Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 654/2019-T
Data da decisão: 2020-03-06  IRS  
Valor do pedido: € 10.691,38
Tema: IRS – Tributação das mais-valias imobiliárias obtidas por residente em Estado-membro da EU – Princípio da não discriminação.
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DECISÃO ARBITRAL[1]

 

O árbitro, Dra. Sílvia Oliveira, designado pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) para formar o Tribunal Arbitral Singular, constituído em 20 de Dezembro de 2019, decidiu o seguinte:

 

  1. RELATÓRIO

 

  1. A..., contribuinte nº..., residente em ..., em França (adiante designado por “Requerente”), apresentou pedido de pronúncia arbitral e de constituição de Tribunal Arbitral Singular, no dia 30 de Setembro de 2019, ao abrigo do disposto no artigo 2, nº 1, alínea a) e do disposto no artigo 10º do Decreto-lei nº 10/2011, de 20 Janeiro [Regime Jurídico da Arbitragem em Matéria Tributária (RJAT)], em que é Requerida a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante designada por “Requerida”).

 

  1. O Requerente apresentou pedido pronúncia arbitral sobre o acto de “liquidação de IRS n.º 2018..., respeitante ao período de 2017 (…)” e sobre o “indeferimento da Reclamação Graciosa com o n.º de Processo ...2018..., pelo Ofício n.º ...  de 2 de julho de 2019 (…)”, peticionando a “(…) declaração de ilegalidade e anulação dos atos tributários em apreço por vício de violação de lei, incluindo constitucional e do Direito Europeu originário e pela condenação da AT à anulação dos atos praticados em consequência do não pagamento da Liquidação ilegal, aqui em crise”.

 

  1. O pedido de constituição do Tribunal Arbitral foi aceite pelo Exmo. Senhor Presidente do CAAD em 1 de Outubro de 2019 e notificado, na mesma data, à Requerida.

 

  1. Em 2º de Novembro de 2019, dado que a Requerente não procedeu à nomeação de árbitro, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 1 do RJAT, foi a signatária designada como árbitro pelo Senhor Presidente do Conselho Deontológico do CAAD, tendo a nomeação sido aceite, no prazo e termos legalmente previstos.

 

  1. Na mesma data, foram as Partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de a recusar, nos termos conjugados do artigo 11º nº 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6º e 7º do Código Deontológico.

 

  1. Em 20 de Dezembro de 2019, em conformidade com o preceituado na alínea c) do nº 1 do artigo 11º do RJAT, o Tribunal Arbitral foi constituído, tendo sido proferido despacho arbitral na mesma data no sentido de notificar a Requerida para, nos termos do disposto no artigo 17º, nº 1 do RJAT, apresentar Resposta, no prazo máximo de 30 dias e, caso quisesse, solicitar a produção de prova adicional.

 

  1. Adicionalmente, foi ainda referido naquele despacho arbitral que a Requerida deveria remeter ao Tribunal Arbitral, dentro do prazo da Resposta, cópia do processo administrativo.

 

  1. A Requerida apresentou, em 30 de Janeiro de 2020, a sua Resposta, na qual se defendeu por impugnação, argumentando que “(…) liquidou o IRS do ano de 2017 devido pelo Requerente tendo em conta os elementos por ele declarados e não declarados (…), pelo que deve manter-se, por legal, a liquidação ora impugnada”, concluindo que “(…) deverá ser proferida decisão que julgue o presente pedido de pronúncia arbitral improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida nos termos acima peticionados, tudo com as devidas e legais consequências”.

 

  1. Adicionalmente, na mesma data, anexou a Requerida aos autos cópia do processo administrativo.

 

  1. Por despacho arbitral de 3 de Fevereiro de 2020 foi decidido, em síntese, pelo Tribunal Arbitral, em consonância com os princípios processuais consignados no artigo 16º Regime Jurídico da Arbitragem Tributária (RJAT), da autonomia do tribunal arbitral na condução do processo e na determinação das regras a observar [alínea c)] e da livre condução do processo consignado nos artigos 19º e 29º, nº 2 do RJAT:

 

  1. Indeferir o pedido de notificação da Requerida para junção aos Autos do documento comprovativo do pagamento de IMT referido no pedido arbitral porquanto, face à documentação anexada pelas Partes, incluindo o Processo administrativo, tal documento não se afigura relevante para a decisão de mérito da causa;
  2. Dispensar a realização da reunião a que se refere o artigo 18º do RJAT;
  3. Em consequência, indeferir o pedido de alegações orais e determinar que o processo prossiga com alegações escritas facultativas, a apresentar no prazo sucessivo de 10 dias, a contar da notificação do presente despacho;
  4. Designar o dia 6 de Março de 2020 para efeitos de prolação da decisão arbitral.

 

  1. Por último, o Tribunal advertiu a Requerente que, até à data da prolação da decisão arbitral deveria proceder ao pagamento da taxa arbitral subsequente, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 4º do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária e comunicar esse pagamento ao CAAD.

 

  1. Em 13 de Fevereiro de 2020, o Requerente apresentou as suas alegações escritas, no sentido de reiterar a argumentação apresentada no pedido arbitral, concluindo nos mesmos termos.

 

  1. Em 18 de Fevereiro de 2020, a Requerida apresentou as suas alegações escritas, tendo concluído no mesmo sentido da Resposta.

 

  1. CAUSA DE PEDIR

 

2.1.    O Requerente começa por referir que “(…) é uma pessoa singular, de nacionalidade portuguesa (…) que, até 8 de novembro de 2014, residiu, para efeitos fiscais, em Portugal (…)” sendo que “para esse efeito, a sua habitação própria permanente era o imóvel sito na Rua ..., n.º ... a ... e ...– A,  ..., Concelho de Lisboa, fração autónoma designada pela letra ‘J’ correspondente ao quarto andar (…), que se destina exclusivamente a habitação (…)”.

 

2.2.    O Requerente refere que o referido imóvel “foi adquirido em 9 de novembro de 2004 pelo valor de 150.000,00 € (…) e, como qualquer aquisição de imóvel, implicou o pagamento de vários encargos, nomeadamente o pagamento do IMT (2.600,00€); da escritura (1.695,00€), certificação energética (253,00€) (…)”, tendo sido realizadas, posteriormente, “(…) várias obras de conservação e de valorização do imóvel que totalizaram 938,00 € (…)”.

 

2.3.    Assume o Requerente que “(…) cometeu um lapso na sua Modelo 3, onde considerou como despesas e encargos o valor de 10.972,00€, em vez de colocar o valor de
5.486,00 € (…)
” e que “no dia 29 de agosto de 2017, (…) alienou o imóvel pelo valor de 298.000,00 € (…)”, não tendo no ano de 2017 auferido “(…) mais nenhum rendimento, nem em Portugal nem nenhum outro Estado”.

 

2.4.    Prossegue o Requerente referindo que “sendo (…) residente num outro Estado Membro da União Europeia (…), com o qual existe intercâmbio de informações em matéria fiscal, e dado que auferiu mais de 90% da totalidade dos seus rendimentos referentes ao ano de 2017 em Portugal, (…) optou na Modelo 3 pela tributação como residente nos termos do artigo 17.º – A do Código do IRS (…)” e, em consequência, entende que a mais-valia decorrente da alienação do imóvel acima referido ascendeu a “(…) 114.014,00 € (…)”, devendo ser considerada “(…) em 50% para efeitos aplicação do imposto, pelo que o total do rendimento para efeitos de aplicação das taxas progressivas do artigo 68.º do Código do IRS é de 57.007,00 € (…)”, devendo “a esse valor, nos termos do artigo 68.º do Código do IRS, [ser] aplicada a taxa de 45% à qual corresponde uma parcela a abater de 5.956,69”.

 

2.5.    “Por este motivo, o valor de imposto devido pelo Requerente é 19.696,46 € (…) e não 30.387,84 € (…) como impôs a AT na Liquidação em crise” porquanto “(…) a AT, após o cálculo da mais-valia com base nas informações declaradas na Modelo 3, aplicou cegamente a taxa de 28% ao valor total da mais-valia apurada” o que, segundo entende o Requerente, “significa que a AT tributou o Requerente como se este tivesse optado pela tributação como ‘não residente’, o que é a prova cabal de que a Modelo 3 do Requerente foi completamente ignorada, apesar de este preencher os requisitos do artigo 17.º – A do Código de IRS, pelo que carece de ser ANULADA dada a ilegalidade que a mesma perpetrou”.

 

2.6.    Refere ainda o Requerente que “(…) para além da emissão ilegal da Liquidação em crise, a AT também emitiu citação para o Processo de Execução Fiscal com o número ...2018... (…) bem como a demonstração de acerto de contas com o n.º 2018..., da qual consta o depósito de penhora n.º...2018... (…) atos que também carecem de ser anulados em consequência da declaração de nulidade da Liquidação ilegal, como normal decorrência da destruição dos seus efeitos no ordenamento jurídico”.

 

  1. Para fundamentar a sua pretensão, alega o Requerente que preenche, para o período em causa, todos os requisitos enunciados no artigo 17º-A do Código do IRS, “motivo pelo qual não se compreende a opção da AT em ignorar a escolha pela tributação como ‘residente’ efetuada pelo Requerente na sua Modelo 3”, argumentando que o “desrespeito pela escolha do Contribuinte, não se consubstancia numa mera violação de formalidade essencial, nem simplesmente numa violação do princípio de que as declarações do Contribuinte são efetuadas de boa fé (…)” mas sim numa violação “(…) sem margem para dúvidas, [de] duas liberdades europeias, a livre circulação de pessoas e a livre movimentação de capitais, o que significa o incumprimento do direito dos tratados (…) [e] da jurisprudência do TJUE (…)”.

 

  1. Assim, entende que “impedir o Requerente de aceder ao regime tributário previsto para residentes representa uma discriminação negativa para com os contribuintes ‘não residentes’ donde resulta uma violação do Direito da União Europeia, sendo a atuação, por isso, ilegal”.

 

  1. Por outro lado, defende o Requerente que “a questão em apreço não carece de reenvio prejudicial uma vez que a jurisprudência sobre a mesma, quer no TJUE, que no STA quer no Tribunal Arbitral é de tal forma serena que o thema decidendum destes Autos já consubstancia um ato claro”.

 

  1. Nestes termos, entende o Requerente que, no caso, “deparamo-nos, portanto, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do TFUE”, o que “torna a Liquidação NULA por violação do Direito dos Tratados, violação da Jurisprudência do TJUE e dos princípios comunitários, violação do texto constitucional e, por fim, violação do próprio Código do IRS”.

 

  1. Adicionalmente, entende o Requerente que “a Liquidação aqui impugnada carece de ser declarada nula por violar o direito à fundamentação do Requerente, mais não fosse porque a Liquidação em crise deveria ter enunciado, ainda que de forma sumária o motivo pelo qual alterou a opção de tributação, o que, como se pode constatar pela análise do doc. n.º 1, não sucedeu, e essa justificação também não resulta da letra da lei” razão pela qual conclui que “a falta total de fundamentação material da liquidação em crise afeta o núcleo essencial do direito fundamental do Requerente e deve, por isso, ser culminada com a NULIDADE, POR VIOLAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL procedimental previsto no n.º 3 do artigo 268.º da Constituição, e no estreito cumprimento do ónus da prova que pendia sobre a AT e o qual esta se recusou a cumprir, recusando-se a comunicar a devida e competente fundamentação”.

 

  1. RESPOSTA DA REQUERIDA

 

3.1.    A Requerida, na Resposta apresentada, veio defender-se por impugnação nos termos que a seguir se apresentam.

 

3.2.    A Requerida refere que “o Requerente apresentou em 2018-07-24, uma declaração de rendimentos modelo 3 de IRS, que substituía a anteriormente apresentada, referente ao ano de 2017, tendo optado pelo regime aplicável aos residentes” mas, em conformidade com as instruções de preenchimento, “se for assinalado o campo 08, deve indicar-se no campo 11 a totalidade dos rendimentos auferidos fora do território português”.

 

3.3.    Ora, segundo alega a Requerida, como o Requerente nada assinalou, “a AT não conseguiu aferir qual a percentagem que o Requerente auferiu em Portugal do total dos rendimentos obtidos em 2017, motivo pelo qual foi o mesmo tributado pelo regime regra aplicável a não residentes”.

 

3.4.    Não concorda a Requerida com o Requerente quando este defende que “(…) a atuação da AT viola o disposto no n.º 2 do art. 43.º do CIRS e no art. 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)” porquanto entende que “a matéria relativamente à qual foi suscitada a apreciação do Tribunal Arbitral, reporta-se à exclusão da incidência de imposto de mais-valias a 50% (tal como acontece com os residentes), obtidas por um não residente em Portugal nem residente num Estado Membro da União Europeia (ou seja, residente num país terceiro) violar o Direito Comunitário”.

 

3.5.      Prossegue a Requerida no sentido de que “as alegações do Requerente não podem obter provimento, face à alteração do artigo 72.º, efetuada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, nomeadamente o aditamento dos n.ºs 7 (atual n.º 9) e 8 (atual n.º 10)”, porquanto “o n.º 8 (atual n.º 10) do artigo 72° do Código do IRS é taxativo, no sentido de que devem ser englobados todos os rendimentos obtidos nesse ano (quer em Portugal, quer no estrangeiro)” e “o mesmo é referido no n.º 1 do artigo 15º do Código do IRS: sendo as pessoas residentes em território português, o IRS incide sobre a totalidade dos seus rendimentos, incluindo os obtidos fora desse território”.

 

3.6.    Assim, segundo entende a Requerida, “para efeitos de tributação pela taxa do artigo 68°, ou seja, como residente, era necessário ter preenchido os campos 9 (opção pelas taxas do artigo 68° do Código do IRS) e 11 (total dos rendimentos obtidos no estrangeiro)”, concluindo que “o quadro legal (bem como a obrigação declarativa) já não é aquele que existia à data do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, tendo em conta que foi efetuada a alteração à lei por força do aditamento dos n.º 7 e 8 (atuais 9 e 10) ao artigo 72 ° do Código do IRS pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12”.[2]

 

  1. Adicionalmente, e no que diz respeito a outros arestos do TJUE invocados pelo Requerente, alega a Requerida que os mesmos “(…) foram emitidos antes da alteração legislativa a que atrás se fez referência, motivo pelo qual se conclui do mesmo modo”.

 

  1. Por outro lado, e no que diz respeito ao Acórdão do TJUE, proferido em 19-11-2015 no processo n.º C632/13, entende a Requerida que, “conforme resulta expressamente do seu conteúdo, respeita a normas diversas (artigos 21.º e 45.º) da que é invocada no âmbito deste processo arbitral (art. 63.º TFUE), tendo o referido aresto versado sobre matéria distinta (deduções pessoais) da aqui em causa, pelo que o mesmo não pode ser aplicado á situação em apreço” e que quanto aos Acórdãos do STA invocados pelo Requerente, os mesmo “versavam sobre liquidações de IRS de 2004 e 2003, ou seja em anos anteriores à colocação à disposição dos sujeitos passivos não residentes do regime opcional de tributação como residentes, pelo que também não é aplicável á situação em apreciação” sendo que, no que diz respeito à jurisprudência arbitral, refere a Requerida que “(…) recentemente, o tribunal arbitral veio pronunciar-se sobre esta questão de modo completamente diverso ao mencionado pelo Requerente, como a decisão do Processo n.º 539/18-T, pelo que também não colhe a invocação dessas decisões como fundamento da sua pretensão”.

 

  1. No que diz respeito à alegada violação do Direito Constitucional, “porque contrariar o Direito dos Tratados é o mesmo que contrariar frontalmente a própria Constituição da Republica Portuguesa, invocando o n.º 4 do art. 8.º da CRP” defende a Requerida que “a atuação da AT resulta diretamente dos ditames da lei, não se procedendo a qualquer correção ou alteração ao valor declarado mas sim a considerar a totalidade da mais-valias resultantes da venda do imóvel, às quais aplicou a taxa prevista na al. a) do n.º 1 do art. 72.º do CIRS”.

 

  1. Em matéria da alegada falta de fundamentação da liquidação invocada pelo Requerente, alega a Requerida que “na situação dos autos, a AT limitou-se a retirar a necessária consequência do não preenchimento do campo 11 do quadro 8 da declaração de rendimentos modelo 3, pelo que nenhum dos acórdãos invocados é suscetível de fundamentar a alegação do Requerente segundo a qual teria ocorrido, relativamente à liquidação de IRS efetuada em seu nome relativamente ao ano de 2017, uma situação de insuficiência de fundamentação” e, “ainda que tal tivesse sucedido, sempre o Requerente poderia lançar mão da faculdade prevista na parte final do n.º 1 do art. 37.º do CPPT”.

 

  1. Por outo lado, entende a Requerida que “o Requerente apreendeu ao pormenor o modo como a liquidação foi efetuada, os valores que considerou e a forma como foi determinado o imposto a pagar”, ou seja, “a determinação do iter cognoscitivo que levou ao apuramento do tributo foi completa e plenamente processada pelo Requerente, o que vai de encontro à jurisprudência firmada no Acórdão do STA – Processo n.º 0742/03 de 26-05-2004; Acórdão do STA –Processo 090/06 de 04-10-2006”, reiterando a Requerida que, “no presente caso, o Requerente compreendeu porque lhe foi pedido o montante de imposto a pagar ao cêntimo; indicando até o montante de imposto que, m sua opinião, lhe devia ter sido exigido e, por conseguinte, referindo também o valor que lhe teria sido pedido em excesso e ficando o Requerente habilitado a impugnar o ato tributário de liquidação”.

 

  1. Nestes termos, conclui a Requerida que “(…) a AT liquidou o IRS do ano de 2017 devido pelo Requerente tendo em conta os elementos por ele declarados e não declarados (o não preenchimento do campo 11 do quadro 8 da declaração de rendimentos modelo 3), pelo que deve manter-se, por legal, a liquidação ora impugnada” e “(…) deverá ser proferida decisão que julgue o presente pedido de pronúncia arbitral improcedente por não provado, e, consequentemente, absolvida a Requerida nos termos acima peticionados, tudo com as devidas e legais consequências”.

 

  1. SANEADOR

 

4.1.    O Tribunal é materialmente competente para apreciação do pedido arbitral e encontra-se regularmente constituído, nos termos do artigo 2º, nº 1, alínea a), artigos 5º e 6º, todos do RJAT.

 

4.2.    O pedido de pronúncia arbitral é tempestivo porque apresentado no prazo previsto na alínea a), do nº 1, do artigo 10º do RJAT.

 

4.3.    As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária, são legítimas quanto ao pedido de pronúncia arbitral, nos termos do disposto nos artigos 4º e 10º do RJAT e do artigo 1º da Portaria nº 112-A/2011, de 22 de Março, estando devidamente representadas.

 

4.4.    Não foram suscitadas excepções de que cumpra conhecer nem se verificam nulidades.

 

  1. MATÉRIA DE FACTO

 

5.1.    Preliminarmente, e no que diz respeito à matéria de facto, importa salientar que o Tribunal não tem que se pronunciar sobre tudo o que foi alegado pelas Partes, cabendo-lhe, sim, o dever de selecionar os factos que importam para a decisão e discriminar a matéria provada da matéria não provada [cfr. artigo 123º, nº 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e artigo 607º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis ex vi artigo 29º, nº 1, alíneas a) e), do RJAT].

 

5.2.    Deste modo, os factos pertinentes para o julgamento da causa são escolhidos e recortados em função da sua relevância jurídica, a qual é estabelecida em atenção às várias soluções plausíveis da(s) questão(ões) de Direito.

 

Dos factos provados

 

5.3.    O Requerente é uma pessoa singular, de nacionalidade portuguesa que, até 08-11-2014, residiu para efeitos fiscais em Portugal.

5.4.    O Requerente adquiriu, em 09-11-2004, por escritura pública, uma fracção autónoma do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., nº ... a ... e ..., da freguesia de ..., em Lisboa, identificado matricialmente sob o nº..., pelo valor de EUR 150.000,00.

5.5.    Da escritura pública de aquisição do imóvel descrito no ponto anterior resulta que o mesmo se destinou à habitação própria e permanente do Requerente, tendo este utilizado para pagamento do valor de aquisição (i) EUR 2.304,96, retirados de conta poupança habitação aberta no B... e (ii) EUR 147.695,04 proveniente de quantia mutuada pela referida entidade bancária.

5.6.    Pela aquisição do referido imóvel, o Requerente suportou vários encargos, nomeadamente, o IMT (no valor de EUR 2.600,00), custos da escritura (no valor de
EUR 1.695,00), custos de certificação energética (no valor de EUR 253,00) e, posteriormente, suportou custos associados com obras de conservação e de valorização do imóvel que totalizaram EUR 938,00.

5.7.    O Requerente alterou, junto da Autoridade Tributária nacional, o seu domicílio fiscal para ..., em França, passando à condição de não residente fiscal em Portugal, sem representante, com efeitos a partir de 08-11-2014.

5.8.    O Requerente alienou, no dia 29-08-2017, o imóvel identificado no ponto 5.4., supra, pelo valor de EUR 298.000,00.

5.9.    O Requerente apresentou, em 17-04-2018, a sua declaração anual de rendimentos modelo 3 de IRS, relativa ao ano de 2017.

5.10.  O Requerente apresentou, em 24/07/2018, a sua declaração anual de rendimentos modelo 3 de IRS de substituição, relativa ao ano 2017 (Declaração nº 2017-...), na qual declarou ser não residente fiscal em Portugal (por ser residente fiscal em França).

5.11.  Nesta declaração anual de rendimentos modelo 3 de IRS de substituição, o Requerente optou pela aplicação das regras de tributação dos residentes fiscais em Portugal (assinalando para o efeito os campos 8 e 10 do Quadro 8 da referida declaração), tendo preenchido com valor 0,00 o campo 11 do referido Quadro 8, relativamente ao “Total de rendimentos obtidos no estrangeiro”.

5.12.  O Requerente foi notificado da liquidação de IRS nº 2018..., de 26-07-2018, relativa ao ano de 2017, no montante de EUR 30.387,84, na qual foram aplicadas as regras de tributação das mais-valias aplicáveis aos não residentes fiscais em Portugal, ou seja, a mais-valia fiscal obtida com a alienação do imóvel descrito no ponto 5.4., supra, foi integralmente tributada à taxa de 28%.

5.13.  O Requerente entende que as regras de tributação aplicáveis ao rendimento das
mais-valias obtidas com a alienação, em 2017, do imóvel acima identificado deveriam ser as aplicáveis aos residentes fiscais em Portugal, não concordando por isso com o diferencial de imposto, a mais, apurado pela Requerida, face ao total da liquidação.

5.14.  O Requerente não pagou o montante de IRS liquidado dentro do prazo para pagamento voluntário.

5.15.  O Requerente apresentou, em 31-07-2018, reclamação graciosa (processo nº ...2018...) junto do Serviço de Finanças de Lisboa ... contra a liquidação de IRS identificada no ponto 5.12., supra, com fundamento no facto de (i) não ter lhe terem sido aplicadas as regras de tributação dos residentes fiscais (apesar de ter optado nesse sentido) e de (ii) não ter sido considerada a exclusão tributária por reinvestimento.

5.16.  O Requerente foi notificado da execução fiscal nº ...2018..., de 10-09-2018, relativa à dívida de IRS do ano 2017 em cobrança coerciva, no montante de
EUR 30.573,81.

5.17.  O Requerente foi notificado do Ofício nº..., de 14-05-2019, relativo ao projecto de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e para exercer, querendo, o direito de audição.

5.18.  O projecto de indeferimento da reclamação graciosa identificada apenas se debruçou sobre a questão do enquadramento legal do reinvestimento do valor de realização do imóvel alienado, concluindo que “(…) a constituição do direito a benefícios fiscais (…) deve reportar-se à data da verificação dos respetivos pressupostos, pelo que é na data da alienação – 29-08-2017 – que se têm de verificar os pressupostos legais da exclusão da tributação, designadamente a afetação do imóvel (…) à habitação própria e permanente. (…)” pelo que sendo o então reclamante “(…) residente [em França], desde 08-11-2014 (…)”, “(…) à data de 29-08-2017, não se verificavam os pressupostos subjacentes à constituição do benefício fiscal da exclusão tributária”.

5.19.  O Requerente não exerceu o direito de audição.

5.20.  O Requerente foi notificado do Ofício nº..., de 02-07-2019 relativo ao despacho de indeferimento da reclamação graciosa identificada no ponto 5.15., supra, que convolou em definitivo o projecto de indeferimento da referida reclamação.

5.21.  O Requerente apresentou, em 30-09-2019, pedido de pronúncia arbitral relativo à liquidação de IRS acima identificada com fundamento na alegada ilegalidade da referida liquidação por violação do artigo 63º do TFUE e por alegada falta de fundamentação da mesma.

 

Motivação quanto à matéria de facto

 

5.22.  No tocante à matéria de facto provada, a convicção do Tribunal Arbitral fundou-se, para além da livre apreciação das posições assumidas pelas Partes (em sede de facto), no teor dos documentos juntos aos autos pelas Partes, incluindo o processo administrativo.

 

Dos factos não provados

 

5.23.  Não se verificaram quaisquer outros factos como não provados com relevância para a decisão arbitral.

 

6.       MATÉRIA DE DIREITO

 

6.1.    Encontrando-se fixada a matéria de facto dada como provada, de seguida importa determinar o direito aplicável aos factos subjacentes, de acordo com a(s) questão(ões) a decidir.

 

6.2.    Nos autos, o pedido formulado pelo Requerente é no sentido de que o acto de “liquidação de IRS n.º 2018..., respeitante ao período de 2017 (…)” e o “indeferimento da Reclamação Graciosa com o n.º de Processo ...2018..., pelo Ofício n.º ... de 2 de julho de 2019 (…)” sejam declarados ilegais, com consequente “(…) anulação dos atos tributários em apreço por vício de violação de lei, incluindo constitucional e do Direito Europeu originário e pela condenação da AT à anulação dos atos praticados em consequência do não pagamento da Liquidação ilegal (…)”.

 

6.3.    No processo, a questão a decidir diz assim respeito a decidir se o regime de tributação incidente sobre a totalidade das mais-valias imobiliárias, auferidas por não residentes em território português (mas residentes em território de outro Estado-membro da EU - no caso, em França), interpretando e aplicando assim o preceituado no nº 2 do artigo 43º do Código do IRS unicamente a sujeitos passivos residentes em Portugal, está ou não em desconformidade com o direito comunitário, em particular, com a liberdade de circulação de capitais prevista no artigo 63º do TFUE, constituindo uma situação de descriminação entre residentes em Portugal e residentes em outro Estado-membro da UE.

 

6.4.    Com efeito, a questão coloca-se, naturalmente, para os não residentes em Portugal que residam noutro Estado-membro da EU e que, por força da proibição de discriminação, quer da proibição genérica (tal como resulta do disposto no artigo 18º do Tratado), quer da proibição de qualquer restrição (direta ou indireta) à liberdade de circulação de capitais, não lhes deva ser aplicado um regime de tributação menos favorável quando comparado com o que é aplicável aos residentes em Portugal.

 

6.5.    No caso em apreciação nos presentes autos, ficou provado que a Requerida considerou, para efeitos de determinação do rendimento coletável e consequente liquidação do IRS relativo ao ano de 2017, o Requerente como sendo não residente em Portugal mas num outro Estado-Membro da UE (no caso, em França), em conformidade com o que o Requerente declarou na respectiva declaração modelo 3 de rendimentos de substituição.

 

6.6.    Contudo, para efeitos de tributação dos rendimentos, a Requerida considerou a totalidade da mais-valia realizada com a alienação, pelo Requerente, do imóvel identificado nos autos, sujeitando-a à taxa de 28%, não obstante o Requerente ter assinalado na declaração que pretendia ser tributado como se de um residente se tratasse.

 

6.7.    Ou seja, no caso em análise, alega o Requerente que foi declinada a aplicação do regime preceituado no nº 2, do artigo 43º do Código do IRS, segundo o qual “o saldo referido no número anterior, respeitante às transmissões efetuadas por residentes previstas nas alíneas a), c) e d) do n.º 1 do artigo 10.º, positivo ou negativo, é apenas considerado em 50% do seu valor” mas entende a Requerida que “(…) o disposto no n.º 2 do artigo 43º do Código do IRS não pode ser aplicável ao caso aqui em análise”.

 

6.8.    Com efeito, para o Requerente, o valor apurado a título de mais valia deve ser considerado em apenas 50% do seu valor, pois entende que o disposto no artigo 43º, nº 2, do Código do IRS é também aplicável aos não residentes em Portugal, desde que residentes num Estado-membro da UE, invocando a favor deste entendimento diversa jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (STA) e jurisprudência arbitral, ambas ancoradas na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), nomeadamente, no processo C-443/06, em 11 de outubro de 2007 (caso Hollmann).

 

6.9.    Neste enquadramento, conclui o Requerente que o regime de tributação das mais valias, decorrente do disposto nos artigos, 10º e 43º, nº 2 do Código do IRS, é incompatível com o direito europeu, não sendo de considerar sanada tal incompatibilidade com o aditamento ao artigo 72º do Código do IRS dos seus nºs 7 e 8 (actuais nºs 9 e 10), pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de dezembro (OE 2008), porquanto persiste uma situação de discriminação no tratamento de residentes e não residentes (que residam em país da EU ou do EEE), com prejuízo para estes.

 

6.10.  A Requerida, por seu turno, entende que o quadro legal (assim como a obrigação declarativa), já não é aquele que existia à data da prolação do identificado Acórdão pelo TJUE, tendo em conta a predita alteração legislativa ao artigo 72º do Código do IRS porquanto, entende a Requerida, o acórdão Hollmann se refere a situações ocorridas na vigência do artigo 72º do Código do IRS, na redação anterior à que foi introduzida pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro.

 

6.11.  Não obstante, a Requerida defende uma outra interpretação, por considerar que a introdução (pela referida Lei de Orçamento de Estado para 2008) da possibilidade de opção, por parte dos sujeitos passivos não residentes, pela tributação de acordo com as taxas previstas no artigo 68º do Código do IRS (embora nesse caso, sendo considerados todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora do território nacional) alegadamente equiparando-os aos sujeitos passivos residentes, veio obviar ao tratamento diferenciado (discriminatório) dos não residentes em países da UE ou do EEE (que realizem mais-valias imobiliárias em Portugal) face ao aqui residentes.

 

6.12.  Ou seja, segundo a Requerida, a opção de equiparação permite, aos sujeitos passivos não residentes em Portugal, mas residentes em algum dos Estados-membros da EU ou do EEE, a opção pela tributação desses rendimentos em condições similares às aplicáveis aos sujeitos passivos residentes em Portugal, eliminando assim qualquer discriminação.

 

6.13.  Nesse contexto, vem a Requerida alegar que o Requerente poderia beneficiar do mesmo regime aplicável aos sujeitos passivos residentes em Portugal e que se isso só não aconteceu, não pelo facto de o Requerente ser um sujeito passivo não residente, mas sim pelo facto de este, apesar de ter optado pela tributação naqueles termos, não ter (alegadamente) preenchido o campo 11 do Quadro 8 da declaração modelo 3 de rendimentos de substituição apresentada (facto que não corresponde à verdade pois o referido campo está preenchido nessa declaração com valor “0,00”).

 

6.14.  Com efeito, o Requerente podia optar (e optou) pela aplicação, ao rendimento de mais-valias imobiliárias que gerou em Portugal no ano de 2017, do regime normal de tributação aplicável aos sujeitos passivos residentes (ao abrigo do regime geral das taxas previstas no artigo 68º do Código do IRS) mas, ainda assim, não viu a sua liquidação de IRS daquele ano ser calculada, pela Requerida, nos termos da opção exercida.

 

6.15.  Aqui chegados, importará aferir se, com a referida alteração introduzida pela Lei nº 67-A/2007 de 31 de Dezembro, estará ou não dirimido o alegado tratamento discriminatório entre os sujeitos passivos residentes e os sujeitos passivos não residentes, em Portugal, quando estes últimos sejam residentes em algum Estado-membro da UE ou do EEE e realizem mais-valias imobiliárias em território nacional.

 

Do regime de tributação das mais-valias no Código do IRS

 

6.16.  Preliminarmente, torna-se necessário analisar o regime fiscal previsto no Código do IRS, na redação à data a que se reporta a liquidação de imposto objecto do pedido (2017), no que diz respeito à tributação das mais-valias imobiliárias, obtidas em Portugal, por um sujeito passivo não residente.

 

6.16.  Nos termos do disposto na alínea a), do nº 1, do artigo 10º do Código do IRS, “constituem mais-valias os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de (...) alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis” sendo que, nos termos do nº 4 do mesmo artigo 10.º, o ganho sujeito a tributação corresponde à diferença positiva entre o valor de realização e o valor de aquisição (que é corrigido pela aplicação do coeficiente de desvalorização monetária), acrescido dos encargos e despesas necessárias e efectivamente praticadas, inerentes à aquisição e alienação do imóvel (artigos 50º e 51º do Código do IRS).

 

6.17.  No que respeita à tributação de não residentes em território português, o artigo 13º, nº 1 do Código do IRS dispõe que “ficam sujeitas a IRS as pessoas singulares que residam em território português e as que, nele não residindo, aqui obtenham rendimentos”, acrescentando o artigo 15º, nº 2 do mesmo diploma legal que, quanto aos sujeitos passivos não residentes, aquele imposto “incide unicamente sobre os rendimentos obtidos em território português”.

 

6.18.  De acordo com o disposto no artigo 18º, nº 1, alínea h) do Código do IRS, as mais-valias resultantes da transmissão de imóveis nele situados constituem rendimentos obtidos em território português.

 

6.19.  Para efeitos de tributação, o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano (artigo 43º, nº 1, do Código do IRS) mas, no caso de transmissões previstas nas alíneas a), c) e d) do nº 1 do artigo 10º, efectuadas por sujeitos passivos residentes, o saldo positivo ou negativo é apenas considerado em 50 % do seu valor (cfr. artigo 43.º, n.ºs 1 e 2 do Código do IRS).[3]

 

6.20.  No que diz respeito aos sujeitos passivos residentes, sobre o valor de rendimento apurado nos termos do ponto anterior, incidem as taxas gerais previstas no artigo 68º do Código do IRS sendo que, relativamente aos sujeitos passivos não residentes em território português, o artigo 72º, nº 1, alínea a), do Código do IRS prevê a aplicação, à totalidade das mais-valias apuradas, de uma taxa especial de 28%.

 

6.21.  Não obstante, os residentes noutro Estado-membro da UE ou do EEE (desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal), podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do nº 1 e no nº 2 do artigo 72º do Código do IRS, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º daquele Código seria aplicável no caso de tais rendimentos serem auferidos por residentes em território português, em conformidade com o estatuído no nº 9 do artigo 72º do Código do IRS (na redacção dada pela Lei nº 82-E/2014, de 31 de Dezembro, em vigor no ano a que respeitam os rendimentos subjacentes à liquidação de IRS em crise, ou seja, em 2017).

 

6.22.  Adicionalmente, de harmonia com o nº 10 do referido artigo 72º do Código do IRS, “para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

 

O artigo 63º do Tratado de Funcionamento da União Europeia e a jurisprudência do TJUE

 

6.23.  Apresentado o regime fiscal nacional, analisemos o invocado artigo 63º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), a jurisprudência do TJUE a ele associada e a compatibilidade entre o regime previsto no normativo nacional e o comunitário.

 

6.24.  O artigo 63º do TFUE estabelece que “1. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos movimentos de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros. 2. No âmbito das disposições do presente capítulo, são proibidas todas as restrições aos pagamentos entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e países terceiros” (sublinhado nosso).[4]

 

6.25.  Com efeito, o princípio da não discriminação, previsto no Tratado, é um princípio fundamental na construção da União Europeia, imperativo desde a constituição do projeto europeu, e deve ser lido como imposição de tratamento igual entre cidadãos europeus, independentemente da sua nacionalidade ou residência.

 

6.26.  Este princípio está, aliás, bem sedimentado na jurisprudência do Tribunal de Justiça, que ao longo das últimas décadas o vem afirmando com clareza e determinação, bem como na jurisprudência, quer do STA (que tem vindo a ser firme nas decisões proferidas nesta matéria), quer na generalidade da jurisprudência arbitral já proferida nesta matéria.

 

6.27.  Neste âmbito, o TJUE veio considerar incompatível com o Direito da União, por se tratar de um tratamento diferenciado incompatível com a livre circulação de capitais garantida pelo artigo 63º do TFUE (anterior artigo 56º), o regime previsto no artigo 72º, nº 1, do Código do IRS (na redacção anterior à introduzida pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro), ao tributar as mais-valias de contribuintes não residentes a uma taxa fixa (em 2017, de 28 %), enquanto os residentes estavam sujeitos a um imposto progressivo sobre o rendimento, incidindo a respectiva taxa sobre 50% do rendimento.[5]

 

6.28.  No referido Acórdão Hollmann entendeu-se que é incompatível com a norma que assegura aquela liberdade de circulação de capitais um regime que sujeita as mais-valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado num Estado-Membro (no caso, em Portugal), quando essa alienação é efectuada por um residente noutro Estado-Membro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, em relação a este mesmo tipo de operação, sobre as mais-valias realizadas por um residente do Estado-membro onde está situado esse bem imóvel.[6]

 

6.29.  A este propósito (e como citado na Decisão Arbitral nº 520/2017-T, de 4 de Junho de 2018), em Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 16-01-2008 (proferido no âmbito do processo nº 0439/06), veio igualmente a decidir-se pela incompatibilidade da aplicação do nº 2, do artigo 43º do Código do IRS e, consequentemente, pela violação do preceituado no [então] artigo 56º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (actual artigo 63º do TFUE), em obediência ao primado do direito comunitário estipulado no nosso ordenamento jurídico [no artigo 8º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP)], ao referir que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático” (sublinhado nosso).[7]

 

6.30.  Neste âmbito, e conforme se escreve na Decisão Arbitral nº 577/2016-T, de 1 de Junho de 2017, “(…) apesar de só os Estados Membros terem competência em matéria de impostos diretos, o Tribunal de Justiça (TJ) tem sustentado (…) que esses Estados devem exercer essa competência em conformidade com o direito da União Europeia. Evitando assim, violações das cinco liberdades económicas fundamentais, designadamente (…) a livre circulação de mercadorias (artigos 28.º e seguintes do TFUE) (…). Ora, é precisamente através da proteção de cada uma destas liberdades (…, que ocorre uma verdadeira harmonização pela via jurisprudencial que se traduz na obrigatoriedade de as legislações nacionais se conformarem a cada uma dessas liberdades. (…) O direito português consagra uma cláusula de receção automática plena do direito convencional internacional, cumpridas as formalidades de aprovação, ratificação e publicação (…). Daqui decorre que os tratados são fonte imediata de direitos e obrigações para os seus destinatários, podendo ser invocados perante os tribunais” (sublinhado nosso).

 

6.31.  E, prossegue a mesma decisão referindo que “os tratados são superiores hierarquicamente relativamente à lei ordinária. Esta superioridade decorre não só dos artigos 26.º e 27.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, mas igualmente do artigo 8.º n. os 1 e 2 da CRP. Apresenta-se, pois, como claro que, para que a convenção vigore na ordem interna, é necessário que a lei ordinária posterior a não possa revogar. Ou seja, o direito internacional convencional não pode ser afastado por leis ordinárias, surgindo como superior àquelas. Sejam essas leis subsequentes, as quais serão materialmente inconstitucionais se o contrariarem; sejam anteriores, as quais terão de ser suspensas se forem conflituantes com esse direito convencional internacional, só retomando a vigência no caso de suspensão ou cessação da convenção internacional que estiver em causa” (sublinhado nosso).

 

6.32.  Neste mesmo sentido se pronunciaram diversas decisões arbitrais, nomeadamente a prolatada no âmbito do processo nº 45/2012-T, de 05-07-2012, nos termos da qual, seguindo a doutrina emanada pelo TJUE, refere que “na jurisprudência Hollmann, o TJUE conclui que a norma nacional vertente [n.º 2 do artigo 43.º do Código do IRS] viola o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, por revestir carácter discriminatório (menos favorável) para os não residentes e ser, em consequência, restritiva da liberdade de circulação de capitais entre Estados-Membros. Esta conclusão assenta nos seguintes argumentos principais: (a) Uma operação de liquidação de um investimento imobiliário constitui um movimento de capitais, prevendo o Tratado uma norma específica que proíbe todas as restrições aos movimentos de capitais; (b) No caso de venda de um bem imóvel sito em Portugal, ocorrendo a realização de mais-valias, os não residentes ficam sujeitos a uma carga fiscal superior que é aplicada a residentes, encontrando-se, portanto, numa situação menos favorável que estes últimos; (c) Com efeito, enquanto a um não residente é aplicada uma taxa de 25% sobre a totalidade das mais-valias realizadas, a consideração de apenas metade da matéria colectável correspondente às mais-valias realizadas por um residente permite que este beneficie sistematicamente, a esse título, de uma carga fiscal inferior, qualquer que seja a taxa de tributação aplicável sobre a totalidade dos seus rendimentos, visto que a tributação do rendimento dos residentes está sujeita a uma tabela de taxas progressivas cujo escalão mais elevado é de 42%; (d) Este regime torna a transferência de capitais menos atractiva para os não residentes e constitui uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado; (e) A discriminação da norma nacional não é justificável pelo objectivo de evitar penalizar os residentes (que se encontram sujeitos a uma tabela de taxas progressivas que podem ser muito superiores e são tributados sobre uma base mundial, ao contrário dos não residentes, que são tributados à taxa proporcional de 25%, não ocorrendo o englobamento), porque, como acima salientado, sendo o escalão mais elevado 42% conduz sempre, nas mesmas condições, a uma tributação mais gravosa do não residente, tendo em conta a redução a 50% do rendimento colectável do residente, não existindo, objectivamente, nenhuma diferença que justifique esta desigualdade de tratamento fiscal no que respeita à tributação de mais-valias, entre as duas categorias de sujeitos passivos. Deparamo-nos, portanto, com um regime discriminatório e incompatível com o Direito Comunitário, por violação do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia” (sublinhado nosso).

 

6.33.  Ora, na sequência da prolação do citado Acórdão Hollman, e com o alegado propósito de afastar a incompatibilidade da norma interna com o direito comunitário, veio o legislador nacional estabelecer um regime opcional de equiparação dos não residentes com os residentes, desde que aqueles sejam residentes noutro Estado-membro da UE ou do EEE.

 

6.34.  Para efeitos do exposto no ponto anterior, a Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2008), aditou um nº 7 e um nº 8 ao artigo 72º do Código do IRS (actualmente, nº 9 e nº 10) que, na redacção ao tempo dos factos em análise (2017), previam, respectivamente, que:

 

- “Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português”;

- “Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

 

6.35.  Ora, como vimos, o Requerente entende, neste âmbito que, a existência do regime exposto no ponto anterior não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda em vigor (e que foi aplicado à liquidação de IRS do ano 2017 ora impugnada) porquanto, em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis situados em Portugal, por não residentes neste território(mas residentes noutro Estado membro da UE ou do EEE), resulta que (de acordo com o disposto no nº 1 e nº 8 do artigo 72º do Código do IRS) coexistem para os sujeitos passivos não residentes em Portugal dois regimes fiscais, (i) um nos termos do qual aqueles rendimentos são sujeitos a uma taxa especial de 28% e (ii) um outro regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos residentes em território português, segundo o qual, os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no nº 1 do artigo 68º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do nº 2 do citado artigo 43º do Código do IRS.[8]

 

6.36.  Esta questão, quanto à aplicação do regime equiparado ao dos sujeitos passivos residentes em Portugal, já foi objecto de tratamento por este Tribunal Arbitral, no âmbito de diversas decisões arbitrais, nomeadamente, a proferida no âmbito do processo nº 45/2012-T, de 05-07-2012, nos termos da qual se refere que “para além de (…) a previsão deste regime facultativo fazer impender sobre os não residentes um ónus suplementar comparativamente aos residentes, a opção de equiparação não é, segundo entendemos, susceptível de excluir a discriminação em causa.  Neste sentido, se pronunciou o TJUE, no Acórdão, de 18 de Março de 2010, proferido no processo C-440/08 (Acórdão Gielen) numa situação que apresenta manifesto paralelismo, somente com a diferença de que neste processo estava em causa a violação do artigo 49.º e não a do artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.  Salienta aquele órgão jurisdicional que a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório, frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais. (…). Conclui o TJUE que o Tratado se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes”.

 

6.37.  Com efeito, e de acordo com o referido na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 127/2012-T, de 14-05-2013, “a opção que é dada a um sujeito passivo residente na União Europeia ou espaço económico europeu entre um regime que continua a ser discriminatório, por violação do disposto art. 63.º da TFUE e um outro alegadamente não discriminatório equiparando-os com os residentes no território português, para além de terem a obrigação de optar e de declarar os rendimentos auferidos fora daquele território, não exclui nem neutraliza os efeitos discriminatórios do primeiro daqueles dois regimes”, concluindo que, “ao se reconhecer que os referidos efeitos não são eliminados, estar-se-á a admitir que a referida opção valida um regime fiscal que continua em si mesmo a violar o artigo 63.º do TFUE, pelos motivos acima enunciados, o que não se coaduna com o direito comunitário” (sublinhado nosso).

 

6.38.  Na verdade, o entendimento referido no ponto anterior é, desde 2011, sufragado pelo STA, como se extrai da jurisprudência emanada do Acórdão de 22-03-2011 (proferida no processo nº 1031/10), nos termos do qual se anulou um acto de liquidação emitido pela Requerida que, “perante a declaração dos contribuintes, lhes liquidou o imposto que considerou devido (como aliás sempre sucede no IRS) à taxa prevista para os não residentes (…) e sobre o montante total da mais-valia realizada e não apenas sobre 50% deste valor (…), assim ignorando a jurisprudência comunitária e a deste Supremo Tribunal que a acolheu (cfr. o Acórdão de 16 de Janeiro de 2008, rec. n.º 439/06) quanto à incompatibilidade daquela disposição legal, assim aplicada, com o (então) artigo 56.º do TJCE (actual artigo 63.º do TFUE) sujeitando, deste modo, como veio a acontecer, a ver anulada nessa parte a liquidação impugnada, dado o primado do direito comunitário”.

 

6.39.  Mais recentemente, no âmbito do Acórdão do STA de 20-02-2019 (proferido no processo 0901/11.0BEALM 0692/17), foi também decidida questão em tudo idêntica à dos autos (naquele caso, relativamente a uma situação em que as mais-valias foram realizadas em 2010, ou seja, já na vigência da redação dada pela Lei nº 67-A/2007, de 31 de Dezembro), tendo aquele Tribunal decidido no sentido que “tendo Portugal competência para legislar quanto ao imposto sobre o rendimento, por tal não ser matéria de competência exclusiva da EU, não pode incluir nessa regulamentação normas que, em concreto, sejam violadoras dos Tratados, na interpretação que deles faça, como fez, o Tribunal de Justiça da EU. (…) em face do que se expôs apenas pode concluir-se que o acto impugnado, que aplicou o referido art. 43.º, n.º 2 do CIRS, incompatível com o referido art. 56.º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia, enferma de vício de violação deste último normativo, o que consubstancia ilegalidade, que justifica a sua anulação (…)”.

 

6.40.  Ou seja, conclui que concluiu aquele Tribunal que se aplica aos não residentes, [mesmo] não sendo feita a opção prevista no nº 9 do artigo 72º do Código do IRS, as regras de tributação aplicáveis aos residentes em Portugal, concluindo pela ilegalidade do regime que resulta da conjugação do artigo 43º, nº 2, com o artigo 72º do Código do IRS.

 

6.41.  Ora, os tribunais em geral, e também os tribunais arbitrais, em particular, estão vinculados ao dever de ter “em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” (artigo 8, nº 3 do Código Civil) sendo que, nos termos do disposto no artigo 25º, nº 2 do RJAT, “a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão deduzida que ponha termo ao processo arbitral é ainda susceptível de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo”.[9]

 

6.42.  Neste enquadramento, não oferece dúvidas que o disposto no nº 2, do artigo 43º do Código do IRS constitui, objectivamente, uma discriminação de tratamento entre sujeitos passivos residentes e sujeitos passivos não residentes (desde que residentes num Estado-membro da UE ou EEE).

 

6.43.  E mesmo que assim não se considerasse, entende este Tribunal Arbitral que não tem razão a Requerida quando afirma na sua Resposta (no que diz respeito ao alegado incorrecto preenchimento da declaração modelo 3 de substituição) que “como nada assinalou, a AT não conseguiu aferir qual a percentagem que o Requerente auferiu em Portugal do total dos rendimento obtidos em 2017, motivo pelo qual foi o mesmo tributado pelo regime regra aplicável a não residentes” porquanto não está a Autoridade Tributária na dependência absoluta do que lhe é apresentado pelo contribuinte.

 

6.44.  Com efeito, o Requerente beneficia, em princípio, da presunção legal de verdade e de boa-fé prevista no nº 1, do artigo 75º da Lei Geral Tributária (LGT) e, conforme se refere na Decisão Arbitral proferida no âmbito do processo nº 4/2011-T, de 2 de Julho de 2012, “o preenchimento dos pressupostos deste preceito dispensa o contribuinte de provar a veracidade dos dados que constam das suas as declarações (…)”.

 

6.45.  Não obstante, são vários os exemplos em que à Autoridade Tributária é conferida a possibilidade de corrigir o que lhe é submetido à apreciação (cfr. artigos 19º, nº 9; 36º nº 4 e 79º, nº 2 todos da LGT e artigo 48º, nº 1 do CPPT) sendo muito esclarecedor o disposto no nº 1 do referido artigo 48º do CPPT nos termos do qual, sob a epígrafe “Cooperação da administração tributária e do contribuinte”, impõe à Requerida o dever de esclarecer os contribuintes “sobre a necessidade de apresentação de declarações, reclamações e petições e a prática de quaisquer outros actos necessários ao exercício dos seus direitos, incluindo a correcção dos erros ou omissões manifestas que se observem”.

 

6.46.  Adicionalmente, atendendo ao disposto no artigo 55º da LGT, em sincronia com o artigo 266º da CRP resulta claro que “a administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da Justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários”.

 

6.47.  Materializando o princípio da legalidade ínsito no artigo 3º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), ex vi artigo 2.º, alínea c), da LGT, “os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respetivos fins”.

 

6.48.  E, conforme refere Jorge Lopes de Sousa, “desta norma resulta que o princípio da legalidade, consubstanciando-se na obediência à lei e ao direito, não se limita ao dever de acatamento da lei em sentido estrito, abrangendo também a subordinação a todos os valores jurídicos, normativos ou não, como as normas e princípios de direito internacional e comunitário, as normas regulamentares, as situações definidas judicial ou administrativamente e as obrigações contratualmente assumidas”, sendo que “(…) o dever de actuar de harmonia com o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente preveem a actuação da administração, abrangendo o dever da administração ter em conta os reflexos práticos da actividade administrativa que levar a cabo (…)”.[10] [11]

 

6.49.  Nestes termos, face ao acima exposto, tendo em conta a prevalência da jurisprudência do TJUE, em matéria de direito comunitário, não se pode concluir e decidir de outra forma nos presentes autos, atenta as questões ali versadas serem semelhantes à do ora caso, bem como a norma legal sobre a qual as mesmas se fundaram.

 

6.50.  Assim, é seguro afirmar que o regime de tributação previsto no artigo 72º do Código do IRS (na redacção vigente à data da liquidação em crise, ou seja, em 2017), é incompatível com o disposto no artigo 63º do TFUE, pois torna a tributação das mais-valias imobiliárias menos atractiva para os sujeitos passivos não residentes (face à tributação aplicável aos sujeitos passivos residentes), constituindo uma restrição aos movimentos de capitais proibida pelo Tratado.

 

6.51.  Ora, foi este regime negativamente discriminatório para os não residentes que foi aplicado na liquidação de IRS aqui impugnada e, não obstante este regime poder ser afastado pelos sujeitos passivos não residentes, através de opção, esta possibilidade não afasta a discriminação negativa, pois é imposta ao sujeito passivo (não residente) uma obrigação de opção que não é extensiva aos sujeitos passivos residentes.[12] [13]

 

6.52.  Assim, sendo afirmativa a resposta a dar à questão decidenda enunciada no artigo 6.3., supra, decide este Tribunal Arbitral julgar procedente o pedido arbitral formulado pelo Requerente, quanto à ilegalidade parcial do acto tributário de liquidação de IRS, do ano de 2017, devendo a mesma ser anulada, com as consequências daí decorrentes, bem como anular o despacho de indeferimento da reclamação graciosa oportunamente apresentada.

 

6.53.  Em consequência, fica prejudicado o conhecimento do alegado vício de insuficiente fundamentação da liquidação porquanto inútil.

 

Da responsabilidade pelo pagamento das custas arbitrais

 

6.54.  De harmonia com o disposto no artigo 22º, nº 4, do RJAT, “da decisão arbitral proferida pelo tribunal arbitral consta a fixação do montante e a repartição pelas partes das custas directamente resultantes do processo arbitral”.

 

6.55.  Em termos gerais, de acordo com o disposto no artigo 527º, nº 1 do CPC (ex vi 29º, nº 1, alínea e) do RJAT), deve ser estabelecido que será condenada em custas a Parte que a elas houver dado causa sendo que, o nº 2 daquele artigo, concretiza a expressão “houver dado causa”, segundo o princípio do decaimento, entendendo que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.

 

6.56.  Ora, tendo em consideração o acima exposto, a responsabilidade em matéria de custas arbitrais deverá ser imputada exclusivamente à Requerida.

 

7.       DECISÃO

 

7.1.    Nestes termos, decidiu este Tribunal Arbitral Singular:

 

7.1.1.     Julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral, porquanto o acto de liquidação de IRS impugnado padece de ilegalidade, devendo ser anulado, com as consequências daí decorrentes;

7.1.2.     Em consequência, julgar procedente o pedido anulação do despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada contra o referido acto de liquidação;

7.1.3.     Condenar a Requerida, no pagamento das custas do processo.

 

Valor do processo: Tendo em consideração o disposto nos artigos 306º, nº 2 do CPC, artigo 97º-A, nº 1 do CPPT e no artigo 3º, nº 2 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor do processo em EUR 10.691,38.

 

Nos termos do disposto na Tabela I do Regulamento das Custas dos Processos de Arbitragem Tributária, fixa-se o valor das custas do Processo Arbitral em EUR 918,00, a cargo da Requerida, de acordo com o artigo 22º, nº 4 do RJAT.

 

*****

Notifique-se.

 

Lisboa, 6 de Março de 2020

 

O Árbitro,

 

Sílvia Oliveira

 

 



[1] A redacção da presente decisão rege-se pela ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, excepto transcrições efectuadas.

[2] Segundo alega a Requerida, “tendo em conta o teor do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias de 2007OUT11, e no sentido de adaptar a legislação nacional à decisão nele sufragada, foi aditado ao artigo 72º do Código do IRS, pela Lei n.º 67-A/2007, de 31/12, o n.º 7 (atual n.º 9), cujo teor à data dos factos, era o seguinte: «9 - Os residentes noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal, podem optar, relativamente aos rendimentos referidos nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2, pela tributação desses rendimentos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português. Por sua vez, o n.º 8 (atual n.º 10) do mesmo artigo e diploma legal, também aditado pela Lei n. 67-A/2007, de 31/12, prescrevia, à data dos factos, que: «10- Para efeitos de determinação da taxa referida no número anterior são tidos em consideração todos os rendimentos, incluindo os obtidos fora deste território, nas mesmas condições que são aplicáveis aos residentes”.

[3] Ainda que sem relevância para a decisão do pedido arbitral (porquanto tal matéria ainda que invocada e tratada na Reclamação Graciosa apresentada, já não foi invocada no pedido) refira-se que, de acordo com o disposto no nº 5 do referido artigo 43º do Código do IRS, está prevista a exclusão de tributação das mais-valias resultantes da alienação de habitação própria e permanente quando haja aquisição de novo imóvel com a mesma finalidade e desde que observados determinados requisitos, aí indicados.

[4] Como se refere no Acórdão do TJUE de 11-10-2007 (Hollmann), proferido no âmbito do processo C-443/06, “(…) decorre da jurisprudência do TJUE que uma operação de liquidação de um investimento imobiliário, como a que está em causa no processo principal, constitui um movimento de capitais (v., neste sentido, acórdão de 16 de Março de 1999, Trummer e Mayer, C-222/97, Colect, p. 1-1661, n.° 24)”.

[5] Neste sentido, vide Acórdão do TJUE de 11-10-2007 (Hollmann), proferido no âmbito do processo C-443/06.

[6] A referida jurisprudência foi recentemente reafirmada pelo TJUE (processo C-184/18, de 06-09-2018), ao entender que “uma legislação de um Estado‑Membro (…) que sujeita as mais‑valias resultantes da alienação de um bem imóvel situado nesse Estado‑Membro, efetuada por um residente num Estado terceiro, a uma carga fiscal superior à que incidiria, nesse mesmo tipo de operações, sobre as mais‑valias realizadas por um residente naquele Estado‑Membro constitui uma restrição à livre circulação de capitais que (…) não é abrangida pela exceção prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE e não pode ser justificada pelas razões referidas no artigo 65.º, n.º 1, Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia”.

[7] Cfr. a título de exemplo, e no mesmo sentido, o acórdão do STA de 22-03-2011 (processo n.º 01031/10).

[8] Na verdade, a alteração legislativa operada assenta em pressupostos inquinados pela intenção de manter uma tributação mais onerosa sobre os sujeitos passivos não residentes, mesmo que estes residam no espaço da EU ou do EEE (tendo em consideração a complexidade de funcionamento do imposto, agravado pela “opção pelo englobamento” de todos os rendimentos obtidos no outro país, para além de outras questões relevantes associadas ao princípio da territorialidade previsto artigo 15º do Código do IRS, às condições de pessoalização e à progressividade do imposto, dificilmente compatível com uma adequada consideração dos valores auferidos noutro Estado-membro, no estado actual do direito comunitário), o que se afigura inaceitável aos olhos da acima referida jurisprudência do TJUE (neste sentido, vide Decisão Arbitral nº 590/2018-T de 8 de Julho de 2019).

[9] Neste sentido, vide Decisão Arbitral nº 590/2018-T, de 8 de Julho de 2019.

[10] Vide “Lei Geral Tributária”, 4ª edição, 2012, pág. 446.

[11] Nesta linha, vide o acórdão arbitral proferido no âmbito do processo nº 14/2012, de 29 de Junho de 2012.

[12] Ainda a este propósito, aderimos igualmente à jurisprudência vertida na Decisão Arbitral, proferida no processo nº 74/2019-T, de 22 de Maio de 2019, nos termos da qual se refere que “(…) atualmente, em matéria de tributação dos rendimentos resultantes das mais-valias provenientes da alienação de direitos reais sobre imóveis situados em Portugal, por não residentes neste território, mas residentes noutro Estado membro da União Europeia ou Espaço Económico Europeu (…), coexistem dois regimes fiscais: 1. O regime que sujeita os rendimentos a uma taxa especial de 28% e 2. O regime equiparado ao que vigora para os sujeitos passivos residentes em território português, segundo o qual, os mesmos rendimentos são sujeitos à taxa que, de acordo com a tabela prevista no n.º 1 do artigo 68.º, seria aplicável no caso de serem auferidos por residentes em território português, tomando-se em consideração, neste regime, todos os rendimentos, incluindo os auferidos fora de Portugal, mantendo-se em vigor a disposição constante do nº 2 do citado artigo 43.º do Código do IRS. Porém, a previsão deste regime facultativo faz impender sobre os não residentes um ónus suplementar, comparativamente aos residentes, não sendo a opção de equiparação suscetível de excluir a discriminação em causa. Na realidade, o regime de equiparação atualmente previsto no artigo 72.º do Código do IRS não afasta o caráter discriminatório do artigo 43.º, n.º 2 do Código do IRS, não podendo o contribuinte achar-se na circunstância de ter que optar por dois regimes, um legal e outro ilegal.  Neste sentido, o TJUE considerou, no Acórdão Gielen, de 18/03/2010 (Processo C-440/08), num caso de evidente paralelismo (ainda que naquele acórdão estivesse em causa a violação do artigo 49.º), o seguinte: 1. «a opção de equiparação permite a um contribuinte não residente, (…) escolher entre um regime fiscal discriminatório e um outro regime supostamente não discriminatório», frisando que essa escolha não é passível de excluir os efeitos discriminatórios do primeiro desses dois regimes fiscais.». 2. «o reconhecimento de um efeito dessa natureza à referida escolha teria por consequência (…) validar um regime fiscal que continuaria, em si mesmo, a violar o artigo 49° TFUE em razão do seu carácter discriminatório».  3. O Tratado «se opõe a uma regulamentação nacional que discrimina os contribuintes não residentes na concessão de um benefício fiscal (…) apesar de esses contribuintes poderem optar, no que se refere a esse benefício, pelo regime aplicável aos contribuintes residentes» (…)”, concluindo que “(…) a existência deste regime, meramente opcional, para além de criar um ónus adicional nos contribuintes não residentes face aos residentes – o qual consiste na necessidade do exercício dessa opção não afasta a invalidade do regime discriminatório ainda vigor (…)” (sublinhado nosso).

[13] Ainda no mesmo sentido se pronunciou o TJUE no acórdão de 08-06-2016, processo C479/14 ao referi que “Relativamente ao caráter facultativo do referido mecanismo de tributação, há que sublinhar que, mesmo admitindo que esse mecanismo seja compatível com o direito da União, é jurisprudência constante que um regime nacional restritivo das liberdades de circulação pode continuar a ser incompatível com o direito da União, mesmo que a sua aplicação seja facultativa. A existência de uma opção que permitisse eventualmente tornar uma situação compatível com o direito da União não tem por efeito sanar, por si só, o caráter ilegal de um sistema, como o que está em causa, que continua a comportar um mecanismo de tributação não compatível com este direito. Importa acrescentar que tal ocorre por maioria de razão no caso de, como no processo em apreço, o mecanismo incompatível com o direito da União ser aquele que é automaticamente aplicado na falta de escolha efetuada pelo contribuinte (v., neste sentido, acórdão de 28 de fevereiro de 2013, Beker, C-168/11, EU:C:2013:117, n.º 62 e jurisprudência referida)”.