DECISÃO ARBITRAL
Acordam em tribunal arbitral
I – Relatório
1. A..., S.A., anteriormente designada por “Grupo A... SGPS, S.A.”, pessoa colectiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º..., ..., ..., ..., ...-... ..., vem requerer a constituição de tribunal arbitral, ao abrigo do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro, para apreciar a legalidade do indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra o acto de autoliquidação de IRC e derramas municipal e estadual relativo ao exercício de 2011, e a ilegalidade parcial desse acto de autoliquidação no montante de € 1.120.078,15, requerendo ainda a condenação no pagamento de juros indemnizatórios até integral reembolso do imposto indevidamente pago.
Fundamenta o pedido nos seguintes termos.
A Requerente é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS, que integrava desde 1 de Janeiro de 2013, a C..., S.A. (C...), sociedade que incorporou por fusão a D..., SGPS, S.A. (D...).
No decurso do segundo trimestre de 2007 e em 2008, a D... adquiriu acções representativas do capital social da E..., SGPS, S.A., sociedade cotada na H... com um custo total de aquisição de € 35.393.792, que representavam menos de 5% do capital social da E... .
Até 31 de Dezembro de 2009, as participações sociais em causa encontravam-se mensuradas nas demonstrações financeiras das duas sociedades ao custo de aquisição, nos termos dos princípios contabilísticos definidos no Plano Oficial de Contas, e, na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a partir de 1 de Janeiro de 2010, a Requerente e a D... passaram a mensurar, nas suas demonstrações financeiras, as participações sociais detidas no capital da E... de acordo com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro 27 (NCRF 27).
Em virtude da adopção das novas regras contabilísticas, a Requerente e a D... apuraram variações patrimoniais negativas associadas à mensuração das participações detidas na E... de acordo com o justo valor, no montante de € 20.542.389, que representa a diferença, em 31 de Dezembro de 2009, entre o custo de aquisição das participações e o seu justo valor nesta data.
A C.../D... apurou ainda no exercício de 2011 com respeito às mesmas participações sociais detidas na E... ajustamentos de justo valor no montante de € 3.656.362.
Na sequência de um pedido de informação vinculativa, a Autoridade Tributária confirmou o entendimento segundo o qual a variação patrimonial apurada por redução do justo valor concorre para a formação do lucro tributável, por efeito do disposto no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC, em apenas metade do seu valor. Seguindo essa orientação, a Requerente e a D..., na autoliquidação de IRC de 2011, consideraram em apenas 50%, as variações patrimoniais negativas respeitantes às participações na E..., decorrentes da transição para o novo referencial contabilístico em matéria de reconhecimento do justo valor e em apenas 50% da desvalorização ocorrida no próprio período de 2011 com essa participação financeira.
A Requerente considera, no entanto, que, por efeito da excepção contida na alínea a) do nº 9 do artigo 18º do Código de IRC, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem na íntegra para a formação do lucro tributável quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social.
Sendo que os gastos resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, que relevem para a formação do lucro tributável nos termos da alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, se encontram excluídos do âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 45.º desse mesmo Código.
Havendo de entender-se que a interpretação da norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC no sentido de que se aplicaria também aos ajustamentos negativos decorrentes do justo valor, previstos na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC é inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade, da liberdade de gestão empresarial e do princípio da tributação segundo o rendimento real em conjugação com o princípio da capacidade contributiva.
A Autoridade Tributária, na sua resposta, invoca a excepção da incompetência do tribunal arbitral para declarar a anulação do imposto no montante apurado de € 1.120.078,15 e a condenação da entidade requerida no reembolso dessa importância, considerando que, no âmbito do processo de impugnação judicial e do processo arbitral, a competência se restringe à questão de legalidade do acto impugnado, não podendo o tribunal definir os termos em que deve ser executado o julgado anulatório. Acrescentando que uma outra interpretação será contrária à unidade da ordem jurídica e viola os princípios da certeza e da segurança jurídica, e é materialmente inconstitucional por violação dos princípios do acesso à justiça, da igualdade de tratamento, da tutela jurisdicional efectiva previstos nos artigos 13.º e 20.º da CRP.
Em sede de impugnação, a Autoridade Tributária sustenta que a disposição contida no artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC define o regime aplicável com carácter genérico em matéria de dedução das diferenças negativas entre as mais-valias realizadas, bem como de outras perdas e variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital, dela estando afastados apenas os casos em que a lei estatuía um tratamento particular, maxime no artigo 23.º, n.ºs 3, 4 e 5, do CIRC e no n.º 2 do artigo 32.º do EBF.
Nesse sentido, o disposto no artigo 18.º, n.º 9, alínea a), visa unicamente estabelecer uma regra de imputação temporal dos rendimentos/ganhos e dos gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor aos instrumentos de capital próprio que contribuem para a formação do lucro tributável, em concretização do princípio da especialização dos exercícios ou do acréscimo, não consagrando, por isso, o regime aplicável em matéria de dedutibilidade daqueles gastos/perdas. E, por conseguinte, a dedução dos gastos/perdas decorrentes da aplicação do justo valor aos instrumentos de capital próprio, nos termos desse preceito, rege-se pelo disposto nos artigos 23.º, n.º 1, alínea i), e 45.º, n.º 3, do CIRC, e são apenas dedutíveis em metade do seu valor.
Sendo de considerar que a norma do artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, na redacção vigente à data dos factos tinha o propósito de alargar o seu âmbito de aplicação a outras realidades, para além da transmissão onerosa de partes sociais, ela não viola os princípios constitucionais da tributação segundo o lucro real, da igualdade ou da capacidade contributiva.
Conclui no sentido da procedência da excepção da incompetência do tribunal arbitral para conhecimento do pedido de anulação do imposto no montante apurado e no seu reembolso e da improcedência do pedido arbitral.
2. No seguimento do processo, foi dispensada a reunião a que se refere o artigo 18.º do RJAT e determinada a apresentação de alegações facultativas por prazo sucessivo.
Em alegações, as partes mantiveram as suas anteriores posições.
3. O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária nos termos regulamentares.
Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.
As partes foram oportuna e devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT e dos artigos 6.° e 7.º do Código Deontológico.
Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redação introduzida pelo artigo 228.° da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 1 de outubro de 2019.
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 30.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de janeiro.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de março).
O processo não enferma de nulidades e não foram invocadas excepções.
Cabe apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Matéria de facto
3. Os factos relevantes para a decisão da causa que são tidos como assentes são os seguintes.
A) Requerente é a sociedade dominante do Grupo Fiscal B..., sujeito ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS);
B) O Grupo Fiscal B... integrava com efeitos desde 1 de Janeiro de 2013, a C..., S.A. (C...), sociedade que incorporou por fusão a D..., SGPS, S.A. (D...), sociedade esta que integrava também, até à sua extinção por fusão, o Grupo Fiscal B...;
C) A Requerente, na qualidade de sociedade dominante do Grupo Fiscal B..., procedeu à autoliquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e derramas municipal e estadual consequentes relativamente ao exercício de 2011 mediante apresentação das respectivas declarações Modelo 22 (Docs n.ºs 3 e 4, juntos com o pedido de pronúncia arbitral);
D) No decurso do segundo trimestre de 2007, a D... adquiriu acções representativas do capital social da “E..., SGPS, S.A.”, anteriormente denominada “F... SGPS, S.A.”, e em 2007 denominada “G..., SGPS, S.A.” (“G...”), sociedade cotada na H... (H...);
E) Em 2008, a D... possuía um total de 3.423.560 acções, tendo o custo total de aquisição ascendido a € 35.393.792 (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
F) A aquisição das acções referidas conferem à Requerente, bem como à D..., uma participação representativa de menos de 5% do capital social da E..., sendo que quer a Requerente quer a D..., isoladamente ou em conjunto, e mais latamente o Grupo Fiscal B..., não detêm directa ou indirectamente participação na E... igual ou superior a 5%;
G) Até 31 de Dezembro de 2009, as participações sociais em causa encontravam-se mensuradas nas demonstrações financeiras das duas sociedades ao custo de aquisição, nos termos dos princípios contabilísticos definidos no Plano Oficial de Contas (POC) (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
H) Na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística (SNC), a partir de 1 de Janeiro de 2010, a Requerente e a D... passaram a mensurar, nas suas demonstrações financeiras, as participações sociais detidas no capital da E... de acordo com a Norma Contabilística e de Relato Financeiro 27 (NCRF 27) (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
I) Em virtude da adopção pela primeira vez das novas regras contabilísticas, a Requerente e a D... apuraram variações patrimoniais negativas associadas à mensuração das participações detidas na E... de acordo com o justo valor, no montante de € 20.542.389, que representa a diferença, em 31 de Dezembro de 2009, entre o custo de aquisição das participações e o seu justo valor nesta data (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
J) A C.../D... apurou, ainda no exercício de 2011, com respeito às mesmas participações sociais detidas na E... ajustamentos de justo valor no montante de € 3.656.362 (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
K) No dia 29 de Dezembro de 2010, a Requerente efectuou um pedido de informação vinculativa no sentido de confirmar o entendimento da Autoridade Tributária sobre o enquadramento fiscal daquela variação patrimonial, nomeadamente no que respeita à limitação da dedução a 50% constante do artigo 45.º, n.º 3, do Código do IRC (doc. n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
L) Em resposta ao Pedido, informou a Direcção de Serviços de IRC que “No caso de ser apurada uma perda por redução do justo valor, o artigo 45º, nº 3 do CIRC, estabelece que “outras perdas relativas a partes de capital concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”, concluindo que “Sendo as reduções de justo valor destas partes de capital qualificadas como perdas deverão ser consideradas, nos termos do referido artigo 45º, nº 3, do CIRC, em 50% do seu valor” (doc. n.º 8 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
M) A Requerente e a D..., seguindo o entendimento da Autoridade Tributária, consideraram, para efeitos fiscais, na autoliquidação de IRC de 2011, em apenas 50%, as variações patrimoniais negativas respeitantes às participações na E..., decorrentes da transição para o novo referencial contabilístico em matéria de reconhecimento do justo valor (de forma diferida por cinco períodos de tributação) e em apenas 50% da desvalorização ocorrida no próprio período de 2011 com a referida participação financeira (doc. n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral);
N) Em 4 de Maio de 2015, a Requerente apresentou um pedido de revisão oficiosa do acto de autoliquidação em IRC relativo ao ano de 2011, que consta do documento n.º 12 junto com o pedido de pronúncia arbitral e cujo teor se dá como reproduzido (cfr. ainda o documento n.º 6 quanto à data da apresentação do pedido);
O) O pedido de revisão oficiosa foi indeferido por despacho de 8 de Maio de 2019 do subdirector-geral, praticado com subdelegação de poderes, mediante a conversão em definitivo do projecto de indeferimento do pedido;
P) O indeferimento teve por base a informação n.º .../2019 dos serviços, que consta do documento n.º 6 junto ao pedido arbitral, que aqui se dá como reproduzida, e em que se refere, além do mais, o seguinte:
Com efeito, por Despacho da Diretora Geral da AT, de 16.11.2018 foi emitido entendimento no sentido da permanência da aplicação da doutrina, segundo a qual às perdas de justo valor previstas na alínea a) do n° 9 do artigo 18° do CIRC se aplica a limitação da dedutibilidade em 50% prevista no anterior n.º 3 do artigo 45° do CIRC.
Este entendimento teve por base:
Que a alteração efetuada ao n.º 9 do artigo 18° do CIRC veio permitir que alguns rendimentos ou gastos, ainda não realizados, possam concorrer para a formação do lucro tributável, nomeadamente os previstos nas alíneas a) e b) daquele preceito, importando perceber nomeadamente, que tipo de investimentos o legislador visou abranger pela referida disposição.
Nesse sentido, verifica-se que a rácio do legislador fiscal no que respeita a valorização dos instrumentos financeiros ao justo valor envolve apenas os casos em que a verificabilidade e fiabilidade na sua determinação esteja em princípio assegurada e, de cumulativamente, esses investimentos não ultrapassarem 5% do capital da entidade. Chamando-se a atenção para o surgimento de muitas outras questões relativas a esses instrumentos com um preço formado num mercado regulamentado, nomeadamente, o objetivo associado à detenção desses instrumentos pelo sujeito passivo e o período de permanência que os caracteriza.
Consequentemente, mantendo-se reservas quanto à interpretação que exclui a limitação da dedutibilidade prevista no revogado n° 3 do artigo 45° do CIRC, uma vez que entendemos que não será óbvia a demonstração de que o legislador tenha pretendido por fim ao tratamento desigual das variações positivas e negativas, mediante a adoção do modelo do justo valor na alínea a) do n° 9 do artigo 18° do CIRC.
Atualmente a contabilidade esta orientada para o valor atual dos ativos (não para o custo histórico) dando-se importância a informação fornecida para entidades externas à empresa, no sentido de as mesmas conhecerem a noção real e atual dos seus ativos. Por esse facto, a consideração do Justo Valor para efeitos fiscais tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, encontrando-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais. O facto tributário deixa de se associar à venda de títulos - realização das mais ou menos valias – passando a estar associado à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, estando estas mais-valias ou menos-valias assim determinadas pelo justo valor abrangidas por uma natureza meramente potencial ou provisória, porque o valor dos ativos consubstancia-se numa posição financeira, sendo que não existe uma efetiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico.
Assim, parece evidente que o legislador aquando do acolhimento do modelo do justo valor, terá optado por manter a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5% do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados.
Já, de maneira oposta, quando estejam em causa instrumentos financeiros que correspondam a menos de 5% do capital social cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados e naqueles casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada, o legislador terá optado por aceitar a aplicação do modelo do justo valor, excluindo o princípio da realização.
Afigura-se que o legislador pretendeu garantir que os ajustamentos associados ao justo valor dos instrumentos financeiros previstos na alínea a) do n° 9 do artigo 18° do Código do IRC, fossem imediatamente tributados no período de tributação em que se verificam.
De notar que, uma interpretação diferente implicaria um tratamento mais favorável para os gastos ou perdas de justo valor relativos a partes de capitais face às menos-valias ou variações patrimoniais negativas de instrumentos da mesma natureza, conduzindo a discrepâncias no tratamento fiscal consoante se verificassem ou não os requisites na alínea a) n° 9 do artigo 18° do CIRC, entre as quais avulta designadamente no caso de sujeitos passivos que aplicassem as normas internacionais de contabilidade a opção pela sua contabilização pelo justo valor através de resultados ou através de capitais próprios por razões exclusivamente fiscais.
Não pode o intérprete conceber um resultado que o legislador manifesta e expressamente não só não previu como não é seguro concluir que seja contrário à sua intenção.
Assim é de considerar que, por força da conjugação da alínea a) do nº 9 do artigo 18º com o disposto na alínea f) do nº 1 do artigo 20º e na alínea i) do nº 1 do artigo 23º todos do CIRC; os ganhos e perdas decorrentes da aplicação do critério do justo valor por resultados, concorrem para o lucro tributável de cada período de tributação, sendo que a coexistência destes normativos com a redação do nº 3 do artigo 45° do CIRC, leva a concluir que, ao introduzi-los no Código do IRC, se o legislador tivesse pretendido dar um tratamento diferente às perdas resultantes da aplicação do justo valor teria alterado a redação da norma em conformidade, vincando expressamente a sua intenção, como aliás também não o fez ao tempo da criação de idênticos regimes para as empresas do setor bancário e segurador.
Parece adequado que o legislador tenha pretendido manter um tratamento uniforme das perdas ou variações patrimoniais associadas às partes de capital, independentemente do nível de participação que aquelas partes representassem no capital e do critério de mensuração adotado, já que, como referido, permaneciam casos em que a perda devalor, apesar de verificada em instrumentos de capital próprio com preço formado em mercado regulamentado (como sejam as situações em que o sujeito passivo detém mais de 5% do capital ou em que detém menos de 5% mas opta pela contabilização dos ajustamentos resultantes das alterações no justo valor em contas de capital próprio) se continuava a aplicar a limitação em 50% de dedutibilidade das perdas.
Entende-se que o legislador optou por dar prevalência ao princípio da neutralidade no tratamento fiscal das perdas ou variações patrimoniais associadas a partes de capital, independentemente do método de mensuração, salvaguardando em simultâneo, a imprevisibilidade de eventuais efeitos negativos nas receitas fiscais, decorrente das flutuações das cotações do mercado.
Concluindo
A norma prevista no nº 3 do artigo 45° do CIRC reporta-se a diferenças negativas entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, outras perdas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, e a outras variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Face ao exposto mantém-se a interpretação de que as perdas decorrentes da redução do justo valor de instrumentos financeiros, designadamente partes de capital, e, bem assim, as perdas associadas a alienação de partes de capital valorizadas ao justo valor, caem no âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 45º do CIRC, pelo que, nesse sentido, só deverão ser consideradas, para efeitos do apuramento do lucro tributável, em metade do seu valor.
Este entendimento converge com o sentido do nº 3 do artigo 45º do Código do IRC, evitando comportamentos fiscalmente abusivos, que poderiam ser alcançados através da percentagem de detenções das participações sociais com preço formado em mercado regulamentado.
Por último, é de referir que as decisões jurisprudenciais do CAAD referidas pela Requerente para sustentar a sua posição, e contrariada em outras decisões do mesmo tribunal arbitral, veja-se as decisões proferidas nos Processos nº 25/2015-T de 24.09.2015, nº 90/2016-T, de 26.10.20161 bem como a declaração de voto vencido junta à decisão do CAAD proferida no Processo nº 351/2016-T, de 30.05.2017.
Q) Em 23 de Julho de 2019, a Requerente apresentou o pedido de pronúncia arbitral que deu origem ao presente processo.
Factos não provados
Não existem quaisquer factos não provados relevantes para a decisão da causa.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e no processo administrativo junto pela Autoridade Tributária com a resposta, e em factos não questionados pelas partes.
Saneamento
4. A Autoridade Tributária suscitou a excepção dilatória da incompetência do tribunal arbitral relativamente ao pedido anulação do imposto e do seu reembolso no montante apurado de € 1.120.078,15, por considerar que esse pedido na parte em visa a devolução do imposto indevidamente pago, ainda que possa constituir uma consequência da declaração de ilegalidade de atos de liquidação impugnados, no plano executivo, não se enquadra na competência do tribunal arbitral tal como se encontra definida no artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT.
Na petição inicial a Requerente deixa claro que a sua pretensão tem por objecto o acto de autoliquidação de IRC referente ao exercício de 2011, bem como a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa deduzido contra esse acto. No entanto, na formulação do pedido, a impugnante requer não apenas a anulação do acto de autoliquidação e do despacho de indeferimento, mas também, como necessária consequência legal, o reembolso no montante de imposto indevidamente pago, acrescido dos respetivos juros indemnizatórios.
Deve começar por dizer-se que embora a competência dos tribunais arbitrais em matéria tributária apenas compreenda as pretensões que envolvam a declaração de ilegalidade de actos de liquidação de tributos, de fixação da matéria colectável e de fixação de valores patrimoniais, nos termos das referidas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 2.º do RJAT, o certo é que constitui um efeito da decisão arbitral de procedência que a Administração Tributária deva praticar o acto tributário legalmente devido em substituição do acto impugnado e restabelecer a situação que existiria se esse acto não tivesse sido praticado (artigo 24.º, n.º 1, do RJAT).
Essa é, por outro lado, a necessária decorrência do dever de execução de sentenças de anulação de actos administrativos (artigo 179.º do CPTA), que se torna extensivo, nos mesmos exactos termos, às situações em que haja lugar à anulação administrativa por iniciativa da Administração ou a requerimento do particular (artigo 172.º do CPA).
No caso, a Requerente veio deduzir um pedido de reembolso do imposto indevidamente pago, mas esse é um pedido meramente acessório e condicionado à declaração de ilegalidade dos actos tributários impugnados, não assumindo a natureza de um pedido autónomo de condenação na prática de acto devido ou de reconhecimento de direitos legalmente protegidos que extravase o âmbito de competência material do tribunal arbitral.
Nesse sentido aponta ainda o facto de nada obstar a que o tribunal profira condenação, se for o caso, no pagamento de juros indemnizatórios.
Nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respectiva nota de crédito. Sendo que o pagamento de juros indemnizatórios se torna exigível sempre que a prestação tributária indevida resulte de erro imputável aos serviços verificável quer em impugnação administrativa quer em impugnação judicial.
Há assim lugar, na sequência de declaração de ilegalidade do acto de liquidação de imposto, ao pagamento de juros indemnizatórios, nos termos das citadas disposições dos artigos 43.º, n.º 1, da LGT e 61.º, n.º 5, do CPPT, calculados sobre a quantia que a Requerente pagou indevidamente, à taxa dos juros legais (artigos 35.º, n.º 10, e 43.º, n.º 4, da LGT).
E, do mesmo modo, o tribunal arbitral não está impedido de incluir no dispositivo as cominações meramente consequenciais da declaração de ilegalidade do acto tributário, como seja a condenação no reembolso do imposto indevidamente pago.
A Autoridade Tributária suscita ainda a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º do RJAT quando interpretada no sentido de que se encontra incluída na competência do tribunal arbitral aquele tipo de pretensões, imputando-lhe a violação dos princípios do Estado de Direito e da certeza e segurança jurídica, bem como do direito de acesso à justiça, da igualdade de tratamento e da tutela jurisdicional efectiva, e ainda do princípio da legalidade e, como seu corolário, o princípio da indisponibilidade dos créditos tributários.
A invocada violação dos princípios do Estado de Direito e do direito de acesso à justiça e da legalidade, por referência aos artigos 2.º, 20.º, 202.º, 203.º e 266.º, n.º 3, da Constituição, sem qualquer outro desenvolvimento ou explicitação, faz supor que a Requerida entende a sujeição de um litígio a um tribunal arbitral, fora dos casos legalmente tipificados, como correspondendo à violação de reserva de jurisdição, com a consequente descaracterização da própria actividade jurisdicional do tribunal arbitral.
Importa começar por fazer notar, a esse propósito, que a Constituição, no seu artigo 202.º, a instituiu uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais, podendo aí distinguir-se entre a reserva absoluta de jurisdição, constituída por aquelas situações que são substancialmente jurisdicionais e não poderão ser dirimidas por órgãos administrativos ou entidades não judiciais, e a reserva relativa de jurisdição, integrada por aquelas outras situações em que a garantia de justiça se basta com a possibilidade de um reexame judicial através de uma via de impugnação ou recurso para os tribunais.
Como o Tribunal Constitucional tem sublinhado, a existência de uma reserva de jurisdição é ainda o corolário da aplicação dos princípios da separação e interdependência de poderes: sendo a competência dos órgãos de soberania definida na Constituição e devendo estes observar a separação e a interdependência nela estabelecidas (artigos 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 1), haverá de concluir-se que a atribuição constitucional de determinada competência a um certo órgão de soberania exclui a possibilidade de ela poder vir a ser legalmente atribuída a qualquer outro, salvo explícita ou implícita autorização constitucional (acórdão n.º 71/84).
Ora, os tribunais arbitrais são uma das categorias de tribunais expressamente consagrada na Constituição (artigo 209.º, n.º 2), e, como tem sido reconhecido pela jurisprudência constitucional, ainda que não sejam órgãos estaduais nem se enquadrem na definição de órgãos de soberania, “nem por isso podem deixar de ser qualificados como tribunais para outros efeitos constitucionais” (acórdãos n.ºs 230/86, 52/92 e 250/96). E enquanto categoria de tribunais constitucionalmente consagrada, eles estão sujeitos aos mesmos limites que impendem sobre os tribunais estaduais, as suas decisões têm natureza jurisdicional, e os árbitros estão submetidos a um estatuto similar ao dos tribunais judiciais, sendo-lhes aplicáveis as exigências constitucionais de independência e imparcialidade como forma de assegurar a confiança na jurisdição arbitral.
Por outro lado, como tem sido afirmado repetidamente, o recurso à arbitragem constitui um direito fundamental, que, como tal, se encontra coberto pelo disposto no artigo 20.º da Constituição, e a possibilidade de resolução de litígios através de um tribunal arbitral escolhido pelas partes é ela própria uma concretização da garantia de acesso ao direito e aos tribunais e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (cfr. FAUSTO QUADROS, “Arbitragem necessária, obrigatória, forçada: breve nótula sobre a interpretação do artigo 182.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, in Estudos em homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Coimbra, 2012 pág. 258, e RUI MEDEIROS, “Arbitragem necessária e Constituição, in Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, pág.1318, e, em idênticos termos, os acórdãos TC n.ºs 250/96 e 506/96).
Acresce que, como decorrência do princípio geral de direito que resulta do artigo 18.º, n.º 1, da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), o tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção da arbitragem ou a sua aplicabilidade ao caso concreto, sendo que a decisão do tribunal arbitral sobre a sua competência está apenas sujeita ao controlo dos tribunais estaduais por via do pedido de impugnação (cfr. artigo 18.º, n.º 9, da LAV). E esse mesmo princípio, não pode deixar de ser aplicado mesmo nos casos em que o elenco de matérias sobre as quais o tribunal arbitral se pode pronunciar se encontra legalmente definido, como é o caso da arbitragem tributária.
A impugnação pode ter também como fundamento a incompetência do tribunal arbitral, com base em pronúncia indevida, quando a sentença arbitral se tenha pronunciado sobre litígios que não sejam passíveis de arbitragem à face da lei (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/2016, que julgou inconstitucional a alínea c) do n.º 1 do artigo 28.° do RJAT, na interpretação normativa de que o conceito de "pronúncia indevida" não abrange a impugnação da decisão arbitral com fundamento em incompetência do tribunal arbitral, por violação concomitante dos artigos 20.° e 209.°, n.º 2, da Constituição).
Como é de concluir, o tribunal arbitral, quando decide sobre a sua competência para apreciar um litígio que lhe é submetido, está ainda exercer a sua função jurisdicional. E se o tribunal entende que é competente para apreciar a questão com base numa certa interpretação de uma disposição legal, essa interpretação, ainda que susceptível de ser impugnada perante um tribunal estadual por via de um pedido anulatório, não viola qualquer dos princípios constitucionais que são invocados pela Requerente.
Matéria de direito
5. A questão que vem colocada prende-se com a dedutibilidade como gasto fiscal das variações patrimoniais negativas resultantes dos ajustamentos que decorram da aplicação do justo valor a participações sociais detidas pelo contribuinte.
A Requerente considera que, por efeito da excepção contida na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor concorrem na íntegra para a formação do lucro tributável desde que se verifiquem os pressupostos definidos nessa norma, ou seja, quando respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados e, tratando-se de instrumentos de capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, direta ou indiretamente, uma participação no capital igual ou superior a 5% do respetivo capital social. Encontrando-se esses ajustamentos excluídos, consequentemente, da limitação constante do n.º 3 do artigo 45º desse Código.
A Administração Tributária defende, por sua vez, que, não obstante um determinado ajustamento pelo justo valor em resultados fosse enquadrável na alínea a) do n.º 9 do artigo 18.º do Código de IRC, se o ajustamento fosse negativo, ainda que aceite nos termos da citada disposição, só seria dedutível em 50% do seu valor em aplicação do disposto no artigo 45.º, n.º 3, que, sendo uma norma de carácter geral, se aplica a todas as variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio.
Deve começar por dizer-se que a questão não tem sido objecto de entendimento uniforme quer na jurisprudência dos tribunais tributários de instância quer na jurisprudência do CAAD.
No sentido da inaplicabilidade do artigo 45º, n.º 3, do Código de IRC a ajustamentos decorrentes do justo valor pronunciaram-se, entre outras, as decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 108/2013-T, 58/2015-T, 208/2015-T, 473/2015-T, 393/2016-T, 155/2017-T e 30/2015-T. As decisões arbitrais proferidas nos Processos n.ºs 25/2015-T e 90/2016/T formularam o entendimento contrário, considerando que o gasto para efeito do disposto no artigo 18.º, n.º 9, do Código de IRC corresponde a qualquer das rúbricas contabilísticas que possam afectar negativamente o resultado líquido de uma sociedade, aí se incluindo as menos valias decorrentes da redução do justo valor de instrumentos financeiros e estas cabem no âmbito de aplicação do artigo 45.º, n.º 3.
A questão surge entretanto clarificada pelo acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 (Processo n.º 01401/14), cuja doutrina foi mais recentemente reafirmada pelo acórdão do STA de 6 de junho de 2018 (Processo n.º 0582/17), com referência específica aos ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, e que não se vê agora motivo para dissentir.
As normas de enquadramento geral que mais interessa considerar são as dos artigos 20.º, n.º 1, alínea f), e 23.º, n.º 1, alínea i), do Código de IRC. A primeira dessas disposições, na redacção vigente à data dos factos, define exemplificativamente como rendimentos os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”, enquanto que a segunda, paralelamente, caracteriza como gastos que poderão ser tidos como indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora os “resultantes da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros”.
Por sua vez, o artigo 18º, n.º 9, alínea a), do Código de IRC – que aqui está particularmente em foco - determina que “os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor não concorrem para a formação do lucro tributável, sendo imputados como rendimentos ou gastos no período de tributação em que os elementos ou direitos que lhes deram origem sejam alienados, exercidos, extintos ou liquidados”, excepto quando “respeitem a instrumentos financeiros reconhecidos pelo justo valor através de resultados, desde que, quando se trate de instrumentos do capital próprio, tenham um preço formado num mercado regulamentado e o sujeito passivo não detenha, directa ou indirectamente, uma participação no capital superior a 5% do respectivo capital social”.
Qualquer destas disposições foi introduzida pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, que, na sequência da aprovação do Sistema de Normalização Contabilística, pretendeu proceder às alterações necessárias à adaptação do Código de IRC às regras emergentes do novo enquadramento contabilístico.
Nesse sentido, a nota preambular do referido diploma refere o seguinte:
“Ainda no domínio da aproximação entre contabilidade e fiscalidade, é aceite a aplicação do modelo do justo valor em instrumentos financeiros, cuja contrapartida seja reconhecida através de resultados, mas apenas nos casos em que a fiabilidade da determinação do justo valor esteja em princípio assegurada. Assim, excluem-se os instrumentos de capital próprio que não tenham um preço formado num mercado regulamentado. Além disso, manteve-se a aplicação do princípio da realização relativamente aos instrumentos financeiros mensurados ao justo valor cuja contrapartida seja reconhecida em capitais próprios, bem como as partes de capital que correspondam a mais de 5 % do capital social, ainda que reconhecidas pelo justo valor através de resultados”.
Nestes termos, o proémio do n.º 9 do artigo 18.º manteve como regra o princípio da realização para os ajustamentos decorrentes da aplicação do justo valor, afastando-se do critério geral que resulta do n.º 1 desse artigo, que consigna o princípio contabilístico da especialização económica dos exercícios, que consiste em incluir nos resultados fiscais os proveitos e custos correspondentes a cada ano económico, independentemente do seu efectivo recebimento ou pagamento. Excepcionam-se apenas os instrumentos de capitais próprios que preencham as características definidas na sobredita alínea a) desse n.º 9, o que significa que, para esses casos, o legislador aproximou a regra fiscal à regra contabilística, atribuindo relevância fiscal à variação anual do valor dos instrumentos financeiros, com preço formado em mercado regulamentado, quando aplicadas as regras do justo valor.
6. No caso vertente e face à matéria dada como assente, não pode deixar de entender-se que a Requerente preenche os requisitos da referida disposição do artigo 18º, n.º 9, alínea a), colocando-se apenas a questão de saber se é aplicável a limitação que consta do artigo 45.º, n.º 3.
Esta norma começou por ser aditada pela Lei n.º 32-B/2002, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2003), correspondendo então ao artigo 42.º, n.º 3, que ostentava a seguinte redacção: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Por outro lado, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento do Estado de 2003 enquadrou essa medida de “exclusão parcial (50%) das menos-valias registadas na alienação de partes sociais pela generalidade das empresas” no âmbito das alterações em sede de IRC destinadas a implementar o “alargamento da base tributável e medidas de moralização e neutralidade” (pág. 53), o que se mostra em consonância com as prioridades que o legislador pretendeu estabelecer, no âmbito das receitas, e que são identificadas como consistindo “no combate à fraude e evasão fiscais e alargamento da base tributável” (pág. 34).
Entretanto, a Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2006), alterou a redacção desse artigo 42.º (que foi depois renumerado como artigo 45.º), passando o seu n.º 3 a dispor do seguinte modo: “A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”.
Deste modo, o legislador alargou a limitação à dedutibilidade das perdas resultantes de menos-valias, passando a considerar, para esse efeito, não apenas as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, como também as que resultem da transmissão onerosa de “outras componentes do capital próprio”.
No entanto, o Relatório do Ministério das Finanças para o Orçamento de 2006 continuou a justificar a alteração legislativa no quadro das medidas tendentes ao “combate à fraude e evasão fiscais e outras medidas direccionadas à consolidação orçamental” (pág. 31). O que levou o citado acórdão do STA de 17 de fevereiro de 2016 a concluir que a norma, em qualquer das suas versões, integra uma medida anti-abuso, no ponto em que o legislador terá pretendido (para além do alargamento da base tributável) evitar a manipulação do resultado fiscal.
E assim, conforme também se reconhece no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, a norma terá visado “de forma imediata combater a fraude e a evasão fiscal, evitar a manipulação dos resultados fiscais, e de forma mediata obter um alargamento da base tributável resultante da redução significativa daqueles mecanismos usados pelos contribuintes para reduzir ou anular o montante do imposto a pagar”.
7. Resta agora verificar em que medida a mensuração dos instrumentos financeiros cotados em mercados regulamentados ao justo valor pode ser compatibilizada com a limitação que resulta do artigo 45.º, n.º 3.
O acórdão ultimamente citado responde a esta questão nos seguintes termos.
“O conceito de justo valor resultante das regras contabilísticas, quer nacionais (Sistema de Normalização Contabilística, quer internacionais (Normas Internacionais de Contabilidade), quando incorporado no sistema fiscal, consubstancia-se, no essencial, na quantia pela qual um ativo pode ser trocado, ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não existe relacionamento entre as partes. Refere José de Campos Amorim que, “As IAS/IFRS [International Accounting Standard/International Financial Reporting Standards] e o SNC [Sistema de Normação Contabilística] com as alterações das normas de relato financeiro, introduziram uma maior justiça na valorização dos bens da sociedade com vista aos utentes da situação económica, financeira e patrimonial da sociedade. Esta abertura da contabilidade ao justo valor vai ao encontro dos investidores que desejam obter uma informação real e fidedigna antes de decidir investir na empresa.
Não é uma informação que pode condicionar determinadas operações económicas ou financeiras, como, por exemplo, o aumento ou a diminuição de capital, mas que é de uma grande relevância para o investidor que pretende ter uma noção real e atual dos ativos da empresa. É por esse motivo que a contabilidade está orientada não para o custo histórico mas para o valor atual dos ativos.”, cfr. O justo valor e as suas implicações fiscais, IV Congresso de Direito Fiscal, Vida Económica, pág. 168.
Portanto, a consideração do justo valor, no que aqui nos interessa (…) e para efeitos fiscais (que, nos termos do artigo 17º, n.º 1, do Código de IRC se encontra directamente ligado com a própria contabilidade da empresa), tem uma ligação imediata à cotação oficial dos títulos, e no caso dos autos encontra-se sujeita a um mercado regulado por entidades oficiais, deixando o facto tributário de se associar à venda dos títulos - realização das mais ou menos valias - passando a estar associada à oscilação da cotação oficial entre o início e o fim do período de tributação, cfr. Tomás Castro Tavares, Justo valor e tributação de mais valias de acções de sociedades cotadas, Estudos em Memória do Prof. Doutor J.L. Saldanha Sanches, vol. IV, págs. 1137 e 1138.
Estas “mais valias ou menos valias” assim determinadas pelo justo valor são meramente potenciais ou provisórias - o valor dos activos consubstancia-se numa posição financeira - porque não há uma efectiva entrada de capital ou perda de capital face ao custo histórico, tal como é reconhecido pelo próprio legislador nacional no artigo 32º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais.
Não há, assim, qualquer dúvida que (…) à posição financeira negativa resultante do justo valor, não lhe “subjaz uma motivação de evasão fiscal, por arbitrariedade valorimétrica, pela razão simples de que a tributação do fair value se cinge aos activos transaccionados em mercado organizado, onde a cotação do activo (valorização e desvalorização) se desenraíza, totalmente, da vontade fiscal do contribuinte… A vontade do contribuinte nunca molda o facto tributário assente no fair value: desaparece o óbice económico do lock-in (o facto tributário dissocia-se da decisão de venda); se os proveitos do justo valor são totalmente tributados (nunca se lhes aplica o regime das mais e menos valias), os gastos também devem ser aceites na totalidade; e não há, por fim uma assimétrica inclinação para a realização do custo de justo valor, por comparação com o ganho - pela razão simples de que o facto tributário do justo valor (positivo e negativo) dissocia-se, totalmente, da vontade do sujeito passivo” (cfr. Tomás Castro Tavares, idem, págs. 1143 e 1144).”
Nota-se ainda que a norma do artigo 45.º, n.º 3, do Código de IRC tem uma relação teleológica com a norma do art.º 48.º do mesmo Código, em especial, no que para o caso releva, com o seu n.º 4, na medida em que a concorrência negativa em metade do valor para a formação do lucro tributável imposta pela primeira das referidas normas é, compensada, pela concorrência positiva em igual medida (metade do valor), prevista pela segunda.
Contudo, nesta última norma, o legislador impôs condições, sendo que uma delas é a de que o beneficiário dessa redução da base tributável ter de reinvestir o valor que realizou com a venda dos bens que geraram o saldo positivo entre as mais-valias e as menos valias.
Sucede que, em relação aos ganhos relativos à contabilização das partes de capital pelo modelo do justo valor, emerge uma impossibilidade, já que quando a entidade que obtém um rendimento (ganho) resultante da aplicação do justo valor em instrumentos financeiros, fica impossibilitada de aproveitar a redução do valor sujeito a imposto a metade do seu valor.
Efectivamente, para que isso fosse possível, a sociedade teria de reinvestir o valor de realização dos bens que geraram a “mais-valia” (ganho/rendimento) em causa, sendo que, no modelo do justo valor não há um valor de realização a reinvestir, pelo que não é possível cumprir a obrigação de reinvestimento.
Por não existir valor de realização no modelo do justo valor, nem de facto nem de direito (p. ex. o legislador podia ter equiparado a utilização do justo valor ao valor de realização ou ter estabelecido uma presunção de venda e compra sucessiva) o reinvestimento do valor de realização torna-se impossível de cumprir, no caso de o saldo dos ganhos e das perdas geradas com a utilização do modelo do justo valor na contabilização dos instrumentos financeiros
Tal impossibilidade, que determina a não aplicação do benefício da tributação da “mais-valia” gerada pelo justo valor, em metade do seu saldo positivo, também deve determinar que a “menos-valia” gerada com a aplicação do modelo do justo valor aos investimentos financeiros, não possa ser deduzida em metade do seu valor, pelo que ambos – rendimento e gasto – deverão integrar o lucro tributável pela totalidade.
Acresce ainda que a parte do nº 3 do artigo 45º - à data artigo 42º - que refere “…bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio…” foi acrescentada ao respectivo nº 3 pela Lei nº 60-A/2005 de 30 de Dezembro, sendo que o modelo do justo valor só apareceu pela primeira vez no código do IRC com Decreto-Lei nº 159/2009 de 13 de Julho, que procedeu à adaptação do código do IRC às Normas Internacionais de Contabilidade, motivo pelo qual não se poderá sustentar que o legislador, com o aditamento feito em 2005, teria querido enquadrar na lei os ganhos ou perdas relativos a uma realidade que só viria a nascer em 2009, muitos anos depois, dado que o modelo do justo valor não fazia parte dos normativos contabilísticos nem das leis fiscais.
Tendo por base todos estes considerandos, torna-se possível concluir que a norma do artigo 45º, n.º 3 do Código de IRC, interpretada de acordo com o fim visado pelo legislador e tendo presente a conjuntura que determinou a decisão legislativa, não pode ser entendida como abrangendo os gastos resultantes da aplicação do justo valor num mercado regulado, caso em que a vontade do contribuinte não releva para a valorização ou desvalorização dos activos financeiros, e nenhuma razão subsiste para a penalização desses gastos para efeitos fiscais.
Entende-se, em conformidade, e na linha do julgado no acórdão do STA de 6 de junho de 2018, que a diferença negativa releva na totalidade para a formação do lucro tributável, e não apenas em metade do seu valor, pelo que se mostra ser ilegal a correcção efectuada em IRC pela Autoridade Tributária.
Pedidos cujo conhecimento fica prejudicado
8. Face à solução jurídica do caso, fica prejudicado o conhecimento das questões de constitucionalidade suscitadas pela Requerente.
Reembolso do imposto indevidamente pago e juros indemnizatórios
9. A Requerente pede ainda a condenação da Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago, acrescido de juros indemnizatórios.
De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo, cabendo-lhe “restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito”. O que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT, aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT.
Por efeito da reconstituição da situação jurídica em resultado da anulação do acto tributário, há assim lugar ao reembolso do imposto indevidamente pago.
Ainda nos termos do n.º 5 do artigo 24.º do RJAT “é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário”, o que remete para o disposto nos artigos 43.º, n.º 1, e 61.º, n.º 5, de um e outro desses diplomas, implicando o pagamento de juros indemnizatórios desde a data do pagamento indevido do imposto até à data do processamento da respetiva nota de crédito.
No casos de pedido de revisão oficiosa, em face do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 43.º da LGT, apenas são devidos juros indemnizatórios depois de decorrido um ano após a iniciativa do contribuinte, e não desde a data do desembolso da quantia liquidada, constituindo esse o entendimento jurisprudencial corrente (cfr., acórdão do Pleno do STA de 3 de Julho e 2019, Processo n.º 04/19).
No caso, o pedido de revisão oficiosa foi apresentado em 4 de Maio de 2015, pelo que são devidos juros indemnizatórios desde 5 de Maio de 2016, ou seja a partir de um ano depois da apresentação do pedido de revisão oficiosa.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e anular a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa e o acto tributário de autoliquidação de IRC impugnado, referente ao ano de 2011;
b) Condenar a Autoridade Tributária no reembolso do imposto indevidamente pago e no pagamento de juros indemnizatórios desde 5 de Maio de 2016 até à data do processamento da respectiva nota de crédito.
Valor da causa
A Requerente indicou como valor da causa o montante de € 1.120.078,15, que não foi contestado pela Requerida e corresponde ao valor da liquidação a que se pretendia obstar, pelo que se fixa nesse montante o valor da causa.
Custas
Nos termos dos artigos 12.º, n.º 2, e 24.º, n.º 4, do RJAT, e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e Tabela I anexa a esse Regulamento, fixa-se o montante das custas em € 15.300,00, que fica a cargo da Requerida.
Notifique.
Lisboa, 9 de Março de 2020,
O Presidente do Tribunal Arbitral
Carlos Fernandes Cadilha
O Árbitro vogal
Vasco Valdez
O Árbitro vogal
Manuel Vaz