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DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
1. A..., S.A., sociedade anónima matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o NIPC..., com sede na Rua ..., n.º..., ...-... Lisboa (doravante, “Requerente”), veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20/1, requerer, em 26/8/2019, a constituição de Tribunal Arbitral e submeter pedido de pronúncia arbitral sobre a “8 (oito) atos de liquidação de imposto único de circulação («IUC») identificados numa listagem, a qual se junta como ANEXO A e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, emitidos pela Autoridade Tributária e Aduaneira («AT») relativamente a 8 (oito) veículos automóveis igualmente discriminados no mencionado ANEXO A, respeitantes aos anos de 2017 e de 2018, no valor de € 1.076,39, acrescido de juros compensatórios que se cifram em € 42,02, perfazendo assim o montante global de € 1.118,41; e, bem assim, sobre a ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra todos aqueles atos tributários, o qual se junta como ANEXO B e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido”.
2. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Requerida.
2.1. A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 6.º e das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou o presente signatário como árbitro do tribunal arbitral singular, o qual comunicou a aceitação do encargo no prazo aplicável.
2.2. As partes foram devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação do árbitro, nos termos conjugados do disposto no artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT, e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.
2.3. Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 14 de Novembro de 2019.
3. A fundamentar o seu pedido de pronúncia arbitral, a ora Requerente, alega, em síntese, o seguinte:
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«Constituída em 2007, a Requerente, assumindo o papel de líder europeu no mercado de financiamento ao consumo, apresenta-se como uma instituição de crédito com forte presença no mercado nacional. Aliás, é, atualmente, um dos maiores bancos portugueses especializado a operar no financiamento ao setor automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito, co branded e empréstimos pessoais.
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Nessa medida, uma parte substancial da sua atividade reconduz-se à celebração de – entre outros – contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis. Estes contratos obedecem, como resulta da sua própria configuração legal, a um guião comum, próprio deste tipo de financiamentos e que se exemplifica, de seguida: A Requerente, depois de contactada pelo cliente – que, nessa fase, escolheu já o tipo de veículo automóvel que pretende adquirir, as suas características (marca, modelo, acessórios, etc.), e inclusive o seu preço – adquire a viatura ao fornecedor que lhe for indicada pelo cliente, procede, de seguida, à sua entrega ao respetivo cliente – que assume, pois, a qualidade de locatário. De acordo com cada um destes contratos, o financiamento concedido ao locatário pela Requerente é restituído (dito de outro modo, recuperado) em prestações mensais, sob a forma de rendas; uma vez liquidadas as rendas, e assim alcançado o termo do correspondente contrato, o locatário tem o direito de adquirir o bem locado mediante o pagamento do valor residual da viatura automóvel, acrescido de despesas e IVA.
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Os veículos automóveis [em causa,] catalogados no ANEXO A, sem exceção, foram dados em contratos de locação financeira («LSG») e aluguer de longa duração («ALD») pela Requerente aos clientes ali melhor identificados – conforme resulta dos contratos que se juntam como DOCS. N.ºs 1 a 8, destacados – por referência à viatura automóvel a que se reportam – no aludido ANEXO A.
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Quase todos estes clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual do bem locado, acrescido de despesas e IVA – tal como atestam os documentos comprovativos das correspondentes transmissões (designadamente, faturas de venda), que se juntam como DOCS. N.ºs 9 a 16, melhor assinalados – com menção à viatura automóvel a que se referem – no ANEXO A, já junto.
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Sendo certo que, num universo mais restrito composto por uma viatura automóvel com a matrícula ..., ao contrário do «percurso» normal acima exposto, por motivo de «perda total» na sequência de um sinistro ocorrido antes do término d[o] contrato, a viatura não foi transmitida para o correspondente locatário, mas antes para a esfera da Seguradora com quem tinha sido celebrado o contrato de seguro – como resulta da documentação remetida pela Seguradora, assim como da correspondência trocada entre esta e a Requerente e que se junta como DOC. N.º 9.
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Quer isto dizer que a propriedade de cada um dos veículos automóveis elencados no ANEXO A, já junto, havia sido transmitida para os seus anteriores locatários ou, ainda, por ter ocorrido um sinistro, para a competente Seguradora.
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A AT veio [...] exigir o pagamento dos IUC alegadamente em falta à Requerente, mesmo sabendo – ou devendo saber – que os veículos automóveis em apreço já não eram da propriedade da Requerente no momento (no ano, mais concretamente) em que os impostos deveriam ter sido pagos.
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Até porque no ano a que se reportam os atos tributários em contenda, os veículos automóveis já tinham saído (há muito) da esfera jurídica da Requerente, pertencendo a respetiva propriedade a outrem (discriminado no ANEXO A, já junto). O mesmo é dizer que nas datas respeitantes aos factos tributários que originaram estas liquidações, a Requerente já não era proprietária daqueles veículos automóveis e, por conseguinte, não pode assumir a qualidade de sujeito passivo dos impostos que lhe foram erroneamente liquidados.
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A Requerente já não era proprietária dos veículos automóveis nos anos em que os impostos se tornaram exigíveis, não sendo, por isso, o correspondente sujeito passivo em nenhuma das situações, ainda que, naqueles períodos, a transmissão dos aludidos veículos automóveis (e a nova propriedade de outrem) não estivesse registada junto da Conservatória do Registo Automóvel («CRA»). Até porque a Requerente tem vindo a proceder à apresentação dos competentes pedidos de registo da propriedade de todas as viaturas automóveis, em nome dos atuais proprietários (cujos comprovativos se compromete a apresentar assim que estes pedidos tiverem sido todos submetidos), pedidos esses que têm sido instruídos com os correspondentes documentos comprovativos das transmissões, designadamente as faturas de venda, servindo tal documento como meio de prova válido e suficiente para efeitos de registo da propriedade em nome dos novos proprietários.
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A vexata quaestio subjacente a este Pedido de Pronúncia Arbitral reside, essencialmente, em saber se a circunstância de a transmissão dos veículos automóveis descritos no ANEXO A aos seus anteriores locatários (ou, ainda, ou por ter ocorrido um «sinistro»), findo o contrato de LSG ou ALD (quando aplicável), não ter sido registada junto da CRA, torna essa transmissão inoponível à AT, sobretudo, para efeitos de cobrança do imposto ao seu anterior proprietário, em concreto, à sua anterior entidade locadora.
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[P]ara a Requerente – e como se verá – a resposta àquela questão culmina num ponto absolutamente crucial que é o de que a qualidade de sujeito passivo e, de resto, a responsabilidade de pagamento das liquidações de IUC que (mediatamente) contestam não cabe, nem coube jamais à Requerente, sendo, por isso, intrinsecamente ilegais – por manifesta falta de legitimidade substantiva da Requerente – o ato de indeferimento da reclamação graciosa e, em consequência, os atos de liquidação emitidos pela AT.
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Como a jurisprudência maioritariamente arbitral tem realçado, nem mesmo durante a vigência de um contrato de LSG (vulgo, leasing) ou de um ALD deve a entidade locadora ser considerada sujeito passivo do imposto. Assim sendo, e por maioria de razão, menos ainda deve ser atribuída a incidência subjetiva deste imposto quando – após o término do contrato – o locatário exerce o seu direito a adquirir o bem locado pelo valor residual, acrescido de despesas e IVA, tornando-se, nestas circunstâncias, o (novo) proprietário do veículo automóvel outrora locado, passando a aplicar-se-lhes integralmente o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC.
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[A] partir do momento em que os anteriores locatários adquirem os veículos automóveis, em virtude das consequências obrigacionais, é apenas a estes – já na qualidade de (novos) proprietários dos mesmos –, que incumbe pagar os IUC e demais encargos associados, pelo menos só assim fará sentido à luz do princípio da equivalência, como fundamento e limite deste regime.
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[N]ão subscrevemos quaisquer argumentos que insinuam que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC estabelece uma presunção ilidível de incidência subjetiva do imposto com base tão só no registo automóvel, desde logo, porque nem os efeitos do registo automóvel nem tampouco o princípio da equivalência apontam nessa direção, mas também porque esta «proposta» hermenêutica não se coaduna com os elementos gerais da interpretação das leis, nos termos dos artigos 11.º da Lei Geral Tributária («LGT») e 9.º do Código Civil («CC»).
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[A AT] não se pode servir do argumento da falta de registo das transmissões para vir exigir os IUC supostamente em falta à aqui Requerente. Não apenas porque, a não serem válidas as transmissões, estas permaneceriam na mera (esfera jurídica da) entidade locadora dos veículos em questão – o que, como já se encontra pacificado entre nós, determina a sua ilegitimidade (subjetiva) para assumir o encargo dos IUC –, mas sobretudo porque a falta de registo não afeta a validade do contrato de compra e venda, mas apenas a sua eficácia, e, mesmo esta, unicamente perante terceiros de boa-fé para efeitos do registo; qualificação essa que a AT indubitavelmente não assume no caso em apreço.
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Conclui-se, pois, que o registo da aquisição de veículos automóveis junto da CRA não é condição para a transmissão da propriedade, nem tampouco afeta a sua validade.
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Em face do exposto, acham-se reunidas as condições para assumirmos que o n.º 1 do artigo 3.º do Código do IUC configura uma presunção ilidível, que admite sempre prova em contrário, porquanto a pessoa que está inscrita no registo como proprietária do veículo automóvel e que, por essa razão é considerada – e bem – pela AT como sujeito passivo de IUC, pode, no entanto, apresentar elementos de prova com vista a demonstrar que o titular da propriedade é outrem, para quem a propriedade foi transferida antes do imposto se tornar exigível.
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[A] título meramente ilustrativo, [...] foi entendido pelo Tribunal Arbitral [no âmbito do processo n.º 26/2013-T] que a presunção derivada do registo automóvel não pode deixar de ser entendida como uma presunção ilidível, em especial por força do disposto no artigo 73.º da LGT, por admitir sempre prova em contrário, a qual, naquele caso em particular, foi alcançada através da junção de documentos comprovativos das transmissões, nomeadamente, de cópias das faturas de venda dos veículos automóveis ali em causa, documentos esses que se juntou como DOCS. N.ºs 9 a 16 relativamente a cada uma das viaturas automóveis em discussão.
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Quanto ao valor probatório dos documentos comprovativos das transmissões e que, por conseguinte, que ilide a presunção do registo automóvel junto da CRA, a verdade é que o artigo 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado («IVA») sempre reconheceu a fatura como documento ao qual é legalmente atribuída relevância para documentar e comprovar transações.
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Esses documentos que a Requerente já juntou aos presentes autos afiguram-se mais do que suficientes para comprovar as transmissões dos veículos automóveis em causa, gozando, aliás, e não poderia deixar de ser, da presunção de veracidade supra abordada.
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[A]tendendo à documentação suficientemente concludente anexada ao presente Pedido de Pronúncia Arbitral, não resta outra alternativa ao douto Tribunal Arbitral senão concluir que a Requerente não era a real proprietária dos veículos automóveis a que respeitam os atos tributários postos em crise e, por isso, não era o sujeito passivo dos IUC (i.e., não está verificada a incidência subjetiva do imposto), pelo que que os mesmos estão inquinados de insanável ilegalidade, por terem sido emitidos ao abrigo de um erro crasso de facto sobre os pressupostos e, portanto, de uma violação flagrante da lei, ilegalidade essa que contamina o ato de indeferimento da reclamação graciosa por padecer do mesmo vício, e, em consequência, devem ser todos os atos aqui em causa anulados – o que, nesta sede, expressamente se peticiona.»
3.1. A Requerente termina pedindo que se conclua, “a final, pela declaração de ilegalidade do ato de indeferimento da reclamação graciosa, assim como dos 8 (oito) atos de liquidação de IUC, sob pena de violação desproporcional do princípio da equivalência constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP. Requerendo-se, assim, o reembolso do montante de € 1.118,41, relativo ao imposto e juros compensatórios indevidamente pagos pela Requerente, bem como o pagamento de juros indemnizatórios pela privação do referido montante de € 1.118,41, nos termos do artigo 43.º da LGT calculados à taxa legal e contados desde a data de pagamento das liquidações de IUC, assim como no plano das custas arbitrais.”
4. A Autoridade Tributária e Aduaneira (daqui em diante, “Requerida” ou “AT”) apresentou resposta, invocando, em síntese, o seguinte:
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«Vem A..., S.A. requerer ao Tribunal Arbitral a ilegalidade de 8 atos tributários de liquidação de Imposto Único de Circulação (IUC), referente a 8 veículos automóveis, identificados no processo administrativo, referentes aos anos de 2017 e 2018, no montante global de € 1.118,41. A Requerente apresentou a reclamação graciosa n.º ...2019..., a qual foi indeferida na sua totalidade.
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A Requerente invoca que relativamente às viaturas aqui em causa foram celebrados contratos de locação financeira e aluguer de longa duração, destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis, findos os quais transmite a propriedade dos mesmos aos respetivos locatários ou a terceiros. Refere que quase todos os clientes adquiriram, no termo de cada contrato, o veículo automóvel sobre o qual o mesmo incidia, mediante o pagamento do valor residual. Mais refere que relativamente à viatura ..., a viatura não foi transmitida por motivo de “perda total” na sequência de um sinistro ocorrido antes do terminus do contrato. Requer o reembolso do montante pago referente a IUC e a juros compensatórios e o pagamento de juros indemnizatórios.
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Contudo, a Autoridade Tributária entende que não lhe assiste razão pelos fundamentos que passa a expor.
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No âmbito do presente pedido de pronúncia arbitral a Requerente alicerça a sua pretensão com base no fundamento de que nas datas a que se reportam os factos tributários que originaram as liquidações de IUC aqui em causa, a Requerente já não era proprietária dos veículos a que as mesmas se referem. Alega ainda a Requerente a ilegalidade das liquidações de IUC, por violação do artigo 3.º, n.º 2 do CIUC, referente aos veículos objecto de contratos celebrados pela Requerente (de locação financeira e de ALD).
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Porém, não assiste razão à Requerente como se passará a demonstrar.
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O primeiro equívoco subjacente à interpretação defendida pela Requerente prende-se com uma enviesada leitura da letra da lei.
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O legislador tributário ao estabelecer no artigo 3.º, n.º 1 quem são os sujeitos passivos do IUC estabeleceu expressa e intencionalmente que estes são os proprietários (ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas), considerando-se como tais as pessoas em nome das quais os mesmos se encontrem registados. Note-se que o legislador não usou a expressão “presumem-se”, como poderia ter feito, por exemplo, nos seguintes termos: são sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, presumindo-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
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Em contrapartida, o normativo fiscal está repleto de previsões análogas à consagrada na parte final do n.º 1 do artigo 3.º, em que o legislador fiscal, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, expressa e intencionalmente, consagra o que deve considerar-se legalmente, para efeitos de incidência, de rendimento, de isenção, de determinação e de periodização do lucro tributável, para efeitos de residência, de localização, entre muitos outros.
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[É] imperativo concluir que, no caso dos presentes autos de pronúncia arbitral, o legislador estabeleceu expressa e intencionalmente que se consideram como tais [como proprietários ou nas situações previstas no n.º 2, as pessoas aí enunciadas] as pessoas em nome das quais os mesmos [os veículos] se encontrem registados, porquanto é esta a interpretação que preserva a unidade do sistema jurídico-fiscal.
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Entender que o legislador consagrou aqui uma presunção, seria inequivocamente efectuar uma interpretação contra legem. Trata-se, sim, de uma opção clara de política legislativa acolhida pelo legislador, cuja intenção, adentro da sua liberdade de conformação legislativa, foi a de que, para efeitos de IUC, sejam considerados proprietários, aqueles que como tal constem do registo automóvel.
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Em face desta redacção não é manifestamente possível invocar que se trata de uma presunção, conforme defende a Requerente. É este, aliás, o entendimento já adoptado pela jurisprudência dos nossos tribunais. Com efeito, no âmbito do processo n.º xxx/13.0BEPNF, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel acolheu a posição sufragada pela Requerida nos termos supra explicitados [...].
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Em suma, o artigo 3.º do CIUC não comporta qualquer presunção legal, sendo certo que a tese peregrina propugnada pela Requerente direcciona o seu objectivo para o alvo errado.
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Também o elemento sistemático de interpretação da lei demonstra que a solução propugnada pela Requerente é intolerável, não encontrando o entendimento por esta sufragado qualquer apoio na lei.
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Mesmo admitindo que, do ponto de vista das regras do direito civil e do registo predial, a ausência de registo não afecta a aquisição da qualidade de proprietário e que o registo não é condição de validade dos contratos com eficácia real, nos termos estabelecidos no CIUC (que no caso em apreço constitui lei especial, a qual, nos termos gerais de direito derroga a norma geral), o legislador tributário quis intencional e expressamente que fossem considerados como proprietários, locatários, adquirentes com reserva de propriedade ou titulares do direito de opção de compra no aluguer de longa duração, as pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados.
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[À] luz de uma interpretação teleológica do regime consagrado em todo o CIUC, a interpretação propugnada pela Requerente no sentido de que o sujeito passivo do imposto é o proprietário efectivo, independentemente de não figurar no registo automóvel o registo dessa qualidade, é manifestamente errada. E é uma interpretação errada na medida em que é a própria ratio do regime consagrado no CIUC que constitui prova clara de que aquilo que o legislador fiscal pretendeu foi criar um imposto assente na tributação do proprietário do veículo tal como consta do registo automóvel.
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[O]s actos tributários em crise não enfermam de qualquer vício de violação de lei, na medida em que à luz do disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC e do artigo 6.º do mesmo código, era a Requerente, na qualidade de proprietária, o sujeito passivo do IUC.
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[A]ceitando-se ser admissível a ilisão da presunção à luz da jurisprudência já entretanto firmada neste centro de arbitragem, importará ainda assim, apreciar os documentos juntos pela Requerente e o seu valor probatório com vista a tal ilisão.
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Os contratos que a Requerente junta não são prova suficiente de que houve transmissão de propriedade de um veículo da Requerente para terceiro numa determinada data, uma vez que a mesma não junta a cópia de um cheque ou de um extrato financeiro de onde conste o recebimento de um determinado valor respeitante à venda de veículo.
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[Coloca-se] a questão de saber se os documentos juntos pela Requerente [‘diversas faturas/recibos, com a descrição “capital” ou “valor” ’, das quais ‘consta a data de emissão e a data de vencimento e no lado inferior direito consta “válido como recibo após boa cobrança” ’] constituem prova suficiente para abalar a (suposta) presunção legal estabelecida no artigo 3.º do CIUC. Claramente que não, pelo que se impugnam para todos os efeitos legais os Documentos juntos ao pedido arbitral, uma vez que os mesmos não provam de forma clara e inequívoca que ocorreu a transmissão do veiculo e consequentemente da propriedade do mesmo.
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Com efeito, a Requerente não junta um único extracto financeiro ou cheque que prove que as faturas foram pagas ou se os contratos foram cumpridos, ou se, pelo contrário estão em contencioso. Relativamente ao veículo automóvel ..., em que houve perda total, a Requerente não providenciou pela atualização do registo junto da Conservatório do Registo, pelo que nesta ainda consta a Requerente como proprietária.
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[A] Requerente não juntou cópias do referido modelo oficial para registo da propriedade automóvel quando podia e devia tê-lo feito, ou seja, no requerimento do pedido de pronúncia arbitral, encontrando-se agora precludida a possibilidade de o fazer em momento ulterior.
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Em suma, a Requerente não logrou provar a pretensa transmissão dos veículos aqui em causa [...].
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[A] transmissão da propriedade de veículos automóveis não é suscetível de ser controlada pela Requerida, pois inexiste qualquer obrigação acessória declarativa quanto a esta matéria, contrariamente ao controlo que é passível de ser realizado, por exemplo, por via do prévio pagamento de Imposto Municipal Sobre Transmissão de Imóveis em matéria de transmissão de prédios. Significa isto, portanto, que o IUC é liquidado de acordo com a informação registral oportunamente transmitida pelo Instituto dos Registos e Notariado. Dito de outra forma, o IUC não é liquidado de acordo com informação gerada pela própria Requerida.
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Consequentemente, deverá a Requerente ser condenada ao pagamento das custas arbitrais decorrentes do presente pedido de pronúncia arbitral, nos termos do artigo 527.º/1 do CPC ex vi do artigo 29.º/1-e) do RJAT [...]. O mesmo raciocínio se aplica relativamente ao pedido de condenação ao pagamento de juros indemnizatórios formulado pela Requerente.
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De tudo quanto supra se expôs resulta claro que os atos tributários em crise são válidos e legais, porque conformes ao regime legal em vigor à data dos factos tributários, pelo que, não ocorreu, in casu, qualquer erro imputável aos serviços. Assim sendo, não se encontram reunidos os pressupostos legais que conferem o direito aos juros indemnizatórios.
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Mas mesmo que assim não se entenda – no que não se concede – que o imposto não é devido à Requerente por esta não ser o sujeito passivo da obrigação tributária, ainda assim, e tal como foi decidido pelo já citado Tribunal Arbitral constituído no âmbito do processo n.º 26/2013-T, é inegável que a Requerida se limitou a dar cumprimento ao artigo 3.º/1 do CIUC, que imputa tal qualidade às pessoas em nome das quais os veículos se encontrem registados, pelo que também por aqui necessariamente terá de falecer o reconhecimento do direito ao pagamento de juros indemnizatórios.»
4.1. A AT conclui pedindo que seja julgado “improcedente o presente pedido de pronúncia arbitral, mantendo-se na ordem jurídica os atos tributários de liquidação impugnados e absolvendo-se, em conformidade, a Requerida do pedido.”
5. Considerando existirem nos autos elementos probatórios suficientes para proferir a decisão, e não tendo sido invocadas excepções, o Tribunal Arbitral, através de despacho de 27/3/2020, prescindiu da inquirição de testemunhas, bem como da reunião prevista no art. 18.º do RJAT, o que fez ao abrigo dos princípios da autonomia na condução do processo e em ordem a promover a celeridade, simplificação e informalidade deste. Foi, também, fixado o dia 3 de Abril de 2020 para a prolação da decisão arbitral.
II. Saneamento
6. O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 4.º, ambos do RJAT.
7. As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (vd. artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).
8. Pelo supra exposto, e não se verificando nulidades, impõe-se o conhecimento, em seguida, do mérito do pedido.
III. Questões a decidir
9. No presente caso, são três as questões de direito controvertidas: i) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; ii) saber se, como alega a AT, a interpretação da ora Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; e iii) saber se são devidos os peticionados juros indemnizatórios. Uma (sucinta) nota final tratará da questão relativa à responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
IV. Mérito
IV.1. Matéria de facto
10. Com relevo para a apreciação e decisão da questão de mérito, dão-se como assentes e provados os seguintes factos:
A. Uma parte substancial da actividade da ora Requerente reconduz-se à celebração de contratos de locação financeira ou de aluguer de longa duração (ALD), destinados à aquisição, por empresas e particulares, de veículos automóveis.
B. Os veículos identificados na lista do “Anexo A” junto aos autos (e cujas matrículas constam da mesma e se dão aqui por reproduzidas) foram dados em locação financeira e em ALD, pela ora Requerente, aos clientes também aí identificados (vd. contratos constantes dos docs. 1 a 8 apensos aos presentes autos).
C. Com uma excepção, na data do termo dos referidos contratos, todos os locatários dos mencionados veículos decidiram exercer a sua opção de compra, tal como legal e contratualmente previsto.
D. A excepção diz respeito ao veículo automóvel com a matrícula ..., por motivo de «perda total» na sequência de um sinistro que teve lugar antes do contrato, pelo que a viatura não foi transmitida para o correspondente locatário mas antes para a esfera da Seguradora com quem tinha sido celebrado o contrato de seguro (vd. doc. 9 apenso aos presentes autos).
E. Embora diga que “tem vindo a proceder à apresentação dos competentes pedidos de registo da propriedade de todas as viaturas automóveis, em nome dos atuais proprietários (cujos comprovativos se compromete a apresentar assim que estes pedidos tiverem sido todos submetidos)”, a ora Requerente afirma e reconhece, no §34 da sua p.i., que a mesma “já não era proprietária dos veículos automóveis nos anos em que os impostos se tornaram exigíveis, não sendo, por isso, o correspondente sujeito passivo em nenhuma das situações, ainda que, naqueles períodos, a transmissão dos aludidos veículos automóveis (e a nova propriedade de outrem) não estivesse registada junto da Conservatória do Registo Automóvel («CRA»).” (Itálico nosso.)
F. A Requerente foi notificada para proceder ao pagamento dos IUC a que respeitam os actos de liquidação identificados na tabela constante do “Anexo A”, relativos aos anos de 2017 e 2018, tendo sido pagas as verbas em causa (vd. PAT apenso aos autos), no valor global de € 1118,41 (= € 1076,39 de IUC + € 42,02 de juros compensatórios).
G. Inconformada com as mencionadas liquidações de IUC e juros compensatórios, a ora Requerente interpôs reclamação graciosa a 11/3/2019, tendo a mesma sido indeferida, em 27/5/2019, por despacho do Chefe de Divisão de Serviço Central (vd. Anexo B apenso aos presentes autos).
H. Inconformada, a ora Requerente interpôs o presente pedido de pronúncia arbitral em 26/8/2019.
IV.2. Factos não provados
11. Inexistem factos não provados com relevo para a apreciação do mérito da causa.
IV.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
12. O Tribunal não tem que se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de seleccionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (cfr. artigo 123.º, n.º 2, do CPPT, e artigo 607.º, n.º 3, do CPC, aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e), do RJAT).
13. Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são seleccionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objecto do litígio no direito aplicável (vd. art. 596.º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT).
14. A convicção do Tribunal Arbitral fundou-se na livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto) e no teor dos documentos juntos aos autos, não contestados pelas Partes.
IV.4. Matéria de direito
15. Como se referiu supra, em III., são três as questões de direito controvertidas no presente processo: i) saber se o artigo 3.º do CIUC contém uma presunção e se a ilisão da mesma foi feita; ii) saber se, como alega a AT, a interpretação da Requerente não atende aos elementos sistemático e teleológico de interpretação da lei; e iii) saber se são devidos os peticionados juros indemnizatórios.
16. Uma nota final tratará da questão da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais.
17. Vejamos, então.
18. As duas primeiras questões de direito suscitadas neste processo confluem na direcção da interpretação do art. 3.º do CIUC, pelo que, aparentemente, se mostraria necessário: a) saber se a norma de incidência subjectiva, constante desse artigo 3.º, estabelece uma presunção; b) saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico, como alegado pela AT; e c) saber - a admitir que a presunção existe e que é iuris tantum - se foi feita a sua ilisão.
19. O artigo 3.º, n.os 1 e 2, do CIUC, tinha a seguinte redacção até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou colectivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.
2 - São equiparados a proprietários os locatários financeiros, os adquirentes com reserva de propriedade, bem como outros titulares de direitos de opção de compra por força do contrato de locação”.
20. Contudo, com o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, o n.º 1 do citado artigo 3.º passou a ter uma redacção bem distinta:
“Artigo 3.º – Incidência Subjectiva
1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos.
21. Ao retirar a parte “os proprietários dos veículos, considerando-se como tais”, a alteração operada visa, claramente, passar a incidência subjectiva do IUC do proprietário do veículo para a pessoa em nome da qual está registada a propriedade do veículo, seja ela ou não o seu proprietário e/ou possuidor.
22. É uma alteração que faz toda a diferença em face das liquidações ora em causa, dado que, sendo as mesmas posteriores a 2016, a elas se aplica esta redacção e as suas consequências: i) a nova redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC (já) não contempla uma presunção; ii) consequentemente, também (já) não se coloca aqui, quanto a estas liquidações, a questão de saber se a ilisão da presunção foi feita (como pretendeu demonstrar a ora Requerente), nem a questão de saber se, ao considerar-se que essa norma estabelece uma presunção, tal viola a “unidade do regime”, ou desconsidera o elemento sistemático e o elemento teleológico (como defendeu a Requerida na sua resposta, ainda à luz da anterior redacção deste n.º 1 do art. 3.º).
23. Com efeito, e como bem refere, a este respeito, o Acórdão do TCA Norte de 21/2/2019, no proc. n.º 00611/13.4BEVIS: “«No tocante à incidência subjetiva de imposto, dispunha à data dos factos o art. 3.º daquele Código: ‘1 - São sujeitos passivos do imposto os proprietários dos veículos, considerando-se como tais as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados. (...)’. Ulteriormente, mediante a Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março de 2016 (Orçamento de Estado para 2016) a Assembleia da República conferiu ao Governo a seguinte autorização legislativa, através do seu art. 169.º: ‘(...) Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação. Fica o Governo autorizado a introduzir alterações no Código do Imposto Único de Circulação, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, de 29 de junho, com o seguinte sentido e extensão: a) Definir, com carácter interpretativo, que são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito publico ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, no n.º 1 do artigo 3.º (...)’. Essa autorização foi utilizada para emanação do Decreto-Lei n.º 41/2016 de 01 de Agosto, em cujo preâmbulo se afirmou: ‘(...) o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)’. O art. 3.º daquele Decreto-Lei conferiu a seguinte redação ao art. 3.º, n.º 1, do CIUC: ‘1 - São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos. (...)’ Em face da nova redação conferida ao preceito, dúvidas não subsistem que o legislador pretende que seja sujeito passivo de imposto o proprietário constante do registo, independentemente de poder não ser o titular do direito real de propriedade sobre veículo. (...)» Embora a decisão recorrida seja, afinal, no sentido da verificação de dúvidas sérias quanto à existência física das viaturas em causa, cuja propriedade estriba as liquidações impugnadas, entendemos que a alteração do regime legal operada pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, de 1 de Agosto, não é aplicável aos presentes autos. É verdade que o identificado Decreto-Lei veio dar cumprimento à norma constante da Lei do Orçamento de Estado (doravante LOE) para 2016, no seu artigo 169.º, e aprovada pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março. Na verdade, dispõe o referido normativo o seguinte: «Fica o Governo autorizado [...] no n.º 1 do artigo 3.º (...)». No uso desta autorização legislativa, foi publicado o referido Decreto-Lei n.º 41/2016, e que alterou a redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC, que passou a ser, como se transcreve na sentença recorrida, a seguinte: «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais os mesmos se encontrem registados.», norma esta que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação (nos termos do disposto no artigo 15.º do identificado diploma legal). Ora, não se julga que a supra transcrita seja uma norma verdadeiramente interpretativa. Dúvidas não existem de que a lei habilitante, a LOE, no seu artigo 169.º, classifica a alteração legal a efectivar quanto ao artigo 3.º do CIUC como tendo carácter meramente interpretativo. Já a norma habilitada se limita a estabelecer, no seu preâmbulo, o seguinte: «(...) Finalmente, o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autoriza que se efetuem, também, alterações ao Código do Imposto Único de Circulação. Sendo estas, igualmente, conexas com a necessidade de ultrapassar dificuldades interpretativas que surgiram com redações anteriores deste Código, importa clarificar-se quem é o sujeito passivo do imposto. (...)» Porém, não classifica a norma como tendo natureza interpretativa, apesar de o diploma assumir que a alteração legal veio ao encontro da necessidade sentida pelo legislador de «ultrapassar dificuldades interpretativas». Da redacção dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados. [...]. [...] [A] norma que vigorou até à aprovação do Decreto-Lei n.º 41/2016 nunca suscitou dúvidas, ao intérprete ou outros interessados, não sendo fonte de incerteza ou insegurança jurídica a definição do seu âmbito de aplicação. Contrariamente, sempre foi pacífica e uniformemente interpretado o referido artigo 3.º, n.º 1, do CIUC, como estabelecendo uma presunção legal iuris tantum, ou seja, susceptível de prova em contrário, sobre quem se considera ser o proprietário do veículo. Sublinhe-se que as normas de interpretação legal sempre impuseram a classificação de que era sujeito passivo deste tributo o proprietário do veículo, servindo a referida presunção para estabelecer que se considera como tal a pessoa singular ou colectiva que como tal figurar no registo automóvel, solução que bem se entende num sistema jurídico em que o registo tem como objectivo dar publicidade ao acto em questão, que não qualquer natureza constitutiva. [cfr. Acórdão do STA, de 08/07/2015, processo n.º 0606/15]. Esta posição vem sendo reiterada pelos tribunais superiores, designadamente, pelo nosso mais alto tribunal – cfr., entre outros, o Acórdão do STA, de 18/04/2018, proferido no âmbito do processo n.º 0206/17. É, portanto, certo que o artigo 169.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016 autorizou a alteração da redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC. O que foi cumprido pelo Decreto-Lei n.º 41/2016, passando esta norma a prever que «São sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos». Trata-se de norma claramente inovadora, uma opção legislativa diversa da anterior, e, como tal, a nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC só se aplica para futuro.” (Sublinhados nossos.)
24. No mesmo sentido, veja-se, ainda, a recente Decisão Arbitral de 23/5/2019, proferida no proc. n.º 658/2018-T: “Confrontando a redação anterior do artigo 3.º do CIUC com a que a resulta da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 41/20[1]6, de 01/08, em vigor a partir do dia seguinte ao da sua publicação, bem como com a norma de autorização legislativa, ressalta, desde logo, que o legislador não pretendeu fazer uso daquela autorização na vertente relativa à natureza interpretativa da alteração a introduzir ao CIUC e que a «clarificação» por ele pretendida passou por afastar do âmbito da incidência subjetiva do IUC o proprietário efetivo da viatura atribuindo, para o efeito, exclusiva relevância à pessoa que constasse do registo de propriedade, independentemente de ser ela ou não a proprietário ou possuidora da viatura no momento da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto. Sobre esta matéria, pode ler-se em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18-04-2018, proferido no Processo n.º 0206/17: «[...] O art. 169.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março – Orçamento de Estado 2016 – concedeu autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação para que o legislador definisse o exato alcance do disposto no art. 3.º do Código do Imposto Único de Circulação, nomeadamente sobre a impossibilidade de o contribuinte poder demonstrar, para efeitos de tributação nesta sede que, ainda que constasse do registo automóvel como titular do direito de propriedade sobre o veículo em causa, não era efetivamente o titular desse direito, à data da liquidação, nos seguintes termos: ‘Autorização legislativa no âmbito do imposto único de circulação. Fica o Governo autorizado [...] no n.º 1 do artigo 3.º’. Tal autorização legislativa veio a ser concretizado pelo DL 41/2016, de 01/08, cujos exatos termos, ao invés do que fez relativamente a outros impostos, não assumiu carácter interpretativo. Tendo sido concedida autorização legislativa para o governo regular certa matéria, com carácter interpretativo, dispõe, ainda, o órgão executivo, nesta circunstância, da possibilidade de consagrar ou não esse carácter interpretativo, por tal se conter dentro dos limites da autorização concedida.» Este entendimento sobre a relevância da inscrição no registo automóvel para a definição da sujeição subjetiva ao IUC, é acolhido, em idênticos termos, em acórdão de 20-09-2018, do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido no processo n.º 01270/14.2BEPNF, que, afastando também uma eventual natureza interpretativa da norma atual do artigo 3.º do CIUC, sustenta que «Da redação dada ao n.º 1 do artigo 3.º do CIUC pelo Decreto-Lei n.º 41/2016 conclui-se que veio o legislador afastar qualquer presunção legal quanto a quem pode ser considerado proprietário de um veículo, vindo antes determinar que passará a ser sujeito passivo do imposto a pessoa em nome da qual os veículos se encontrem registados.» Também no mesmo sentido, e referindo-se à norma em análise na sua atual redação, pronuncia-se o mesmo Tribunal, em acórdão de 03-10-2018, proferido no processo n.º 01271/14.0BEPNF, nos seguintes termos: «Daqui resulta, que a incidência subjetiva do IUC, nos termos do art. 3.º, n.º 1, do CIUC recai sobre ‘(...) as pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou privado, em nome das quais se encontre registada a propriedade dos veículos, independentemente da propriedade efetiva do veículo e da sua posse.’ O sujeito passivo é a pessoa em nome de quem está registada a propriedade do veículo, independentemente de ser ou não o seu proprietário e/ou possuidor. A incidência subjetiva basta-se com o mero registo do direito de propriedade em nome do sujeito passivo, sendo suficiente o nome da pessoa em que se encontra registada a propriedade do veículo, independentemente de ela ser ou não a proprietária e possuidora efetiva do veículo no ano a que respeita o IUC, designadamente no caso das situações de venda do veículo sem atualização do registo de propriedade. Perentório, conclui o acórdão que: “Com a nova redação do art. 3.º, n.º 1, do CIUC, a propriedade e a posse dos veículos não são elementos de incidência subjetiva do imposto...».” (Sublinhados nossos.)
25. Em face do supra exposto e acolhendo-se, aqui, a jurisprudência que se vem firmando nos Tribunais superiores quanto à incidência subjectiva do imposto na nova redacção do n.º 1 do artigo 3.º do CIUC (redacção que se aplica às liquidações aqui em causa), e estando provado que as viaturas a que tais liquidações dizem respeito se encontravam, nos anos de 2017 e 2018, registadas em nome da Requerente, não pode deixar de concluir-se pela legalidade das ora questionadas liquidações de IUC e juros compensatórios, bem como da decisão de indeferimento da correspondente reclamação graciosa.
26. Assim se concluindo, mostra-se inútil proceder à apreciação das questões suscitadas pela Requerente relativas à prova de que, à data da ocorrência do facto gerador e exigibilidade do imposto, as viaturas a que este respeita já lhe não pertenciam por terem sido transmitidas a terceiros; ficando, também, prejudicada a apreciação do pedido de juros indemnizatórios.
27. Quanto à questão relativa às custas arbitrais (suscitada pela Requerida, no §109.º da sua resposta), seguimos, aqui, o entendimento que já foi expresso, por ex., na Decisão Arbitral de 6/10/2014 (no proc. n.º 241/2014-T): “a lei é taxativa na imputação da responsabilidade pelo pagamento das custas à parte que for condenada, face ao disposto nos nºs 1 e 2, do art. 527.º do Código do Processo Civil, aplicável por força do art. 29.º, n.º 1, alínea e), do RJAT.”
28. No mesmo sentido, veja-se, e.g., a Decisão Arbitral de 4/11/2014, no proc. n.º 231/2014-T, ou a Decisão Arbitral de 17/11/2014, no proc. n.º 171/2014-T.
29. No caso destes autos, não tendo procedido o pedido da ora Requerente (pelas razões supra expostas), conclui-se que esta é a inteira responsável pelo pagamento das custas.
V. DECISÃO
Em face do supra exposto, decide-se:
- Julgar totalmente improcedente o pedido de anulação das liquidações de IUC e juros compensatórios e de revogação da decisão proferida em sede de reclamação graciosa objeto deste processo, pelo que tais actos impugnados se mantêm na ordem jurídica.
- Condenar a Requerente nas custas do processo.
VI. Valor do processo
Fixa-se o valor do processo em € 1118,41 (seis mil quatrocentos e sessenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos), nos termos do disposto no art. 32.º do CPTA e no art. 97.º-A do CPPT, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, als. a) e b), do RJAT, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
VII. Custas
Nos termos da Tabela I anexa ao RCPAT, as custas são no valor de € 306,00 (trezentos e seis euros), a pagar pela Requerente, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do RJAT, e artigo 4.º, n.º 5, do RCPAT.
Notifique-se.
Lisboa, 3 de Abril de 2020.
O Árbitro
(Miguel Patrício)
Texto elaborado em computador, nos termos do disposto
no art. 131.º, n.º 5, do CPC, aplicável por remissão do art. 29.º, n.º 1, al. e), do RJAT.
A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
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