Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 769/2019-T
Data da decisão: 2020-04-02  IVA  
Valor do pedido: € 278.165,42
Tema: IVA - Locação financeira; Cálculo do pro rata; Direito à dedução; Ofício Circular n.º 30108.
*Decisão arbitral anulada por acórdão do STA de 20 de outubro de 2021, recurso n.º 48/20.9BALSB.
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Decisão Arbitral

 

 

          Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Dra. Magda Feliciano e Dr. José Nunes Barata (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 10-02-2020, acordam no seguinte:

 

         

          1. Relatório

 

A..., S.A. (doravante simplesmente “A...” ou “Requerente”), titular do número único de matrícula na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa –...Secção e de identificação de pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., ..., ...-... Lisboa (doravante, a "Requerente", veio, ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), e no artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro de 2018, apresentar pedido de pronúncia arbitral tendo em vista a anulação das liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante "IVA") e respetivos juros compensatórios, relativas aos períodos de 2013/04, 2013/05 e 2013/06.

A Requerente pede ainda restituição da quantia de € 278.165,42 referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de 2013/04, 2013/05 e 2013/06, até à data da respectiva restituição.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (doravante também identificada por “AT” ou simplesmente “Administração Tributária”).

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à AT em 18-11-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral coletivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 09-01-20209, foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados das alíneas a) e e) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral coletivo foi constituído em 10-02-2020.

A AT apresentou resposta, defendendo a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 16-03-2020, foi decidido dispensar a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e alegações.

O tribunal arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 2.º, e do n.º 1 do artigo 10.º, ambos do RJAT e é competente.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias e têm legitimidade (artigo 4.º e n.º 2 do artigo 10.º, do mesmo diploma e artigo 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos com relevo para a decisão:

 

  1. No dia 06 de Maio de 2013, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Abril de 2013, com o n.º ... e Imposto a entregar ao Estado no montante de € 1.348.325,76 (documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. No dia 07 de Junho de 2013, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Maio de 2013, com o n.º ... e o imposto a entregar ao Estado no montante de € 1.016.904,13 (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. No dia 08 de Julho de 2013, a Requerente submeteu, via Internet, a declaração periódica de IVA relativa ao mês de Junho de 2013, com o n.º ... e o imposto a entregar ao Estado no montante de € 1.223.422,33 (documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  4. A Requerente é, para efeitos de IVA, um sujeito passivo misto (realiza operações que conferem o direito a dedução e operações que não conferem direito a dedução;
  5. Nas declarações periódicas relativas aos três períodos do exercício de 2013 aqui em causa, o IVA com base no cálculo do pro rata provisório, correspondente ao pro rata definitivo para o exercício de 2012;
  6. Nessas mesmas declarações a Requerente, na determinação do cálculo do pro rata, excluiu do numerador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados (documento n.º 6 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  7. Incluindo  no cálculo do pro rata o valor das amortizações financeiras e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados apura-se o pro rata definitivo de 61% para o ano de 2012 e o valor de IVA dedutível de € 394.606,76 (documentos n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos, artigos 14.º e 15.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados, e artigo 30.º da Informação junta com a contestação apresentada com a Resposta); ( [1] )
  8. Não incluindo  no cálculo do pro rata o valor das amortizações financeiras e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados apura-se o pro rata definitivo de 18% para o ano de 2012 e o valor de IVA dedutível de € € 116.441,34 (documentos n.ºs 6 e 7 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos e artigos 14.º e 15.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados, e artigo 31.º da Informação junta com Contestação apresentada com a Resposta);
  9. A Requerente passou a desconsiderar do numerador e do denominador as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados, em virtude da posição adoptada pela Autoridade Tributária e Aduaneira no Ofício-Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, sancionado pelo Director Geral e seguida pelos Serviços de Inspecção em sede de inspecção junto da Requerente em exercícios anteriores (documentos n.ºs 9 e 10 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  10. Por força dos contratos de Leasing celebrados nos três períodos de 2013 aqui em causa, a Requerente, a solicitação e indicação do Locatário (Cliente), adquiriu determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento integral e a pronto do mesmo, acrescido de IVA, entregando-o de imediato, para uso e fruição – ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato – ao Locatário (documento n.º 10 e artigo 23.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);
  11. Como contrapartida pela referida prestação de serviços, o Locatário fica obrigado a pagar à Requerente uma retribuição a qual assume a forma de renda (i.e., encargo periódico que o Locatário assumia perante o Locador) (cláusula n.º 2, alínea d), das condições particulares do contrato de Leasing junto como documento n.º 10);
  12. No segundo trimestre de 2013, foram celebrados 730 contratos de Leasing, tendo a maior parte dos mesmos sido integralmente cumpridos e uma pequena parte resolvidos por incumprimento do Locatário, e dos contratos efectivamente cumpridos foi transferida a propriedade dos veículos, por força da cláusula de opção pela compra do bem e mediante o pagamento do valor residual, em 93% dos casos (artigo 27.º do pedido de pronúncia arbitral não questionado);
  13. Por força dos contratos de ALD Financeiro celebrados pela Requerente nos três meses de 2013 aqui em causa, esta adquiriu determinado veículo a terceiro, procedendo ao pagamento imediato do mesmo, cedendo-o, ao abrigo e segundo os termos e condições constantes do aludido contrato, ao Locatário (Cliente da Requerente), para uso e fruição que abrangesse “a maior parte da vida útil do bem” (cópia de um contrato de ALD Financeiro que consta do documento n.º 11 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  14. No segundo trimestre de 2013, foram celebrados 985 contratos de ALD Financeiro, parte dos quais foram integralmente cumpridos e os restantes foram resolvidos por incumprimento e, dos contratos efectivamente cumpridos, foi transferida a propriedade, por força da cláusula de opção pela compra do bem e mediante o pagamento do valor residual, em 89% dos casos (artigo 32.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionado);
  15. Nas situações em que não houve transmissão da propriedade – quer porque os contratos de Leasing ou de ALD Financeiro foram resolvidos por incumprimento do Locatário, quer porque este, no final do contrato, não accionou a opção de compra constante dos mesmos –, os veículos foram vendidos pela Requerente a diversas entidades (leiloeiras) tendo acrescido IVA aos valores das vendas (artigos 33.º e 34.º do pedido de pronúncia arbitral, não questionados e documento n.º 12); 
  16. Nos casos em que os contratos foram resolvidos por ocorrência de perda total do bem, o Locatário fica obrigado, nos termos do contrato de locação financeira, a pagar o capital em dívida (cláusulas Oitava, n.º 5, 6 e 7 e Décima Terceira, das condições gerais dos contratos de Leasing junto como documento n.º 10);
  17. Nestes casos, a Requerente emitiu factura pelo montante em dívida ao qual acresce, nos termos legais, o respectivo IVA (cópia da factura aqui se junta que consta do documento n.º 13 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  18. Nas operações sujeitas, Leasing e ALD, a Requerente liquidou IVA sobre o valor total da renda (documentos n.ºs 14 e 15 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  19. No caso das operações não sujeitas, como a concessão de crédito para estudo, viagens ou mobiliário, a Requerente não liquidou IVA, sujeitando as referidas operações a Imposto do Selo (verba 17 da Tabela Geral do Imposto do Selo, doravante TGIS) na parte relativa aos juros  (documentos n.ºs 16 e 17 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  20. Em 15-07-2013, a Requerente deduziu impugnação judicial no Tribunal Tributário de Lisboa tendo por objecto as autoliquidações em causa no presente processo, dando origem ao processo n.º .../13...BELRS, em que foi declarada extinta a instância, por sentença de 23-09-2019, ao abrigo do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro (documentos n.ºs 4 e 5 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  21.  Em 15-11-2019, a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo, ao abrigo do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de Outubro.

 

 

2.2. Factos não provados e fundamentação da decisão da matéria de facto

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

A fixação da matéria de facto baseia-se nos documentos juntos pela Requerente e em afirmações que faz que não são questionadas pela Autoridade Tributária e Aduaneira.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou processo administrativo, tendo apresentado apenas uma informação que dele consta, para cuja fundamentação remete na contestação apresentada no Tribunal Tributário de Lisboa.

Quanto ao cálculo do pro rata, designadamente as percentagens de dedução e os valores em causa que resultam dos dois métodos de cálculo referidos nos autos, a Autoridade Tributária e Aduaneira não impugna os documentos apresentados pela Requerente, nem apresenta quaisquer valores alternativos, pelo que se consideram provados os valores indicados pela Requerente.

Não se provou que a Requerente tenha efectuado o pagamento das quantias que, nos termos das declarações de autoliquidação, deveriam ser entregues ao Estado, nem as datas em que os eventuais pagamentos tenham ocorrido. Na verdade, não consta do processo qualquer comprovativo de pagamentos e eles, a terem ocorrido, não tinham de ser efectuados nas datas da apresentação das declarações.

 

 

 

3. Matéria de direito

 

A questão que é objecto do presente processo é a de saber se os valores das rendas facturadas no âmbito dos contratos de locação financeira e ALD e os valores de alienação/abate por destruição de bens locados devem ser incluídos no cálculo do apuramento do pro rata definitivo de dedução.

A Requerente defende que tais valores devem ser incluídos, invocando jurisprudência arbitral.

A Autoridade Tributária e Aduaneira, na linha das orientações genéricas que publicou, a última através do Ofício Circulado n.º 30108, de 20-01-2009, defende que tais valores não devem ser incluídos no cálculo do pro rata.

Os artigos 173.º e 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelecem o seguinte:

 

Artigo 173.º

1. No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo para efectuar tanto operações com direito à dedução, referidas nos artigos 168.º, 169.º e 170.º, como operações sem direito à dedução, a dedução só é admitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações.

O pro rata de dedução é determinado, em conformidade com os artigos 174.º e 175.º, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo.

2. Os Estados–Membros podem tomar as medidas seguintes:

       

a) Autorizar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade, se tiver contabilidades distintas para cada um desses sectores;

b) Obrigar o sujeito passivo a determinar um pro rata para cada sector da respectiva actividade e a manter contabilidades distintas para cada um desses sectores;

c) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

d) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução, em conformidade com a regra estabelecida no primeiro parágrafo do n.º 1, relativamente a todos os bens e serviços utilizados nas operações aí referidas;

e) Estabelecer que não seja tomado em consideração o IVA que não pode ser deduzido pelo sujeito passivo, quando o respectivo montante for insignificante. Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;

 

Artigo 174.º

1. O pro rata de dedução resulta de uma fracção que inclui os seguintes montantes:

a) No numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução em conformidade com os artigos 168.º e 169.º;

b) No denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução.

Os Estados–Membros podem incluir no denominador o montante das subvenções que não sejam as directamente ligadas ao preço das entregas de bens ou das prestações de serviços referidas no artigo 73.º.

2. Em derrogação do disposto no n.º 1, no cálculo do pro rata de dedução não são tomados em consideração os seguintes montantes:

a) O montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na sua empresa;

b) O montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras;

c) O montante do volume de negócios relativo às operações referidas nas alíneas b) a g) do n.º 1 do artigo 135.º, se se tratar de operações acessórias.

3. Quando façam uso da faculdade prevista no artigo 191.º de não exigir a regularização em relação aos bens de investimento, os Estados–Membros podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução.

 

O artigo 23.º do CIVA estabelece o seguinte, no que está em causa no presente processo:

 

Artigo 23.º

 

Métodos de dedução relativa a bens de utilização mista

 

1 - Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectuar operações que conferem direito a dedução e operações que não conferem esse direito, nos termos do artigo 20.º, a dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços que sejam utilizados na realização de ambos os tipos de operações é determinada do seguinte modo:

 

a) Tratando-se de um bem ou serviço parcialmente afecto à realização de operações não decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, o imposto não dedutível em resultado dessa afectação parcial é determinado nos termos do n.º 2;

 

b) Sem prejuízo do disposto na alínea anterior, tratando-se de um bem ou serviço afecto à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto é dedutível na percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução.

 

2 - Não obstante o disposto da alínea b) do número anterior, pode o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação.

 

3 - A administração fiscal pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no número anterior:

 

a) Quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas;

b) Quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação.

 

4 - A percentagem de dedução referida na alínea b) do n.º 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento.

 

A Requerente é uma instituição de crédito que desenvolve concomitantemente actividade de locação financeira e ALD.

É um sujeito misto para efeitos de IVA, desenvolvendo operações sujeitas – designadamente as relativas à locação financeira mobiliária (leasing e ALD) - e operações isentas – nomeadamente operações de financiamento/concessão de crédito, que beneficiam da isenção prevista no n.º 27 do artigo 9.º do CIVA.

O Ofício Circulado n.º 30108 estabeleceu, para este tipo de instituições que desenvolvem concomitantemente estes tipos de actividades, um regime especial relativo ao exercício do direito à dedução, por entender que «o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”» (ponto 8).

Por um lado, esse regime consiste, em primeira linha, em impor a este tipo especial de sujeitos passivos, relativamente aos bens de utilização mista, a dedução segundo a afectação real, nos termos do artigo 23.º, n.º 2, do CIVA, «com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades».

Em segunda linha, no ponto 9 daquele Ofício Circulado n.º 30108, ainda «na aplicação do método da afectação real», estabelece-se que «sempre que não seja possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD».

Em suma, o regime especial previsto no Ofício Circulado consiste em impor a este tipo de sujeitos passivos a dedução segundo a «afectação real», que deverá ser efectuada de duas formas:

– preferencialmente, «com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades»;

– sempre que tal não seja possível, a «afectação real» será efectuada utilizando um «coeficiente de imputação específico», que é determinado calculando a percentagem de dedução apenas com base no montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD, e não, como resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º, com base em «todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica».

 

A Requerente nas autoliquidações relativas aos períodos de 2013/04, 2013/05 e 2013/06  aplicou a regra que consta do ponto 9 do referido Ofício Circulado, tendo no cálculo do pro rata de dedução definitivo, previsto no n.º 6 do artigo 23.º do CIVA, relativo a bens de utilização mista, excluído do numerador e do denominador da fracção as amortizações financeiras dos bens locados, pois não considerou «viável determinar um ou vários critérios objectivos passíveis de permitir, de forma rigorosa e segura, o montante do IVA dedutível, através do método da afectação real», como se indica no ponto 8 do Ofício Circulado.

O entendimento da Requerente era diferente mas, adoptou as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, que já lhe haviam sido aplicadas em inspecção tributária anterior.

            Aplicando o entendimento da Autoridade Tributária e Aduaneira a percentagem de dedução apurada foi de 18% enquanto da aplicação do critério da Requerente resultaria a percentagem de 61%.

 

 

3.1. Apreciação da questão

 

A Requerente desenvolveu actividade económica, tal como definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, que é tributada (nomeadamente, de locação financeira, enquadrável no n.º 1 do artigo 4.º do Código do IVA), bem como actividade económica isenta (designadamente, concessão de crédito, nos termos do n.º 27 do artigo 9.º do Código do IVA, na redação vigente em 2013).

Em regra, o IVA que for suportado pelo sujeito passivo na aquisição dos meios utilizados exclusivamente na sua actividade económica tributada é totalmente dedutível e o IVA suportado na aquisição de meios utilizados apenas na actividade isenta ou não prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do Código do IVA, não pode ser deduzido [artigo 20.º, n.º 1, alínea a), do Código do IVA e artigo 168.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006].

No caso em apreço, está em causa a dedução de IVA relativamente a meios utilizados indiferentemente tanto na actividade tributada (como é a locação financeira), como na actividade económica isenta da Requerente (como sucede com a concessão de crédito).

Relativamente aos meios de utilização mista, utilizados não só para operações com direito à dedução, como para operações sem direito à dedução, a dedução só é permitida relativamente à parte do IVA proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações (artigo 173.º n.º 1, da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006 e n.º 1 do artigo 23.º do Código do IVA).

Esta percentagem de imposto dedutível, ou «pro rata de dedução», resulta, em regra, de uma fracção que inclui no numerador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações que confiram direito à dedução e no denominador, o montante total do volume de negócios anual, líquido de IVA, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não confiram direito à dedução (artigos 174.º da Directiva n.º 2006/112/CE e 23.º, n.º 4, do Código do IVA).

O pro rata de dedução é determinado anualmente, sendo fixado em percentagem e arredondado para a unidade imediatamente superior, e é aplicável provisoriamente, a determinado ano, calculado com base nas operações do ano anterior ou estimado provisoriamente, pelo sujeito passivo, de acordo com as suas previsões, sob controlo da administração (artigo 175.º, n.ºs 1 e 2, da Directiva n.º 2006/112/CE e n.ºs 6, 7 e 8, do artigo 23.º do Código do IVA).

Mas, o sujeito passivo pode optar por «efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação» (n.º 2 do artigo 23.º do CIVA). ( [2] )

A utilização deste método de afetação real, em princípio opcional, passará a ser obrigatória se a Administração Tributária Fiscal o determinar, o que poderá fazer «quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas» ou «quando a aplicação do processo referido no n.º 1 conduza a distorções significativas na tributação» (n.º 3 do artigo 23.º do Código do IVA na redação vigente em 2013). A Administração fiscal poderá também impor «condições especiais».

Assim, a dedução segundo a afectação real relativamente a meios de utilização mista apenas pode ocorrer por opção do sujeito passivo, ou por imposição da Administração Tributária quando o sujeito passivo exerça actividades económicas distintas e a aplicação do método do pro rata conduza a distorções significativas.

Através do referido Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009, a Administração Fiscal, entendeu que relativamente às «instituições de crédito quando desenvolvam simultaneamente as actividades de Leasing ou de ALD», «o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA é susceptível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”», pelo que fez utilização da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 23.º do CIVA, determinando que estes sujeitos passivos utilizem a «afectação real» (ponto 8).

Segundo os pontos 8 e 9, a «afectação real» deverá fazer-se de suas formas:

 

– se for possível, faz-se «a afectação real com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das actividades» (ponto 8 daquele Ofício Circulado);

– se não for «possível a aplicação de critérios objectivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALDs» (ponto 9 daquele Ofício Circulado); neste caso, fica afastada a aplicação da percentagem que resultaria da aplicação do n.º 4 do artigo 23.º.

 

No caso em apreço, está-se perante uma situação em que não há controvérsia entre as Partes quanto à inviabilidade de utilização do método da afectação real, com base em critérios objectivos, tendo a Requerente utilizado nas liquidações impugnadas este «coeficiente de imputação específico» determinado da forma prevista no ponto 9, considerando no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à actividade de Leasing ou de ALD, excluindo do numerador e do denominador da fracção as amortizações financeiras relativas aos contratos de locação financeira.

Porém, enquanto a Requerente defende que deve ser aplicado o pro rata geral baseado no volume de negócios para calcular a proporção entre operações com e sem direito à dedução, a Administração Tributária entendeu no Ofício Circulado na orientação genérica que foi aplicada nas autoliquidações impugnadas que a parte correspondente à amortização financeira das rendas decorrentes dos contratos de locação financeira e ALD deve ser excluída do cálculo por a sua inclusão dar origem a distorções no apuramento do IVA dedutível.

 

3.1.1. A jurisprudência do TJUE

O TJUE pronunciou-se sobre uma situação deste tipo, atinente a instituição bancária que desenvolve actividades de locação financeira, que conferem direito à dedução, e outras actividades financeiras, que não conferem tal direito.

No acórdão proferido em 10-07-2014, no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), no âmbito de reenvio prejudicial, o TJUE entendeu que o artigo 17.º, n.º 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977 «não se opõe a que um Estado-Membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, atividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar».

Na referida alínea c) do terceiro parágrafo do n.º 5 do artigo 17.º da Sexta Directiva, correspondente à alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, estabelece-se que «os Estados-membros podem» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

            As decisões do TJUE proferidas em reenvio prejudicial têm carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º) ( [3] ).

            Na linha do decidido pelo TJUE, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu já, no acórdão de 29-10-2014, proferido no processo n.º 01075/13, que «os Bancos, cujo tipo de negócio passe também pela celebração de contratos de Leasing e ALD, v.g. de veículos automóveis, devem incluir no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito daqueles seus contratos, que corresponde aos juros».

            No entanto, como refere a Requerente, em várias decisões arbitrais ( [4] ) tem sido assinalado que o TJUE partiu de um pressuposto errado sobre o conteúdo do direito interno português.

            O carácter vinculativo das decisões do TJUE não se estende à interpretação do direito nacional, pois, nos termos do artigo 267.º do TFUE [5], a competência do TJUE em sede de reenvio prejudicial, limita-se à «interpretação dos Tratados», e à «validade e a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União».

            Assim, tal natureza vinculativa não se estende à interpretação do artigo 23.º do CIVA, na parte em que consubstancia opções do legislador nacional em matérias explicitamente deixadas pela Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, à sua discricionariedade.

 

            3.1.2. Conteúdo do direito nacional

 

            A alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não é uma disposição de aplicação directa, pois é dirigida aos «Estados-Membros» «autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços».

            Num Estado de Direito, em matéria subordinada ao princípio da legalidade e reserva de lei [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP] e 8.º da LGT, a opção pela aplicação no nosso direito interno daquela norma facultativa da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, tem de ser efectuada por via legislativa.

            Os dois únicos métodos de dedução previstos para os bens de utilização mista afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica previstos no artigo 23.º do CIVA são a:

– a aplicação de uma «percentagem correspondente ao montante anual das operações que dêem lugar a dedução» [n.º 1 alínea b) com remissão para o n.º 4;

– «a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito» (n.º 2 do artigo 23.º).

 

            Nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 23.º, quando a aplicação do método previsto no n.º 1 (que para os afectos à realização de operações decorrentes do exercício de uma actividade económica é a percentagem de dedução, como refere a alínea b) do n. º 1] «conduza a distorções significativas na tributação», a Autoridade Tributária e Aduaneira pode obrigar o sujeito passivo a proceder de acordo com o disposto no n.º 2.

            Assim, a questão que se coloca reconduz-se a saber se neste n.º 2 se inclui a possibilidade determinação da afectação real através de uma percentagem de dedução.

            Neste n.º 2 apenas se prevê a «afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, com base em critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito».

            É manifesto que a determinação da afectação com base numa percentagem, qualquer que seja a forma de a determinar, não constitui um critério objectivo que permita determinar o grau de afectação de bens ou serviços. Na verdade, é evidente que com base no valor das rendas, total ou parcial, não se pode determinar, com objectividade, por exemplo, quais as percentagens das despesas de electricidade ou água ou de manutenção dos elevadores de edifícios comuns às actividades dos dois tipos que estão afectas à actividade de locação financeira.

            Isto é, a aplicação de uma percentagem, qualquer que ela seja, não permite «determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução» e, por isso, não pode constituir um critério objectivo para efeitos do n.º 2 do artigo 23.º

             Sendo assim, tem de se concluir que o poder concedido à Administração Fiscal pelo n.º 3 do artigo 23.º, não inclui a possibilidade de impor ao sujeito passivo a aplicação de uma percentagem dedução.

            Consequentemente, o método da percentagem de dedução só pode ser utilizado nas situações em que está previsto directamente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º, e este método é o que consta do n.º 4, do mesmo artigo.

             E, nos termos deste n.º 4, esta percentagem é determinada através de «uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das operações que dão lugar a dedução nos termos do n.º 1 do artigo 20.º e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo decorrentes do exercício de uma actividade económica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º, bem como as subvenções não tributadas que não sejam subsídios ao equipamento».

            Por isso, embora a Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, permita ao Estado Português «obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços», não foi legislativamente prevista no CIVA a possibilidade de aplicação de uma percentagem de dedução diferente da que se indica no n.º 4 do artigo 23.º do CIVA.

            E, não tendo essa possibilidade sido legislativamente prevista, não a pode aplicar a Autoridade Tributária e Aduaneira, pois está subordinada ao princípio da legalidade em toda a sua actuação (artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55º da LGT) e explicitado no artigo 3.º, n. 1, do Código do Procedimento Administrativo.

            Este último diploma, definindo tal princípio, estabelece que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao Os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins».

            À face desta norma, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa». [6]

            Por isso, não tendo suporte legal a utilização do método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado n.º 30108, de 30.01.2009, é ilegal a imposição da sua utilização pela Requerente.

            Por outro lado, não são indicadas nem demonstradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira as razões por que tal método é necessário para assegurar a «sã concorrência» ou a igualdade de todas as empresas, sendo certo que, na perspectiva do legislador nacional, a aplicação do pro rata previsto no n.º 4 do artigo 23.º é a forma adequada de assegurar o direito à dedução de todos os sujeitos passivos mistos, nos casos em que seja inviável a afectação real com critérios objectivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços em operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito.

Pelo contrário, como se explica no Parecer do Senhor Prof. Doutor José Xavier de Basto e do Senhor Prof. Doutor António Martins, junto aos autos, afigura-se que «o apuramento da parcela de IVA dedutível pelo método que a administração tenta impor, provoca, ela sim, distorções significativas de tributação, pois tanto na modalidade de rendas de leasing constantes como de rendas variáveis, e uma vez que os juros se apuram e pagam antes da amortização de capital, a proporção de juros contida na totalidade da renda flutua ao longo do período contratual, originando flutuações da percentagem de dedução, que nada têm que ver com diferentes intensidades de uso dos inputs comuns e que portanto têm de ser julgadas arbitrárias e sem fundamento legal e económico» e que «pelo método imposto pela administração, a parcela de IVA dedutível fica claramente desajustada do desígnio do imposto de libertar o empresário de todo o IVA suportado a montante, quando é certo que a jusante a renda foi integralmente tributada».

            Mas, mesmo que o método previsto no ponto 9 do Ofício Circulado assegurasse mais eficazmente os referidos princípios, a falta da sua previsão em diploma de natureza legislativo nacional, em matéria em que não é directamente aplicável qualquer norma de direito da União Europeia, sempre seria um obstáculo intransponível à sua aplicação, por força do princípio da legalidade, em que se insere o da hierarquia das fontes de direito, à face do qual não é constitucionalmente admissível que seja reconhecido a actos de natureza não legislativa «o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» (artigo 112.º, n.º 5, da CRP), para mais em matéria sujeita ao princípio da legalidade fiscal, em que se está perante matéria inserida na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República [artigos 103.º, n.º 2, e 165.º, n 1, alínea i), da CRP] .

            Na verdade, a força vinculativa das circulares e outras resoluções da Autoridade Tributária e Aduaneira de natureza geral e abstracta, publicitadas circunscreve-se à ordem administrativa, pois resulta somente da autoridade hierárquica dos agentes de onde provêm e dos deveres de acatamento dos subordinados aos quais se dirigem. Por isso, as orientações genéricas da Autoridade Tributária e Aduaneira, nomeadamente quanto à interpretação da lei fiscal apenas vinculam os funcionários sobre quem o emissor tem posição superior na hierarquia, mas essas orientações não vinculam os particulares, cidadãos ou contribuintes, nem aos tribunais, que devem interpretar e aplicar as leis fiscais sem qualquer dependência dos critérios adoptados pela Administração fiscal através dos referidos «despachos genéricos, das circulares e das instruções» (artigo 203.º da CRP). ( [7] ) É com este alcance que o n.º 1 do artigo 68.º-A da LGT estabelece que «a administração tributária está vinculada às orientações genéricas constantes de circulares, regulamentos ou instrumentos de idêntica natureza, independentemente da sua forma de comunicação, visando a uniformização da interpretação e da aplicação das normas tributárias».

            A isto acresce que, como decidiu o TJUE, no citado acórdão 10-07-2014, proferido no processo n.º C-183/13 (Banco Mais), a alínea c) do n.º 2 do artigo 173.º da Directiva n.º 2006/112/CE do Conselho, de 28-11-2006, não se opõe a que um Estado-Membro obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fração que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, «quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contrato».

            Como resulta desta parte final, na perspetiva do TJUE, não é compaginável com a alínea c) do n.º 5 do artigo 17.º da 6.ª Diretiva a imposição aos contribuintes de uma percentagem de dedução especial de forma genérica, independentemente da comprovação da utilização real dos bens e serviços, casuisticamente apurada, como tem entendido o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) ao entender que decorre daquela decisão do TJUE «que sobre a matéria de facto se formule um juízo de facto sobre se a utilização desses bens e serviços de utilização mista é ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos» ( [8] ).

            A isto acresce que jurisprudência mais recente do TJUE, repensando explicitamente o entendimento adotado no processo C-183/13, veio esclarecer que «os Estados‑Membros não podem aplicar um método de repartição que não tenha em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, uma vez que esse método não é suscetível de garantir uma repartição mais precisa do que o que decorreria da aplicação do critério de repartição baseado no volume de negócios» (acórdão de 18-10-2018, processo C‑153/17, Volkswagen Financial Services (UK) Ltd).

            Assim, o método preconizado pela Administração Tributária, que não tem em conta o valor inicial do bem em causa no momento da sua entrega, também sob esta perspectiva é incompatível com a alínea c) do n.º 5 do artigo 17.º da 6.ª Diretiva.

            Esta mais recente decisão do TJUE proferida em reenvio prejudicial tem carácter vinculativo para os Tribunais nacionais, o que é corolário da obrigatoriedade de reenvio prejudicial prevista no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (que substituiu o artigo 234.º do Tratado de Roma, anterior artigo 177.º), como se referiu.

Ainda por outro lado, dispõe a alínea h) do n.º 2 do artigo 16.º do Código do IVA, que «[N]os casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável é: para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário».”. Ou seja, o IVA deve ser liquidado sobre a totalidade da renda, sem distinção entre juro e capital, constituindo este montante global o valor tributável do imposto, nas operações de locação financeira. Assim, a solução proposta pela Administração Tributária, de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, a parte da renda correspondente à amortização financeira não tem apoio directo nos textos legais.

 

 

            Pelo exposto, conclui-se que o método de cálculo da percentagem de dedução preconizado pela Administração Tributária, traduzido na imposição de utilização do «coeficiente de imputação específico», enferma de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, consubstanciado por ofensa do princípio da legalidade e errada interpretação dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 23.º do Código do IVA e artigos 173.º e 174.º, n.º 1 da Directiva n.º 2006/112/CE, o que justifica a anulação das autoliquidações, nas partes em que nela assentam, de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do CPA subsidiariamente aplicável nos termos da alínea c) do artigo 2.º da LGT.

 

            3.1.3. Questões de conhecimento prejudicado

 

Sendo de julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral com fundamento em vícios de violação de lei, que asseguram estável e eficaz tutela dos interesses da Requerente, fica prejudicado, por ser inútil, o conhecimento das restantes questões colocadas quanto a esta questão do método de cálculo da percentagem de dedução, de harmonia com o disposto nos artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (“CPC”), subsidiariamente aplicável por força do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.

 

 

            4. Restituição da quantia paga em excesso e juros indemnizatórios

 

          A Requerente pede a restituição da quantia de € 278.165,42 referente ao IVA não deduzido, acrescida dos juros legais contados desde a data da apresentação das respectivas declarações periódicas relativas aos períodos de 2013/04, 2013/05 e 2013/06, até à data da respectiva restituição.

          Das liquidações referidas resulta, em todos os casos, imposto a entregar ao Estado, mas não foi apresentada prova de que os pagamentos respectivos tenham sido efectuados, nem as datas em que ocorreram.

          A Autoridade Tributária e Aduaneira não questiona a quantificação efectuada pela Requerente.

Na sequência da ilegalidade das liquidações é manifesto que a Requerente tem direito a ser reembolsada das quantias que tiverem sido pagas indevidamente, aplicando o pro rata de 61% em vez do pro rata 18%.

Por outro lado, quanto a juros indemnizatórios, o artigo 43.º, n.º 1, da LGT estabelece que são devidos «quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e o n.º 2 do mesmo artigo esclarece que «considera-se também haver erro imputável aos serviços no casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas».

O erro das autoliquidações é imputável à Autoridade Tributária e Aduaneira, nos termos do n.º 2 deste artigo, pois foram seguidas pela Requerente as orientações da Autoridade Tributária e Aduaneira, devidamente publicadas, através do Ofício Circulado n.º 30108, de 30-01-2009.

Consequentemente, a Requerente tem direito à restituição das quantias indevidamente pagas acrescidas de juros indemnizatórios, nos termos do artigo 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º do CPPT desde as datas dos pagamentos indevidos, até ser reembolsada.

Não estando provado o pagamento das quantias autoliquidadas não há fundamento factual para se decidir neste processo se há ou não direito a reembolso e a juros indemnizatórios, pelo que têm de ser julgados improcedentes os pedidos respectivos, sem prejuízo dos eventuais direitos que possam ser reconhecidos à Requerente em execução de julgado, que é o meio processual adequado para os definir, quando não há elementos para esse efeito no processo declarativo.

 

 

 

            5. Decisão

Nestes termos acordam neste Tribunal Arbitral em:

  1. Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular as autoliquidações de IVA n.ºs ..., ... e ..., nas partes em que têm como pressuposto um pro rata de dedução de 18%, em vez de 61%;
  3. Julgar improcedentes os pedidos de reembolso e juros indemnizatórios, sem prejuízo de poderem vir a ser reconhecidos em execução do presente acórdão.

 

 

6. Valor do processo

 

De harmonia com o disposto nos artigos 305.º, n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 3.º, n.º 2, do Regulamento de € 278.165,42.

 

 

 

7. Custas

 

Nos termos do artigo 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 5.202,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo da Autoridade Tributária e Aduaneira.

    

Lisboa, 02-04-2020

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(Magda Feliciano)

 

 

 

 

(José Nunes Barata)

 



[1] A Autoridade Tributária e Aduaneira, no artigo 22.º da Informação junta com a Contestação apresentada no Tribunal Tributário de Lisboa que juntou com a sua Resposta, refere a percentagem de 66%, mas afigura-se que se tratará de lapso, pois o que consta dos documentos n.ºs 6 e 7 é a percentagem de 61% e no artigo 30.º daquela Infirmação se refere a percentagem de 61%.

[2]              A utilização deste método é obrigatória de se tratar de bem não utilizados na actividade económica definida na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º do CIVA.

[3]                     Neste sentido, entre muitos, podem ver-se os seguintes acórdãos do STA: de 25-10-2000, processo n.º 25128, Apêndice ao Diário da República de 31-1-2003, página 3757; de 7-11-2001, processo n.º 26432, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2602; de 7-11-2001, processo n.º 26404, Apêndice ao Diário da República de 13-10-2003, página 2593.

[4]              Na linha do acórdão proferido no processo n.º 309/2017-T.

[5]              Este artigo 267.º estabelece que

                «O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

                 a) Sobre a interpretação dos Tratados;

                 b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

[6]              FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, página 40.

                Em sentido semelhante, pode ver-se o primeiro Autor em Curso de Direito Administrativo, volume II: «A lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça». (FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo volume II, páginas 42-43.

                Em sentido idêntico, pode ver-se MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, 1999, volume I, página 84, que refere: «Com o Estado pós-liberal, em qualquer das suas três modalidades, a legalidade passa de externa a interna. A Constituição e a lei deixam de ser apenas limites à actividade administrativa, para passarem a ser fundamento dessa actividade.

Deixa de valer a lógica da liberdade ou da autonomia, da qual gozam os privados, que podem fazer tudo o que a Constituição e a lei não proíbem, para se afirmar a primazia da competência, a Administração Pública só pode fazer o que lhe é permitido pela Constituição e a lei, e nos exactos termos em que elas o permitem.».

                Nesta linha tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se, por exemplo, pelo acórdão de 13-11-2002, processo n.º 047932.

[7] Neste sentido, pode ver-se MANUAL DE DIREITO FISCAL, Pedro Soares Martinez, Edições Almedina, Coimbra, 7.ª Reimpressão -1984, página 109.

[8] Acórdão do STA de 15-11-2017, processo n.º 0485/17, em que se entendeu que, na sequência decisão do TUJE proferida no processo C-183/13, tinha sido necessário ampliar a matéria de facto «no sentido de apurar se, no caso concreto, no âmbito de operações de locação financeira para o sector automóvel, a utilização de bens e serviços de utilização mista (afectos a actividades que conferem direito a dedução de IVA e a actividades isentas) foi, ou não, principalmente determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira que a recorrente celebrou com os seus clientes ou pela disponibilização dos veículos». (negrito nosso)

Na mesma linha, os acórdãos do STA de 04-03-2015, processos n.ºs 081/13 e 01017/12, refere-se a necessidade de ser reapreciada a matéria de facto «para que se possa decidir se a fórmula de cálculo do pro rata utilizada pela Administração Tributária, em concreto, pode fundamentar as correcções efectuadas e que conduziram aos actos de liquidação impugnados». (negrito nosso)