Jurisprudência Arbitral Tributária


Processo nº 631/2019-T
Data da decisão: 2020-03-06  IRC  
Valor do pedido: € 2.074.055,11
Tema: IRC - Determinação de mais-valias e menos-valias. Trespasse
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Decisão Arbitral (consultar versão completa no PDF)

 

 

          Os árbitros Cons. Jorge Lopes de Sousa (árbitro-presidente), Prof. Doutor Elísio Brandão e Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira (árbitros vogais), designados pelo Conselho Deontológico do Centro de Arbitragem Administrativa para formarem o Tribunal Arbitral, constituído em 17-12-2019, acordam no seguinte:

 

         

          1. Relatório

 

A... — SUCURSAL EM PORTUGAL, titular do número de identificação fiscal ... (adiante abreviadamente designada por «Requerente»), veio apresentar pedido de pronúncia arbitral, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro (doravante “RJAT”), na sequência da formação da presunção de indeferimento tácito da reclamação graciosa que apresentou contra os actos de demonstração de liquidação de Imposto Sobre 0 Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC») n.º 2018..., de demonstração de acerto de contas n.º 2018 ... e das liquidações de juros n.ºs 2018..., 2018... e 2018... , no valor global de € 2.074.055 ,11, relativas a0 IRC do exercício de 2014.

A Requerente pede que seja declarada a ilegalidade dos actos tributários de liquidação de IRC, de derrama municipal, de derrama estadual e de juros compensatórios reclamados, com reembolso de € 2.074.055,11 e juros indemnizatórios.

É Requerida a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA.

O pedido de constituição do tribunal arbitral foi aceite pelo Senhor Presidente do CAAD e automaticamente notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira em 25-09-2019.

Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 6.º e da alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o Conselho Deontológico designou como árbitros do tribunal arbitral colectivo os signatários, que comunicaram a aceitação do encargo no prazo aplicável.

Em 15-11-2019 foram as partes devidamente notificadas dessa designação, não tendo manifestado vontade de recusar a designação dos árbitros, nos termos conjugados do artigo 11.º n.º 1 alíneas a) e b) do RJAT e dos artigos 6.º e 7.º do Código Deontológico.

Assim, em conformidade com o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 11.º do RJAT, na redacção introduzida pelo artigo 228.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, o tribunal arbitral colectivo foi constituído em 17-12-2019.

A Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou resposta, em que defendeu a improcedência do pedido de pronúncia arbitral.

Por despacho de 04-02-2020, foi dispensada reunião e alegações.

O Tribunal Arbitral foi regularmente constituído, à face do preceituado nos artigos 2.º, n.º 1, alínea a), e 10.º, n.º 1, do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro.

As partes estão devidamente representadas gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão representadas (artigos 4.º e 10.º, n.º 2, do mesmo diploma e art. 1.º da Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).

O processo não enferma de nulidades.

 

2. Matéria de facto

 

2.1. Factos provados

 

Consideram-se provados os seguintes factos:

  1. No dia 29 de agosto de 2014, foi celebrado entre a B..., LDA., e a V... B.V., sociedade domiciliada nos Países Baixos, o Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade, tendo por objeto o trespasse, para a primeira, da atividade até então prosseguida pela V...B.V., através da sua sucursal em Portugal, a ora Requerente (Documento n.º 1 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  2. Nos termos da Cláusula Segunda do mencionado contrato, o trespasse do estabelecimento comercial em causa incluiu a transferência, para a esfera da B..., LDA., dos seguintes 7elementos patrimoniais afetos à atividade da ora REQUERENTE:

(i) «O Activo Imobilizado mencionado no Anexo I»;

(ii) «O Activo corrente mencionado no Anexo I»;

(iii) «Os contratos relacionados com o Estabelecimento Comercial e os contratos com terceiros e encomendas de terceiros»;

(iv) «As posições contratuais nos contratos de trabalho, bem como os trabalhadores, sendo os referidos contratos e trabalhadores mencionados no Anexo I»;

(v) «O passivo mencionado no Anexo I»;

(vi) «Todo o demais ativo e passivo, conforme referido no Anexo I»;

  1. Como decorre da Cláusula Terceira do referido contrato, o preço acordado para a realização do referido trespasse foi fixado pelas respetivas partes em € 500.000,00 (quinhentos mil euros), valor este que a B..., LDA., se obrigou a pagar até ao dia 31 de dezembro de 2014;
  2. O preço do trespasse acordado pelas partes resultou do arredondamento da avaliação do valor do trespasse à data de 31 de Agosto de 2014 realizada por Revisor Oficial de Contas Independente (documento n.º 2 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. De acordo com o referido Parecer do Revisor Oficial de Contas Independente, a avaliação do valor do trespasse foi levada a cabo mediante aplicação do «Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA, acrescido do valor cm disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (Debt Cash Pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos à data de 31 de agosto de 2014» e «de acordo com as Normas Técnicas e Directrizes de Revisão/Auditoria da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas»;
  4. Foi efectuada uma inspecção tributária à Requerente relativa ao exercício de 2014, em que foi elaborado o Relatório da Inspecção Tributária (RIT) que consta do documento n.º 3 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido, em que se refere, além do mais o seguinte

II.3.1. CARATERIZAÇAO DO SUJEITO PASSIVO

De acordo com a AP. 1/20070111, publicada no Portal da Justiça em 18/01/2007, ocorreu a inscrição da entidade A... - SUCURSAL PORTUGAL, doravante designada apenas por A... Sucursal, entidade ou sujeito passivo, a qual tem a natureza jurídica de representação permanente, representando no nosso país a V..., sociedade holandesa, com sede em ..., que tem como objeto social o comércio, nomeadamente a importação e exportação de pneus, acessórios e peças de automóveis e outros veículos. Por deliberação de 02/01/2014 (AP. 9/20140407), foi nomeado representante C..., com o NIF ...

Desde 16/07/2012 (AP. 2/20120716) que a entidade tem a sua sede no Núcleo ..., Lote ..., no distrito de ..., concelho de ... e freguesia de ..., ...-... ... .

A representação permanente encontra-se encerrada desde 01/05/2018, conforme decorre da apresentação AP. 37/...9.

II.3.2. Enquadramento fiscal

Em termos fiscais, a entidade deu início de atividade em 15/02/2007 e, no período em analise, encontrava-se enquadrada no regime normal mensal de IVA pelo exercício da atividade de "COM. GROSSO PEÇAS E ACESSÓRIOS PARA VEÍCULOS AUTOMÓVEIS" (CAE 45310), estando obrigada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 41.º do CIVA, a enviar mensalmente uma declaração relativa às operações efetuadas no exercício da sua atividade, até ao dia 10 do 2º mês seguinte àquele a que respeitam as operações.

Para efeitos de IRC, estamos na presença de um estabelecimento estável (EE), nos termos do n.º 1 do art. 5.º do Código do IRC (CIRC), sujeito passivo deste imposto, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 2.º do CIRC, que no período de tributação de 2014, foi tributado, em sede de IRC, pelo regime geral de tributação.

No que à contabilidade diz respeito, por força do disposto no n.º 1 do art. 123.º do CIRC e alínea g) do n.º 1 do art. 29.º do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA), o sujeito passivo é obrigado a dispor de contabilidade organizada nos termos da lei comercial e fiscal que permita o apuramento e controlo do lucro tributável e do imposto sobre o valor acrescentado, tendo como Contabilista Certificado (CC), D..., NIF... .

Atualmente o sujeito passivo encontra-se cessado quer pare efeitos de IVA, desde 29/03/2018 [al. b) do n.º 1 do art. 34." do CIVA], quer para efeitos de IRC, desde 29/06/2018, estando registado como representante da cessação, C..., com o NIF... .

 

III. Descrição dos factos e fundamentos das correções meramente aritméticas à matéria tributável

 

Decorrente do procedimento inspetivo ao IS do período de 2014 da sociedade B..., LDA, doravante designada apenas por B..., Lda, NIPC..., a qual adquiriu o negócio do EE em análise e sem pôr em causa o principio da verdade declarativa ínsito no artigo 75." da Lei Geral Tributária (LGT), foram detetadas situações com implicações fiscais na A... Sucursal, as quais vão ser expostas e analisadas de seguida e na sequência das quais vão ser efetuadas correções diretas e exatamente comprovadas e quantificadas, em resultado da aplicação das disposições legalmente previstas para os casos em concreto, sem necessidade de recurso à avaliação indireta, esta de carácter excecional.

III.1. FACTOS E VALORES QUE INDICIAM A PRÁTICA DE CRIME FISCAL

Não aplicável ao caso em apreciação.

III.2. FACTOS E VALORES QUE INDICIAM A PRÁTICA DE CONTRAORDENAÇÕES

A A... Sucursal tem como objeto o comércio, designadamente a importação e exportação de pneus, acessórios e peças de automóveis e outros veículos, sendo a representante permanente em Portugal da sociedade holandesa V...BV. Decorrente do exercício da sua atividade apurou, no quadriénio 2011 a 2014, os resultados apresentados na tabela seguinte, elaborada a partir da demonstração de resultados (DR) que integra a declaração anual de informação contabilística e fiscal, prevista na al. c) do n.º 1 do art. 117.º e no art. 121º, ambos do CIRC, submetida pelo sujeito passivo.

Uma imagem com texto, jornal

Descrição gerada automaticamente

No período de 2014 a sociedade só exerceu efetivamente atividade durante oito meses, motivo pelo qual a tendência de crescimento do volume de negócios e, consequentemente, do resultado foi interrompida, tendo sido declarados montantes manifestamente inferiores aos apurados nos anos anteriores. De facto, por contrato de 29/08/2014, o sujeito passivo transferiu todos os seus ativos e passivos para a sociedade B..., Lda, com o objetivo desta desenvolver a atividade que era levada a cabo pelo EE desde 2007 até esta data, o que configura uma operação de trespasse.

A lei fiscal não define a figura jurídica do trespasse, porém, em consonância com o previsto no n.º 2 do art, 11.º da LGT, "sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer diretamente da lei". Ou seja, se o direito fiscal se mostrar insuficiente deve o intérprete procurar a resposta nos outros ramos de direito, dando-se prevalência ao direito civil. O legislador veio ainda salvaguardar no n.º 3 do, já referido, art.º 11º da LGT que "persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários."

O trespasse pode ser genericamente definido como o negócio de transmissão a título definitivo da propriedade de uma empresa, que pressupõe a transferência do estabelecimento e de todos os elementos que o integram, incluindo ativos fixos, inventários, créditos a receber, trabalhadores, itens do passivo, bem como elementos intangíveis (ex.: carteira de clientes, quota de mercado, marcas, etc) incluindo os que, existindo, não se encontrem reconhecidos nas demonstrações financeiras do trespassante, como é o caso de alguns ativos intangíveis gerados internamente que não cumprem os requisitos de reconhecimento exigidos, nomeadamente, pela Norma Contabilística e de Relato Financeiro (NCRF) 6.

O conceito de trespasse de estabelecimento comercial é um conceito jurídico, determinando o n.º 2 do art. 1112.º do Código Civil (CC) que não há trespasse:

"a) Quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento;

b) Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo de comércio ou indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a outro destino."

Face ao exposto, conclui-se que a transmissão do trespasse do estabelecimento comerciai pressupõe a transmissão, a título definitivo, do estabelecimento considerado no seu todo, como unidade económica dotada de autonomia e funcionamento, e a continuidade, por parte do trespassado, da atividade que anteriormente nele era exercida.

(...)

III.2.2. Análise dos elementos de suporte à operação de trespasse

III.2.2,1. Contrato de Trespasse de 29/08/2014

Em 29/08/2014 foi celebrado um "Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade", que se junta em anexo 2 (19 páginas) entre a V... B.V., uma sociedade com sede estatutária em ..., nos Países Baixos, com uma sucursal em Portugal, com sede estatutária no Núcleo Industrial de ..., ..., freguesia de ..., concelho de ..., com o NIF ..., e a B..., Lda.

Subjacente ao referido contrato esteve o objetivo, de ambas as partes, de que a B..., Lda, recentemente constituída, começasse a desenvolver a atividade levada a cabo, à data, pela sucursal da V... B.V. em Portugal. Assim, nos termos e condições estabelecidas no contrato, pelo preço de € 500.000,00, a V... B.V. trespassa à B..., Lda, que aceita, a partir de 01/09/2014:

"a) O Activo Imobilizado mencionado no Anexo l;

b) O Activo Corrente mencionado no Anexo l;

c) Os contratos relacionados com o Estabelecimento Comerciai e os contratos com terceiros e encomendas de terceiros;

d) As posições contratuais nos contratos de trabalho, bem como os trabalhadores, sendo os referidos contratos e trabalhadores mencionados no Anexo l;

e) O passivo mencionado no Anexo i;

f) Todo o demais activo e passivo, conforme referido no Anexo l.

 

III.2.2.2. Parecer do Revisor Oficial de Contas (ROC) subjacente à avaliação

Tendo sido solicitado a avaliação do valor do trespasse da totalidade do estabelecimento comercial da A... Sucursal, foi o mesmo avaliado de acordo com o "Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA, acrescido do valor das disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (DEBT Cash Pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos à data de 31 de Agosto de 2014."

Com base no trabalho realizado, foi determinado que o valor do trespasse "é de cerca de 500 000€", que resultou da avaliação que consta do parecer do ROC, que se junta em anexo 3 (3 páginas), conforme se reproduz na imagem seguinte:

 

Cálculo do Valor do Trespasse da A... Sucursal Portugal (31/08/2014)

Uma imagem com captura de ecrã

Descrição gerada automaticamente

Tendo-se solicitado justificação para a consideração dos acréscimos e deduções, ao valor de 69.496.000, apurado após aplicação do método dos fluxos de caixa descontados, no ficheiro "RESPOSTA DO ROC.pdf", recebido em 07/05/2018 e que consta do anexo 4 (1 página), o ROC esclarece o que a seguir se reproduz:

"Ora no trespasse do estabelecimento o novo aquirente ficou, para além do "valor do negócio" calculado peio método acima referido, com uma dívida financeira ao antigo sócio (7.861 mil euros), resultados ainda não distribuídos que pertenciam também ao antigo sócio (2.459 mil euros), assim como recebeu um valor em disponibilidades (caixa e depósitos bancários) no valor de 1.320 mil euros.

Desta forma se considerou no cálculo real do valor do trespasse, o valor atua] do estabelecimento sem endividamento financeiro líquido, ou seja o seu valor económico deduzido da dívida líquida (dívida financeira abatida das disponibilidades financeiras) e deduzido dos resultados transitados resultante de atividades de anos anteriores e que ainda não tinham sido distribuídos ao sócio".

 

III.2.2.3. Discriminação identificativa e valorizada dos bens, direitos e obrigações cuja propriedade foi transferida

No que respeita a este item não foi remetida qualquer "Lista com a discriminação identificativa e valorizada dos bens, direitos e obrigações cuja propriedade foi transferida" mas sim os ficheiros a que já se aludiu e cujo conteúdo vai ser analisado.

A) Ficheiro "039062_balancete_final_sucursal_08_2014_(2)_-_re_transfer_assets_to_ portuguese_ newco_2014.PDF"

Este ficheiro contém o "Balancete acumulado em Final de 2014 em Euros" da A... Sucursal, composto por 38 páginas, que se junta em anexo 5, no qual as contas apresentam os saldos que constam na tabela seguinte.

Uma imagem com texto, recibo

Descrição gerada automaticamente

De acordo com o balancete, o valor contabilístico dos ativos reconhecidos na A... Sucursal ascendia a € 14.863.622,19, dos quais € 6.726.080,99 respeitavam a mercadorias, assumindo os passivos o valor de € 12.153.624,86, para o qual contribui significativamente o financiamento contraído junto da empresa detentora da sucursal, a V... B.V., com um saldo no montante de € 7.860.987,63. Consequentemente, os capitais próprios, integralmente transferidos para a B..., Lda, apresentavam um valor positivo de €2.709.997,33.

B)Ficheiro "030961_list_of_workers_(transfer_branch_to_Portuguese_comp)_2014. PDF"

Este ficheiro corresponde à listagem da "Conferência de trabalhadores" emitida em 31/08/2014 na qual estão identificados os 17 (dezassete) trabalhadores transferidos para a nova sociedade, conforme se reproduz na imagem seguinte.

Uma imagem com captura de ecrã

Descrição gerada automaticamente

 

C) Diário(s) do(s) movimento(s) que reflita(m) o reconhecimento contabilístico da operação em causa

Foi-nos remetido o ficheiro "DIÁRIO SALDOS INICIAIS.xIsx." que contém os lançamentos contabilísticos efetuados com referência a "01.00.2014", identificados com o "Nº Lanç. ..." e "Doe. Diversos", que se reproduz no anexo 6 (25 páginas), cuja análise permite constatar que o mesmo reflete o reconhecimento contabilístico na B..., Lda de todos os ativos, passivos e capital próprio que integravam o balancete da A... Sucursal em 31/08/2014, a que se fez referência anteriormente. Ou seja, decorrente da transação do negócio, os itens que faziam parte da contabilidade da sucursal foram reconhecidos na contabilidade da B..., Lda exatamente pelos mesmos montantes que naquela se encontravam escriturados.

Face ao exposto, conclui-se que estamos perante uma transmissão definitiva e onerosa da universalidade do estabelecimento da A... Sucursal, como uma unidade económica portadora de individualidade própria distinta dos elementos que a integram, o que consubstancia um trespasse, a qual tem consequências para efeitos de IRC que vão ser analisadas nos pontos seguintes.

III.2.3. Enquadramento em IRC do trespasse

Em determinadas situações uma operação de trespasse configura uma entrada de ativos noutra sociedade (trespassária) pelo que poderia levantar-se a questão da aplicação do regime especial previsto no art. 74.º do CIRC à operação em causa. A norma fiscal determina quais as operações suscetíveis de serem qualificados como entrada de ativos para efeitos de aplicação do regime da neutralidade fiscal, estabelecendo o n.º 3 do art. 73.º do CIRC que:

"Considera-se entrada de ativos a operação pela qual uma sociedade (sociedade contribuidora) transfere, sem que seja dissolvida, o conjunto ou um ou mais ramos da sua atividade para outra sociedade (sociedade beneficiária), tendo como contrapartida partes do capital social da sociedade beneficiaria." (sublinhado nosso)

Pelo exposto, conclui-se que a operação de trespasse em análise não se qualifica como entrada de ativos para efeitos de aplicação do regime de neutralidade fiscal, na medida em que a contraprestação não se traduziu no recebimento de partes de capital da entidade adquirente. Consequentemente, tem que ser enquadrada nas regras gerais de incidência do IRC.

O art. 1.º do CIRC determina que o IRC "incide sobre os rendimentos obtidos mesmo quando provenientes de atos ilícitos, no período de tributação, pelos respetivos sujeitos passivos". No que respeita aos não residentes, estes apenas ficam sujeitos a IRC quanto aos rendimentos obtidos em território português (n.º 2 do art. 4.º do CIRC), assim se considerando "os rendimentos imputáveis a estabelecimento estável aí situado", como estabelece o n.º 3 do art. 4.º do mesmo código. Assim, os rendimentos decorrentes da operação de trespasse em análise são imputáveis à A... Sucursal por ser o EE, nos termos do art. 5.º do CIRC, da entidade não residente que assumiu a posição de trespassante no contrato de trespasse.

Em termos genéricos, decorrente de uma operação de trespasse, o trespassante poderá apurar três tipos de resultados:

1) Um correspondente ao trespasse propriamente dito e que consistirá nas mais-valias apuradas a partir do valor de aquisição, se existir, e o valor de realização;

2) Outro correspondente à alienação das instalações e demais ativos fixos tangíveis e intangíveis, gerando mais ou menos valias, e

3) Outro correspondente à venda dos inventários com o reconhecimento do valor de venda nos respetivos rendimentos.

Caso se tratem de resultados positivos, todos eles são tributados em IRC porque considerados rendimentos e ganhos nos termos do art. 20.º do respetivo código. No caso de serem apurados resultados negativos serão os mesmos dedutíveis para efeitos de apuramento do resultado tributável, se cumprirem as condições de dedutibilidade patentes, nomeadamente, no art. 23.º do CIRC.

No que respeita à possível determinação de mais e menos-valias há que atender ao regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC.

Estando-se na presença de uma entidade com contabilidade organizada, o custo de aquisição dos ativos e passivos transmitidos pela A... Sucursal correspondem aos valores pelos quais os mesmos se encontravam reconhecidos na sua contabilidade, o que se encontra comprovado pelo "Balancete acumulado em Final de 2014 em Euros" a que já se aludiu (anexo 5). Assim, assumindo os ativos o montante de €14.863.622,19 e os passivos o montante de €12.153.624,86, o custo de aquisição do negócio que foi transmitido que se deve considerar para proceder ao apuramento do resultado da transmissão é de € 2.709.997,33 (€14.863.622,19 - €12.153.624,86).

Perante o exposto, torna-se necessário determinar qual o valor de realização a considerar.

 

III.2.4. Valor de realização da operação de trespasse

Conforme já referido, em 29/08/2014 foi celebrado um "Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade" entre a sociedade não residente V... B.V. e a B..., Lda, de acordo com o qual ocorreu a transferência do estabelecimento comercial concernente à atividade desenvolvida pela A..., B.V. em Portugal através da sucursal, para a B..., Lda, de modo a atingir o objetivo subjacente à operação, que teve em vista que esta nova sociedade começasse a desenvolver a atividade que antes era levada a cabo pelo EE. Apesar de constituída desde abril, a B..., Lda só começou a exercer efetivamente atividade em setembro de 2014, após a aquisição do negócio do EE.

O preço de € 500.000,00 referido no contrato, resultou da avaliação da totalidade do estabelecimento comercial da A... Sucursal, de acordo com o "Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA2, acrescido do valor em disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (Debt Cash Pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos à data de 31 de Agosto de 2014".

Face ao exposto verifica-se que, tal como refere o próprio ROC, o valor do negócio foi determinado com base no método de cálculo dos fluxos de caixa descontados, o qual configura um método de avaliação de empresas que utiliza o conceito de valor presente para determinar o valor da soma de todos os fluxos que se estima que a empresa venha a gerar, acrescido do Valor Residual (considerando um crescimento perpétuo), descontados de uma taxa apropriada que representa, nomeadamente, o valor do dinheiro ao longo do tempo, donde decorreu que o valor atual do estabelecimento assume o montante de €9.495.000,00.

A propósito do valor do estabelecimento apurado para efeitos de transmissão do negócio, deve ter-se presente, porque importante para uma melhor compreensibilidade do mesmo, que a entrada do grupo V... em território nacional ocorreu em 2007, com o registo da representação permanente no nosso país pela A.... - SUCURSAL PORTUGAL (NIPC...) da sociedade holandesa, a V... B.V. que tinha como objeto o comércio, nomeadamente a importação e exportação de pneus, acessórios e peças de automóveis e outros veículos. A exceção do ano de início de atividade, o EE apurou sempre resultados positivos, conforme se apresenta na tabela seguinte, elaborada a partir da demonstração de resultados que integra a declaração anual de informação contabilística e fiscal, prevista na al. c) do n.º 1 do art. 117.º e no art. 121.º, ambos do CIRC, submetida por esta entidade desde o início de atividade.

 

Face aos montantes declarados, constata-se que, no quadriénio de 2010 a 2013 (último ano em que a entidade exerceu a atividade o período completo) o volume de negócios mais do que duplicou, enquanto o resultado líquido registou um aumento de cerca de 22%, tendo sido apurada uma margem bruta sobre as vendas média na ordem dos 12%.

No que respeita ao EBITDA, atendendo aos valores apresentados na tabela seguinte, verifica-se que o valor apurado em 2013 é superior ao de 2010 em cerca de 40%, sendo que no quadriénio em causa determina-se um EBITDA médio de € 909.767,35, que se aproxima.do efetivamente apurado em 2012, e é bastante superior ao EBITDA considerado para efeitos de cálculo do valor do negócio, que resultou do constante da demonstração de resultados a 31/08/204 transformado em valor anual.

Uma imagem com texto, recibo

Descrição gerada automaticamente

Ora, a determinação do valor atual da entidade foi efetuada em termos claros e inteligíveis e assentou num método perfeitamente válido, que se ajusta à situação em concreto, na medida em que, com base no EBITDA, atualizaram para o momento do trespasse o valor das receitas futuras e previsíveis, sendo certo que foi utilizado um fator de atualização (EBITDA de €784.000,00) inferior ao que seria expectável decorrente dos resultados históricos do EE, conforme anteriormente exposto.

Atente-se que, numa operação como a supra descrita, que integra a transmissão da universalidade da entidade, que no caso em concreto estava em plena maturidade, revelando crescimento dos resultados, sem dificuldades financeiras e com capitais próprios positivos superiores a 2,5 milhares de euros, a análise das suas demonstrações financeiras é apenas um dos muitos indicadores a ter em conta. O seu valor está maioritariamente centrado no que não está reconhecido contabilisticamente, ou seja, nos ativos intangíveis tais como: a quota e o conhecimento do mercado, a carteira de clientes e a fidelidade dos mesmos, a carteira de fornecedores, o know-how dos trabalhadores, os direitos contratuais adquiridos, etc. Em muitas situações, os ativos intangíveis são os verdadeiros determinantes do valor das empresas e representam vantagens intelectuais e competitivas para o negócio, sendo que numa empresa lucrativa o valor dos ativos intangíveis pode ser superior ao do seu património líquido.

A avaliação de um negócio deve integrar todas as condicionantes referidas e outras tidas como relevantes para cada situação em concreto, considerando-se que o método aplicado ao estabelecimento da A... Sucursal e do qual resultou a determinação de um valor do negócio, à data do trespasse, de €9.496.000,00, revela-se apropriado.

De facto, deve ter-se em conta que a sociedade adquirente (B..., Lda), embora se tenha constituído apenas em 01/04/2014 não teve necessidade de incorrer em custos de arranque e de implementação no mercado na medida em que deu continuidade à atividade já desenvolvida, desde 2007, pela sucursal com os mesmos meios técnicos e humanos, sem qualquer interrupção ou alteração. A sua sede foi estabelecida no mesmo local onde a sucursal tinha a sede desde 16/07/2012, graças à transferência do contrato de arrendamento do imóvel da E..., SA (NIPC...), os principais clientes continuaram a ser os mesmos, sendo a base de clientes um dos principais ativos de uma empresa comercia], bem como ocorreu a transferência de todos os funcionários, o que neste contexto pode constituir, para a entidade adquirente, uma forma de poupança, quer de tempo quer de despesas de contratação e formação de novos empregados, para além da transferência de know-how que incorpora.

Em suma:

- à data de 31/08/2014, decorrente da transmissão do seu negócio, o sujeito passivo ficou com o direito a receber da B..., Lda o valor de €9.496.000,00, o qual constitui um ativo, de acordo com a EC do SNC, ou seja, "um recurso controlado pela entidade como resultado de acontecimentos passados e do qual se espera que fluam para a entidade benefícios económicos futuros";

- À data de 31/08/2014, o sujeito passivo tinha uma dívida financeira líquida para com a sociedade não residente no montante de €9.000.000,00, que era da sua responsabilidade e que, nos termos da EC do SNC, constitui um passivo, que "é uma obrigação presente da entidade proveniente de acontecimentos passados, da liquidação da qual se espera que resulte um exfluxo de recursos da entidade incorporando benefícios económicos".

- Ao transmitir o negócio à B..., Lda o sujeito passivo transmitiu-lhe a dívida financeira líquida de €9.000.000,00 que tinha para com a sociedade não residente e cujo pagamento era da sua responsabilidade e não da adquirente, pelo que, de acordo com a EC do SNC, tal dívida constituía um passivo da A... Sucursal para com a B..., Lda;

- Os ativos e passivos são apresentados no balanço porque relacionam-se com a posição financeira das entidades, em nada influenciando a avaliação do seu desempenho, o qual decorre dos rendimentos e gastos que integram a demonstração de resultados, como se retira do § 68 da EC do SNC, que refere:

"O resultado é frequentemente usado como uma medida de desempenho ou como a base para outras mensurações, tais como o retorno do investimento ou os resultados por ação. Os elementos diretamente relacionados com a mensuração do resultado são rendimentos e gastos."

- Assente numa operação de compensação de saldos, comummente utilizada nas relações comerciais, a A... Sucursal, em vez de assumir um ativo de €9.496.000,00 e um passivo de €9.000.0000,00, ficou com o direito a receber da B..., Lda o valor de €500.000,00 que se encontra referido no contrato de trespasse.

Em termos esquemáticos, à data de 31/08/2014 temos:

 

Uma imagem com texto, mapa

Descrição gerada automaticamente

Face ao exposto, conclui-se que o valor de realização a considerar para efeitos de determinação do resultado a tributar em IRC é de €9.496.000,00.

 

III.2.5. Apuramento do resultado tributável

Atendendo a que o sujeito passivo transmitiu ativos e passivos cujo custo de aquisição foi de €2.709.997,33, nos termos já expostos, e o valor de realização da operação foi, conforme apresentado no ponto anterior, de €9.496.000,00, conclui-se que foi apurada uma mais-valia no montante de € 6.786.002,67, considerada rendimento para efeitos de IRC nos termos da al. h) do n.º 1 do art. 20.º do CIRC, no período de 2014, face às regras da periodização do lucro tributável do art. 18.º CIRC, cujo n.º 1 determina que "os rendimentos e os gastos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao período de tributação em que sejam obtidos ou suportados, independentemente do seu recebimento ou pagamento".

No período de tributação de 2014 o sujeito passivo apurou um lucro tributável de €365.191,19 (declaração Modelo 22 n.º ... submetida em 23/05/2015) no qual não se encontra refletido qualquer resultado decorrente da operação de trespasse que realizou naquele período, pelo que o lucro tributável do período de 2014 deve assumir o montante de €7.151.193,36, conforme se apresenta na tabela seguinte.

Nos termos do art. 18.º da Lei n.º 73/2013, de 03/09, "os municípios podem deliberar lançar anualmente uma derrama, até ao limite máximo de 1,5 %, sobre o lucro tributável sujeito e não isento de" IRC. Por Ofício Circulado n.º 20175/2015, de 16/03 a Autoridade Tributária divulgou as taxas de derramas relativas ao período de 2014, para cobrança em 2015, aplicando-se ao município de Cantanhede a taxa de derrama de 1,5%.

Decorrente das correções ao lucro tributável, a derrama municipal assume o montante de €107.267,91 (€7,151.193,86 x 1,5%) o que se traduz numa correção a este imposto no montante de €101.790,04 (€107.267,91 - €5.477,87).

Na medida em que se apurou um lucro tributável corrigido de € 7.151.193,86, é ainda necessário atender ao n.º 1 do art. 87.º-A do CIRC, que determina que, "sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, urna atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estivei em território português", incide a taxa adicional de 3%. Neste sentido apura-se uma derrama estadual, para o período de 2014, no montante de €214.535,82.

(...)

 

IX. Direito de audição

Por ofício n.º ..., de 10/08/2018, o sujeito passivo foi notificado nos termos do artigo 60.º da LGT e artigo 60.º do RCPITA, para exercer o direito de audição que lhe assiste, relativamente às correções propostas no projeto de relatório de inspeção tributária.

De acordo com informação dos CTT a notificação foi rececionada em 13/08/2018, contudo, no prazo estipulado, não exerceu tal direito, não tendo evocado, nem por escrito nem oralmente, qualquer razão de facto ou de direito suscetível de alterar o enquadramento efetuado.

Apesar do sujeito passivo não ter vindo exercer o direito de audição, detetou-se que que o valor de € 214.535,82 proposto para a derrama estadual enferma de erro aritmético, na medida em que, tal como explicito na página 20 do projeto de relatório, para a qual se remete, nos termos do n.º 1 do art. 87.º-A do CIRC, "sobre a parte do lucro tributável superior a (euro) 1 500 000 sujeito e não isento de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas apurado por sujeitos passivos residentes em território português que exerçam, a título principal, uma atividade de natureza comercial, industrial ou agrícola e por não residentes com estabelecimento estável em território português", incide a taxa adicional de 3%. Neste sentido, corrige-se o valor da derrama estadual em favor do contribuinte, na medida em que a mesma assume o valor de €169.535,82 [(€7.151.193,86 - €1.500.000,00) x 3%], e não de €214.535,82, como por lapso se indicou.

Exceção feita à situação anteriormente indicada, transcrevem-se na íntegra as conclusões constantes do projeto de relatório, peto que as correções propostas no ponto III transformam-se em definitivas.

 

  1. Na sequência da acção inspetiva, a Autoridade Tributária e Aduaneira emitiu a liquidação de IRC n.º 2018..., a demonstração de acerto dc contas n.º 2018 ... e as liquidações de juros n.ºs 2018 ..., 2018 ... e 2018 ..., no valor global de € 2.074.055,11, relativas a0 exercício de 2014 (documentos n.ºs 4, 5 e 6 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  2. Em 31-10-2018, a Requerente efectuou o pagamento das quantias liquidadas (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral, cujo teor se dá como reproduzido);
  3. A Requerente apresentou reclamação graciosa das liquidações que deu entrada na Administração Tributária em 06-03-2019 (documentos n.ºs 8 e 9 juntos com o pedido de pronúncia arbitral, cujos teores se dão como reproduzidos);
  4. A reclamação graciosa não foi decidida até 24-09-2019, data em que a Requerente apresentou o pedido de constituição do tribunal arbitral que deu origem ao presente processo.

 

 

     2.2. Fundamentação da decisão da matéria de facto

 

 

Os factos provados baseiam-se nos documentos juntos pela Requerente e no processo administrativo.

Não há controvérsia quanto à matéria de facto.

 

 

2.3. Factos não provados

 

Não há factos relevantes para a decisão da causa que não se tenham provado.

 

 

3. Matéria de direito

 

3.1. Posições das Partes

 

Foi celebrado entre a B..., LDA., e a V... B.V., sociedade domiciliada nos Países Baixos, o Contrato de Trespasse de Estabelecimento Comercial em Atividade, tendo por objecto o trespasse, para a primeira, da actividade até então prosseguida pela V... B.V., através da sua sucursal em Portugal, a ora Requerente.

No contrato de trespasse são indicados os elementos patrimoniais afectos a actividade da Requerente que são transferidos para a B..., LDA.

O preço acordado para a realização do trespasse foi fixado pelas partes no contrato em € 500.000,00, valor este arredondado com base no valor da avaliação efectuada por Revisor Oficial de Contas Independente, mediante aplicação do «Método dos Fluxos de Caixa Descontados, medido pelo EBITDA, acrescido do valor em disponibilidades e abatido da dívida ao sócio (Debt Cash Pool) e dos Resultados Transitados não distribuídos a data de 31 de agosto de 2014» e «de acordo com as Normas Técnicas e Diretrizes de Revisão/Auditoria da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas».

Numa inspecção que efectuou à Requerente a Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu, em suma, o seguinte:

– a operação de trespasse em análise não se qualifica como entrada de ativos para efeitos de aplicação do regime da neutralidade fiscal na medida em que a contraprestação não se traduziu no recebimento de partes de capital da entidade adquirente, pelo tem que ser enquadrada nas regras gerais de incidência do IRC;

– no que respeita à determinação de mais e menos-valias há que anteder ao regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC;

– o custo de aquisição dos ativos e passivos transmitidos pela A... Sucursal correspondem aos valores pelos quais os mesmos se encontravam reconhecidos na sua contabilidade;

– ascendendo o valor contabilístico dos activos o montante de € 14.863.622,19 e assumindo os passivos o montante de € 12.153.624,86, os capitais próprios, integralmente transferidos para a B..., Lda, apresentavam um valor positivo de €2.709.997,33 (€ 14.863.622,19 - € 12.153.624,86), sendo este o custo de aquisição do negócio que foi transmitido que se deve considerar para proceder ao apuramento do resultado da transmissão;

– - à data de 31/08/2014, decorrente da transmissão do seu negócio, o sujeito passivo ficou com o direito a receber da B..., Lda o valor de €9.496.000,00, o qual constitui um activo;

– ao transmitir o negócio à B..., Lda o sujeito passivo transmitiu-lhe a dívida financeira líquida de €9.000.000,00 que tinha para com a sociedade não residente e cujo pagamento era da sua responsabilidade e não da adquirente, que era um passivo;

– assente numa operação de compensação de saldos, comummente utilizada nas relações comerciais, a A... Sucursal, em vez de assumir um ativo de 9.496 milhares e um passivo de 9.000 milhares de euros, ficou com o direito a receber da B..., o valor de € 500.000,00 que se encontra referido no contrato de trespasse;

– conclui-se que o valor de realização a considerar para efeitos de determinação do resultado a tributar em IRC é de €9.496.000,00.

– atendendo a que o sujeito passivo transmitiu ativos e passivos cujo custo de aquisição foi de €2.709.997,33, nos termos já expostos, e o valor de realização da operação foi, conforme apresentado no ponto anterior, de €9.496.000,00, conclui-se que foi apurada uma mais-valia no montante de € 6.786.002,67, considerada rendimento para efeitos de IRC nos termos da al. h) do n.º 1 do art. 20.º do CIRC.

 

A Requerente imputa à liquidação impugnada vícios de

– erro na fixação do valor de aquisição por violação dos artigos artigo 46.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1 do CIRC;

– erro na fixação do valor de realização, seja porque o fez corresponder ao pretenso resultado da avaliação do negócio – ao invés do concreto valor de mercado de cada um dos elementos patrimoniais transferidos –, seja porque procedeu a uma avaliação do trespasse que assenta, tanto em erro sobre 0s pressupostos de facto, como em ficções legalmente inadmissíveis

– vício de falta de fundamentação quanto à liquidação de juros compensatórios.

 

Em geral, diz a Requerente o seguinte:

– carecendo a operação de trespasse de autonomia formal em sede de IRC, as respetivas implicações fiscais devem ser, necessariamente, aferidas por referência ao concreto conteúdo material deste tipo negocial;

– o contrato de trespasse abrange, em termos materiais, o conjunto das operações consubstanciadas na transferência da universalidade dos elementos Patrimoniais ativos e Passivos integrativos de determinado estabelecimento comercial;

– a operação de trespasse convocará a aplicação de dois regimes distintos em sede de IRC, consoante a contrapartida devida pelo respetivo beneficiário se concretize na emissão de partes representativas do seu capital social (caso em que poderá beneficiar do regime especial aplicável às fusões, cisões e entradas de ativos, consagrado nos artigos 73.º e seguintes do Código do IRC, desde que cumpridos os demais requisitos para a aplicação do aludido regime), ou, alternativamente, no pagamento de um preço (hipótese em que a operação realizada se deverá sujeitar à aplicação do regime geral de apuramento de mais e menos-valias consagrado nos artigos 46.º e seguintes do mesmo Código);

– como disse a Autoridade Tributária e Aduaneira no RIT a operação em análise não se qualifica como entrada de ativos para efeitos de aplicação do regime da neutralidade fiscal na medida em que a contraprestação não se traduziu no recebimento de partes de capital da entidade adquirente, pelo que tem que ser enquadrada nas regras gerais de incidência do IRC, atendendo quanto à determinação de mais-valias e menos-valias ao regime dos artigo 46.º a 48.º do CIRC;

– para aplicar estas normas deveria ser considerada a transferência de cada um dos elementos patrimoniais integrativos da respetiva unidade económica (artigo 46.º, n.º 1, do Código do IRC), apurando-se, caso a caso, as eventuais mais ou menos-valias, «dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes, e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A e 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45 .º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.0 3 do artigo 31.º-A» (artigo 46.º, n.º 2, do Código do IRC);

– paralelamente, e no que ao valor de aquisição de cada elemento patrimonial transferido diz respeito, impunha-se, igualmente, proceder à sua correção monetária «mediante aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda para o efeito publicados em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças (...) sendo o valor dessa atualização deduzido para efeitos da determinação do lucro tributável» (artigo 46.º, n.º 2, do Código do IRC) ;

– por último, importaria fazer corresponder o respetivo valor de realização ao «valor de mercado dos elementos transmitidos em consequência daquelas operações» (artigo 46.º, n º 3, alínea d), do Código do IRC);

– a metodologia adotada pela Administração tributária para apurar o valor de aquisição fiscalmente relevante consubstancia uma manifesta violação ao artigo 46.º, n.º 2, e ao artigo 47.º, n.º 1 do CIRC;

– a Administração tributária também errou na fixação do respetivo valor de realização, seja porque o fez corresponder, à margem do legalmente estipulado, ao pretenso resultado da avaliação do negócio – ao invés do concreto valor de mercado de cada um dos elementos patrimoniais transferidos – , seja, ainda que assim não fosse, porquanto procedeu a uma avaliação do trespasse que assenta, tanto em erro sobre 0s pressupostos de facto, como em ficções legalmente inadmissíveis;

– por último, os atos de liquidação de juros compensatórios contestados encontram—se, em qualquer caso, feridos do vício de forma por falta de fundamentação.

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira, para além de remeter para o RIT, defende o seguinte, em suma:

– os anexos referidos no contrato nunca foram apresentados pela Requerente, tanto no decurso do procedimento inspetivo e apesar de notificada para a sua apresentação, como agora;

– não existe qualquer desagregação daquele montante identificando o valor atribuído a cada um dos itens transmitidos no contrato entre o trespassante (a sociedade holandesa V... B.V.) e o trespassário (a sociedade B... LDA.);

– os itens que faziam parte da contabilidade da sucursal foram reconhecidos na contabilidade da B..., LDA exatamente pelos mesmos montantes que se encontravam escriturados na SUCURSAL;

– A questão em litígio é a determinar qual o valor efetivo deste trespasse do estabelecimento comercial em atividade, a sucursal em Portugal da V... B.V:

  • €500.000,00 como defende a requerente tendo por base a avaliação do valor do negócio efectuada por entidade independente (ROC) e o contrato ou
  • €9.496.000,00 considerado pelos SIT correspondente ao valor da empresa apurado pela mesma entidade independente segundo o Método dos Fluxos de Caixa Descontados, mas sem efetuar as deduções subsequentes àquele valor feitas pela referida entidade independente;

– na sequência de uma operação de trespasse, o trespassante (sociedade contribuidora) deve proceder, contabilística e fiscalmente, ao apuramento de distintos tipos de resultados positivos ou negativos correspondentes, nomeadamente:

  • a transmissão dos ativos fixos tangíveis, intangíveis, ativos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento e instrumentos financeiros (excetuando os reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º do CIRC), gerando mais ou menos valias fiscalmente tributáveis nos termos do regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC;
  • à transmissão de inventários (mercadorias) e dos restantes ativos, apurando rendimentos ou gastos considerados para efeitos de apuramento do resultado tributável nos termos dos artigos 20.º e 23.º do CIRC;
  • - e ainda correspondente ao trespasse propriamente dito, apurando rendimentos ou gastos considerados para efeitos de apuramento do resultado tributável nos termos dos artigos 20.º e 23.º do CIRC;

– o valor do trespasse propriamente dito, conforme fundamentação expressa no RIT, está diretamente relacionado com a quota e o conhecimento do mercado, a carteira de clientes e a fidelidade dos mesmos, a carteira de fornecedores, o know-how dos trabalhadores, os direitos contratuais adquiridos, etc, elementos que verdadeiramente relevam para o valor das empresas;

– o caso em apreço, não existe qualquer distribuição do valor acordado no trespasse €500.000,00 pelos diversos elementos patrimoniais ativos e responsabilidades (e.g. ativos fixos tangíveis, intangíveis, participações financeiras, mercadorias, dividas de clientes, caixa e depósitos bancários, passivo corrente e não corrente, resultados transitados) transmitidos;

– em resultado desta transferência onerosa e definitiva dos elementos patrimoniais que constituíam o estabelecimento comercial da sucursal, esta não apurou qualquer resultado, rendimento ou ganho, perda ou gasto, tanto para efeitos de apuramento do resultado liquido contabilístico como do resultado tributável relativo ao período de tributação de 2014;

– apenas foi possível constatar pelos SIT que estes elementos patrimoniais foram registados contabilisticamente na sociedade adquirente (B..., LDA.), pelo valor contabilístico que corresponderão ao justo valor dos mesmos, nos termos das normas contabilísticas aplicáveis;

– num trespasse de estabelecimento comercial, o trespassário apenas assume as dívidas do estabelecimento anteriores ao contrato se as tiver aceite e o credor nisso consentir, o que se verifica neste caso;

– o valor do negócio, à data do trespasse, ascende indubitavelmente ao montante de €9.496.000,00, valor que tem por base a evolução futura da empresa e os montantes que serão gerados pela sua atividade operacional;

– este conceito (valor do negócio, valor da empresa) não deve ser confundido com valor dos capitais próprios que corresponde à fração do valor da empresa que caberá aos sócios e se apura deduzindo ao valor da empresa, o valor da dívida financeira liquida;

– a Requerente vem justificando o valor do trespasse negociado com o seguinte raciocínio: ao valor do negócio foi adicionado o ativo corrente – Caixa e depósitos bancários no montante de €1.319.959,72 e deduzidos do montante dos financiamentos obtidos junto do "antigo sócio" no valor de €7.860.987,63 e do valor dos resultados transitados não distribuídos ao "antigo sócio" no montante de €2.459.354,77;

– uma sucursal não passa de um estabelecimento desprovido de personalidade jurídica que pertence a uma pessoa coletiva e que efetua a atividade desta, sendo as operações que realiza diretamente imputáveis à empresa-mãe ou dominante;

– as relações entre sede e sucursal não revestem a natureza de verdadeiras relações jurídicas, na medida em que este conceito pressupõe a existência de dois sujeitos de direito e no caso existe apenas um, o que determina a insusceptibilidade de qualificar um eventual acordo de financiamento existente entre a Sucursal e a sua casa-mãe V... B.V., como um verdadeiro contrato de mútuo;

– os fluxos financeiros entre sede e sucursal correspondem a meras alocações internas de fundos, não configurando mútuos propriamente ditos, capitais alheios ou dívida financeira, não tendo, portanto, qualquer justificação a sua dedução ao valor do negócio (€9.496.000,00) para efeitos de apuramento do valor do trespasse da sucursal;

– acresce ainda que, no caso em apreço, foram deduzidas ao valor do negócio (€9.496.000,00) além das alocações de fundos cujo valor líquido ascende a €6.541.027,91, o montante de €2.459.354,77 referente a "resultados ainda não distribuídos que pertenciam também ao antigo sócio";

– in casu, também não faz sentido sequer a referência a "resultados ainda não distribuídos que pertenciam também ao antigo sócio" e muito menos a dedução efetuada ao valor do negócio para efeitos de apuramento do alegado valor do trespasse pois estes resultados já estarão integrados na contabilidade da empresa-mãe;

– as deduções efetuadas ao valor de mercado do trespasse no montante de €9.000.382,68, não encontram justificação no caso em apreço;

– não existe qualquer distribuição do valor do trespasse pelos diversos elementos patrimoniais ativos e responsabilidades transmitidos, sendo que apenas se conhece que os mesmos foram registados contabilisticamente na sociedade adquirente (B..., LDA.,), pelo valor contabilístico anteriormente constante na sociedade contribuidora e que, em resultado desta transferência onerosa e definitiva dos elementos patrimoniais que constituíam o estabelecimento comercial da SUCURSAL, esta não apurou qualquer resultado, rendimento ou ganho, perda ou gasto, tanto para efeitos de apuramento do resultado liquido contabilístico como do resultado tributável relativo ao período de tributação de 2014;

– mesmo a considerar-se que no âmbito do trespasse do estabelecimento comercial, a trespassária B..., Lda, passou a assumir uma dívida, para a trespassante e ora requerente, tal implicará que o valor do trespasse é o valor global do negócio apurado de acordo com o "Método dos Fluxos de Caixa Descontados (€9.496.000,00), porquanto esta fica desonerada daquela responsabilidade, dívida que alegadamente tinha para com a sociedade-mãe e cujo pagamento era sua obrigação e não da adquirente B..., Lda;

– do alegado pela requerente relativamente à alegada falta de aplicação do regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC a todo o negócio, também nunca foram carreadas por si quaisquer provas tanto quanto à distribuição do valor do trespasse pelos diversos elementos patrimoniais transmitidos como relativamente ao alegado correcto apuramento de resultados efetuado pela recorrente na sequência da operação;

– relativamente à alegada falta de aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda (art.º 47.º do CIRC) tal apenas seria de aplicar a uma pequena parcela do negócio: ao ativo fixo tangível e ativos intangíveis cujo valor contabilístico (após dedução das depreciações e amortizações) na trespassante ascende a €236.952,63 e €33.839,75 respetivamente, e cujo valor de transmissão não se encontra especificado no contrato de trespasse.

 

 

3.2. Questão da não aplicação dos artigos 46.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, do CIRC

 

A Autoridade Tributária e Aduaneira entendeu no RIT «que operação de trespasse em análise não se qualifica como entrada de ativos para efeitos de aplicação do regime de neutralidade fiscal, na medida em que a contraprestação não se traduziu no recebimento de partes de capital da entidade adquirente. Consequentemente, tem que ser enquadrada nas regras gerais de incidência do IRC».

Entendeu ainda a Autoridade Tributária e Aduaneira que «no que respeita à possível determinação de mais e menos-valias há que atender ao regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC».

A Requerente aceita este entendimento que, aliás, é correcto.

O artigo 46.º, n.ºs 1 e 2, do CIRC estabelecem seguinte:

 

1 - Consideram-se mais-valias ou menos-valias realizadas os ganhos obtidos ou as perdas sofridas mediante transmissão onerosa, qualquer que seja o título por que se opere, e, bem assim, os decorrentes de sinistros ou os resultantes da afetação permanente a fins alheios à atividade exercida, respeitantes a:

 

a) Ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis, ativos biológicos não consumíveis e propriedades de investimento, ainda que qualquer destes ativos tenha sido reclassificado como ativo não corrente detido para venda;

b) Instrumentos financeiros, com exceção dos reconhecidos pelo justo valor nos termos das alíneas a) e b) do n.º 9 do artigo 18.º

2 - As mais-valias e as menos-valias são dadas pela diferença entre o valor de realização, líquido dos encargos que lhe sejam inerentes, e o valor de aquisição, deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A e 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A, sem prejuízo do disposto na parte final do n.º 3 do artigo 31.º-A.

 

    O artigo 47.º, n.º 1, do CIRC estabelece o seguinte:

 

1 - O valor de aquisição corrigido nos termos do n.º 2 do artigo anterior é atualizado mediante aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda para o efeito publicados em portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, sempre que, à data da realização, tenham decorrido pelo menos dois anos desde a data da aquisição, sendo o valor dessa atualização deduzido para efeitos da determinação do lucro tributável.

 

Não estando previsto regime específico para a tributação de mais-valias e menos-valias em situações de trespasse, designadamente com base no valor global do mesmo, o regime aplicável é o que resulta destes artigos 46.º a 48.º.

Do n.º 1 do artigo 46.º decorre que as mais-valias e menos-valias são calculadas com base nos valores de cada um dos activos transmitidos (activos fixos tangíveis, activos intangíveis, activos biológicos não consumíveis, propriedades de investimento, e instrumentos financeiros não reconhecidos pelo justo valor).

Do n.º 2 do artigo 46.º e do n.º 1 do artigo 47.º resulta que o valor de aquisição relevante para determinar as mais-valias e menos-valias é o custo histórico de cada um dos activos transmitidos, «deduzido das depreciações e amortizações aceites fiscalmente, das perdas por imparidade e outras correções de valor previstas nos artigos 28.º-A e 31.º-B e ainda dos valores reconhecidos como gasto fiscal nos termos do artigo 45.º-A», actualizado mediante a aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda publicados, sempre que, à data da realização, tenham decorrido pelo menos dois anos desde a data da aquisição.

Num Estado de Direito, a Administração Tributária esta subordinada ao princípio da legalidade, que tem suporte nos artigos 266.º, n.º 2, da CRP e 55.º da LGT, decorre que «os órgãos da Administração Pública devem actuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos» [artigo 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo, subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT].

 À face desta norma, o princípio da legalidade deixou de ter «uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda a actuação administrativa». ( [1] )

Nesta linha tem vindo a decidir uniformemente o Supremo Tribunal Administrativo, como pode ver-se, por exemplo, pelo acórdão de 13-11-2002, processo n.º 047932.

A relevância dos procedimentos previstos na lei assume especial relevância no domínio do direito tributário, em face da garantia constitucional de que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos ... cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei».

Por isso, não pode a Administração Tributária em vez de aplicar os métodos de cálculo de mais-valias e menos-valias previstos na lei, utilizar outros que, porventura, considere mais adequados.

É manifesto que a Autoridade Tributária e Aduaneira ao determinar o valor de mais-valias, não aplicou aquele n.º 2 do artigo 46º do CIRC, pois considerou como «custo de aquisição dos ativos e passivos transmitidos» pela Requerente A... os «valores pelos quais os mesmos se encontravam reconhecidos na sua contabilidade», em vez de atender ao custo histórico dos activos transmitidos, com as deduções prevista no n.º 2 do artigo 46.º.

Para além disso, também não foi considerada qualquer aplicação de coeficientes de desvalorização da moeda, como impõe o artigo 47.º do CIRC.

 Aliás, a Autoridade Tributária e Aduaneira, no presente processo, nem sequer afirma ter sido utilizado o método de cálculo previsto nos artigos 46.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, do CIRC, aventando, antes, razões para não o utilizar, dizendo nos artigos 61.º e 62.º da sua Resposta o seguinte:

 

61.

Acrescentamos que, do alegado pela requerente relativamente à alegada falta de aplicação do regime específico previsto nos artigos 46.º a 48.º do CIRC a todo o negócio, também nunca foram carreadas por si quaisquer provas tanto quanto à distribuição do valor do trespasse pelos diversos elementos patrimoniais transmitidos como relativamente ao alegado correcto apuramento de resultados efetuado pela recorrente na sequência da operação.


62.

Salientamos ainda que, relativamente à alegada falta de aplicação dos coeficientes de desvalorização da moeda (art.º 47.º do CIRC) tal apenas seria de aplicar a uma pequena parcela do negócio: ao ativo fixo tangível e ativos intangíveis cujo valor contabilístico (após dedução das depreciações e amortizações) na trespassante ascende a €236.952,63 e €33.839,75 respetivamente, e cujo valor de transmissão não se encontra especificado no contrato de trespasse de estabelecimento comercial conforme já referimos.

 

Ora, a alegada falta de colaboração da Requerente, quando gerar impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável, pode ser fundamento para utilização de métodos indirectos, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 87.º e da alíneas a) e b) do artigo 88.º da LGT, com observância do procedimento próprio, designadamente o preceituado nos artigos 57.º a 61.º do CIRC e 90.º e 91.º da LGT.

Mas, essa falta não pode ser justificação para utilizar métodos directos de determinação da matéria tributável não previstos na lei.

Para além disso, é óbvio que também não pode servir de pretexto para não aplicar os coeficientes de desvalorização da moeda a invocada circunstância de que «tal apenas seria de aplicar a uma pequena parcela do negócio», pois a lei não faz depender a sua aplicação da dimensão das parcelas dos negócios que geram mais-valias e menos-valias. Poderá ser uma ilegalidade de dimensão menor do que seria se os coeficientes de desvalorização tivessem de ser aplicados a uma grande parcela do negócio, mas não deixa de ser uma ilegalidade com potencialidade para justificar a anulação da liquidação, pois a lei não restringe os efeitos de vícios dos actos deste tipo em função da sua dimensão quantitativa.

Pelo exposto, tem de se concluir que a liquidação impugnada enferma de vícios de erros sobre os pressupostos de direito, que constituem vícios de violação de lei, que justificam a sua anulação de harmonia com o disposto no artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo subsidiariamente aplicável nos termos do artigo 2.º, alínea c), da LGT.

 

3.3. Erro de cálculo do valor de realização

 

A Requerente imputa ainda à liquidação impugnada vício por erro na determinação do valor de realização, para efeito de cálculo das mais-valias.

Como defende a Requerente, da alínea d) do n.º 3 do artigo 46.º do CIRC, resulta que «considera-se valor de realização» «nos casos de fusão, cisão, entrada de ativos ou permuta de partes sociais, o valor de mercado dos elementos transmitidos em consequência daquelas operações».

Também neste caso, o cálculo das mais-valias e menos-valias tem de ser efectuado com base em valor de mercado de cada dos elementos transmitidos e não com base no valor global dos negócios.

Assim, valem aqui as considerações que se fizeram no ponto anterior sobre a ilegalidade da utilização de métodos não previstos na lei.

Por isso, também por este erro sobre os pressupostos de direito se justifica a anulação da liquidação de IRC.

 

 

3.4. Liquidação de juros compensatórios

 

As liquidações de juros compensatórios têm como pressuposto a liquidação de IRC (artigo 35.º, n.º 8, da LGT), pelo que enfermam dos mesmos vícios que afectam esta liquidação, justificando-se também a sua anulação.

 

 

3.5. Questões de conhecimento prejudicado

 

Resultando do exposto a declaração de ilegalidade das liquidações de IRC e juros compensatórios que são objecto do presente processo, por vícios de vício de violação de lei, fica prejudicado, por ser inútil (artigos 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC), o conhecimento dos restantes vícios que lhes são imputados pela Requerente.

Pelo exposto, não se toma conhecimento dos restantes vícios imputados pela Requerente.

 

 

            4. Restituição de quantia paga e juros indemnizatórios

 

          A Requerente pagou a quantia de € 2.074,055,11 (documento n.º 7 junto com o pedido de pronúncia arbitral) e pede o seu reembolso com juros indemnizatórios.

          De harmonia com o disposto na alínea b) do artigo 24.º do RJAT, a decisão arbitral sobre o mérito da pretensão de que não caiba recurso ou impugnação vincula a Administração Tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação, devendo esta, nos exactos termos da procedência da decisão arbitral a favor do sujeito passivo e até ao termo do prazo previsto para a execução espontânea das sentenças dos tribunais judiciais tributários, «restabelecer a situação que existiria se o acto tributário objecto da decisão arbitral não tivesse sido praticado, adoptando os actos e operações necessários para o efeito», o que está em sintonia com o preceituado no artigo 100.º da LGT [aplicável por força do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º do RJAT] que estabelece, que «a administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamação, impugnação judicial ou recurso a favor do sujeito passivo, à imediata e plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, se for caso disso, a partir do termo do prazo da execução da decisão».

Embora o artigo 2.º, n.º 1, alíneas a) e b), do RJAT utilize a expressão «declaração de ilegalidade» para definir a competência dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD, não fazendo referência a decisões condenatórias, deverá entender-se que se compreendem nas suas competências os poderes que, em processo de impugnação judicial, são atribuídos aos tribunais tributários, sendo essa a interpretação que se sintoniza com o sentido da autorização legislativa em que o Governo se baseou para aprovar o RJAT, em que se proclama, como primeira directriz, que «o processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária».

O processo de impugnação judicial, apesar de ser essencialmente um processo de anulação de actos tributários, admite a condenação da Administração Tributária no pagamento de juros indemnizatórios, como se depreende do artigo 43.º, n.º 1, da LGT, em que se estabelece que «são devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido» e do artigo 61.º, n.º 4, do CPPT (na redacção dada pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a que corresponde o n.º 2 na redacção inicial), que «se a decisão que reconheceu o direito a juros indemnizatórios for judicial, o prazo de pagamento conta-se a partir do início do prazo da sua execução espontânea».

Assim, o n.º 5 do artigo 24.º do RJAT, ao dizer que «é devido o pagamento de juros, independentemente da sua natureza, nos termos previsto na lei geral tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário», deve ser entendido como permitindo o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios no processo arbitral.

Como o pagamento de juros indemnizatórios depende de existir quantia a reembolsar, insere-se no âmbito das competências dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD apreciar se há direito a reembolso e em que medida.

Cumpre, assim, apreciar os pedidos de restituição da quantia paga acrescida de juros indemnizatórios.

Na sequência da anulação da liquidação, a Requerente tem direito a ser reembolsada da quantia indevidamente suportada, no montante de € 2.074,055,11.

No que concerne ao direito a juros indemnizatórios, é regulado no artigo 43.º da LGT, que estabelece, no que aqui interessa, o seguinte:

 

Artigo 43.º

 Pagamento indevido da prestação tributária

 

1 – São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da dívida tributária em montante superior ao legalmente devido.

2 – Considera-se também haver erro imputável aos serviços nos casos em que, apesar da liquidação ser efectuada com base na declaração do contribuinte, este ter seguido, no seu preenchimento, as orientações genéricas da administração tributária, devidamente publicadas.

 

No caso em apreço, conclui-se que há erros nas liquidações de IRC e juros compensatórios que são imputáveis à Autoridade Tributária e Aduaneira, pois os praticou por sua iniciativa.

Os juros indemnizatórios devem ser calculados sobre a quantia de € 2.074,055,11 e ser contados desde 31-10-2019, data do pagamento, à taxa legal supletiva, nos termos dos artigos 43.º, n.º 4, e 35.º, n.º 10, da LGT, do artigo 61.º do CPPT, do artigo 559.º do Código Civil e da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril.

 

 

          5. Decisão

 

          Nestes termos, acordam neste Tribunal Arbitral em:

 

  1. julgar procedente o pedido de pronúncia arbitral;
  2. Anular a liquidação de IRC n.º 2018..., a demonstração de acerto de contas n.º 2018 ... e as liquidações de juros n.ºs 2018 ..., 2018 ... e 2018 ..., no valor global de € 2.074.055,11;
  3. Julgar procedente os pedidos de restituição de quantia paga e juros indemnizatórios e condenar a Autoridade Tributária e Aduaneira a pagar a Requerente a quantia de € 2.074.055,11, acrescida de juros indemnizatórios, nos termos do ponto 4 deste acórdão.

 

 

 

          6. Valor do processo

 

          De harmonia com o disposto no art. 306.º n.º 2, do CPC e 97.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT e 3.º, n.º 2, do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária fixa-se ao processo o valor de € 2.074.055 ,11.

 

 

          7. Custas

 

          Nos termos do art. 22.º, n.º 4, do RJAT, fixa-se o montante das custas em € 26.928,00, nos termos da Tabela I anexa ao Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária, a cargo Autoridade Tributária e Aduaneira.

 

Lisboa, 06-03-2020

 

 

Os Árbitros

 

 

 

(Jorge Lopes de Sousa)

 

 

 

 

(Elísio Brandão)

 

 

 

 

(Eduardo Paz Ferreira)

 

 

 

 



[1] FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, em Código do Procedimento Administrativo Anotado, 3.ª edição, página 40.

                Em sentido semelhante, pode ver-se o primeiro Autor em Curso de Direito Administrativo, volume II: «A lei não é apenas um limite à actuação da Administração: é também o fundamento da acção administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, não há um poder livre de a Administração fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir. pelo contrário, vigora a regra de que a Administração só pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faça". (FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, volume II, páginas 42-43.

                Em sentido idêntico, pode ver-se MARCELO REBELO DE SOUSA, Lições de Direito Administrativo, 1999, volume I, página 84, que refere: "Com o Estado pós-liberal, em qualquer das suas três modalidades, a legalidade passa de externa a interna. A Constituição e a lei deixam de ser apenas limites à actividade administrativa, para passarem a ser fundamento dessa actividade. Deixa de valer a lógica da liberdade ou da autonomia, da qual gozam os privados, que podem fazer tudo o que a Constituição e a lei não proíbem, para se afirmar a primazia da competência, a Administração Pública só pode fazer o que lhe é permitido pela Constituição e a lei, e nos exactos termos em que elas o permitem.".