificadas dessas designações, não tendo manifestado vontade de recusar qualquer delas.

 

6.            Em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral colectivo foi constituído em 12 de Agosto de 2019.

 

7.            No dia 3 de Outubro de 2019, a Requerida, devidamente notificada para o efeito, apresentou a sua resposta defendendo-se por impugnação.

 

8.            No dia 10 de Janeiro de 2020, realizou-se a reunião a que alude o artigo 18.º do RJAT após o que foram inquiridas as testemunhas apresentadas pelos Requerentes.

 

9.            Tendo sido concedido prazo para a apresentação de alegações escritas, foram as mesmas apresentadas pelos Requerentes, pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando e desenvolvendo as respectivas posições jurídicas.

 

10.          Foi indicado que a decisão final seria notificada até ao termo do prazo previsto no artigo 21.º, n.º 1, do RJAT.

 

11.          Ulteriormente, e pelas razões referidas no respetivo despacho, foi prorrogado o prazo para a decisão (cfr. despacho de 13-4-2020).

 

 

Pressupostos processuais e saneamento do processo

 

12.          O Tribunal Arbitral é materialmente competente e encontra-se regularmente constituído, nos termos dos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), 5.º e 6.º, n.º 2, alínea a), do RJAT.

As partes têm personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão legalmente representadas, nos termos dos artigos 4.º e 10.º do RJAT e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.

O processo não enferma de nulidades.

Assim, não há qualquer obstáculo à apreciação da causa.

 

Tudo visto, cumpre proferir:

 

II. FUNDAMENTAÇÃO

 

A. MATÉRIA DE FACTO

A.1. Factos dados como provados

 

1-            O primeiro autor, A... foi casado com E..., sendo ambos tributados de forma conjunta no ano de 2015.

2-            E...faleceu a 3 de Junho de 2018, sendo seus herdeiros todos os Autores da presente acção nos termos da habilitação de herdeiros.

3-            Por escritura de partilha celebrada a 31 de Agosto de 1988, no ... Cartório Notarial do Porto, foi adjudicado à falecida E..., na qualidade de herdeira de F..., previamente falecido, o prédio rústico, sem possibilidades de construção, designado uma bouça denominada das antas, inscrito na matriz rústica sob parte do artigo ... da freguesia de... , do concelho do Porto e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ... no Livro B-26, aí identificado como verba 14 daquela escritura de partilha.

4-            No ano de 1995, posteriormente à entrada em vigor do Código de IRS [1-1-1989], o referido prédio rústico passou a ter a natureza de “prédio urbano”, estando actualmente descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, freguesia de ... sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo urbano n.º ... (cfr. Documento n.º 5, junto com o PPA).

5-            Entre 2004 e 2006, houve diversas tentativas de venda do referido prédio urbano pelo preço de € 1.000.000,00.

6-            A 6 de Julho de 2015, perante a notária Dra. G..., os referidos E... e marido A... a declararam vender à sociedade H..., Lda., (NIPC ...), pelo preço de € 460.000,00, que declarou comprar, o referido prédio, então já urbano, “constituído por parcela de terreno para construção”  (cfr. escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca – Documento n.º 8, junto com o PPA)

7-            A venda do mencionado prédio foi proposta e anunciada pelo preço de € 500.000,00, atendendo ao estudo de mercado realizado, à área de construção potencial na zona (cerca de € 10.000,00 a € 12.000,00 por fracção), existindo um posto de transformação/central de electricidade junto do mesmo.

8-            Foi de € 460.000,00 a única contrapartida recebida em resultado da venda e inerente transmissão onerosa do direito de propriedade do prédio identificado supra, em 6 e 7.

9-            Ao tempo da celebração desse contrato de compra e venda, o valor patrimonial tributário do referido prédio era de € 860.120,00.

10-         Em Fevereiro de 2019 foi o primeiro autor notificado, por carta com registo simples, da liquidação adicional (oficiosa) de IRS e subsequentemente da liquidação de juros compensatórios pelo suposto retardamento da liquidação.

11-         Antes do termo do prazo para pagamento voluntário do imposto, que ocorreu a 1 de Abril de 2019, os Requerentes pagaram à AT o valor de € 205.731,15.

 

A.2. Factos dados como não provados

 

 

 

Com relevo para a decisão, não resulta provado que o prédio em questão ao tempo da sua aquisição pelos antecessores dos requerentes fosse um prédio com possibilidades construtivas.

 

A.3. Fundamentação da matéria de facto provada e não provada

Relativamente à matéria de facto, o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da não provada (cfr. artigo123.º, n.º 2, do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).

Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito (cfr. anterior artigo 511.º, n.º 1, do CPC, correspondente ao actual artigo 596.º, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).

Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, a prova documental citada e demais documentos juntos aos autos pelas partes, incluindo o documento junto aquando da inquirição de testemunhas em 10-1-2020 e o PA (processo administrativo instrutor) junto pela AT, a prova testemunhal produzida, designadamente, o depoimento do mediador que interveio na compra e venda (a testemunha I...),  descrita em 6 dos factos provados, tudo ponderado e analisado criticamente,  consideraram-se assentes, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.

 

Em especial, os factos constantes de 1 a 5 e 9 a 11 dos factos provados,  foram alegados sustentadamente pelos Requerentes, nunca tendo sido colocados em causa pela AT, além de estarem suficientemente documentados  (cfr. Documentos n.º 1 a n.º 8 e n.º 13 e n.º 14 juntos com o requerimento inicial destes autos, bem como os Documentos n.º 1 a n.º 3 do requerimento apresentado nos autos a 27 de Outubro de 2019).

 

B. DO DIREITO

                               O quadro factual subjacente ao enquadramento jurídico que se fará infra, pode sintetizar-se, para o objecto do pedido, da seguinte forma:

(i)           Em 31 de agosto de 1988, por escritura de partilha, foi adjudicado a E..., um prédio rústico;

(ii)          Esse prédio, com a natureza “rústica” até então, em 1995 passou a ter a natureza “urbana”, sob a forma de “terreno para construção” ou, como foi exarado na escritura de compra e venda, “prédio urbano constituído por parcela de terreno para construção” ;

(iii)         Em 6 de julho de 2015, a sobredita adjudicatária, E... e seu marido, venderam aquele prédio urbano (terreno para construção), pelo preço de € 460.000,00

(iv)         À data (6-7-2015), o VPT desse prédio era de € 860.120,00

(v)          A AT procedeu à liquidação oficiosa de IRS e juros compensatórios decorrente da divergência entre a base de liquidação inicial (€ 460.000,00) e a decorrente do valor tributário (€ 860.120,00)

(vi)         O valor desta liquidação oficiosa foi pago dentro do prazo de pagamento voluntário.

               

               

Conforme concordam ambas as partes as questões que se apresentam a resolver nos presentes autos são as seguintes:

a)            Não sujeição do ganho/mais-valia a tributação de IRS;

b)           Vício procedimental: erro na identificação do sujeito passivo no acto de liquidação;

c)            Vício procedimental: errónea qualificação e quantificação dos rendimentos: a possibilidade de ilisão da presunção prevista no artigo 44.º, n.º 2, do Código do IRS;

d)           Inconstitucionalidade dos artigos 44.º, 65.º, 66.º do Código do IRS, 139.º do Código do IRC e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro e 99.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) por violação do disposto nos artigos 20.º, 103.º, 266.º, n.º 2 e 268.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que ao sujeito passivo de IRS está postergada a possibilidade de, em sede de impugnação judicial a liquidação de IRS produzida com base em alterações promovidas oficiosamente pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), demonstrar qual a contraprestação efectivamente recebida pela venda de imóvel e, assim, ilidir a presunção de rendimento plasmada no artigo 44.º, no 2, do Código do IRS, mesmo quando não tenha iniciado até Janeiro do ano seguinte ao da transmissão do imóvel o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC;

e)           Inconstitucionalidade dos artigos 44.º e 139.º do Código do IRC, por violação do disposto nos artigos 20.º, 103.º, 266.º, n.º 2 e 268.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretados no sentido de que, em Janeiro do ano seguinte ao da transmissão de imóvel, mostra-se definitiva e irremediavelmente precludido o direito de sujeito passivo de IRS demonstrar qual o seu rendimento real sujeito a tributação e, assim, por via administrativa ou judicial, ilidir a presunção prevista no artigo 44.º, n.º 2, do Código do IRS e demonstrar o preço efectivamente recebido pela transmissão de imóvel.

 

Atenta a natureza impugnatória do processo arbitral tributário [cfr. artigo 2.º do RJAT e 99.º e 124.º do CPPT, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea a), do RJAT], deve o Tribunal Arbitral socorrer-se daquele artigo 124.º, do CPPT, com base na idêntica natureza dos meios impugnatórios.

 

Para definir quais os vícios do acto tributário de que se conhece prioritariamente na decisão, deve “(…) o tribunal atender à qualificação dos vícios feita pelo impugnante, isto é, dar prioridade à apreciação dos vícios que este qualifica como geradores de inexistência ou nulidade, pelo menos para apreciar se deve ou não ser lhes dada esta qualificação” - cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Vislis, Lisboa, vol. II, 2011, 6.ª edição, p. 327.

 

Nesta mesma linha e tal como referem, no Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos (Almedina, 2005), Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, em anotação, na pg 483,  ao artigo 95.º desse diploma, [aplicável por remissão do artigo 2.º alínea c) do CPPT e do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT] “(...) se o tribunal julgou procedente o pedido principal, fica precludido o poder jurisdicional quanto a um pedido subsidiário ou formulado em alternativa; e, nos mesmos termos, se a pronúncia adoptada quanto a uma questão consome ou deixa prejudicados outros aspectos da causa que com ela se correlacionem (...)” (sublinhado do Tribunal na medida em que será esta última a situação sub juditio).

 

Ou seja: face à interpretação material preconizada ficará prejudicado o conhecimento e a apreciação dos demais vícios imputados ao acto de liquidação adicional se, como será, adiante-se, o caso dos autos, se verifica a ilegalidade da liquidação adicional por não sujeição do ato a tributação em sede de IRS.

 

Assim é que a procedência da questão suscitada pelos Requerentes de não sujeição do ganho/mais-valia a tributação de IRS [alínea a), do elenco de questões decidendas mencionado supra], prejudicará a apreciação das demais questões suscitadas e mencionadas sob as alíneas b) a e).

 

Vejamos então os fundamentos para a conclusão e decisão de procedência da não sujeição do acto à liquidação adicional objeto da presente impugnação ou, dito doutro modo, que as normas de incidência não abrangem a situação objeto dos autos.

 

O presente litígio impõe a apreciação concatenada do artigo 1.º do CIMV (Código do Imposto de Mais-Valias), do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de Novembro e, ainda, do artigo 10.º do Código do IRS.

 

Nos termos consignados no artigo 1.º do CIMV «o imposto de mais-valias incide sobre os ganhos realizados através dos actos que a seguir se enumeram:

 

§1.ª Transmissão onerosa de terreno para construção, qualquer que seja o título por que se opere, quando dela resultem ganhos não sujeitos aos encargos de mais-valia previstos no artigo 17.º da Lei n.º 2030, de 22 de Junho de 1948, ou no artigo 4» do Decreto-Lei n.º 41 616, de 10 de Maio de 1958, e que não tenham a natureza de rendimentos tributáveis em contribuição industrial».

 

Mais previa o § 2., do artigo 1.º, deste Código que eram “(...) havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização já aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.

 

Com o Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código do IRS, foi abolido o imposto de mais valias, passando as mais valias a ser tributadas em sede de IRS, na categoria G, tendo este Código determinado que serão tributadas todas as transmissões onerosas sobre imóveis (artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do Código do IRS) o que constitui um significativo alargamento do regime até então vigente.

 

Por aquele motivo, e tendo em vista obviar à aplicação retroactiva do Código de IRS, o artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de Novembro estabeleceu um «Regime transitório da categoria G» nos termos do qual, na redacção inicial, «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46373, de 9 de junho de 1965, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código».

 

Este preceito legal foi, posteriormente, alterado pelo Decreto-Lei n.º 141/92, de 17 de Julho, passando a dispor o seguinte «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 673, de 9 de Junho de 1965, bem como os derivados da alienação a título oneroso de prédios rústicos afectos ao exercício de uma actividade agrícola ou da afectação destes a uma actividade comercial ou industrial, exercida pelo respectivo proprietário, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código».

 

Ora, o cerne do problema que ora nos ocupa e preocupa prende-se, como sobredito, com a interpretação do citado artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de Novembro.

 

Esta matéria tem sido objecto de extenso labor jurisprudencial, tendo os Tribunais Superiores, em sentido que se crê constante e maioritário, defendido que «o que se pretendeu com a mudança de regime de tributação operada a partir de 1989 foi tributar em IRS, categoria G, todas as transmissões onerosas sobre imóveis; todavia, para evitar efeitos retroactivos, estabeleceu-se que para serem tributadas tais transmissões era necessário que os bens abrangidos fossem adquiridos e alienados dentro da vigência da nova lei, com excepção daqueles que já eram antes tributados por força do CIMV, ou seja, os terrenos para

 

construção, os quais passariam agora a ser tributados nos termos do Código do IRS» (vide, inter alia, acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo no processo n.º 01100/05, de 12-12-2006, in www.dgsi.pt).

 

 

Mais se tem argumentado que «(...) para saber se se verificam os pressupostos da tributação, releva a qualidade que o bem detinha no momento da entrada em vigor do Código do IRS, uma vez que, como se viu, no regime transitório estabelecido para a categoria G de IRS (regime previsto no n.° 1 do artigo 5.º do citado DL 442-A/88), se estabelece que os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm se houver efectuado depois da entrada em vigor deste Código.» (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo n.º 0969/09, de 27-01-2010, cujo entendimento se encontra igualmente vertido, no essencial,  nos acórdãos do STA, processo n.º 0529/11, de 12-01-2012, processo n.º 01072/12, de 30-01-2013, processo n.º 0584/15, de 8-7-2015, processo  n.ºs 01266/13, de 12-2-2015 e processo n.º 0969/09, 27-1-2010.

 

Como salienta, na Doutrina, PAULA ROSADO PEREIRA, in Estudos sobre IRS: Rendimentos de Capitais e Mais-Valias (Almedina, 2005, págs.

 

121/122): «O principal motivo justificativo da criação de um regime transitório para esta categoria de rendimentos consistiu no facto de as regras de incidência do Código do Imposto de Mais-Valias, então revogado, serem consideravelmente menos abrangentes do que as da categoria G do Código do IRS. Com efeito, o Código do Imposto de Mais-Valias não tributava grande parte das situações que, nos termos do Código do IRS, originam mais-valias tributáveis. Refira-se, a título de excepção, a transmissão onerosa de terrenos para construção, que já se encontrava prevista no Código do Imposto de Mais-Valias (sublinhado nosso).

 

 E, continua a sobredita autora “(...) em conformidade com o disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 442-A/88 [Regime transitório da categoria G)], os ganhos que, constituindo mais-valias tributáveis nos termos do artigo 10.º do Código do IRS, não eram, contudo, sujeitos ao Imposto de Mais-Valias, só ficam sujeitos a IRS se a aquisição dos bens ou direitos de cuja transmissão provêm tiver ocorrido já depois da entrada em vigor do Código do IRS (1 de Janeiro de 1989)».).

 

No que concerne à noção de terreno para construção, chamamos à colação o entendimento vertido no acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 00224/07.OBEPNF de 15-12-2011 (integralmente disponível para consulta in www.dgsi.pt).

 

Com efeito, neste aresto pode ler-se, com interesse e particular acuidade, o seguinte: «Para saber qual o conceito-tipo de terreno para construção que releva para efeitos de IRS importa primeiro explicar porque é que esse conceito é, no caso, relevante para efeitos deste imposto. Na verdade, e em princípio, a tributação das mais-valias (dos «ganhos trazidos pelo vento»; das «valorizações dos bens que não foram produzidos, comprados ou conservados para vender»; dos «aumentos inesperados, imprevistos, do valor dos bens» - definições do Prof. José Joaquim Teixeira Ribeiro, in «A Reforma Fiscal», pág. 127, e «Lições de Finanças Públicas», 5.ª edição, pág. 303) obtidas com a alienação de terrenos não depende, no Código do IRS, da sua afectação à construção. O artigo 10.º, n.º 1, alínea a), do Código do IRS, reconhece como mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo enquadráveis noutra categoria de rendimentos, resultem da alienação onerosa de direitos reais sobre imóveis, quaisquer que eles sejam.

 

O que resulta do facto de o legislador do Código do IRS ter aderido a uma noção alargada de rendimento (rendimento-acréscimo), vocacionada para reconhecer e relevar para a tributação todos os acréscimos patrimoniais líquidos, quaisquer que sejam a suas proveniências.

 

A importância do conceito de terreno para construção para a resolução do caso deriva da interferência de uma norma de incidência negativa,

 

localizada no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 442-A /88, de 30.11, segundo o qual «os ganhos que não eram sujeitos ao imposto de mais-valias, criado pelo CIMV aprovado pelo Decreto-Lei n.º 46 373, de 9 de Junho de 1965», «só ficam sujeitos ao IRS se a aquisição dos bens ou direitos a que respeitam tiver sido efectuada depois da entrada em vigor deste Código».

 

Dele resulta — para o que aqui releva — que quanto aos bens adquiridos antes da entrada em vigor do Código do IRS os ganhos obtidos com a respectiva alienação só são reconhecidos como mais-valias tributáveis se o CIMV os reconhecesse também.

 

In casu, o citado terreno veio a integrar a esfera patrimonial dos antecessores dos demandantes antes da entrada em vigor do Código do IRS; daí que, por força da referida norma de incidência negativa, os ganhos obtidos com a sua venda só são tributáveis em mais-valias pelo CIRS se também o fossem pelo CIMV.

 

Sucede que o CIMV não tributava, na sua realização e como se viu, todos os «ganhos de capital», mas apenas os ganhos decorrentes dos aumentos de valor de quatro tipos de bens (que não foram adquiridos para revenda): (1) os terrenos para construção; (2) os elementos do activo imobilizado das empresas ou bens ou valores por elas mantidos como reserva ou fruição; (3) o direito de arrendamento dos escritórios e consultórios; (4) as quotas em sociedades ou acções.

 

Entendeu-se, de acordo com o respectivo preâmbulo, que seriam estes «os bens cujas mais-valias se verificam com maior frequência, são de maior vulto ou não oferecem dificuldades sérias de determinação»

E, porque não estava em causa a alienação de elementos do activo imobilizado de empresas, direitos de arrendamento, escritórios ou consultórios, quotas em sociedades ou acções, a tributação dos ganhos com a venda o prédio em causa estaria dependente, à partida, de se tratar de um terreno para construção.

 

Todavia, o CIMV tinha o seu próprio conceito de terreno para construção: de acordo com o § 2º, do artigo 1.º do CIMV, seriam havidos como terrenos para construção os situados em zonas urbanizadas ou compreendidos em planos de urbanização aprovados e os assim declarados no título aquisitivo.

 

Ou seja, o CIMV oferecia um triplo critério de classificação de um terreno como um prédio urbano (visto que já então os prédios seriam classificados como rústicos ou urbanos de acordo com a sua afectação ou destino (cfr. artigo 5.º do Código da Contribuição Predial ao tempo em vigor): ter potencialidades construtivas (critério da aptidão estrutural ou objectiva): ter sido afectado à construção por acto da administração (critério da afectação administrativa): ou ser destinado a esse fim pelos próprios contraentes (critério da destinação particular).

 

Sendo que, para o efeito, o terreno teria potencialidades construtivas

 

se estivesse situado em aglomerado urbano, considerando-se como tal (de acordo com o artigo 62.º do Decreto-Lei n.º 794/76, de 5.11) os que, situados a área envolvente de um núcleo de edificações autorizadas, confinassem com vias públicas pavimentadas e fossem servidos de rede de abastecimento domiciliário de electricidade, água e drenagem de esgotos» [destacado nosso].

 

E o que acontece é que as potencialidades construtivas do terreno em causa só foram reconhecidas (é isso que ficou provado) após a entrada em vigor do Código do IRS, mais exactamente em 1995,  ficando, por esse motivo, arredada de tributação nos termos do artigo 10.º, do Código do IRS, a transmissão onerosa (por compra e venda) do sobredito imóvel em 2015, quer considerando como base dessa tributação o preço pago quer o valor tributário (superior) do dito prédio à data.

 

Ou seja: o prédio em causa foi originariamente adquirido como rústico antes de 1-1-1989 e com essa natureza intacta se mantinha posteriormente a essa data, só se operando a mudança para prédio urbano (terreno para construção), posteriormente, em 1995 (cfr. 4, do elenco dos factos provados).

 

Assinale-se que, nos termos consignados no artigo 74.º, n.º 1 da LGT, competia à Autoridade Tributária e Aduaneira o ónus da prova dos pressupostos legais da sua actuação, in casu, a alegação e demonstração de que o prédio objecto do acto tributário em causa tinha aptidão construtiva à data da entrada em vigor do Código do IRS, em 1-1-1989, demonstrando, designadamente, que tal terreno estivesse integrado, aquando da aquisição originária, em zona urbanizada ou compreendida em plano de urbanização.

Mas tal manifestamente não aconteceu.

 

Deste modo e porque não se afiguram existir argumentos que levem a arredar a interpretação e aplicação que tem vindo a ser feita do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de Novembro, pelos Tribunais Superiores, acompanhando-se na íntegra e no essencial o entendimento expresso nos acórdãos acima melhor indicados, o pedido de pronúncia arbitral terá de proceder inteiramente  sem necessidade de mais amplas considerações.

 

Em conclusão: os actos de liquidação sindicados (IRS e juros compensatórios) são ilegais, padecendo do vício de violação de lei, por estar excluída a incidência do imposto por força do artigo 5.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422-A/88, de 30 de Novembro, e, em consequência, irá determinar-se a final a sua anulação, conforme peticionado.

 

Pedido de juros indemnizatórios

Os Requerentes pedem o reembolso do imposto que foi indevidamente liquidado e pago, acrescido de juros indemnizatórios, à taxa legal, nos termos dos artigos 43.º da LGT e 61.º do CPPT.

 

De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea

 

das sentenças dos tribunais judiciais tributários, “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”, o que está em sintonia com o preceituado no arigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que “a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão”.

 

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão “declaração de ilegalidade” para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que em processo de impugnação judicial são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que “o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária”.

 

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Autoridade Tributária e Aduaneira no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT (“são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido” e do artigo 61.º, n.º 4 do CPPT («se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea»).

 

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT ao dizer que “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário” deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

 

No caso em apreço, é manifesto que, na sequência da ilegalidade do acto de liquidação, resulta haver lugar a reembolso do imposto e juros compensatórios pagos, por força dos referidos artigos. 24.º, n.º 1, alínea b), do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado”.

 

No que concerne aos juros indemnizatórios, é também claro que a ilegalidade do acto é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, que, por sua iniciativa praticou sem suporte legal.

 

Está-se perante um vício de violação de lei substantiva, consubstanciado em erro nos pressupostos de direito, imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Consequentemente, os Requerentes têm direito a juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e do artigo 61.º do CPPT, calculados sobre a quantia que pagaram indevidamente.

 

Assim, deverá a Autoridade Tributária e Aduaneira dar execução ao presente acórdão, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do RJAT, determinando o montante a restituir aos Requerentes e calcular os respectivos juros indemnizatórios, à taxa legal supletiva das dívidas cíveis, nos termos dos artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.ºs 1 e 5, da LGT,

 

 

61.º, do CPPT, 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem).

Os juros indemnizatórios são devidos desde a data do pagamento até à do processamento da nota de crédito, em que são incluídos (art. 61.º, n.º 5, do CPPT).

 

III – DECISÃO

 

                De harmonia com o exposto, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

            julgar procedentes os pedidos de declaração da ilegalidade da liquidação adicional de IRS n.º 2019..., de 15-12-2019 e da liquidação de juros compensatórios n.º 2019..., de 20-2-2019, relativas ao ano de 2015;

            anular as referidas liquidações;

            julgar procedente o pedido de restituição da quantia paga correspondente às referidas liquidações e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a restituí-la;

            julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagá-los aos Requerentes, calculados sobre a quantia a restituir, desde a data do seu pagamento, até à do processamento da nota de crédito, em que devem ser incluídos (artigo 61.º, n.º 5, do CPPT), às taxas legais que vigorarem até ao pagamento, nos termos do artigo 559.º do Código Civil e Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril (ou diploma ou diplomas que lhe sucederem);

-              julgar prejudicada, nos termos expostos supra, a apreciação e decisão das demais questões suscitadas e

            condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira nas custas do presente processo.

 

 

Valor do processo

De harmonia com o disposto no artigo 306.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 216.321,67.

 

 

Custas

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 4.284,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da requerida Autoridade Tributária e Aduaneira, conforme condenação supra.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de Abril de 2020

 

O Árbitro Presidente

(José Poças Falcão)

 

O Árbitro Vogal

(Hélder Faustino)

 

O Árbitro Vogal

(Sofia Ricardo Borges)