DECISÃO ARBITRAL
I. Relatório
A..., S.A., pessoa coletiva n.º..., com sede na Rua ..., n.º ... – ..., ... ora Requerente, vem, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 2.º e dos artigos 10.º e seguintes, todos do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT), em conjugação com o disposto no artigo 99.° e na alínea e), do n.º 1, do artigo 102.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), aplicável por força do disposto na alínea a), do n.º 1, do artigo 10.º do RJAT, apresentar Pedido de Constituição de Tribunal Arbitral, relativo ao Despacho do Diretor de Finanças do Porto, de 15 de Abril de 2019, que indeferiu o Recurso Hierárquico do Despacho do Chefe do Serviço de Finanças da ..., a 13 de Fevereiro de 2019, que indeferiu a Reclamação Graciosa do ato de liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC) n.º 2017..., relativo ao exercício do ano de 2013, e do qual resulta um valor a pagar de € 54.613,70.
O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite em 22 de Julho de 2019 pelo Senhor Presidente do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) e automaticamente notificado à Requerida.
A Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, pelo que, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 6.º e da alínea a), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD designou a signatária como árbitro singular do tribunal arbitral, que comunicou a aceitação do encargo no dia 6 de Agosto de 2019.
As partes foram devidamente notificadas dessa nomeação, não tendo, nos termos conjugados do artigo 11.º, n.º 1, alínea c) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico, manifestado vontade de a recusar.
Em conformidade com o preceituado na alínea c), do n.º 1, do artigo 11.º do RJAT, o Tribunal Arbitral ficou constituído em 1 de Outubro de 2019.
A Requerente veio sustentar a procedência do seu pedido com base nos seguintes argumentos:
(a) A decisão da Autoridade Tributária materializada nos atos de liquidação aqui em crise é ilegal por desconsiderar os efeitos fiscais do reconhecimento de créditos incobráveis após mero incumprimento do formalismo de comunicação, previsto no artigo 41.º, n.º 2 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (Código do IRC);
(b) A obrigação de comunicação prevista no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC deixou de ser exigida com a entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, que a revogou, sem incluir nenhum mecanismo de comunicação ao devedor obrigatório ou alternativo;
(c) Reconhecendo a Autoridade Tributária que os créditos, no valor de € 183.789,57, cumprem os requisitos materiais impostos pelo n.º 1, do artigo 41.º do Código do IRC, bem como do artigo 36.º do mesmo Código, o que fora confirmado pelos próprios Serviços, não deve um mero requisito formal determinar a não aceitação dos respetivos gastos fiscais, sob pena de se sobrepor a forma sobre a substância;
(d) Os objetivos que o legislador procurou salvaguardar não foram prejudicados pelo incumprimento do requisito formal previsto no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC;
(e) Na situação em análise, a comunicação ao devedor era insuscetível de originar o efeito que o legislador desta pretendeu retirar, isto é, o reconhecimento do respetivo proveito na esfera jurídico-tributária do devedor;
(d) A comunicação ao devedor era absolutamente inócua ou nula em termos de receita fiscal, pois parte dos créditos incobráveis registados são referentes a dívidas cuja incobrabilidade se verificou pelo decurso da mora e pela impossibilidade de ver satisfeitos os respetivos créditos, sendo que um primeiro grupo de devedores não têm sequer residência fiscal no território nacional, nem tão pouco qualquer tipo de presença no território, não existindo, portanto, número de identificação fiscal português;
(e) Sendo os devedores referidos entidades não residentes em Portugal, não se encontram sujeitos às regras previstas no Código do IRC, isto é, não estão obrigados a reconhecer o proveito na sequência da comunicação ao credor;
(f) Os créditos aqui em causa são também, em parte, referentes a um outro grupo de devedores que em 2013 já haviam cessado a sua atividade para efeitos de IRC, também em relação a estes a comunicação era insuscetível de gerar o efeito que o legislador pretendeu salvaguardar;
(g) A obrigação de comunicação afigura-se ainda inútil em relação aos créditos que são referentes a clientes que foram declarados insolventes;
(h) Assim, não pode a Autoridade Tributária impor o cumprimento de uma obrigação inútil como requisito para a dedutibilidade fiscal dos créditos incobráveis, sob pena de manifesta violação da melhor interpretação do disposto no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, bem como do princípio da justiça e da proporcionalidade. Na interpretação e aplicação das normas fiscais deverá atender-se à letra da lei, mas também ao objetivo substancial da lei;
(i) Será sempre necessário interpretar e aplicar o disposto no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC tendo em conta o elemento literal, mas também (fundamentalmente) os objetivos subjacentes à sua ratio, na medida em que vigora em Portugal o princípio da tributação do rendimento real do sujeito passivo, conforme o disposto no n.º 2, do artigo 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A Requerida respondeu por impugnação, sustentando por seu turno que o presente pedido deve ser julgado improcedente com os seguintes fundamentos:
(a) A revogação do n.º 2, do artigo 41.º do Código do IRC pela Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro, não tem natureza interpretativa, aplicando-se aos períodos de tributação que se iniciem ou aos factos tributários que ocorram após 1 de Janeiro de 2014;
(b) A Requerente não apresentou as comunicações aos devedores, conforme o exposto no n.º 2, do artigo 41.º do Código do IRC, inviabilizando desta forma o reconhecimento do gasto para efeitos fiscais e de onde resultaram correções que originaram, por referência ao período de tributação de 2013, a Liquidação n.º 2017..., no valor total de € 54.613.70, a qual inclui impostos e juros compensatórios;
(c) Concluíram os serviços que, nem em sede de Reclamação Graciosa, nem tão pouco em sede de Recurso Hierárquico, a ora Requerente carreou elementos nem documentos novos que pusessem em crise o Relatório de Inspeção Tributária e levassem a alterar o sentido da decisão da Reclamação Graciosa, pelo que o Recurso Hierárquico foi igualmente indeferido por despacho de 15 de Abril de 2019 do Diretor de Finanças do Porto, pugnando-se assim pela manutenção das correções efetuadas pelos Serviços de Inspeção Tributária;
(d) Só poderia ser aceite a dedutibilidade dos créditos enquanto créditos incobráveis se fosse exibida qualquer prova da comunicação ao devedor do reconhecimento do gasto para efeitos fiscais, conforme estipulava o n.º 2, do artigo 41.º do Código do IRC;
(e) A Requerente alega factos que servem de fundamento e que substancialmente configuram a alegada posição jurídica de que se arroga sem que, no entanto, os consiga provar;
(f) Dos elementos constantes do processo constata-se que a Requerente não apresentou qualquer prova da comunicação ao devedor do reconhecimento do gasto em sede de Inspeção Tributária, de Reclamação Graciosa nem tão pouco de Recurso Hierárquico;
(g) Relativamente às entidades não-residentes em território português, apesar de não estarem sujeitas às regras previstas no Código do IRC, têm igualmente regras a cumprir nos seus países e, como tal, não seria despiciendo saber que a dívida que tinham para com uma empresa portuguesa foi considerada incobrável;
(h) Em relação aos devedores que já haviam cessado a sua atividade em 2013, só ocorreria a cessação de atividade, por ocasião da data do registo de encerramento da liquidação, nos termos do artigo 8.º, n.º 5 do Código do IRC. Não se tendo procedido ao referido registo, continuam aqueles sujeitos passivos adstritos ao cumprimento das obrigações fiscais sempre que ocorram factos tributários, como seria este o caso;
(i) A Requerente não juntou ao processo quaisquer documentos que pudessem comprovar o registo de encerramento da liquidação, cabendo-lhe o ónus da prova, atento o estatuído no artigo 74.º da Lei Geral Tributária. Não o tendo feito, atendendo à letra da lei fiscal do n.º 2, do artigo 41.º do Código do IRC, a Requerente teria de provar que transformou os seus créditos de cobrança duvidosa em créditos incobráveis; e
(j) Não resultando da factualidade assente que a recorrente tivesse cumprido o dever de comunicação prescrito no n.º 2, do artigo 41.º do Código do IRC, não preenchendo, deste modo, os pressupostos do artigo 41.º do Código do IRC, bem andou a Administração Tributária ao não aceitar os custos em causa como créditos incobráveis e a fazê-los acrescer à matéria tributável.
Por despacho proferido a 11 de Novembro de 2019, foi determinada a realização de audiência de julgamento, ao abrigo do artigo 18.º do RJAT, para o dia 22 de Novembro 2019.
Por despacho proferido a 20 de Novembro de 2019, a fim de garantir o princípio da igualdade e assegurar o princípio do contraditório, foi determinado o adiamento da realização de audiência de julgamento para o dia 2 de Dezembro de 2019.
No dia 2 de Dezembro de 2019 teve lugar a reunião deste Tribunal Arbitral, com a inquirição da testemunha arrolada por parte da Requerente, que correu seus termos conforme ata lavrada para o efeito, tendo as partes sido notificadas, no final da audiência, para apresentarem alegações escritas no prazo de 15 dias.
Em 20 de Dezembro de 2019 a Requerente apresentou alegações pronunciando-se sobre a prova produzida e reiterando os argumentos esgrimidos no Pedido de Constituição do Tribunal Arbitral.
Por sua vez, a Requerida apresentou alegações no dia 20 de Janeiro de 2020, pronunciando-se sobre a prova testemunhal e reproduzindo, no essencial, a argumentação constante da Resposta.
II. SANEAMENTO
O tribunal arbitral foi regularmente constituído e é materialmente competente, como se dispõe nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 4.º, ambos do RJAT.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas, tudo nos termos dos artigos 4.º e 10.º, n.º 2 do mesmo diploma, e artigos 1.º a 3.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março.
III. Do Mérito
III.1.1. Factos provados
Consideram-se provados os seguintes factos:
1. A Requerente é uma pessoa coletiva residente com uma atividade comercial centrada no transporte de mercadorias, nomeadamente, nas seguintes áreas de negócio: (i) transporte terrestre europeu; (ii) transporte aéreo; (iii) serviços ferroviários; (iii) transporte terrestre internacional.
2. Em Julho de 2017 a Requerente foi objeto de um procedimento de Inspeção Tributária, do qual resultou um conjunto de correções em sede de IRC que deram origem ao ato de liquidação adicional n.º 2017..., relativo ao exercício do ano de 2013, e do qual resulta um valor a pagar de € 54.613,69, de acordo com a prova documental produzida (DOC.1 e DOC. 2 do pedido de pronúncia arbitral).
3. A Requerente foi notificada no dia 14 de Fevereiro de 2019 do proferimento de despacho de indeferimento da Reclamação Graciosa, por parte do Chefe de Serviço de Finanças, ao abrigo da delegação de competências, de acordo com a prova documental produzida (DOC 3 e DOC. 4 do pedido de pronúncia arbitral).
4. A Requerente foi notificada no dia 16 de Abril de 2019 do proferimento de despacho de indeferimento do Recurso Hierárquico, por parte do Diretor de Finanças, ao abrigo de competência própria, de acordo com a prova documental produzida. (DOC. 5 e DOC. 6 do pedido de pronúncia arbitral)
5. Parte dos créditos incobráveis registados, num total de € 65.932,01, são referentes a dívidas cuja incobrabilidade se verificou pelo decurso da mora e pela impossibilidade de ver satisfeitos os respetivos créditos, relativos a devedores que não têm residência fiscal no território nacional, tendo a Requerente evidenciado este facto quer pela prova documental (DOC.7 do pedido de pronúncia arbitral) quer pela prova testemunhal produzidas.
6. Os créditos aqui em causa são também, em parte, referentes a devedores que em 2013 já haviam cessado a sua atividade para efeitos de IRC, tendo a Requerente comprovado este facto quer pela prova documental (DOC.8 do pedido de pronúncia arbitral) quer pela prova testemunhal produzidas.
7. Parte dos créditos ainda dizem respeito a clientes que foram declarados insolventes, tendo a Requerente reclamado os seus créditos nos correspondentes processos, tal como provado através dos documentos DOC.9, DOC.10, DOC.11, DOC.12, DOC.13 e DOC.14, todos do pedido de pronúncia arbitral, e através do depoimento da testemunha.
8. A Requerente demonstrou que em cada um dos casos de créditos incobráveis registados e não aceites fiscalmente pela Autoridade Tributária, não se verificou qualquer lesão nos cofres do Estado.
9. A Requerente prestara garantia bancária, com o objetivo de suspender os processos executivos instaurados pela Autoridade Tributária por não pagamento das liquidações aqui em causa, tendo aquela demonstrado esse facto pela prova documental (DOC.15 do pedido de pronúncia arbitral) e testemunhal produzida.
O Tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada com base nos documentos juntos à petição e os constantes do processo administrativo apresentado pela Autoridade Tributária com a sua resposta e, bem assim, com base na prova testemunhal produzida em reunião havida no dia 2 de Dezembro de 2019.
III.1.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão, não existem factos que devam considerar-se como não provados.
III.1.3. Fundamentação da fixação da matéria de facto
O Tribunal não tem de se pronunciar sobre todos os detalhes da matéria de facto que foi alegada pelas partes, cabendo-lhe o dever de selecionar os factos que interessam à decisão e discriminar a matéria que julga provada e declarar a que considera não provada (artigo 123.º, n.º 2 do CPPT e artigo 607.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e e) do RJAT).
Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são selecionados e conformados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções para o objeto do litígio no direito aplicável (vd. artigo 596.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi artigo 29.º, n.º 1, alínea e) do RJAT).
Assim, tendo em consideração as posições assumidas pelas partes, à luz do disposto no artigo 110.º, n.º 7 do CPPT, bem como as provas documentais e testemunhais apresentadas, consideram-se provados, com relevo para a decisão, os factos acima elencados.
III.2. MATÉRIA DE DIREITO
III.2.1. Considerações prévias sobre a ordem de conhecimento dos vícios alegados
Sobre a ordem do conhecimento dos vícios, determina o artigo 124.º do CPPT, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 29.º, n.º 1, alíneas a) e c) do RJAT, que o tribunal apreciará prioritariamente os vícios que conduzam à declaração de inexistência ou nulidade do ato impugnado e, depois, os vícios arguidos que conduzam à sua anulação.
Não tendo sido alegado nenhum vício conducente à nulidade, a apreciação dos vícios é feita pela ordem indicada pela Requerente, desde que se estabeleça entre eles uma relação de subsidiariedade e não sejam arguidos outros vícios pelo Ministério Público.
III.2.2. Quanto à interpretação do artigo 41.º, n. º 2 do Código do IRC.
Começar-se-á pela apreciação do cumprimento dos requisitos previstos no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC e cuja verificação se apresenta como necessária em ordem à dedutibilidade de créditos incobráveis.
Enuncie-se, em primeiro lugar, os argumentos avançados pelas partes:
De acordo com a Requerente, o ato de liquidação adicional basear-se-ia em correções efetuadas à matéria tributável que teriam desconsiderado a realidade do caso concreto,
optando-se por privilegiar a forma sobre a substância. Nestes termos, a Autoridade Tributária teria feito uma incorreta interpretação e aplicação do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, condicionando-se a admissibilidade da dedução direta de créditos incobráveis à verificação de um requisito de ordem formal, com prejuízo para a realidade substantiva.
Com um entendimento diverso, a Autoridade Tributária sustenta que as correções efetuadas à matéria tributável explicar-se-iam por a Requerente não ter logrado provar que comunicara aos seus devedores o reconhecimento de um gasto. No rescaldo desta inércia
ter-se-ia frustrado o objetivo prosseguido pelo legislador, a saber, permitir que o Estado arrecadasse receita pelo reconhecimento do correspondente crédito, por parte do devedor, na sua própria contabilidade.
Por um lado, a Requerente alega ainda que, no decurso do procedimento de inspeção tributária, a Autoridade Tributária não pusera em causa o cumprimento dos requisitos materiais necessários ao reconhecimento de créditos incobráveis. Desse modo, ter-se-ia apontado à Requerente o incumprimento de um único requisito, embora este assumisse uma natureza meramente formal.
Por outro lado, avança a Autoridade Tributária que os Serviços de Inspeção Tributária haviam instado a Requerente a exibir, embora não constasse da documentação fiscal por esta organizada e apresentada, nos termos do artigo 130.º do Código do IRC, prova da comunicação a devedores seus. Não o tendo feito, desconsiderara-se a contabilização de valores, na ordem de € 183.789, 57, enquanto gastos não aceites fiscalmente.
Por seu turno, sustenta a Requerente que a obrigatoriedade de inclusão, na documentação fiscal, da prova da comunicação aos devedores do reconhecimento de um gasto era imposta nos termos da Lei n.º 55-A/2010. Esse requisito viria, por sua vez, a ser eliminado através da entrada em vigor da Lei n.º 2/2014. Acrescidamente, por despacho emitido pela Autoridade Tributária (datado de 28 de Janeiro), determinara-se um conjunto de informações vinculativas respeitantes ao tratamento de créditos incobráveis, para além daqueles previstos no artigo 41.º do Código do IRC. Nos termos dessas informações vinculativas não era referenciada a necessidade da prova da comunicação aos devedores.
Porém, adiantando um entendimento contrário, defende a Autoridade Tributária que as informações vinculativas referidas supra reportavam-se à redação introduzida pela Lei
n.º 2/2014. Consequentemente, as informações vinculativas versavam sobre uma base legal diferente da norma aplicável ao exercício fiscal de 2013 e ao abrigo da qual tinham sido efetuadas as correções que resultaram no ato de liquidação.
Sem conceder, entende a Requerente que o cumprimento do requisito previsto no artigo 41.º, n. º 2 do Código do IRC não se demonstrava apto ao reconhecimento de um crédito na esfera do devedor. A comunicação, por parte da Requerente, afigurar-se-ia inútil, entre outras razões, por esses créditos respeitarem, parcialmente, a devedores que não tinham residência fiscal em Portugal.
Refutando essa conclusão, a Autoridade Tributária afirma que os devedores
não-residentes da Requerente se encontravam sujeitos ao cumprimento de regras fiscais/contabilísticas nos seus próprios países. Ora, em virtude de tal facto, não seria despiciendo esses devedores poderem saber que as suas dívidas, contraídas junto de uma empresa portuguesa, haviam sido reconhecidas como um gasto direto na contabilidade da Requerente.
Diversamente, a Requerente faz referência ao entendimento propugnado em jurisprudência arbitral, segundo o qual, ter-se-ia firmado o normativo respeitante à obrigatoriedade de comunicação com uma pretensão aplicativa limitada às entidades devedoras residentes. Desse modo, não se vislumbrava efeito útil ao reconhecimento de um proveito na esfera de um devedor não-residente visto que não impenderia, sobre este, obrigações fiscais/declarativas perante o Estado. Por conseguinte, ter-se-ia como frustrado, in casu, o objetivo de arrecadação de receita, ínsito na disposição legal referida.
Por seu turno, a Autoridade Tributária refere que a decisão arbitral trazida à colação, por iniciativa da Requerente, não se revestia de qualquer orientação para o caso sub judice. Era certo, a decisão em causa encerrava uma interpretação restritiva da obrigatoriedade de comunicação aos devedores, no entanto, a Autoridade Tributária apenas se encontrava vinculada a essa interpretação nos exatos termos do caso concreto que fora objeto da decisão. Em consonância, os serviços de Inspeção Tributária ter-se-iam limitado a aplicar a legislação em vigor à data dos factos.
Por outro lado, defende a Requerente que parte dos créditos incobráveis diziam respeito a devedores que, por ocasião do ano de 2013, já tinham cessado a sua atividade. Destacando-se, ainda, um conjunto de devedores que tinham declarado insolvência e sobre os quais a Requerente nos respetivos processos de execução tinha reclamado créditos, pese embora não lograra ser ressarcida. Quantos a estes últimos devedores também não poderia registar-se e declarar-se um proveito.
Discordando, sustenta a Autoridade Tributária que a cessação de atividade das empresas para efeitos fiscais só ocorreria, definitivamente, com o registo de encerramento de liquidação, conforme o artigo 8.º, n. º 5 do Código do IRC. Assim, verificado um facto tributário relevante e, na ausência de comprovação do registo de encerramento de liquidação, os devedores continuavam adstritos ao cumprimento de obrigações fiscais. Assim sendo, recairia sobre a Requerente o ónus de prova desse registo, atento o estatuído no artigo 160.º do Código das Sociedades Comerciais. Na ausência de tal comprovação impor-se-ia, em última análise, a prova a cargo da Requerente, da comunicação prevista nos termos do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC.
Por seu turno, entende a Requerente que lograra demonstrar para cada um dos casos de créditos incobráveis a inutilidade da comunicação prevista no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC na situação em análise.
Por sua vez, avança a Autoridade Tributária que não tendo resultado da factualidade dada como assente que a Requerente tivesse efetuado a comunicação a que estava legalmente obrigada, nos termos do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, dever-se-iam manter as correções efetuadas à matéria tributável.
Em conclusão, decorre do pedido que a liquidação padecerá do vício de erro sobre os pressupostos de direito ao afirmar que: “(…) a Autoridade Tributária (AT) efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas legais relevantes in casu razão pelo qual os atos tributários supra referidos devem ser anulados”. Sendo este argumento contrariado pela Administração Tributária.
Perante os argumentos expostos pelas partes cumpre resolver a questão decidenda:
De acordo com o artigo 41.º do Código do IRC, na redacção vigente à data, “Os créditos incobráveis podem ser diretamente considerados gastos ou perdas do período de tributação desde que:
(a) Tal resulte de processo de insolvência e de recuperação de empresas, de processo de execução, de procedimento extrajudicial de conciliação para viabilização de empresas em situação de insolvência ou em situação económica difícil mediado pelo IAPMEI - Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas e ao Investimento, de decisão de tribunal arbitral no âmbito de litígios emergentes da prestação de serviços públicos essenciais ou de créditos que se encontrem prescritos de acordo com o respectivo regime jurídico da prestação de serviços públicos essenciais e, neste caso, o seu valor não ultrapasse o montante de (euro) 750; e
b) Não tenha sido admitida perda por imparidade ou, sendo-o, esta se mostre insuficiente.
2 - Sem prejuízo da manutenção da obrigação para efeitos civis, a dedutibilidade dos créditos considerados incobráveis nos termos do número anterior ou ao abrigo do disposto no artigo 36.º fica ainda dependente da existência de prova da comunicação ao devedor do reconhecimento do gasto para efeitos fiscais, o qual deve reconhecer aquele montante como proveito para efeitos de apuramento do lucro tributável”. (destacado nosso)
Como ponto-de-partida, valerá recordar que a consideração de um crédito como “incobrável”, nos termos do artigo enunciado, depende da existência de créditos relativamente aos quais não se perspetive a esperança de vir a obter uma boa cobrança.
Reconhecendo tal vicissitude, o legislador previu que o contribuinte pudesse proceder ao desreconhecimento parcial ou total desse crédito, dito incobrável, na sua contabilidade, por contrapartida do reconhecimento de um gasto fiscal de igual montante. Por esta via, é conferida ao credor a faculdade de expurgar, da sua esfera jurídica, um rendimento que era expectável mas que não se efectivou, isto é, um rendimento meramente aparente porquanto nunca chegou a ser percebido.
A esta faculdade de desreconhecimento de um crédito, contabilisticamente inscrito como tal, pode associar-se singelamente “A proclamação constitucional do direito subjectivo do contribuinte a ser tributado de acordo com o seu lucro real” , conforme resulta do artigo 104.º, n.º 2 da CRP.
Sobre esta matéria, salientava igualmente o saudoso Professor SALDANHA SANCHES que a referida norma é “uma mera regra concretizadora” do princípio da tributação segundo a capacidade contributiva. Em idêntico sentido, dispõe o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 84/2003, de 29 de Maio de 2003, que «Não obstante o silêncio da Constituição, é entendimento generalizado da doutrina que a “capacidade contributiva” continua a ser um critério básico da nossa “Constituição fiscal” sendo que a ele se pode (ou deve) chegar a partir dos princípios estruturantes do sistema fiscal formulados nos artigos 103º e 104º da CRP».
Assim, convocando-se a plenitude do sistema fiscal e dos seus princípios estruturantes, torna-se possível inferir o princípio da capacidade contributiva do princípio da igualdade tributária. A este respeito, SÉRGIO VASQUES refere que “A capacidade contributiva é o critério de repartição para o qual aponta inequivocamente o princípio da igualdade logo que o projectamos sobre o domínio dos impostos, razão pela qual o princípio da capacidade contributiva não carece de consagração constitucional explícita, bastando, para o fundamentar nesta área do sistema, o princípio da igualdade acolhido pelo artigo 13.º da Constituição”.
Em suma, o princípio da capacidade contributiva explicita e concretiza o princípio da igualdade tributária. Deste modo, assegura-se uma tributação alicerçada num corolário de justiça fiscal, garantindo-se semelhantes níveis de tributação para contribuintes que revelem idêntica força económica.
Descortina-se assim, de forma intuitiva, a íntima ligação entre o reconhecimento na contabilidade de um crédito incobrável e o princípio da tributação em função da capacidade contributiva do sujeito passivo. De facto, em obediência a este princípio, é essencial que na determinação da matéria tributável sejam considerados os rendimentos e gastos efectivamente suportados, visto que só assim se acautela uma tributação vocacionada a um real aumento da capacidade económica.
Por fim, retenha-se que a negação do reconhecimento dos rendimentos e gastos efetivamente suportados consubstanciaria uma negação do princípio da capacidade contributiva, tributando-se o contribuinte ao abrigo de uma realidade económica inexistente. Sobre este assunto, afirmava SALDANHA SANCHES de forma impressiva que “elas [as empresas] deverão ser tributadas quando têm rendimento e na exacta medida desse rendimento” . Nestes termos, concluir-se-á que a força económica do devedor de imposto constitui um limite intransponível da sua tributação.
Dito isto, sem prejuízo do que se vem expondo, a verdade é que o princípio da capacidade contributiva, pese embora seja fundamental na conformação do sistema tributário, não é absoluto. Pelo contrário, admitem-se restrições em virtude do seu concurso com outros princípios que reclamem aplicação. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 711/2006, de 22 de Janeiro de 2007, no qual se estabeleceu que «é claro que o “princípio da capacidade contributiva” tem de ser compatibilizado com outros princípios com dignidade constitucional, como o princípio do Estado Social, a liberdade de conformação do legislador, e certas exigências de praticabilidade e cognoscibilidade do facto tributário, indispensáveis também para o cumprimento das finalidades do sistema fiscal».
Conforme se depreende, é a necessidade de compatibilização de interesses conflituantes que fundamenta as correcções que são apuradas ao lucro contabilístico. Entre estes fundamentos, incluem-se as limitações impostas no tocante à aceitação fiscal de certos rendimentos e/ou gastos suportados pelos contribuintes. Assim, à data dos factos, esta compatibilização de interesses explicava que a dedutibilidade de créditos incobráveis se encontrasse sujeita à verificação de um requisito adicional materializado num ónus eminentemente formal.
Revelado na prática, este requisito consistia na emissão de uma carta endereçada ao devedor, através da qual este tomaria conhecimento da consideração da incobrabilidade do crédito na esfera do seu credor. Por conseguinte, podemos concluir que esta comunicação pretendia despoletar o funcionamento reflexo da norma em causa, ou seja, se por um lado o credor reconheceria um gasto, o devedor expurgá-lo-ia e reconhecê-lo-ia como proveito.
No que concerne ao funcionamento reflexo da norma, denote-se o entendimento sufragado no Acórdão do CAAD, proferido no âmbito do processo n.º 532/2017-T: “É certo que o n.º 2 do artigo 41.º tem implícito o cumprimento de duas obrigações: uma, na esfera do credor, ao ter de efectuar a comunicação; e outra, na esfera do devedor, no reconhecimento de um proveito/rédito aquando da recepção da comunicação de uma dívida que vai deixar de pagar em função da regularização daquele crédito por parte do seu credor, que lhe é comunicada”. Assim, reconhecendo-se a existência de duas obrigações na génese do referido preceito, concluir-se-á que ambas concretizam o princípio da tributação segundo a capacidade contributiva.
Por ocasião do ano de 2010, a racionalidade da implementação deste requisito explicava-se pela necessidade de prevenir o abuso passível de se verificar quanto à dedutibilidade do gasto associado ao crédito incobrável. Destarte, a norma cumpria um desiderato de receita fiscal, procurando-se evitar a dupla dedução da mesma realidade económica. Em todo o caso, convém sublinhar, que a comunicação não assegurava, per se, o cumprimento da correlativa obrigação que impendia sobre o destinatário. Em última análise, findos quatro anos de vigência, esta circunstância terá constituído um motivo ponderoso para se justificar a revogação parcial do artigo
Tendo sido delineado o enquadramento jurídico da questão e, por outro lado, destrinçada a ratio desta norma de controlo, cumpre-nos agora analisar o caso decidendo.
Reconhece-se como ponto prévio, o facto de a Autoridade Tributária não contestar, em momento algum, o cabal cumprimento dos demais requisitos materiais necessários à dedutibilidade de créditos incobráveis. Assim sendo, resta-nos subsumir o entendimento supramencionado ao caso concreto. Para tanto e, pela seguinte ordem, dividir-se-á a análise da questão de direito com base em três categorias distintas: devedores que tenham cessado a sua actividade; devedores não-residentes e devedores insolventes.
No que concerne a devedores que haviam cessado a sua atividade, convém relembrar que a Requerente não juntou aos autos a prova da comunicação do reconhecimento de um crédito incobrável. Todavia, provando-se através de uma lista retratada no portal das finanças que as entidades em causa, à data dos factos, não existiam do ponto-de-vista jurídico, questiona-se a racionalidade da manutenção desta obrigação para estes casos.
Convém desde logo frisar que não está em causa a mera difficultas praestandi, resultante da extraordinária onerosidade ou excessiva dificuldade da prestação para o devedor. Neste contexto, a ausência de racionalidade na manutenção desta obrigação revelar-se-ia pela existência de uma impossibilidade objectiva de cumprimento. Senão vejamos, tal qual contemplada no artigo 790.º, n.º 1 do Código Civil, a impossibilidade diz-se objectiva, absoluta, definitiva e total quando a prestação não pode ser realizada por ninguém.
Neste caso, a Requerente viu-se impossibilitada de cumprir a obrigação por circunstâncias totalmente alheias à sua vontade. Ora, reconhecendo-se que o legislador ordinário acolheu essa impossibilidade como efeito exoneratório da obrigação e, tendo em consideração o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Administrativo, conclui-se que a extinção das entidades devedoras tornou a “comunicação juridicamente irrelevante”.
Em face do exposto, será forçosa a conclusão de que por via da imposição da obrigação acessória de comunicação, o intuito de controlo visado pela norma não seria concretizável. De facto, se este controlo tivesse subjacente a efectivação do princípio da capacidade contributiva na esfera de um devedor juridicamente inexistente, tal redundaria num dever desprovido de utilidade prática. Sob este prisma, parece claro que o legislador não pretendeu onerar o credor com a obrigação de enviar uma carta a uma entidade que não existe, nem tão pouco quis sancionar a inobservância de tal dever à luz de um objectivo que, nestas condições, se apresentaria como irremediavelmente frustrado.
Atendendo a que na fixação do sentido e do alcance da lei, impende sobre o intérprete a presunção de que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” , concluir-se-á que a exigência da comunicação vigora na medida em que o seu cumprimento seja de possível realização. Ao propugnar-se uma interpretação em sentido diverso, desvirtuar-se-á o princípio da capacidade contributiva sem que isso se traduza numa efectiva compatibilização de interesses conflituantes, porquanto a manutenção da obrigação de comunicação não permite prosseguir os fins visados pela norma, não existindo situação alguma de abuso que se procure mitigar. Assim e, de acordo com o que se vem ensaiando, desvenda-se ter existido uma impossibilidade objectiva de cumprimento do dever de comunicação, a cargo da Requerente, relativamente a devedores que haviam cessado a sua actividade, sublinhe-se, por ocasião do momento da exigibilidade da obrigação. Por outras palavras, não poderá valer a tese que inviabiliza a dedutibilidade de um crédito incobrável em virtude de uma obrigação da qual a Requerente está exonerada, por impossibilidade objectiva de cumprimento.
De seguida, cumpre indagar pela segunda categoria de devedores da Requerente, considerando os valores em dívida imputáveis a sociedades não residentes em território português.
Também quanto a estes, a Requerente não juntou aos autos a prova da comunicação ao devedor do reconhecimento de um crédito incobrável, requisito do qual a lei faz depender a sua dedutibilidade. Todavia e, sem conceder, é sabido que a referida comunicação pretende compelir o devedor a “reconhecer aquele montante como proveito para efeitos de apuramento do lucro tributável”. Ora, atento o facto de as entidades não serem residentes em território português, os sujeitos em causa não têm a obrigação de apresentar uma declaração anual de imposto perante a Administração Tributária portuguesa. Por conseguinte, os resultados que apresentem, quer sejam positivos ou negativos, não influenciam a receita fiscal.
A este respeito, cumpre reproduzir as considerações tecidas no Acórdão do CAAD, proferidas no âmbito do processo n.º 532/2017-T, no qual se determinou que “Como se configura evidente a norma em causa estará construída para funcionar apenas entre entidades residentes” de modo que “se trataria de uma inutilidade formal que se exigisse v.g. um documento escrito da Requerente, dirigido e entregue (…) [a uma entidade] não residente, para os efeitos de, só assim, poder reconhecer aquele montante do crédito incobrável (em Portugal), obrigando a empresa alemã a considerar montante igual como proveito, para efeitos de apuramento do lucro tributável (na Alemanha), pela razão de que a lei portuguesa não tem essa virtualidade em território alemão”. Nestes termos, afigura-se de forma clara que o preceito legal contemplado no artigo 41º do Código do IRC consagra as situações que estão previstas e são aplicadas no âmbito do ordenamento jurídico português.
Dito isto, concluir-se-á que a norma em análise deve ser objecto de uma interpretação restritiva, de acordo com a qual, não se encontrarão compreendidos os devedores não-residentes no seu escopo subjectivo. Na prática, a necessidade de envio de uma carta ao devedor pretendia garantir a eficácia da norma espelho, fazendo corresponder ao reconhecimento de um gasto o registo de um proveito. Ora, a lei deve julgar-se cumprida sempre que o bem jurídico que se pretende salvaguardar possa considerar-se plenamente acautelado. Assim, tendo em consideração que o objetivo substancial da lei corresponde à salvaguarda da receita fiscal portuguesa, parece inverosímil que a sua pretensão aplicativa se estenda a não residentes no Estado português.
Deste modo, concluir-se-á que a Requerente não era obrigada, relativamente a estes devedores, a comunicar-lhes o reconhecimento de um crédito incobrável, razão pela qual se deverá admitir a sua dedutibilidade.
De acordo com o que se tem vindo a expor, o princípio da capacidade contributiva enquanto projecção do princípio da igualdade assegura, num sistema fiscal que se quer justo, a existência de um critério de distribuição do encargo fiscal assente na força económica do contribuinte. Deste modo, garante-se que a tributação incida sobre uma realidade economicamente relevante. Em consonância com este entendimento, SERGIO VASQUES determina: “Assim, o imposto só deve começar onde comece esta força económica, operando a capacidade contributiva como pressuposto da tributação, e deve terminar aí onde essa força económica termine também, operando a capacidade contributiva como seu limite” . Em face do que se disse, a força económica de um devedor insolvente peticiona uma solução diante de duas perguntas norteadas pelo princípio da capacidade contributiva.
A primeira questão, tomando em consideração o objectivo prosseguido pelo legislador à data dos factos, coloca em causa o efeito útil da obrigatoriedade da comunicação contemplada no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC. A segunda pergunta consistirá em saber se o princípio da capacidade contributiva é violado pela onerosidade de uma sanção, decorrente da inobservância de um requisito formal ad substantium, que desreconheça um crédito cuja incobrabilidade seja imputável a um devedor insolvente.
Apoiando-nos nesta tarefa hermenêutica, elucidar-se-á qual é a interpretação menos desfasada da realidade, mais concretamente, concluir-se-á se era exigida, a cargo da Requerente, a prova de uma comunicação aos seus devedores insolventes.
Indo ao encontro das respostas às questões enunciadas, convém recordar que uma sociedade que tenha sido declarada insolvente apresenta uma situação patrimonial deficitária, sendo “rotulada” enquanto tal por, num determinado momento, se encontrar incapaz de satisfazer as suas dívidas vencidas. Ora, tal como foi comprovado nos autos mediante a apresentação de um conjunto de certidões judiciais, a situação de insolvência dos devedores da Requerente perpetua-se à data.
Dito isto, embora exista uma situação patrimonial negativa declarada judicialmente, é bem verdade que essa circunstância não exonera uma sociedade insolvente do cumprimento de obrigações fiscais, obrigações declarativas e obrigações acessórias perante a Administração Fiscal. Sobre esta matéria, em virtude dos termos do artigo 65.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tanto a lei como o entendimento perfilhado pela jurisprudência maioritária são claros, designadamente, a posição adoptada pelo Supremo Tribunal Administrativo: “a sociedade dissolvida na sequência de processo falimentar continua a existir enquanto sujeito passivo de IRC até à data do encerramento da liquidação, ficando sujeita, com as necessárias adaptações e em tudo o que não for incompatível com o regime processual da massa falida, às disposições previstas no CIRC para a tributação do lucro tributável das sociedades” . Nestes termos, pelas razões supramencionadas, os devedores insolventes também deveriam ser considerados “devedores” para efeitos da comunicação prevista no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC.
Como já foi oportunamente evidenciado, é pacífico que o objectivo prosseguido pelo legislador cumpria um desiderato de arrecadação de receita. No entanto, reconhecendo-se tal desígnio, questiona-se a utilidade da obrigatoriedade da comunicação aos devedores insolventes.
Para esse efeito, cumpre recordar que a insolvência se consubstancia numa situação reversível até ao registo de encerramento de liquidação de uma sociedade, admitindo-se a possibilidade de se verificarem ganhos fortuitos ou inesperados. Assim, vendendo-se bens por valores que possibilitam ao devedor insolvente solver todas as suas dívidas e, inclusive, gerar sobras, reverter-se-ia esta situação patrimonial patológica. Todavia, na generalidade dos casos, uma execução universal de bens frustraria a pretensão do legislador. Dito de outro modo, admitindo-se que a Requerente viesse a cumprir a obrigação prevista no artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, através do envio de uma carta ou recorrendo a outro meio de comunicação, não é menos verdade que o objectivo prosseguido pelo legislador estaria condenado ao insucesso. E tal veio a provar-se na prática já que, até hoje, nada foi recebido pela Requerente.
De um ponto-de-vista teórico, ao abrigo do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, reconhece-se que a arrecadação de receita para os cofres do Estado possa ser equacionada. No entanto, revelado na prática, atento o elevado grau de probabilidade desse objectivo se frustrar, adiantar-se-á que a comunicação, nessas condições, não logrará produzir o efeito útil conjecturado na ratio da norma.
Aliás, sempre se dirá que idêntica inutilidade se afigura relativamente à obrigação de comunicação dirigida à generalidade dos devedores, isto é, contra os quais se registe um crédito incobrável. Senão vejamos, o artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC foi revogado pela entrada em vigor da Lei n.º 2/2014, de 16 de Janeiro de 2014. Quer isto dizer que o requisito, sob escrutínio, vigorou e a sua inobservância foi sancionada durante um hiato temporal de quatro anos, decorrido o qual, o requisito foi eliminado. Acrescidamente, detendo-nos no parecer da Proposta de Lei n. ° 175/XII/3, embrionária da Lei n.º 2/2014, descortinamos duas ordens de razão determinantes da eliminação do requisito em causa: quer a ausência de praticabilidade no controlo fiscal e a onerosidade dos seus correspondentes custos, a cargo do contribuinte, quer a fraca arrecadação de receita para o erário público. Por outras palavras, o próprio legislador considerou inútil, maxime, desproporcional a assunção de um conjunto de custos, associados ao cumprimento de uma obrigação acessória destinada à arrecadação de receita, através da aplicação do mecanismo reflexo estabelecido no artigo 41.º, n. º 2 do Código do IRC.
Constatando-se a inutilidade desta comunicação, tanto mais gritante no caso de devedores insolventes, cumpre chamar à colacção BAPTISTA MACHADO. Na esteira deste autor: “O intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo, isto é, com aquela ratio”. Como já foi oportunamente referido e, sem prejuízo das melhores críticas que possam ser tecidas ao artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC, a ratio legis do preceito em causa é o princípio da capacidade contributiva. Nesta senda, percebe-se que a obrigação acessória tem como objectivo permitir que o devedor anule da sua esfera jurídica um custo que, erradamente, considerou contabilisticamente e que nunca foi pago. Assim sendo, a questão que se coloca, do ponto-de-vista estritamente jurídico, é a de se saber se o artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC deve ser interpretado restritivamente, excluindo-se os devedores insolventes do âmbito de incidência subjectivo, maxime, aqueles relativamente aos quais se venha a provar que se mantêm insolventes ou que já foram extintos . Antecipe-se, desde já, que a resposta não poderá deixar de ser afirmativa, visto que se entende ser esta a interpretação mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva.
O legislador, por ocasião da feitura da norma, certamente não terá querido desvirtuar o princípio da capacidade contributiva, antes pelo contrário pretendeu reforçá-lo, acautelando uma eventual situação de abuso, esta consistindo na dupla dedutibilidade de um gasto. Retomando o entendimento de BAPTISTA MACHADO, apreendida que está a teleologia da norma, “o intérprete se apodera de um ponto de referência que ao mesmo tempo o habilita a definir o exacto alcance da norma e a discriminar outras situações típicas com o mesmo ou diferente recorte”. Uma solução interpretativa que desconsidere um crédito incobrável, por força do não cumprimento de uma comunicação ao administrador da massa insolvente nas condições como as do caso sub judice, conduzirá à negação do princípio da capacidade contributiva.
Afinal, se o interesse do Estado em arrecadar receita, in casu, é sobrepesado em detrimento de uma realidade economicamente relevante, estar-se-á a contrariar as razões de justiça material que devem nortear a solução deste, como de outros casos semelhantes de inobservância da pretensa obrigação de comunicação aos devedores insolventes. Dito isto, afigura-se pertinente realizar um exame de proporcionalidade à medida em análise, de modo a vislumbrar o potencial mérito da incorporação dos devedores insolventes no âmbito de incidência subjectivo do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC. Tendo em conta a ponderação dos interesses em presença, afigura-se pertinente reproduzir a posição perfilhada pelo Supremo Tribunal Administrativo: “Com efeito, é preciso recordar e ter em conta que as exigências de natureza formal e de documentação dos custos têm subjacente a protecção do interesse público no combate à fuga e à evasão fiscal. Assim, se por um lado releva o imperativo da tributação pelo rendimento real em virtude de não vir questionado que a recorrente suportou os encargos em causa, temos, do outro lado, de valorar e ponderar os interesses que estão subjacentes às exigências formais”. Desta feita, sabendo que a justiça material constitui a "teleologia própria da tributação ", a obrigação a que está adstrito o particular deve ser adequada e necessária aos fins concretos prosseguidos pelo legislador e deve ser tida como tolerável quando confrontada com esses fins.
Por conseguinte, realizar-se-á um controlo analítico da restrição através dos subprincípios que compõem o princípio da proibição do excesso:
No tocante ao subprincípio da adequação, concluir-se-á que a medida é abstratamente apta a realizar o objetivo prosseguido pelo legislador. Com efeito, através da aplicação da sanção, justificada pela inobservância do dever formal, evita-se uma situação de dupla dedução de um gasto. Relembrando, no entanto, que “este controlo se refere exclusivamente à aptidão objectiva ou formal de um meio para realizar um fim e não a qualquer avaliação substancial da bondade intrínseca ou da oportunidade da medida restritiva”.
Quanto ao subprincípio da necessidade, afirma-se que uma medida deve constituir a via menos restritiva na consecução de um fim legitimado, assim exprimindo-se a ideia de proibição de danos desnecessários. Por conseguinte e, vocacionada de igual modo para devedores insolventes, a norma em causa ultrapassará o crivo deste sub-princípio dado que não se vislumbra, à data dos factos, uma medida menos restritiva com o mesmo grau de eficácia.
Finalmente, no que diz respeito ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, o controlo que é efectuado assenta numa relação de justa medida entre duas grandezas variáveis e comparáveis. Avalia-se a relação entre o bem jurídico que se pretende proteger e, do outro lado, o bem jurídico agredido. Deste modo, determina-se se a medida foi ou não para além da justa medida, para além daquilo que é adequado. No caso em concreto, uma interpretação que se coadune com a integração dos devedores insolventes no âmbito de incidência subjectivo do artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC é manifestamente alheia a uma relação desproporcionada, isto é, ao benefício obtido pela aplicação da sanção e o sacrifício suportado pela aplicação da sanção. Com efeito, admite-se a aplicação de uma sanção que, embora motivada pelo interesse em proibir a dupla dedução de um gasto, onera excessivamente o credor ao proibir-se a dedução de um rendimento que nunca chegou a obter. Nestes termos, não existe uma relação proporcional na medida em que se desreconhece um gasto que o credor suportou efectivamente, justificada pela inobservância de um dever formal que a ter sido cumprido não produziria, com um elevado grau de certeza, os efeitos pretendidos pelo legislador. Em síntese, paradoxalmente, a sanção motivada pelo princípio da capacidade contributiva conduz, na interpretação que parece resultar da posição da Requerente, à negação do próprio princípio, posto que se desconsidera uma realidade economicamente relevante em homenagem a uma realidade que, na vasta maioria dos casos, é economicamente irrelevante.
Em virtude do que foi exposto supra, conclui-se que o artigo 41.º, n.º 2 do Código do IRC deve ser, no caso em análise, objecto de uma interpretação restritiva, no sentido de não abarcar devedores insolventes. Uma interpretação que conduza a um não reconhecimento dos créditos incobráveis, motivada pela ausência de comunicação ao administrador da massa insolvente, dará necessariamente cobertura a uma solução contrária ao princípio da capacidade contributiva e ao princípio da justiça material. Em última análise, não se descure o velho brocardo romano: “cessante ratione legis, cessante eius dispositivo” (lá onde termina a razão de ser da lei termina o seu alcance)
Nestes termos, em face da situação fáctica objeto dos autos, mostra-se ilegal o ato de liquidação adicional de IRC n.º 2017..., relativo ao exercício de 2013, devendo o mesmo ser anulado.
III.2.4. Pedido de indemnização por garantia indevida
A Requerente prestou garantia bancária para suspensão de processo de execução fiscal instaurado para cobrança coerciva das quantias liquidadas e pede indemnização pelos encargos suportados, nos termos do artigo 53.º da Lei Geral Tributária.
O artigo 171.º do Código de Procedimento e Processo Tributário estabelece que “a indemnização em caso de garantia bancária ou equivalente indevidamente prestada será requerida no processo em que seja controvertida a legalidade da dívida exequenda” e que “a indemnização deve ser solicitada na reclamação, impugnação ou recurso ou em caso de o seu fundamento ser superveniente no prazo de 30 dias após a sua ocorrência”. O regime do artigo 53.º da Lei Geral Tributária prescreve que o prazo referido no nº 1 “não se aplica quando se verifique, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços na liquidação do tributo”.
No caso em apreço é manifesto que o erro subjacente à liquidação é imputável à Autoridade Tributária pelas razões que se deixaram expostas.
IV. DECISÃO
Termos em que se decide:
a) Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral e, em consequência, anular o ato tributário impugnado nos autos
b) Condenar a Autoridade Tributária a pagar à Requerente indemnização por garantia indevida, no montante que vier a ser liquidado em execução;
c) Condenar a Autoridade Tributária nas custas do processo, no valor de € 2.142,00.
V. VALOR DO PROCESSO
Fixa-se o valor do processo em € 54.613,69 nos termos do disposto no artigo 32.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e no artigo 97.º-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicáveis por força do disposto no artigo 29.º, n.º 1, alíneas. a) e b), do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, e do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária.
VI. CUSTAS
Nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, as custas são no valor de € 2.142.00, a cargo da Autoridade Tributária, conformemente ao disposto nos artigos 12.º, n.º 2, e 22.º, n.º 4, do Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária, e artigo 4.º, n.º 5, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem.
Notifique-se.
Lisboa, 23 de Março de 2020.
Árbitro
Carla Castelo Trindade