DECISÃO ARBITRAL
I - RELATÓRIO
1. A..., Lda., contribuinte n.º ..., com sede na Avenida ..., n.º..., Lisboa, doravante designada por Requerente, apresentou em 25/07/2019 pedido de constituição de tribunal e de pronúncia arbitral, respeitante ao ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2011... e, em termos finais, ao ato subjacente de autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) relativo ao exercício de 2010 , no montante de € 17 953,53, por, no seu juízo, padecer do vício de violação da lei no segmento da Derrama Estadual.
2. No dia 07/10/2019 ficou constituído o tribunal arbitral.
3. Cumprindo a estatuição do artigo 17.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro (RJAT) foi a Requerida em 14/10/2019 notificada para, querendo, apresentar resposta e solicitar a produção de prova adicional.
4. Em 11/11/2019 a Requerida apresentou a sua resposta, na qual defende a improcedência do pedido de pronúncia arbitral, atenta a legalidade do ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa bem como, mediatamente, da autoliquidação de IRC do exercício fiscal de 2010, no segmento da Derrama Estadual.
5. Por despacho de 26/01/2020 foi dispensada a reunião prevista no artigo 18.º do RJAT e notificadas as partes para, querendo, apresentarem alegações finais escritas.
6. A Requerente apresentou as alegações finais escritas no dia 11/02/2020, tendo mantido a sua posição inicial.
POSIÇÃO DAS PARTES
7. A Requerente sustenta que o indeferimento expresso da reclamação graciosa e mediatamente a autoliquidação de IRC n.º 2011..., no segmento da Derrama Estadual, é ilegal por refletir uma errónea interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, visto que tendo aquela lei entrado em vigor em 01/07/2010 e não contemplando qualquer regra transitória respeitante à sua aplicação no tempo, teriam forçosamente de se aplicar as regras gerais quanto àquela matéria, ou seja, os artigos 12.º do Código Civil (CC) , ex vi artigo 2.º, al. d) da Lei Geral Tributária (LGT), assim como o artigo 12.º da LGT, dos quais decorre que a lei só pode aplicar-se a factos posteriores à sua entrada em vigor.
Deste modo, defende que o primeiro facto tributário posterior à sua entrada em vigor é o lucro tributável superior a € 2 000 000,00, apurado no exercício de 2011. Na verdade constata que, se apesar de o legislador no artigo 20.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho ter introduzido algumas regras de direito transitório, a realidade é que nenhuma se aplica à Derrama Estadual criada pelo mesmo diploma. Assim, aplicar-se-ia a regra geral: a lei dispõe para o futuro, ou seja, só estão abrangidos os factos tributários novos.
Em resumo, os factos tributários posteriores à aludida lei só poderão ser aqueles cujo período de formação do lucro tributável se iniciou depois da entrada em vigor da lei ou, quanto muito, ao segmento do período de tributação seguinte à entrada em vigor da lei.
Alega, em segunda linha, que a Derrama Estadual, imposto periódico, incidindo sobre um facto tributário compósito, formado ao longo de um período de tributação foi aplicado a um período anterior à sua vigência. A sua aplicação a facto tributário anterior à sua vigência, configura uma violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, previsto no artigo 103.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Isto é, aqui radica a inconstitucionalidade material na interpretação de que a Derrama Estadual incide sobre o período de tributação de 2010.
No seu juízo, a Derrama Estadual não pode, sob pena de inconstitucionalidade material, incidir sobre o lucro tributável do exercício de 2010, pois a análise da forma e da substância da Derrama Estadual confluem neste sentido: criação de um imposto extraordinário, independente do IRC. Defende que a interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho (Derrama Estadual) no sentido de a aplicar logo no exercício de 2010, relativamente àqueles sujeitos passivos cujo lucro tributável excedeu € 2 000 000,00, sendo o facto determinante do imposto a revelação do exercício de 2009, totalmente decorrido antes da entrada em vigor daquela lei, viola o artigo 103.º, n.º 3 da CRP.
Neste âmbito acrescenta que, mesmo que se entendesse que a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, não contende com a proibição expressa de retroatividade em matéria fiscal, sempre seria atentatória da tutela da confiança e da segurança jurídica, pois afirma não descortinar com a referida alteração legislativa um qualquer interesse constitucionalmente protegido prevalecente, que justificasse a afetação das expectativas legitimamente fundadas, não sendo a consolidação orçamental tutelada.
Em terceira linha propugna que a Lei n.º 12-A/2010, de 30 junho sempre seria inconstitucional quando interpretada no sentido de a Derrama Estadual incidir sobre o lucro tributável apurado de 1 de janeiro a 30 de junho de 2010, pois a interpretação configura uma hipótese de retroatividade autêntica, na medida em que nesta interpretação aquela se aplica a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor.
A este respeito defende que o ato tributário deverá ser anulado, pelo menos no que toca à Derrama Estadual incidente sobre o lucro tributável obtido no primeiro semestre de 2010.
Termina solicitando o reembolso de € 17 953,53 e a condenação da AT (Autoridade Tributária e Aduaneira) no pagamento de juros indemnizatórios, pois entende que é manifesto o erro que subjaz ao ato tributário em crise.
8. A Requerida apresenta uma defesa com os seguintes fundamentos:
i) Ilegalidade do indeferimento expresso da reclamação graciosa por refletir uma errónea interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, por omissão da aplicação do artigo 12.º, n.º 2 da LGT e artigo 12.º do Código Civil
Na sua defesa começa por referir que o lucro tributável não pode ser visto de forma parcelar ou isolada, mas como um facto tributário complexo de formação sucessiva, que se inicia no primeiro dia de tributação e só está concluído no final do respetivo período. Assim, não se compagina com qualquer autonomização ou cisão de períodos temporais dentro do mesmo exercício fiscal, sendo que o facto gerador se verifica no último dia do período de tributação.
Quanto à violação do artigo 12.º da LGT, propugna que o caso dos autos se reporta a IRC, qualificado na doutrina e na jurisprudência como um imposto periódico, condicionado por factos geradores de formação complexa e sucessiva que só se tornam plenos, para efeitos de tributação, no final do respetivo período.
Em resumo, será de concluir não ser configurável a existência de um grau de retroatividade suscetível de fazer frustrar a aplicação do n.º 1 do artigo 87.º-A do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), após a publicação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho.
No que concerne à putativa violação do artigo 12.º, n.º 2 da LGT defende (ainda) que não se verifica, nomeadamente pela circunstância de a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho ter visado reforçar e acelerar a redução do défice excessivo e controlar o crescimento da dívida pública previstos no Programa de Estabilidade e Crescimento. Isto é, como medida de consolidação orçamental sempre prevalecerá o princípio da anualidade do imposto e das alterações aos impostos periódicos vigorarem por todo o período do mesmo orçamento.
Por conseguinte, defende que deve ser utilizado o regime previsto no artigo 87.º-A do CIRC, aquele que legitima a aplicação da Derrama Estadual a todo o período de tributação.
ii) Violação do princípio da segurança jurídica e da sua decorrência: proteção da confiança
No seu juízo são várias as razões que conduziram o legislador a introduzir diversas alterações que culminaram na publicação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, v.g. a conjuntura económica internacional, a avaliação da situação financeira portuguesa por parte do FMI e da OCDE e as medidas adotadas por outros Estados-Membros da União Europeia em idêntica situação, como foram os casos da Grécia e da Espanha. Ou, dito de outo modo, propugna que a aplicação da lei nova (Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho) a efeitos decorrentes de factos anteriores não afeta, de forma intolerável a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica, com base na qual tomou as suas decisões.
Em segundo lugar, a produção de efeitos da norma em apreço – aplicação de sobretaxa de 2,5%, a título de Derrama Estadual às empresas cujo lucro tributável seja superior a € 2 000 000,00 justificou-se por razões imperiosas de interesse público. Chama igualmente a atenção para a circunstância de o grau de tolerância da medida legislativa tomada, face ao princípio da confiança, ser diretamente correspondente ao grau de relevância do interesse público constitucionalmente tutelado.
Conclui a este propósito que, prosseguindo a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho um fim constitucionalmente legítimo (com caráter urgente e premente no contexto de anúncio de medidas conjuntas de combate ao défice e à dívida pública acumulada), a aplicação da tributação adicional em sede de IRC – Derrama Estadual – introduzida por aquela lei, já no ano de 2010, não é suscetível de afetar a segurança jurídica e a proteção da confiança.
iii) Juros indemnizatórios
Defende que no caso concreto não se verifica a situação que a lei configura como sendo “erro imputável aos serviços”, pois a culpa tem de ser alegada e provada – não resulta automaticamente de qualquer ilegalidade. A circunstância de o IRC ser um imposto anual cujo facto tributário apenas se completa a 31 de dezembro, tem implícita a aplicação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, a todo o ano, independentemente da sua entrada em vigor ter ocorrido a 1 julho, uma vez que do seu conteúdo não consta qualquer disposição em sentido contrário.
QUESTÕES A DECIDIR
Nesta sequência, tendo em atenção as pretensões e posições da Requerente e da Requerida constantes das suas peças processuais, acima descritas, são as seguintes as questões que o tribunal deve apreciar (sem prejuízo da solução dada a certa questão poder prejudicar o conhecimento de outra ou outras questões – cfr. artigo 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, al. e) do RJAT):
a) Se o ato de indeferimento expresso da reclamação graciosa com o n.º ...2011..., e o ato de autoliquidação de IRC subjacente, na parte atinente à Derrama Estadual aqui sindicada, padecem do vício de violação da lei, por refletir uma errónea interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, visto que tendo aquela lei entrado em vigor em 01/07/2010 e não contemplando qualquer regra transitória respeitante à sua aplicação no tempo, teriam forçosamente de se aplicar as regras gerais quanto àquela matéria, ou seja, os artigos 12.º do CC, ex vi artigo 2.º, al. d) da LGT, assim como o artigo 12.º da LGT, dos quais decorre que a lei só poder aplicar-se a factos posteriores à sua entrada em vigor;
b) Se a interpretação do artigo 87.º - A do CIRC (aditado pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho), no sentido de que a Derrama Estadual, facto tributário compósito, formado ao longo de um período de tributação, aplicada a facto tributário anterior à sua vigência é inconstitucional por violação do artigo 103.º, n.º 3 da CRP ou, subsidiariamente, do princípio constitucional da segurança jurídica e da sua decorrência: proteção da confiança;
c) Se é inconstitucional, por violação do princípio da proibição da retroatividade da lei fiscal, a interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho no sentido de a Derrama Estadual incidir sobre o lucro tributável apurado de 1 de janeiro a 30 de junho de 2010, por configurar uma hipótese de retroatividade autêntica, na medida em que a lei nova, nesta interpretação, se aplica a factos ocorridos antes da sua entrada em vigor;
d) Se a Requerente tem direito ao reembolso e a juros indemnizatórios.
SANEAMENTO
O processo não enferma de nulidades, o tribunal arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente para conhecer e decidir o pedido, verificando-se, consequentemente, as condições para ser proferida a decisão final.
II – FUNDAMENTAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
1. Factos com relevância para a apreciação da causa que se consideram provados
1.1. A Requerente submeteu eletronicamente a declaração modelo 22 de IRC, relativa ao exercício de 2010, no dia 26/05/2011.
1.2. Em consequência da entrega da aludida declaração apurou-se na autoliquidação n.º 2011..., a título de Derrama Estadual, o montante de € 17 953,53.
1.3. A Requerente apresentou reclamação graciosa da aludida autoliquidação no dia 07/12/2011, no segmento da Derrama Estadual.
1.4. Por despacho do Chefe de Divisão da Direção de Finanças de Lisboa – datado de 29/06/2012 – foi expressamente indeferida a reclamação graciosa n.º ...2011... .
1.5. No dia 31/08/2012 a Requerente apresentou impugnação judicial tendo por objeto imediato a decisão de indeferimento expresso da reclamação graciosa n.º ...2011... e por objeto mediato a autoliquidação de IRC n.º 2011 ... de 2010, no segmento da Derrama Estadual, a qual tramita sob o n.º .../12...BELRS.
1.6. A Requerente apresentou pedido para extinção da instância judicial (artigos 9.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 81/2018, de 15 de outubro) no dia 23/07/2019.
1.7. A Requerente procedeu ao pagamento de € 311 640,27 (autoliquidação de IRC n.º 2011 ... e respeitante ao ano de 2010 ), montante no qual se incluem € 17 953,53, a título de Derrama Estadual.
1.8. O pedido de pronúncia arbitral foi apresentado em 25/07/2019.
2. Factos que não se consideram provados
2.1. O montante do lucro tributável da Requerente, no segundo semestre de 2010, foi de € 894 252,57.
Não existem quaisquer outros factos com relevância para a decisão arbitral que não tenham sido dados como provados.
3. Fundamentação da matéria de facto que se considera provada
Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente com o pedido de pronúncia arbitral e aceites expressamente pela Requerida.
4. Fundamentação da matéria de facto que não se considera provada
A Requerente não juntou qualquer documento com aptidão para que se dê como provado o facto que não foi dado como assente e diga-se, mesmo que o tivesse junto, sem qualquer outro suporte documental adicional, não se vê como uma tabela de Excel, por si elaborada, legitimasse a prova da factualidade nela inscrita.
MATÉRIA DE DIREITO
a) Questão da ilegalidade do indeferimento expresso da reclamação graciosa, por erro na interpretação da Derrama Estadual criada pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho
A primeira questão a decidir consiste em determinar se a Derrama Estadual, no ano de 2010, se aplica a todo o lucro tributável que vier a ser determinado no último dia do exercício (como alega a Requerida) ou se essa Derrama apenas se pode aplicar à parte do lucro tributável correspondente ao período de tempo decorrido após a data da entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2010, de 30 junho (1 de julho de 2010) e o dia 31 de dezembro de 2010, o último dia do exercício, como (também) defende a Requerente.
O artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho criou uma Derrama Estadual, com uma taxa de 2,5%, a incidir sobre a parte do lucro tributável que exceder € 2 000 000,00, como também criou regras especiais para o pagamento da Derrama, no caso dos grupos de sociedades – artigos 104.º-A e 105.º-A do CIRC.
A questão da sucessão no tempo de dois regimes jurídicos diferentes reguladores da mesma matéria, apesar de gerar inúmeras controvérsias, impõe que se determine com precisão o campo de aplicação de cada um, as relações ou atos a que são aplicáveis. O problema pode ser resolvido por disposição expressa do legislador, na qual se concretize o campo de aplicação do novo regime jurídico e do substituído . Quando esse diploma não contém uma norma expressa, há que procurar no Direito Fiscal uma norma que discipline a questão.
Em tal tarefa hermenêutica o tribunal é remetido para a norma geral, o artigo 12.º da LGT, o qual, indiscutivelmente, se aplica às normas tributárias.
O artigo 12.º, n. 1 da LGT estatui que: “As normas tributárias aplicam-se aos factos posteriores à sua entrada em vigor, não podendo ser criados quaisquer impostos retroativos”.
Acontece que, para os factos tributários que se iniciaram antes da entrada em vigor da lei nova e se prolongam para além dela, o artigo 12.º, n.º 2 da LGT determina que: “Se o facto tributário for de formação sucessiva, a lei nova só se aplica ao período decorrido a partir da sua entrada em vigor”. Ou seja, nos factos tributários de formação sucessiva – que se prolongam no tempo, como acontece com os impostos periódicos, por exemplo, o IRS e o IRC, a lei nova apenas se aplica ao intervalo temporal decorrido após a sua entrada em vigor.
Retornando ao caso concreto, se é verdade que a Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, no artigo 20.º, fixa regras especiais quanto à sua entrada em vigor, as normas sobre a Derrama Estadual não são abrangidas pelo referido normativo, pelo que o início da sua vigência aconteceu a 1 de julho de 2010. Ou, dito de outro modo, o referido diploma não contém uma disposição especial que crie um regime distinto para a Derrama Estadual, apenas em tal hipótese é que essa regra especial poderia prevalecer sobre a regra geral que provém da LGT – artigo 12.º, n.º 2.
Por isso é o momento de formular a seguinte questão: é ilegal aplicar o artigo 2.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho a todo o lucro tributável produzido pela Requerente em 2010?
A questão não é nova, pois, pelo menos, em três tribunais constituídos sob a égide do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), concluiu-se que o facto tributário que gera a Derrama Estadual é o lucro tributável de IRC – de natureza complexa e que se forma ao longo do exercício. Por isso e, ao abrigo do artigo 12.º, n.º 2 da LGT, repete-se, a Derrama Estadual apenas é aplicável ao lucro tributável que se formar a partir de 1 de julho de 2010, aplicando-se por tal via o princípio pro rata temporis.
É também essa a interpretação efetuada pela jurisprudência estadual tributária , quando observa que: “Nos termos do n.º 2 do art. 12.º da LGT, nos casos, como o sub judice, em que a lei nova entra em vigor a meio do ano, quando já está em curso o facto tributário de formação sucessiva, a tributação só deve incidir sobre o período ulterior à entrada em vigor dessa lei (Cfr. SÉRGIO VASQUES, ibidem, pág. 232.). Ou seja, o facto tributário deverá ser fracionado, aplicando-se a lei antiga aos rendimentos gerados até à entrada em vigor da lei nova e aplicando-se a lei nova aos rendimentos gerados após a sua entrada em vigor. É nisto que reside o critério pro rata temporis que o legislador consagrou naquela disposição legal. Esse critério legal visa, como também salientou a sentença com recurso à indicação de numerosa doutrina, obviar à aplicação retroativa da lei fiscal, que, no caso, se verificaria caso a Lei n.º 12-A/2010 pretendesse, designadamente através de uma disposição de direito transitório nela integrada, ser também aplicável ao período do ano de 2010 já decorrido à data da sua entrada em vigor. Na verdade, a posição sustentada pela Recorrente, pretendendo que a derrama estadual criada por aquela Lei, que entrou em vigor em 1 de julho de 2010, fosse também aplicada ao primeiro semestre desse ano, ou seja, a uma parte do lucro tributável gerado antes da data da sua entrada em vigor – o que vimos não acontecer por ser aplicável o critério pro rata temporis consagrado no n.º 2 do art. 12.º da LGT – levaria a uma situação de aplicação retroativa da lei fiscal, que temos por constitucionalmente vedada (cfr. art. 103.º, n.º 3, da CRP)”.
Deste modo, a Derrama Estadual estabelecida pela Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho apenas se aplica à parte do lucro tributável produzido após a sua entrada em vigor, pelo que é aplicável o previsto no artigo 12.º, n.º 2 da LGT – lei geral, a AT não podia fazer incidir a Derrama Estadual sobre o lucro tributável, senão a partir do dia 1 de julho de 2010. Assim, se o intervalo temporal do ano de 2010 decorrido até 30/06/2010 é de 181 dias, quando o que se verificou a partir de 01/07/2010 é de 184 dias, aplicado o critério pro rata temporis é relevante para a determinação da Derrama Estadual do ano de 2010 a percentagem de 50,41% (184/365) da parte do lucro tributável superior a € 2 000 000,00 .
Em suma, é ilegal a aplicação da Derrama Estadual (lei nova) sobre a parte do lucro tributável ocorrido antes do início da sua vigência, por violação do artigo 12.º, n.º 2 da LGT.
b) Questão da inconstitucionalidade da interpretação da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho
A este propósito recorde-se que a CRP, com a revisão de 1997, passou a consagrar expressamente no seu artigo 103.º, n.º 3 que ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que tenham natureza retroativa, opção essa consolidada em 1998, com a previsão na LGT de regras sobre a aplicação temporal da lei fiscal, o artigo 12.º do referido diploma.
À luz da lição de ALBERTO XAVIER é possível identificar três graus de retroatividade: i) 1.º grau; ii) 2.º grau e iii) 3.º grau.
Na retroatividade de 1.º grau ou máxima, o facto ocorreu integralmente ao abrigo da lei antiga, tendo já produzido todos os seus efeitos no âmbito dessa mesma lei. A lei nova pretende retirar dos mesmos factos efeitos jurídicos distintos. Na retroatividade de 2.º grau ou intermédia, o facto também se verificou por completo ao abrigo da lei antiga, contudo, distingue-se da retroatividade de 1.º grau, na medida em que os seus efeitos não se esgotaram por completo ao abrigo da lei velha, pois continuam a produzir-se ao abrigo da lei nova. Decisivo para fixar a norma temporalmente aplicável é o momento em que ocorreu o facto tributário e não aquele em que a norma é concretamente aplicada. Por último, na denominada retroatividade de 3.º grau, o facto tributário não se verificou integralmente sob os auspícios da lei antiga, pelo contrário, prolonga a produção dos seus efeitos no domínio temporal da lei nova . Por isso, a solução consiste em dividir os rendimentos de acordo com o critério pro rata temporis.
O artigo 12.º, n.º 1 da LGT veda a retroatividade de 1.º grau ou autêntica, na linguagem do Tribunal Constitucional, mas a divisão dos rendimentos, de acordo com o critério pro rata temporis, encontra-se consagrada normativamente no artigo 12.º, n.º 2 da LGT.
Por conseguinte, resultando das normas sobre aplicação da lei no tempo e âmbito da competência temporal das normas fiscais que a Derrama Estadual (Lei n.º 12-A/ 2010, de 30 de junho), apenas se aplica à parte do lucro tributável correspondente ao período decorrido após a sua entrada em vigor, não se vislumbra uma situação de retroatividade cuja admissibilidade deva ser conhecida. Com efeito, apenas estaríamos perante um caso de retroatividade se a Derrama Estadual fosse aplicada a uma parte do lucro tributável que se tivesse criado antes da sua entrada em vigor – o que não aconteceu, pois o legislador resolveu esse potencial conflito com o critério: pro rata temporis.
A questão da retroatividade colocar-se-ia, caso existisse na Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, norma que derrogasse o teor do artigo 12.º, n.º 2 da LGT, assim este normativo constitui a regra geral do Direito Tributário para os conflitos, mesmo que aparentes, de normas fiscais no tempo, no caso de factos tributários de formação sucessiva, norma essa que poderia, em abstrato, atribuir a competência temporal para a totalidade do facto tributário que se estivesse a formar no dia da sua entrada em vigor – caso em que seria parcialmente retroativa ou apenas relativamente aos factos tributários continuados cuja formação se iniciasse após a sua entrada em vigor.
Por último, a Requerente também alega que a aplicação do teor da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, no exercício de 2010 viola o princípio da segurança jurídica e da sua decorrência: proteção da confiança, pois o normativo que prevê a Derrama Estadual aplicar-se-ia a período anterior à sua entrada em vigor.
A este respeito afirma o Tribunal Constitucional :
“O princípio postula, pois, uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da atuação dos poderes públicos.
Segundo a prática do Tribunal sintetizada no Acórdão n.º 575/2014, a aplicação daquele método a um caso concreto pressupõe, antes do mais, que se determine, com precisão, se, nesse caso, a norma sob juízo fez protrair os seus efeitos sobre o passado e com que grau de intensidade o fez. Na circunstância de ser positiva a resposta a esta questão, haverá ainda que valorar à luz da Constituição as "expectativas" dos particulares, que confiaram na inexistência da projeção sobre o passado dos efeitos das novas decisões legislativas. E essa valoração só pode incidir sobre a consistência das posições jurídicas subjetivas definidas à luz do Direito anterior, e que vêm agora, pela lei nova, a ser afetadas. Na verdade, as "expectativas" dos particulares na continuidade, e na não disrupção, da ordem jurídica, não são realidades aferíveis ou avaliáveis no plano empírico dos factos. A sua densidade não advém de uma qualquer pré-disposição, anímica ou psicológica, para antecipar mentalmente a iminência ou o risco das alterações legislativas; a sua densidade advém do tipo de direitos de que são titulares as pessoas afetadas e o modo pelo qual a Constituição os valora. O ponto é importante, uma vez que, como se disse no Acórdão n.º 862/2013, quanto mais consistente for o direito do particular, mais exigente deverá ser o controlo da proteção da confiança”.
Ora, como já aqui se escreveu, a lei nova não é aplicada a período anterior à sua entrada em vigor (artigo 155.º do pedido de pronúncia arbitral), mas somente a partir do dia 1 de julho de 2010, pelo que, sem mais delongas, não se verifica a qualquer violação do princípio da segurança jurídica e da sua decorrência: proteção da confiança.
Termos em que improcede este segmento da pretensão da Requerente.
c) Questão do direito ao reembolso do imposto indevidamente pago e condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios
A Requerente formula o pedido de restituição do valor de € 17 953,53, relativo a Derrama Estadual indevidamente liquidada e paga, acrescido dos correspondentes juros indemnizatórios.
O artigo 24.º, n.º 1, al. b) do RJAT estatui que em caso de procedência da decisão arbitral a AT deve: “ (…)restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adotando os atos e operações necessários para o efeito;”.
No caso concreto, se o tribunal reconheceu a ilegalidade parcial do ato de liquidação há lugar a reembolso do imposto pago ilegalmente, por força dos artigos 24.º, n.º 1, alínea b) do RJAT e 100.º da LGT, pois tal é essencial para restabelecer a situação que existiria se o ato tributário objeto da decisão arbitral não tivesse sido praticado.
Assim sendo, a Requerente deve ser reembolsada da Derrama Estadual paga ilegalmente.
No entanto, na medida em que o reembolso depende do cálculo da Derrama Estadual da competência da Requerida, questão que não se insere nas competências deste tribunal, relega-se o seu concreto apuramento para a execução da sentença .
A Requerente formulou ainda um pedido de condenação da AT no pagamento de juros indemnizatórios, por isso há que apurar se tem direito aos mesmos.
O artigo 43.º, n.º 1 da LGT dispõe que: “São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido”. Por outras palavras são três os requisitos do direito aos referidos juros: i) a existência de um erro em ato de liquidação de imposto imputável aos serviços; ii) a determinação de tal erro em processo de reclamação graciosa ou de impugnação judicial e iii) o pagamento de dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.
Deste modo, é logo possível formular uma questão: é admissível determinar o pagamento de juros indemnizatórios em processo arbitral tributário? A resposta à questão é afirmativa. Com efeito, o artigo 24.º, n.º 5 do RJAT dispõe que: “É devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Ora, resulta do processo que a Requerida ao indeferir expressamente a reclamação graciosa com que a Requerente reagiu à autoliquidação de IRC, no segmento da Derrama Estadual, incorreu em erro sobre os pressupostos, erro esse que lhe é imputável.
Assim sendo, atento o disposto no artigo 61.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e considerando que se encontram preenchidos os pressupostos do direito a juros indemnizatórios, ou seja, verificada a existência de erro imputável aos serviços de que resultou o pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido, tal como previsto no artigo 43.º, n.º 1 da LGT, a Requerente tem direito a juros indemnizatórios, à taxa legal, devendo o seu montante ser apurado pela AT na execução da presente decisão arbitral.
III – DECISÃO
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de anulação parcial do ato tributário objeto do pedido arbitral correspondente à autoliquidação de IRC n.º 2011..., referente ao ano de 2010, no segmento em que determinou mais de 50,41% da parte de lucro tributável da Requerente que excede € 2 000 000,00;
b) Condenar a Requerida a restituir à Requerente a quantia paga em excesso, a determinar em execução de julgado;
c) Julgar procedente o pedido de pagamento de juros indemnizatórios, contados à taxa legal, com termo inicial no dia do pagamento indevido;
d) Condenar a Requerida no pagamento das custas arbitrais.
VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 17 953, 53, nos termos do artigo 97.º - A do CPPT, aplicável por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, al. a) do RJAT e do artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária (RCPAT).
CUSTAS
Custas a suportar pela Requerida, no montante de € 1224,00, cfr. artigo 22.º, n.º 4 do RJAT e da Tabela I anexa ao RCPAT.
Notifique.
Lisboa, 26 de março de 2020
O árbitro,
Francisco Nicolau Domingos